ITINERÂNCIAS E PERCURSOS DA MEMÓRIA

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ITINERÂNCIAS E PERCURSOS DA MEMÓRIA Desenho que suporte a relação entre património, território e paisagem

Mariana Calvete Pereira Dissertação e Projeto para obtenção do Grau de Mestre em Arquitetura Orientador científico: Professor Doutor José Aguiar Co-Orientador: Professor Doutor Paulo Pereira Júri Presidente: Doutor João Sousa Morais Vogal: Arquiteto Paisagista João Gomes da Silva Orientador: Doutor José Aguiar Faculdade de Arquitetura, Universidade de Lisboa Lisboa, Novembro 2013


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TÍTULO | ITINERÂNCIAS E PERCURSOS DA MEMÓRIA SUB- TÍTULO | Desenho que suporte a relação entre património, território e paisagem

ALUNA | Mariana Calvete Pereira ORIENTADOR | Professor Doutor José Aguiar CO-ORIENTADOR | Professor Doutor Paulo Pereira

Mestrado Integrado em Arquitetura Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa Lisboa, Novembro 2013

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RESUMO À luz da situação de degradação e abandono em que muito do nosso património construído se encontra, e do geral desconhecimento da cultura, da paisagem, e dos lugares de Portugal, este texto procurou um retorno à viagem como forma primordial de entender estes valores. Assim, num momento em que todos tendem a olhar para o país com um certo desencantamento, desenham-se as Itinerâncias e Percursos da Memória, uma estratégia nacional que propicia a criação de percursos, troços de estrada onde património e paisagem se unem para contar a história da terra e das suas gentes a um ritmo devido. Pontuados por lugares onde o desenho arquitetónico contemporâneo é o ponto de partida para a descoberta da identidade e da memória. Na itinerância do Douro Ignoto demonstra-se como se desenha uma nova forma de dar a ver um antigo território, e no lugar de São Salvador do Mundo mostra-se como o desenho arquitetónico permite re habitar os seus lugares, trazendo novos usos e vivências.

PALAVRAS-CHAVE itinerância | paisagem | terra | identidade | património | viagem

MARIANA CALVETE PEREIRA | NOVEMBRO 2013

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TITLE | PATHWAYS OF MEMORY SUBTITLE | Design supporting the relationships between heritage, territory and landscape

STUDENT | Mariana Calvete Pereira MAIN ADVISOR | Professor Doutor JosĂŠ Aguiar CO-ADVISOR | Professor Doutor Paulo Pereira

Master in Architecture Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa Lisboa, November 2013

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ABSTRACT In the light of the degradation and abandonment that our built heritage is facing, and the general ignorance of culture, landscape and places in Portugal, this text seeks a return to the journey as the main way of perceiving these values. In a moment when people tend to look at the country with a certain disenchantment, we draw Pathways of Memory, a national project that allows the creation of paths, stretches of road where heritage and landscape come together to tell a story of a land and its people in the correct rhythm. Marked by places where contemporary design is the starting point for the discovery of identity and memory. The pathway of Douro Ignoto demonstrates how to draw a new way of looking at an ancient territory, and S達o Salvador do Mundo shows how architecture allows the reinhabitation of its places, bringing new experiences and uses.

KEY-WORDS pathway | landscape | territory | identity | heritage | journey

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AGRADECIMENTOS

Elaborar um trabalho de final de mestrado não é mais do que encerrar um primeiro capítulo. Ainda que seja o culminar de um percurso académico, é também o prelúdio a uma vida profissional que se quer pautada pela paixão pela arquitetura e pelo desenho. Por isso, gostaria de agradecer a todos os que fizeram parte desta viagem, e a tornaram tão rica. Em primeiro lugar, aos meus professores. Professor José Aguiar que desde o primeiro momento acreditou e apoiou as motivações destas itinerâncias, e que, com o seu humor do costume, mais do que dar respostas, me fez encontrar as perguntas certas. Pela constante disponibilidade e incentivo. Ao professor Paulo Pereira, pelas divertidas conversas, pela sua simplicidade e abertura e, claro, pela paciente revisão do trabalho. E ainda ao Professor Jorge Spencer, pela sua dedicação, pelas suas palavras e ensinamentos que ecoaram durante todo o meu percurso. Aos que me deram uma outra escola, ao Pedro Matos Gameiro, pela amizade, pela partilha e pelo imenso conhecimento. A todos os colegas e amigos, que acompanharam as horas de trabalho e, as não menos importantes, horas de descontração, em especial ao João, à Diana, à Sofia, ao Diogo, à Rita, e claro, aos de Leiria, aqueles de sempre. À longa lista de pessoas que tornaram este trabalho possível. Na Noruega, Mari Hvattum e Marianne Skjulhaug. Ao CEG. À Teresa Sousa Guedes e Laura Soares. À senhora Fernanda, ao padre Filipe, e restantes elementos da Fábrica da Igreja, que pela paixão que têm ao santuário de São Salvador do Mundo estiveram sempre disponíveis para uma ida ao Ermo. Ao senhor Carlos Froufe do município de São João da Pesqueira. Ao professor Álvaro Domingues pela disponibilidade para trocar breves e inquietamente acertadas palavras. Ao Duarte Belo pelas inspiradoras conversas e partilhas de viagem, e pela sua enorme paixão pelo nosso país. Aos meus pais, pela eterna confiança e apoio incondicional. A eles, restante família e amigos, pela paciência e respeito pelas longas horas em que a arquitetura me consume. E por último, gostaria de agradecer ao Bjarte, o que mais sofreu com todo este trabalho, pelo apoio diário e ajuda preciosa.

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ÍNDICE INTRODUÇÃO 1

I | OS PERCURSOS

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1 | PAISAGEM CULTURAL - IDENTIDADE E MEMÓRIA 1.1 | IDEIAS DE PAISAGEM

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1.2 | A NOSSA TERRA

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2 | TRILHOS DO PATRIMÓNIO 2.1 | O QUE SIGNIFICA, HOJE, PATRIMÓNIO?

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2.2 | DO MONUMENTO À PAISAGEM CULTURAL

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2.3 | PATRIMÓNIO DISPERSO E AS ROTAS

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3 | A VIAGEM, A ITINERÂNCIA 3.1 | VIAJAR, HABITAR A PAISAGEM

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3.2 | O SUBLIME

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4 | ARQUITETURA E PERCEÇÃO DA PAISAGEM CULTURAL

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4.1 | SUBLINHAR A PAISAGEM

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4.2 | OS NOSSOS TEMPOS

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4.3 | CONSTRUIR OU NÃO DESTRUIR, EIS A CONFUSÃO

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II | A PROPOSTA

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5 | ITINERÂNCIAS - AS REFERÊNCIAS 5.1 | NASJONAL TURISTVEGER - DISCUSSÃO CRÍTICA

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6 | ITINERÂNCIAS E PERCURSOS DA MEMÓRIA 6.1 | UM NOVO OLHAR PARA PORTUGAL

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6.2 | IDEIA, PROCESSO E METODOLOGIA

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6.3 | TRAÇOS DO NOSSO (OUTRO) TEMPO

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III | O PROJETO

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7 | A ESCOLHA DE UM TERRITÓRIO - O VALE DO DOURO 7.1 | OS UNIVERSOS DENTRO DO DOURO

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7.2 | ALTO DOURO VINHATEIRO - PAISAGEM CULTURAL

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7.3 | A (ÓBVIA?) ESCOLHA DO DOURO

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8 | O DESENHO DE UMA ROTA - O DOURO IGNOTO 8.1 | ENCONTRAR E REPRESENTAR AS SINGULARIDADES

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8.2 | A ESTRATÉGIA DA ITINERÂNCIA

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9 | QUATRO ÁREAS PARA A DESCOBERTA DE OUTRO TERRITÓRIO 9.2 | SÃO SALVADOR DO MUNDO

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9.3 | A LINHA DO DOURO DESATIVADA

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9.4 | ALPAJARES, A CALÇADA DO DIABO

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10 | SÃO SALVADOR DO MUNDO 10.1 | VERDADEIRO CONFRONTO ENTRE O SER HUMANO E A NATUREZA

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10.2 | UM PERCURSO CULTURAL

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IV | CONSIDERAÇÕES FINAIS

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V | BIBLIOGRAFIA

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VI | ANEXOS ANEXO I - LIVRO DAS ITINERÂNCIAS E PERCURSOS DA MEMÓRIA ANEXO II - LIVRO DA ITINERÂNCIA DO DOURO IGNOTO ANEXO III - LIVRO DE SÃO SALVADOR DO MUNDO ANEXO IV - LIVRO DE PROCESSO E REFERÊNCIAS

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ÍNDICE DE IMAGENS

1 | PAISAGEM CULTURAL - IDENTIDADE E MEMÓRIA FIGURA 1 | PAISAGEM CULTURAL - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 2 | VIDA NO CAMPO - Extraído de: DOMINGUES, Álvaro - Vida no Campo. Porto: Dafne Editora. 2011, capa FIGURA 3 | DESENHOS DO INQUÉRITO À ARQUITECTURA REGIONAL - Extraído de: AAVV - Arquitectura Popular em Portugal. Lisboa: Associação dos Arquitectos Portugueses. 1988 p.126-127

2 | TRILHOS DO PATRIMÓNIO FIGURA 4 | MOSTEIRO DE SALZEDAS - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 5 | JUDIARIA DE SALZEDAS - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 6 | ALDEIA AVIEIRA DO PATACÃO - Fotografia de Bjarte Stav FIGURA 7 | ITINERÂNCIA - Extraído de: HØYUM, Nina Frang; LARSEN, Janike Kampevold - Views. Norway Seen from the Road 1733-2020. Oslo: Press Publishing and The National Museum of Architecture. 2012

3 | A VIAGEM, A ITINERÂNCIA FIGURA 8 | ROTEIRO DE RAÍZES - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 9 | VIAGEM AO ORIENTE - LE CORBUSIER - A Viagem ao Oriente. São Paulo: Cosac & Naify. 2007 FIGURA 10 | ESQUISSOS DE VIAGEM - Extraído de: Álvaro Siza: Esquissos De Viagem. Documentos de Arquitectura. Porto: 1988 FIGURA 11 | THE EYES OF THE SKIN - Fotografia de Mariana Calvete

4 | ARQUITETURA E PERCEPÇÃO DA PAISAGEM CULTURAL FIGURA 12 | MÉRTOLA - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 13 | UM TRILHO NA PAISAGEM - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 14 | PIÓDÃO - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 15 | STONEHENGE - Disponível em http://blog.powersof10.com/ FIGURA 16 | LIGARES - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 17 | MUSEU DO CÔA VISTO DE UM DOS TROÇOS DA ITINERÂNCIA - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 18 | CASTELO VELHO DE NUMÃO - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 19 | ARQUITETURA VERNACULAR - Fotografia de Mariana Calvete

5 | ITINERÂNCIAS - AS REFERÊNCIAS FIGURA 20 | MAPA DA VIAGEM DO REI CHRISTIAN VI - Extraído de: HØYUM, Nina Frang; LARSEN, Janike Kampevold - Views. Norway Seen from the Road 1733-2020. Oslo: Press Publishing and The National Museum of Architecture. 2012 FIGURA 21 | VIEWS - Extraído de: HØYUM, Nina Frang; LARSEN, Janike Kampevold - Views. Norway Seen from the Road 1733-2020. Oslo: Press Publishing and The National Museum of Architecture. 2012 - Capa FIGURA 22 | NASJONALE TOURISTVEGER - Extraído de: LYSHOLM, Hege; BERE, Nina- Nasjonal Touristveger, 4º Ed. Oslo: Norsk Form. 2010 - Capa FIGURA 23 | TROLLSTIGEN - Extraído de: LYSHOLM, Hege; BERE, Nina- Nasjonal Touristveger, 4º Ed. Oslo: Norsk Form. 2010 FIGURA 24 | DØNING - Disponível em www.nasjonaleturistveger.no FIGURA 25 | SVANDALSFOSSEN - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 26 | EGGUM - Disponível em www.nasjonaleturistveger.no

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6 | ITINERÂNCIAS E PERCURSOS DA MEMÓRIA FIGURA 27 | UM NOVO OLHAR PARA POTUGAL - Wikipédia por Jose Manuel, baseado no publicado em Theatrum Orbis Terrarum, Abraham Ortelius,1570 em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Portugalliae_1561_(Baseado_no_primeiro_mapa_de_Portugal)-JM.jpg FIGURA 28 | O RURAL - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 29 | O HOMEM E A SUA MEMÓRIA - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 30 | SÍMBOLO - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 31 | ITINERÂNCIAS TERRITORIAIS - Elaborado por Mariana Calvete FIGURA 32 | ITINERÂNCIAS EM PORTUGAL - Elaborado por Mariana Calvete FIGURA 33 | SÍMBOLO - Elaborado por Mariana Calvete FIGURA 34 | WEBSITE - Elaborado por Mariana Calvete FIGURA 35 | INQUÉRITO À ARQUITETURA REGIONAL - Extraído de: AAVV - Arquitectura Popular em Portugal. Lisboa: Associação dos Arquitectos Portugueses. 1988 FIGURA 36 | DESENHAR COM O CONHECIMENTO - Extraído de: TRIGUEIROS, Luiz (edição) – Fernando Távora. Lisboa : Blau. 1992 FIGURA 37 | DESENHAR COM O CONHECIMENTO - Extraído de: TRIGUEIROS, Luiz (edição) – Fernando Távora. Lisboa : Blau. 1992

7 | A ESCOLHA DE UM TERRITÓRIO - O VALE DO DOURO FIGURA 38 | QUNTA DA CORTE - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 39 | ROTAS NO DOURO - Elaborado a partir de uma imagem do Google Maps FIGURA 40 | ÁREA DE INTERVENÇÃO NAS DIFERENTES DIVISÕES DE PORTUGAL - Elaborado a partir de mapas disponíveis na Wikipédia. FIGURA 41 | DOURO RELIGIOSO, O VALE DO VAROSA - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 42 | ALTO DOURO VINHATEIRO - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 43 | DOURO SUPERIOR - Fotografias aéreas de José Aguiar FIGURA 44 | AS CULTURAS DO DOURO - Cedida pelo Centro de Estudos Geográficos FIGURA 45 | A VINHA E AS AMENDOEIRAS - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 46 | MUROS EM PEDRA - Esquissos de Mariana Calvete FIGURA 47 | UM DIA EM CAMPELOS - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 48 | ARQUITETURA VERNACULAR - Extraído de: FAUVRELLE, Natália; ROSAS, Lúcia - Arquitecturas da paisagem vinhateira. Peso da Régua: Fundação Museu do Douro, 2008. FIGURA 50 | A REGIÃO DEMARCADA DO DOURO - Disponível em http://export.com.pt/ FIGURA 49 | MAPA DO DOURO PORTUGUES E PAIS ADJACENTE - Cartografia da Biblioteca Nacional - Catálogo digitalizado em http://www. bnportugal.pt/ FIGURA 51 | FIXAÇÃO DE POPULAÇÕES NO VALE DO DOURO - Extraído de: AAVV - Arquitectura Popular em Portugal. Lisboa: Associação dos Arquitectos Portugueses. 1988 FIGURA 52 | PATRIMÓNIO MUNDIAL AO LONGO DO DOURO IBÉRICO - Disponível em http://www.douroiberico.com/ FIGURA 53 | O DOURO RECONHECIDO... - A partir da pesquisa da palavra Douro no motor de busca www.google.com FIGURA 54 | ... E O OUTRO DOURO - Fotografias de Mariana Calvete

8 | O DESENHO DE UMA ROTA - O DOURO IGNOTO FIGURA 55 | UM NOVO OLHAR - Fotografia de Bjarte Stav FIGURA 57 | PENEDO DURÃO - Elaborado por Mariana Calvete a partir da Carta Militar a 1:25000 FIGURA 58 | TOPOGRAFIA EM SÃO SALVADOR DO MUNDO - Elaborado por Mariana Calvete a partir da Carta Militar na escala 1:25000 FIGURA 56 | TOPOGRAFIA DO VALE DO DOURO - Elaborado a partir da Carta Militar de Portugal à escala 1:25 000 FIGURA 60 | DOURO, FAINA FLUVIAL - Cenas do documentário Douro, Faina Fluvial, de Manoel de Oliveira em 1931 - Disponível em http:// vimeo.com/20497088 (visualizado em 22 de Agosto de 2013)

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FIGURA 61 | MAPA DAS LINHAS DE COMBOIO EM PORTUGAL, 1952 E ATUAL - Comboio de Portugal, disponível em www.cp.pt FIGURA 59 | AS ESTRADAS DO DOURO - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 62 | INFRAESTRUTURAS DO DOURO - Fotografia de José Aguiar; FIGURA 63 A 67 | INFRAESTRUTURAS DO DOURO - Fotografias de Mariana Calvete FIGURA 68 | PÁGINA DE UM CADERNO DE VIAGEM - Esquisso de Mariana Calvete FIGURA 69 | FRAGMENTOS DE VIAGEM - Elaborado por Mariana Calvete FIGURA 70 | LOCALIZAÇÃO DOS DESVIOS PARA AS ÁREAS A INTERVIR E OUTROS PONTOS DE INTERESSE: Elaborado a partir de vista aérea do Google Maps FIGURA 71 | ITINERÂNCIA DOURO IGNOTO - Elaborado por Mariana Calvete

9 | QUATRO ÁREAS PARA A DESCOBERTA DE OUTRO TERRITÓRIO FIGURA 72 | LUGAR DO CACHÃO DA VALEIRA - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 73 | SINALIZAÇÂO ALGURES NO VALE DO VAROSA - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 75 | SÃO PEDRO DAS ÁGUIAS - Fotografia de Bjarte Stav FIGURA 74 | SÃO SALVADOR DO MUNDO - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 77 | CALÇADA DE ALPAJARES - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 76 | ESTAÇÃO DE ALMENDRA - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 78 | VALE DO TÁVORA - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 79 | ÁREA DE INTERVENÇÃO VALE DO TÁVORA - Elaborado por Mariana Calvete com base na Carta Militar de Portugal 1:25.000 FIGURA 80 | VISTA DA ESTRADA N323 - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 82 | VISTAS INTERIORES ANTES DO RESTAURO - DGEMN FIGURA 81 | ACESSO À IGREJA - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 83 | INTERVENÇÕES AO REDOR DE S. PEDRO DAS ÁGUIAS - Fotografias de Mariana Calvete FIGURA 84 | IMPLANTAÇÃO DAS DUAS INTERVENÇÕES - Ilustrações elaboradas por Mariana Calvete FIGURA 85 | TROÇO DA N323 E QUINTA ABANDONADA - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 86 | INTERVENÇÃO NA PLATAFORMA DE CHEGADA DA ESCADA - Ilustração elaborada por Mariana Calvete FIGURA 87 | CURVA E CONTRA CURVA - Ilustrações elaboradas por Mariana Calvete FIGURA 88 | VISTA DA ERMIDA DE SANTA BÁRBARA - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 89 | ÁREA DE INTERVENÇÃO SÃO SALVADOR DO MUNDO - Elaborado por Mariana Calvete com base na Carta Militar de Portugal 1:25.000 FIGURA 90 | QUINTA DO CIDRÔ - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 91 | MIRADOURO DE LURDES - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 92 | QUINTA DO CIDRÔ - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 93 | MIRADOURO DE LURDES - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 94 | CAMPELOS - Esquisso de Mariana Calvete FIGURA 95 | PLATAFORMA DE OSERVAÇÃO EM CAMPELOS - Ilustração elaborada por Mariana Calvete FIGURA 96 | VISTA PARA A ESTAÇÃO DO CÔA - Disponível em Foto Felizes http://fozcoafriends.blogspot.pt/ FIGURA 97 | ÁREA DE INTERVENÇÃO 3 - A LINHA DO DOURO DESATIVADA - Elaborado por Mariana Calvete com base na Carta Militar de Portugal 1:25.000 FIGURA 98 | TOMADAS PELA NATUREZA - Fotografias de Mariana Calvete FIGURA 99 | COCHEIRA E PONTE ROTATIVA, BARCA D’ALVA - Disponível em http://www.espirito-de-aventura.iblogger.org FIGURA 100 | CASA DE APOIO À LINHA PERTO DA PONTE DE AGUIAR - Disponível em http://www.espirito-de-aventura.iblogger.org FIGURA 101 | CAMINHEIROS DA LINHA DO DOURO - Disponível em http://www.espirito-de-aventura.iblogger.org FIGURA 102 | RUÍNAS - Fotografias de Mariana Calvete FIGURA 103 | INTERVENÇÃO ESTAÇÃO DO CÔA - Elaborado por Mariana Calvete FIGURA 104 | ESTAÇÃO DE ALMENDRA - Ilustração elaborada por Mariana Calvete

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FIGURA 105 | INTERVENÇÃO ESTAÇÃO DE ALMENDRA - Elaborado por Mariana Calvete FIGURA 106 | PERCURSO PEDESTRE - Elaborado por Mariana Calvete com base na Carta Militar de Portugal 1:25.000 FIGURA 107 | ÁREA DE INTERVENÇÃO - Elaborado por Mariana Calvete com base na Carta Militar de Portugal 1:25.000 FIGURA 108 | CALÇADA DE ALPAJARES - IGESPAR - Disponível em http://www.igespar.pt/ FIGURA 109 | CALÇADA DE ALPAJARES - Museu do Douro - Disponível em http://www.museudodouro.pt/ FIGURA 110 | CENTRO DE INTREPRETAÇÃO DA RIBEIRA DO MOSTEIRO - IGESPAR - Disponível em http://www. igespar.pt/ FIGURA 111 | CALÇADA DE ALPAJARES - IGESPAR - Disponível em http://www.igespar.pt/ FIGURA 112 | SALZEDAS, ALPIARÇA, NISA - Fotos de Bjarte Stav

10 | SÃO SALVADOR DO MUNDO FIGURA 113 | RIO DOURO VISTO DO SANTUÁRIO DE SÃO SALVADOR DO MUNDO - Foto nº 5622 do espólio de Orlando Ribeiro cedida pelo Centro de Estudos Geográficos FIGURA 114 | TUNEL DA VALEIRA - Disponível em http://www.luminous-lint.com/app/tags/4/100%7CPortugal$/ FIGURA 115 | ÁREA ABRANGENTE PELA CALSSIFICAÇÃO DA UNESCO - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 116 | ÁREA ABRANGENTE PELA CALSSIFICAÇÃO DA UNESCO - UNESCO - Disponível em http://whc. unesco.org/ FIGURA 117 | LOCALIZAÇÃO DE SÃO SALVADOR DO MUNDO - Elaborado por Mariana Calvete com base na Carta Militar de Portugal 1:25.000 FIGURA 118 | TOPOGRAFIA EM SÃO SALVADOR DO MUNDO - Elaborado por Mariana Calvete a partir da Carta Militar na escala 1:25000 FIGURA 119 | UM PERCURSO CULTURAL - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 120 | UM PERCURSO CULTURAL - Elaborado por Mariana Calvete com base na Carta Militar de Portugal 1:25.000 FIGURA 121 | ACESSO AO SANTUÁRIO - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 122 | ACESSO AO SANTUÁRIO - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 123 | ESPAÇO DE CHEGADA - Elaborado por Mariana Calvete FIGURA 124 | CASA DO ERMITÃO - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 125 | CASA DO ERMITÃO - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 126 | QUINTA DA VALEIRA - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 127 | AS RUINAS DA QUINTA DA VALEIRA - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 128 | NORDISK KUNSTNARSENTER, HAGA & GROV, DALE - Disponível em http://www.nkdale.no/ FIGURA 129 | CORTE PELO CACHÂO DA VALEIRA - Elaborado por Mariana Calvete FIGURA 130 | BARRAGEM DA VALEIRA - Disponível em http://cnpgb.inag.pt/gr_barragens/gbportugal/Valeirades.htm FIGURA 131 | BARRAGEM DA VALEIRA - Disponível em http://cnpgb.inag.pt/gr_barragens/gbportugal/Valeirades.htm FIGURA 132 | CACHÃO DA VALEIRA - Emilio Biel - Retirado de http://portojofotos.blogspot.pt/2013_06_10_archive. html FIGURA 133 | INSCRIÇÃO - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 134 | CACHÃO DA VALEIRA - Extraido de GUIMARÃES, J.A. Gonçalves - São Salvador do Mundo santuário duriense. 2007. FIGURA 135 | PLATAFORMA DE APOIO À CONSTRUÇÃO DA BARRAGEM - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 136 | MEMORIAL DA VALEIRA - Elaborado por Mariana Calvete FIGURA 137 | ALOJAMENTO - Elaborado por Mariana Calvete FIGURA 138 | SOLAR ABANDONADO - Fotografia de Mariana Calvete FIGURA 139 | O SENHOR ANTONINHO NO ANTIGO ABRIGO DOS ROMEIROS - Fotografia de Mariana Calvete

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INTRODUÇÃO

O tema desta dissertação assenta na exploração de relações entre património, território e paisagem, encontrando formas de organizar a sua percepção e de habitar os seus lugares através do desenho arquitetónico. À luz da situação de degradação e abandono em que muito do nosso património construído se encontra, ambiciona-se lançar hipóteses para a sua revitalização, de modo a que estes espaços se tornem propícios à criação de mais valias para os seus visitantes e os habitantes locais. O interesse sobre este tema ressurgiu pelo contato pessoal com o Nasjonal Turistvegar (National Tourist Routes) na Noruega, durante um ano de Erasmus. Este projeto resultou de uma ideia simples para a divulgação nacional e internacional deste país. Foram escolhidos 18 troços de estrada, considerados representativos da paisagem norueguesa e foram convidados arquitetos e artistas contemporâneos a desenhar pequenas intervenções em alguns pontos ao longo dessas rotas, assim, o percurso em si torna-se mais do que apenas a ligação entre o ponto de partida e o de chegada. There are still roads that are not merely designed to get you to your destination as quickly as possible. National Tourist Routes are beautiful drives with that little bit extra.

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Com a consciência de que muita da cultura do território e dos lugares de Portugal não é de todo conhecida pelo resto do mundo, muitas vezes, nem pelos próprios portugueses, ao regressar às origens, surgiu a ideia de adotar uma visão semelhante, mas para um país com um contexto social, cultural e económico muito distinto. Por cá, a estratégia deve ser um pouco diferente, em vez de ambicionar desenhar arquitetura inovadora - como no pais nórdico - propõe-se repensar e revitalizar a conexão de

1 Descrição do projeto disponível em http://www.nasjonaleturistveger.no/en, consultado em 10 Janeiro 2013

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lugares e edifícios de grande valor paisagístico e arquitetónico construídos ao longo de séculos e que está disperso pelo nosso território. Assim, este projeto consiste também em olhar para as estradas não enquanto troços que ligam A a B, mas enquanto trajetos cheios de história que recuperam a memória das nossas raízes, trajetos que podem e devem ser desenhados e restituídos. Apesar do aparente paradoxo, propõe-se encontrar uma forma de desenhar itinerâncias que, por um lado, tenham determinados pontos de intervenção específicos mas que, por outro lado, incentivem a curiosidade para a exploração alargada da sua envolvente. O retorno à viagem como forma de nos perdermos, reencontrando-nos num determinado território. Não se pretende, assim, promover o desenho de grandes equipamentos, mas antes proporcionar uma estratégia de acupuntura arquitetónica que desenhe novas, ou antigas, formas de dar a ver lugares redescobertos através do conhecimento e da inteligência do desenho contemporâneo. Para além de entender as lógicas intrínsecas de um só edifício, é explorada a sua relação com outros edifícios e contextos e com a sua envolvente paisagística. As sequências espaciais - de onde chegar, como parar, de onde ver e ser visto -, levam ao reconhecimento e a partir para novas descobertas. É também intenção deste trabalho de final de mestrado desenvolver uma ideia nas suas várias escalas e fases partindo da premissa de que um arquiteto deve estar munido de bagagem que lhe permita, não só resolver problemas específicos de desenho, mas também ter a capacidade de fazer uma leitura cultural e social que o levem a desempenhar um papel ativo no debate e na sugestão de novas estratégias para o país no âmbito do seu ofício. Este trabalho começa com uma ideia para uma estratégia nacional, inspirada pelo estudo de casos de sucesso internacionais. Apesar do desejo de alargar a discussão a esta escala, foi desde o principio evidente a necessidade de escolha de um território específico para intervenção. Sendo que a metodologia desta investigação assenta na procura de um conhecimento local muito específico, foram fundamentais as viagens e as conversas locais. Nelas se desenhou a Itinerância do Douro Ignoto. Escolheram-se quatro áreas de estudo representativas de uma novo olhar para este território, onde foram delineadas quatro estratégias de intervenção. Em prol da qualidade da argumentação escrita e gráfica inerente a todo processo do desenho arquitetónico foi escolhido apenas o lugar de São Salvador do Mundo, acreditando que com este projeto específico se demonstra o que pode ser feito noutros locais. A problematização teórica do tema assim como o desenho do projeto na sua vasta amplitude de escalas foram desenvolvidos em paralelo o que reforçou a sua coerência

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e propiciou o desenvolvimento de uma maior relação. A linha que separa o teórico e o prático é muito ténue e por vezes paradoxal, visto que o desenho de uma rota é, em princípio, uma concepção mental traduzida num mapa, mas que aqui se pretende materializar numa itinerância com intervenções desenhadas. Acredita-se que só uma leitura das várias escalas possibilita o entendimento da ideia e o surgimento de nexos de relação entre a investigação e o desenho. O processo deste projeto tem uma composição singular que se traduz, nesta dissertação, em três partes: A parte I PERCURSOS demonstra as inquietações que motivaram este trabalho e a investigação feita com o propósito de documentar o panorama atual. Identifica-se um conjunto de reflexões e ideias que o desenho destas itinerâncias suscita. Estabelecidas as balizas temáticas, na parte II PROPOSTA propõe-se um olhar crítico ao caso de estudo que deu o mote a esta investigação, e de outros casos pertinentes. Enunciam-se os fundamentos das Itinerâncias e Percursos da Memória. Por fim, na parte III PROJETO procura-se centrar a reflexão no desenho, lançando as pontes entre os conceitos discutidos e a dimensão operativa do projeto. Consiste na demonstração prática do desenho da itinerância do Douro Ignoto. Apresenta-se todo o processo, desde a escolha do território até à reabilitação dos edifícios antigos e do desenho de novos espaços. Devido à quantidade de informação escrita e gráfica inerente a este longo processo, foi indispensável a organização de livros de trabalho que foram incluídos como anexos. Fora do caráter científico deste texto, estes livros de trabalho conseguem colmatar a comunicação do que foi esta viagem. Em conjunto, estes documentos ambicionam inspirar e guiar outros projetos dentro deste espírito, novas itinerâncias.

MARIANA CALVETE PEREIRA | NOVEMBRO 2013

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I | OS PERCURSOS Em termos de identidade, nada é simples. Vamos abandonar o nosso território? Vamos esquecer a terra? É nela que nos apoiamos, dela que nos alimentamos, ela que condiciona as nossas comunicações físicas. Nela moraram os nossos antepassados. Marcados pelo território, transmitiram-nos as estruturas sociais com que nos organizamos, as técnicas agrícolas que em parte a dominam, e tudo o mais que foi moldando o nosso território até hoje. Território é o elemento permanente da identidade. (...) Por outro lado, há uma história nacional que só se compreende devidamente quando se tem presente a diversidade de comportamentos próprios das regiões, e a influência que estes tiveram nas alterações do rumo do país. 2 José Mattoso, Suzanne Deveau, Duarte Belo, 2010

Interessa, em primeiro lugar, compreender os temas e questões que motivaram este trabalho, um conjunto de inquietações sobre a temática da intervenção arquitetónica contemporânea dialogante com o património construído, erudito e vernacular, como um ato fundamental para a percepção e construção cultural da paisagem. Entenda-se a revisitação dos temas da memória, do povo e a sua identidade e da viagem, como a forma primordial de entender os valores do património do nosso pais, seja ele natural ou construído, material ou imaterial.

2 MATTOSO, José; DAVEAU, Suzanne; BELO, Duarte. Portugal, O Sabor da Terra. Um retrato histórico e geográfico por regiões. Lisboa: Temas e Debates. 2010 p.6

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FIGURA 1 | PAISAGEM CULTURAL Toda a Natureza é mensurável e a cultura é a parte da natureza que já foi medida. Medir é colocar ordem no confuso, sem quantificar não me oriento: perco-me. E o homem perdido tem medo. A floresta é o expoente do natural: aí o medo faz casa.

IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete TEXTO: Gonçalo M. Tavares - Opúsculo 14, Arquitetura, Natureza e Amor p.4


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1 | PAISAGEM CULTURAL - IDENTIDADE E MEMÓRIA (...) pediu-me um livro para a coleção Universitas. Grande alegria minha. A noite fixara-me no título: Portugal, produtor de Homens.3 Orlando Ribeiro, 1941 Nas páginas que se seguem o termo paisagem tem lugar de destaque. Desde a sua dimensão mais poética, passando pelas relações mais pragmáticas até às questões culturais, procura-se construir um imaginário que abra caminho para o entendimento do conceito de paisagem à luz da proposta apresentada. Pela extensão do campo de discussão, que se insere em tantas disciplinas e envolve tantas perspetivas, são apenas apontados alguns dos aspetos que podem interessar para o trabalho, deixando inevitavelmente de fora alguns temas interessantes. Porque paisagem é um daqueles conceitos que fomos alargando, ao longo dos tempos, procurando ansiosamente abraçar o mundo visível com uma possível explicação. 4

1.1 | IDEIAS DE PAISAGEM Etimologicamente o termo paisagem tem origem no francês paysage do latim pagus, 3 Nota escrita por Orlando Ribeiro no seu caderno, no dia 31 de Maio de 1941, quando lhe foi proposto que escrevesse um dos mais marcantes livro acerca do território português e a sua identidade - Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico. A nota é lida por Suzanne Deveau no documentário Orlando Ribeiro - Itinerâncias de um Geógrafo - António João Saraiva e Manuel Carvalho Gomes - disponível em http://doc-orlandoribeiro.blogspot.pt - Visualizado em Maio 2013 4  Manuel Graça Dias no Jornal dos Arquitetos, nº206 - Maio/Junho 2002

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que significa campo ou território cultivado. Enquanto, no seu uso imediato, o termo paisagem não é mais do que a extensão de território que se abrange com um lance de vista, ou tantas vezes um desenho ou quadro que representa um sítio campestre5, quando elevamos essa paisagem à sua dimensão patrimonial encontramos um universo mais complexo. O imaginário estático, sereno e virgem evocado pelas ideias anteriores é povoado pela complexidade da sucessão de eventos e transformações humanizadoras que foram redesenhando a paisagem em prol das funções e usos necessários à sobrevivência das sociedades que habitam sobre um território, este primordialmente natural. Vincada pelas marcas deixadas por estas sucessivas transformações naturais e humanas, a paisagem contêm em si uma poderosa memória antropológica. Natureza feita pelo homem: Sempre! A repetição das formas, iguais, diferentes, continuas, paralelas, convergentes… À procura da vida. Como os gestos dos homens que fizeram a paisagem e por ela foram feitos.6 No seu texto A Paisagem Revisitada7, o geógrafo Álvaro Domingues reflete acerca desta súbita procura social da paisagem, tema que outrora se restringia ao campo da geografia. Para além de indagar sobre o universo abrangido pelo termo, levanta questões associadas a quem fala sobre ele. Este autor, com vasta obra publicada sobre estas inquietações, tem sobre elas uma peculiar abordagem, pela sua Rua da Estrada e na Vida no Campo, percebemos de que forma nos mostra os outros cenários para concepções que são por vezes demasiado idealizadas. A Rua da Estrada é como um centro em linha, uma corda onde tudo se pendura; uma estrada-mercado. O problema da Rua da Estrada é a fímbria de espaço que está entre o asfalto e os edifícios (...) perdeu quase toda a poética e a estética da lonjura e da evasão. Já não é o traço de asfalto que se acomoda à morfologia da paisagem, as subidas gloriosas, os altos com vistas de perder a respiração, o serpentear ao longo de um vale ou um traço que se funde no horizonte de uma planície. 8

5  Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, disponível em http://www.priberam.pt , consultado em 20 de Maio 2013 6  António Barreto sobre o Douro, citado em http://tempocaminhado.blogspot.pt/, consultado em 29 de Maio 2013 7 DOMINGUES, Álvaro - A paisagem revisitada, em Finisterra: Revista portuguesa de geografia, vol.36, no72, p. 55-66. Disponível em http://www.ceg.ul.pt/finisterra/numeros/2001-72/72_05.pdf , consultada em Agosto de 2013 8 DOMINGUES, Álvaro - A Rua da Estrada. Porto: Dafne Editora. 2009

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FIGURA 2 | VIDA NO CAMPO É difícil reaprender o rural e sobre ele construir novas identidades. É difícil encontrar continuidades entre as memórias mais ou menos ficcionadas do passado e o que lhes está a acontecer. É difícil, sobretudo, controlar as emoções acerca do que acontece. Estamos a um passo de uma crise total de sentido.

IMAGEM e TEXTO: Álvaro Domingues, Vida no Campo

1.2 | A NOSSA TERRA Não é possível falar de paisagem e território como fundacionais de uma identidade nacional sem evocar os nomes de Orlando Ribeiro e José Mattoso. O primeiro deles, pioneiro geógrafo, estudou e documentou exaustivamente a imensa paisagem portuguesa. Os seus textos e famosas fotografias são fundamentais para entender as divisões geográficas do país. Percorrer a obra de Orlando Ribeiro é ir de encontro a uma fonte inesgotável da cultura do nosso povo. Na obra Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico faz uma síntese das características determinantes do nosso território, finalizando com uma reflexão sobre o que nos une e o que nos afasta. Afirma que a paisagem de hoje corresponde a um produto do passado e constitui por isso, um registo da memória coletiva, como a língua e a religião. E o mais espantoso é que, como a língua e a religião, também a paisagem se atualiza.9 José Mattoso - nome de referência da História enquanto disciplina -, que em várias obras procura, por sua vez, refletir sobre a nossa identidade, a nacional, e a regional. A sua obra A Identidade Nacional, expõe pensamentos sobre a evolução dessa identidade ao longo do tempo. A existência de uma identidade regional fundada pela sua terra, é tema desenvolvido em texto e em fotografia na obra Portugal, O Sabor da Terra - um retrato histórico e geográfico por regiões em que colabora a geógrafa Suzanne Daveau - viúva de Orlando Ribeiro, com quem partilhou a paixão pelo território - e o arquiteto e fotógrafo Duarte Belo. Este livro, tal como a proposta que se apresenta, procura traçar um retrato do país pela singularidade das suas regiões. Tornou-se uma das principais referências deste 9 Jorge Gaspar citado em D’ABREU, Alexandre Cancela; CORREIA, Teresa Pinto Correia - Contributos para a identificação e caracterização da paisagem em Portugal. Évora : Departamento de Planeamento Biofísico e Paisagístico. 2004

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trabalho; as palavras de José Mattoso foram guiando o traçado das itinerâncias e acompanhando muitas das viagens entretanto empreendidas. Neste mesmo propósito, interessa referir o Guia de Portugal, editado pela Fundação Calouste Gulbenkian entre 1924 e 1970 com colaboração dos mais ilustres escritores portugueses.10 Este guia é particularmente interessante por não se organizar pelos pontos de atração turística, como é habitual, mas pelas estradas que se percorrem para a eles chegar. Incluindo elaboradas descrições do que se observa ao longo do caminho e sugerindo pontos interessantes, não só pela sua existência material, mas também pelas histórias e mitos a que estão associados. Contribui para uma perceção do território, vívida e literariamente rica, para mais, num quadro hoje já modificado. Duarte Belo, autor de um dos maiores catálogos fotográficos do nosso país, parcialmente publicado em Portugal Património, e - resultado de mais de 25 anos a fotografar sistematicamente o património e o território -, faz uma interessante retrospectiva da obra fotográfica de Orlando Ribeiro em Portugal - Luz e Sombra, O País depois de Orlando Ribeiro11 Revisitou alguns do lugares fotografados pelo geógrafo e fez novas fotografias. Explica que o Portugal que nos mostra Orlando Ribeiro é um Portugal de pobreza, de fracos recursos, mas simultaneamente, da persistência e da luta ancestral pela sobrevivência. (...) há algo que relacionamos com a identidade de Portugal. Há um país que parecia eterno, aquele que associávamos a um passado lento e antigo, perene. De repente tudo parece ter-se alterado e, mesmo esse passado, parece estar a desaparecer.

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Estas fotografias lembram a incontornável figura de Eduardo

Lourenço e o seu discurso crítico sobre as imagens que de nós mesmos temos forjado. Só se ama aquilo que se conhece. É também de uma história de amor que este livro trata: amor pela paisagem, amor pelo território, amor pela arquitetura nascida “deste chão duro e ruim” de que falou Miguel Torga e que Orlando Ribeiro tão bem compreendeu. É desse amor que tem de nascer a vontade de imaginar um futuro para o passado. E é talvez essa a principal mensagem deste livro, hoje.13 Nos anos 50, o país foi palmilhado e lambretado pelos jovens arquitetos que partiam

10 Ainda hoje muito estimada, esta colecção é abundantemente ilustrada com mapas, plantas e gravuras. Contou com a colaboração de: Miguel Torga, Jorge Dias, Aquilino, Jaime Cortesão, Reynaldo dos Santos, Diogo de Macedo, Teixeira de Pascoais, Vitorino Nemésio, Raul Brandão, Amorim Girão, Ferreira de Castro, Egas Moniz, Aarão de Lacerda, José Rodrigues Migueis, Montalvão Machado, Afonso Lopes Vieira, António Sérgio entre outros. 11 BELO, Duarte - Portugal - Luz e Sombra, O País depois de Orlando Ribeiro. Lisboa: Círculo de Leitores/ Temas e Debates. 2012 12 Ibidem p.299 13 AAVV - Arquitectura Popular em Portugal. Lisboa: Associação dos Arquitetos Portugueses. 1988 Helena Roseta no prefácio à 4ª edição. p. V a VIII

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à descoberta do que seria a verdadeira arquitetura portuguesa.14 O Inquérito à Arquitetura Regional Portuguesa (1955 a 1960), constitui um marco importante na procura desta identidade: seis equipas de arquitetos em seis regiões, à procura do seu retrato arquitetónico, procuraram reconhecer o seu ambiente natural, saber da sua gente, como vive e de quê, entrar no espaço das suas casas e descobrir a ordem que lhes puseram, compreender os materiais dominantes sob as formas em que os talharam.15 É talvez o mais genuíno retrato da nossa arquitetura, que se propõe revisitar nestas itinerâncias, com o mesmo amor e com a mesma vontade de imaginar um futuro para o nosso passado. Note-se, ainda, que este trabalho representou um corte metodológico com uma visão essencialista, ou mesmo sintética, do entendimento do habitat português. Foi, em certo sentido, uma resposta realista, como refere Paulo V. Gomes, a processos de idealismo formal, como o que representou, não sem interesse, como é óbvio, a proposta de Raul Lino para a Casa Portuguesa (1918, 1930). Quer isto dizer, que esse retrato deixado pelo Inquérito, é a realidade do vernacularismo, e não a sua imagem idealizada, e até, folclórica. Aspectos como os da Tipologia (enquanto categoria de análise), a da materialidade objetual, e contributos da área da Geografia Humana ou da então nascente Antropologia, informaram estes arquitetos, que se encontravam, interessantemente, entre uma das primeira gerações do internacionalismo, mostrando cabalmente, como contemporaneidade, memória e tradição podiam encontrar-se num diálogo profícuo, mais tarde desenvolvido por Fernando Távora, um dos participantes, e pela chamada Escola do Porto. Essa paisagem registada pelo Inquérito seria em suma, mais verdadeira, e real. Não que seja, a que hoje existe, mas a que foi mediada pelo desenho e pela fotografia e que suporta uma visão crítica sobre o território. E onde constata o inevitável: neste palco de inquietações, sabemos também, e sob a evidência e eloquência dos levantamentos então realizados, que a paisagem se encontra permanentemente em ameaça de destruição, ou se quisermos ser mais precisos e menos judicativos, em permanente processo de mutação - a poluição, os desastres naturais, as guerras, a crescente urbanização a exploração dos recursos naturais, a pobreza e até a massificação do turismo - eis os fatores com que a contemporaneidade se confronta: quer queira, quer não, é com eles que tem de se confrontar compreendendo a sua posição no âmbito alargado das estratégias de preservação do património.

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Ibidem Ibidem

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FIGURA 3 | DESENHOS DO INQUÉRITO À ARQUITECTURA REGIONAL Em três meses de deambulações, percorreram seis grupos cerca de 50.000 quilómetros, de automóvel, de “scooter”, a cavalo, a pé. Detiveram-se em centenas e centenas de povoados, nos quais fizeram cerca de 10.000 fotografias, centenas de desenhos e de levantamentos e tomaram milhares de notas escritas. Na posse dessa bagagem, deram início, em conjunto, a um trabalho de ordenação, classificação e análise sistemática, que se prolongou por mais de um ano. TEXTO E IMAGEM: AAVV - Arquitectura Popular em Portugal. Lisboa: Associação dos Arquitectos Portugueses. 1988

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A autenticidade, o despojamento, a sábia utilização de materiais, a resposta eficiente às necessidades, mas também a variedade de soluções, a beleza formal, a harmonia com a paisagem foram ensinamentos inesquecíveis para toda aquela geração. Ao ser revisitado, o nosso país revelou qualidades insuspeitas.16 Não podemos esquecer que o que nos pode ajudar a sobreviver, num mundo global e competitivo, é precisamente a nossa diferença, alimentada pelas raízes da nossa identidade, de que a arquitetura popular comunga. O estudo objetivo e sistemático da arquitetura popular portuguesa está feito, falta encontrar uma forma operativa de o mostrar, que deve ser também uma forma de incentivar a sua preservação. Quase como um revisitar deste Inquérito, propõem-se uma nova viagem, agora para além de um levantamento, é preciso desenho, é preciso criar novo, também sistematicamente, também em todo o país, também por jovens arquitetos. Pretende-se causar um impacto positivo nos modos de vida locais, que a chegada de visitantes não irá descaracterizar, antes poderá reforçar, através das novas dinâmicas socioculturais geradas, no que tem de melhor, de mais autêntico. Porque património como disse Fernando Távora, é só um: passado, presente e futuro.

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AAVV - Arquitectura Popular em Portugal, 1988 op cit

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FIGURA 4 | MOSTEIRO DE SALZEDAS A cultura é assim a natureza a que retirámos o medo, como se este fosse uma substância, e esta substância desaparecesse com o ato de medir. Medir é apagar a floresta, é fazer o seu desaparecimento. Fazer desaparecer a Natureza ou ter a ilusão de que ela desapareceu é a marca da cidade. Um vaso de flores não é uma floresta: Podemos rodear o vaso—que não é uma síntese da natureza, mas uma redução - podemos rodear o vaso, mas não rodeamos a floresta - só se estivermos exteriores a ela - somos sim rodeados pela floresta. Percorrer algo é digerir. Digerimos o vaso, somos digeridos pela floresta quando nela nos perdemos.

IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete TEXTO: Gonçalo M.Tavares - Opúsculo 14, Arquitectura, Natureza e Amor p. 4


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2 | TRILHOS DO PATRIMÓNIO Que significa hoje o termo património? Para esgotar o seu significado teríamos de fazer um inventário borgesiano. Não designa esta palavra, simultaneamente, todos os objetos naturais, todas as obras culturais, materiais e imateriais, todas as tradições, atividades, crenças, pertencentes a um passado distante e cada vez mais recente, e valorizadas devido ao seu interesse histórico, científico, artístico, afetivo, identitário...?17

Françoise Choay, 2005 É muito vasto o território da discussão acerca do património, desde a sua própria significação até às formas de o preservar e valorizar. É fundamental familiarizarmo-nos com o conceito alargado de património, percorrer os seus trilhos, de modo a encontrar um fio condutor entre paisagem cultural e património construído.

2.1 | O QUE SIGNIFICA, HOJE, PATRIMÓNIO? A palavra património em si está carregada de significados. O termo tem origem no latim patrimonium, segundo o Grande Dicionário Aurélio da língua portuguesa significa - herança paterna; bens de família (bens que se herdam dos pais, ou dos avós, herança paterna, bens de família); dote dos ordinandos; bem, ou conjunto de bens culturais ou naturais, de valor reconhecido para determinada localidade, região, país, ou para a humanidade. No seu pequeno livro Património e Mundialização18, Françoise Choay descortina a

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CHOAY, Françoise - Património e Mundialização. 2º Ed Lisboa : Editora Licorne, 2005 p.17 Ibidem

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evolução do conceito de património a partir de três questões: genealógica, etiológica e semântica, questionando - Como é que foi que, do sentido inicial de bem de herança transmitido, segundo as leis, dos pais e mães para os filhos, chegámos à atual abundância semântica? 19 Com efeito, é a noção de herança que prevalece, uma vez que a transmissibilidade parece ser essencial. No caso dos bens culturais, essa transmissibilidade decorre de uma escolha feita por diferentes gerações de modo a legar, incólume, um determinado bem às gerações vindouros. Naturalmente que o “valor” - o munus -. foi secundarizado neste processo de avanço semântico da palavra Património. Assim, embora hoje a palavra seja naturalmente utilizada num sentido antigo - de permanência de um bem num determinado quadro, mesmo que este não possua valor cultural -. o facto é que se generalizou a noção de que tal palavra se refere, quase sempre a esses bens cujo valor cultural é reconhecido e validade por consenso social. De tal modo assim é, que a palavra simplesmente dita ou escrita evoca a noção de cultura, como prática e como legado dessa prática do passado para o presente - e para o futuro -, enquanto imperativo comunitário.

2.2 | DO MONUMENTO À PAISAGEM CULTURAL Durante algum tempo, a atenção da preservação do património cultural esteve direcionada para o património arquitetónico e arqueológico, mais precisamente para os monumentos. A palavra monumento etimologicamente deriva do latim monumentu, palavra que deriva do latim monere, que quer dizer relembrar ou prevenir. Inicialmente, chamou-se monumento a qualquer artefacto edificado por uma sociedade ou grupo de pessoas, para comemorar ou relembrar as pessoas, eventos ou ritos, servindo também para conservar a identidade. Hoje, ao monumento, acrescentamos a cidade, a paisagem cultural dos territórios humanizados e o património intangível, dos saberes. Todos aqueles que pelas suas características intrínsecas transmitam significado, num determinado local, onde a sua perda constituiria um dano irreparável. Nas palavras de Françoise Choay, para percorrer todos os trilhos do património seria necessário um inventário borgesiano. Naturalmente, não é essa a ambição desta investigação. No entanto, foi feito o necessário estudo acerca das instituições, organizações, cartas e convenções relacionadas com a salvaguarda e conservação do património, incluído no ANEXO IV - LIVRO DE PROCESSO E REFERÊNCIAS.

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2.2.1 | PAISAGEM CULTURAL (...) landscapes are culture before they are nature; constructs of the imagination projected onto wood and water and rock.20 A terra de que tanto nos fala José Mattoso, é uma palavra que tem na língua portuguesa um significado particularmente identitário. Assinale-se que é o próprio conceito de terra que, primeiramente, cria os laços de pertença de uma comunidade, num espaço determinado. Não por acaso, a expressão popular que ainda hoje permanece viva entre os portugueses, quando se diz “vou à terra”, identifica o lugar de origem, senão imediato e direto, o lugar de origem da família, “lá da terra”. Em termos semânticos, deveremos atentar a este detalhe, uma vez que se encontra no cerne do pensamento acerca da paisagem, e do território, em termos afetivos e logo, extensivelmente, em termos patrimoniais. O território é o elemento permanente da identidade,21 mas ainda assim, raramente o associamos ao património, termo eternamente ligado a edifícios de tempos passados pelos mais nostálgicos, ou à ideia de propriedade pelos mais ligados aos termos legais e burocráticos. O património são também as paisagens humanizadas e as suas memórias, o tal património intangível. Desta consciência emerge o conceito desenvolvido por Carl Sauer nos anos vinte, que defende que uma paisagem cultural é o fruto da transformação de um mundo natural pela ação humana ao longo dos tempos. Esta apropriação não pode ser limitada a um povoamento puramente construído e físico, mas antes entendido em todas as suas outras valências intelectuais, sentimentais, emocionais e até espirituais. No entanto, foi só 20 anos depois da Convenção para a Proteção do Património Mundial Cultural e Natural, em 1992, que foi adotada, pelo Comité do Património Mundial, a necessidade de distinguir o património que resulta da obra combinada entre o homem e a natureza, e que traduz as interligações entre a diversidade biológica e cultural, especificamente associada às formas tradicionais de utilização das terras. Existem três tipologias de Paisagens Culturais: 1. Intencionalmente Concebida pelo Homem; 2. Essencialmente Evolutiva - Relíquia ou Fóssil e Evolutiva e Viva; 3. Associativa There exist a great variety of Landscapes that are representative of the different regions of the world. Combined works of nature and humankind, they express a

20  SCHAMA, Simon - Landscape and Memory. Great Britain: Harper Press. 2004 21  MATTOSO, José; et al - Portugal, o Sabor da Terra, 2010 op cit p. 6

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long and intimate relationship between peoples and their natural environment.22 A classificação de determinadas paisagens como culturais, vem reconhecer nelas uma valiosa expressão da ação do homem que se vem perpetuando no espaço e no tempo como património coletivo. O reconhecimento da dimensão patrimonial da paisagem vem provar a consciência crescente por parte de instituições europeias e mundiais do seu contributo para a formação de culturas locais, para o bem-estar humano e para a consolidação da identidade.23 Existem três paisagens classificadas em Portugal: a Paisagem Cultural de Sintra, inscrita em 1995; o Alto Douro Vinhateiro, inscrita em 2001; e a Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico, inscrita em 2004. São estas paisagens consideradas vivas, que nos interessam particularmente, pois conservam um papel social ativo na sociedade contemporânea associada de perto ao modo de vida tradicional e no qual o processo evolutivo e produtivo continua.24 Nelas, é fundamental uma gestão sustentável devido à presença de sistemas frágeis e voláteis. Para que sobrevivam é necessário criar uma estratégia que conte com os testemunhos originais, - tangíveis ou intangíveis - que utilize as construções existentes, isto é, os lugares da memória.25

2.3 | PATRIMÓNIO DISPERSO E AS ROTAS Tendo consciência da amplitude da atual discussão acerca da proteção e intervenção no património em Portugal, é pertinente limitar as questões de forma a constituírem um contributo para a valorização cultural do país. Abrangendo ainda a discussão acerca da gestão, utilização e comunicação de valores patrimoniais. São assim deliberadamente deixadas de parte outras considerações, como as relacionadas com o património urbano, que resultariam numa discussão mais complexa e extensa. Se é verdade que tem sido feito um ótimo trabalho nas políticas de reabilitação no seio dos principais centros históricos, já não o é, lamentavelmente para os pequenos lugares que pontuam o nosso território rural. Embora existam alguns projetos que revelam já preocupações de contexto paisagístico, muito pouco está desenhado

22  UNESCO, sobre paisagens culturais. DIsponível em http://whc.unesco.org/en/culturallandscape/, consultado em Abril 2013 23  Decreto n.º 4/2005 - Convenção Europeia da Paisagem, feita em Florença em 20 de Outubro de 2000. Com o objetivo de promover a proteção, a gestão e o ordenamento da paisagem e organizar a cooperação europeia. 24 ANDERSEN, Teresa - A paisagem do Alto Douro Vinhateiro: evolução e sustentabilidade. Disponível em http://www.unizar.es/fnca/duero/docu/p315.pdf - consultado em Agosto de 2013. p.5 25 Ibidem

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ou construído em Portugal, e as intervenções que foram dispersamente construídas nos últimos anos encontram-se, por vezes mal geridas, grande parte do tempo sem vigilância, ou mesmo fechadas ao público, por carência de financiamento por parte da administração central e local, especialmente num período de crise. No que diz respeito a rotas, o nosso pais dispõe de várias, centradas em monumentos e conjuntos, existem inúmeras rotas culturais seguindo diferentes temas: tipologias ou períodos - Rota do Românico, Rota do Gótico, Rota do Frescos, Rota dos Castelos, etc. - porém, todas elas, demasiado dispersas no território. No dia 18 de Abril de 2009, Alexandre Alves Costa, comemora o Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, com uma elucidativa e inspiradora conferência acerca destes assuntos. Durante a sua comunicação, Identidade Nacional e Património Construído, o arquiteto lembrou que a arquitetura portuguesa, cidade e paisagem é, como a nossa língua, um factor de coesão nacional. 26 Para além de ter sido um importante momento de reflexão acerca do papel identitário do património, as suas palavras sublinharam a importância do contributo ativo de todos nesta matéria, principalmente instituições de gestão públicas. Revelou a sua preocupação com as paisagens desprotegidas, as periferias dos aglomerados urbanos e o meio rural. Desconfio das paisagens protegidas e dos centros históricos e respectivo tratamento preferencial numa política de (re)ordenamento do território. (...) Dentro em pouco, fixados os centros históricos e as paisagens protegidas como objetos museológicos, teremos o “resto” lamentável e irremediavelmente transformado pela inquestionável “mão assassina” do mercado desregrado (...). 27 Alertou para fragmentação das intervenções, onde o cuidado com as estradas e com a sua envolvente, obviamente, não corresponde ao crescente cuidado os objetos classificados. (figura 5 e 6) As estradas que unem os nossos mais importantes monumentos, património da humanidade, Tomar, Batalha e Alcobaça, são o espetáculo kafkiano da

26 ALVES COSTA, Alexandre. Identidade Nacional e Património Construído - Arquitectura, Cidade e Território.Comunicação efetuada a 18 de Abril de 2009, no Auditório da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, no Dia Internacional dos Monumentos e Sítios sob o tema geral “O Património como Oportunidade e Desígnio” 27 Ibidem

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FIGURA 5 | JUDIARIA DE SALZEDAS A poucos metros do mosteiro de Salzedas, jaz em ruína uma das muitas judiarias do nosso país. Segundo recentes rumores este património será recuperado usando fundos internacionais para a criação da Rota das Judiarias.

IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

FIGURA 6 | ALDEIA AVIEIRA DO PATACÃO Mais a sul, no vale do Tejo, jazem também estas construções palafíticas. Apesar dos esforços pela sua classificação, a memória dos pescadores da Praia da Vieira está a algumas décadas de desaparecer.

IMAGEM: Fotografia de Bjarte Stav

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desconsideração de todos os valores que estiveram subjacentes à sua classificação. (...) Naquelas estradas não temos para onde nos virar. E entre aqueles monumentos vamos tentando visitar algumas pequenas igrejas ou até alguns museus onde dificilmente conseguimos entrar, perdidos nas circulares e rotundas com fontes monumentais e luminosas (...).28 Relembrou ainda o papel do arquiteto que, através da intervenção informada, pode voltar a dar aos sítios a sua memória, restituir a sua aura e contribuir para o enriquecimento da memória coletiva do povo português. Utiliza sábias palavras para reforçar a importância da transformação e do desenho nessa transformação. Pelo seu óbvio interesse para o projeto, esta referência ao desenho será retomada em capítulo próprio. Destas e de outras reflexões, podemos agora colocar as questões necessárias que ambicionam ser respondidas no decurso deste trabalho. A saber: Como relacionar o património disperso, apenas mentalmente conectado, com elementos de desenho arquitetónico que permitam a sua (re)visitação e o seu (re)habitar? Qual o papel das comunidades locais nesta revitalização? Será possível reutilizar lugares, conjuntos e edifícios representativos da arquitetura tradicional portuguesa, erudita e vernacular, para inventar uma nova forma de ver a herança cultural em Portugal? Pode a arquitetura, enquanto arte do desenho da transformação, ter um papel mais ativo na luta contra a crise que vivemos?

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Ibidem

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FIGURA 7 | ITINERÂNCIA Viajamos ao passo lento de quem apreende uma paisagem, de quem nela experimenta a solidão da sua própria condição, sobre uma superfície irregular, entre o céu e a terra. Por um trilho estreito chegamos a um ponto elevado. Ao fundo de um vale observamos um rio caudaloso, sobre um leito pedregoso. Ao longe vemos os cumes nevados das montanhas. Nuvens sopradas pelo vento... Não estamos longe do mar. Fazemos algumas fotografias. Queremos um dia, no futuro, aqui voltar. Nós ou outro alguém que regresse a estes lugares, que os fotografe, que os fixe na construção do passado e no questionar do futuro, no movimento simultâneo de desafio, fascínio e inquietude.

IMAGEM: Extraído de Views, Norway Seen from the Road 1733-2020 TEXTO: Duarte Belo, Portugal - Luz e Sombra, O País depois de Orlando Ribeiro


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3 | A VIAGEM, A ITINERÂNCIA [simbolismo de viagem] (...) resume-se, no entanto na busca da verdade, da paz, da imortalidade, na procura e na descoberta dum centro espiritual. (...) É que, na realidade, essas viagens só se realizam no interior do próprio ser. A viagem que é uma fuga de si mesmo nunca terá êxito. (...) A viagem exprime um desejo profundo de mudança interior, uma necessidade de experiências novas, mais ainda do que deslocação local. (...) uma insatisfação que leva à procura e à descoberta de novos horizontes.29 Antes de entrar na discussão arquitetónica em si, e depois de entendida a nossa terra na figura de paisagem, importa refletir acerca de um outro conceito fundacional deste projeto - a viagem, a itinerância cultural - que se acredita ser a verdadeira forma de conhecer e compreender o património arquitetónico e paisagístico em Portugal. (figura 7 e 8) Ao construir esta argumentação, tornou-se óbvia a necessidade de (re) visitar o tema pelos olhos de quem efetivamente se fez à estrada e nos deixou um vasto legado escrito e desenhado do que foi absorvendo, de Orlando Ribeiro a José Mattoso, de Miguel Torga a José Saramago, de Fernando Távora a Alexandre Alves Costa, tantos foram, e são, os viajantes portugueses. Perceber os seus escritos e os seus desenhos permite indagar sobre as suas descobertas e o impacto que tiveram na sua obra, no desenho de soluções mais ricas e informadas. Tantos são os testemunhos de fascínio pela cultura e arquitetura clássica ou por uma determinada paisagem ou cultura nas páginas destes célebres cadernos de viagem que são objeto de estudo em todas as escolas de arquitetura, não é por acaso que os nomes mais marcantes da arquitetura foram também os eternos itinerantes. (figura 9)

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CHEVALIER, Jean - GHEERBRANT, Alain - Dicionário dos Símbolos. Lisboa: Teorema. 2007, p.691

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FIGURA 8 | ROTEIRO DE RAÍZES Lembrando a frase citada no livro Roads, Routes and Landscapes de Mari Haum, culture is more about routes than roots.

IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

FIGURA 9 | VIAGEM AO ORIENTE

FIGURA 10 | ESQUISSOS DE VIAGEM

Pois, permitam ainda que lhes diga isto, leitores a quem fatigo: não lhes ofereço literatura, pois nunca aprendi a escrever. Tendo educado os meus olhos ao espetáculo das coisas, procuro dizer, com palavras sinceras, a beleza que encontrei. E meu estilo é confuso, como ainda é confusa a minha compreensão das coisas.

Nenhum desenho me dá tanto prazer como estes: desenhos de viagem. (…) Haverá melhor do que sentar numa esplanada, em Roma, ao fim da tarde, experimentando o anonimato e uma bebida de cor esquisita – monumentos e monumentos por ver e a preguiça avançando docemente? De súbito o lápis ou a bic começam a fixar imagens, rostos em primeiro plano, perfis esbatidos ou luminosos pormenores, as mãos que os desenham. Riscos primeiro tímidos, presos, pouco precisos, logo obstinadamente analíticos, por instantes vertiginosamente definitivos, libertos até à embriaguez; depois fatigados e gradualmente irrelevantes. Num intervalo de verdadeira Viagem aos olhos, e por eles a mente, ganham insuspeita capacidade. Apreendemos desmedidamente; o que aprendemos reaparece, dissolvido nos riscos que depois traçamos.

IMAGEM E TEXTO: Le Corbusier, A Viagem ao Oriente

IMAGEM: Álvaro Siza : Esquissos De Viagem. TEXTO: Álvaro Siza - 01 Textos

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3.1 | VIAJAR, HABITAR A PAISAGEM A paisagem é individualizada pela subjetividade de quem a habita. Esta expressão, habitar, é utilizada com múltiplos significados no campo da reflexão arquitetónica. Mais do que ter uma habitação, o termo foi exaustivamente associado às diferentes formas como o ser humano se apropria de um determinado espaço. Segundo Heidegger, O habitar é o modo em que os mortais são sobre a Terra.

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Com base nesta premissa,

a nossa consciência do mundo é, no fundo - ou melhor, nos fundamentos - a relação entre o que nos rodeia e a representação mental que lhe atribuímos. Os desenhos à mão livre de Siza, feitos en route no sentido mais geral, são sempre auto-reflexivos. O autor está sempre ali, no não desenhado, mas implícito, primeiro-plano da imagem delineada, convidando-nos a oscilar entre sujeito e objeto, entre a posição do observador e a do imaginado, imaginário ser ou corpo do edifício. De uma maneira ou de outra o corpo está sempre presente (...)31 Ainda assim, a ideia de habitar a paisagem pode, a princípio, ser de algum modo equívoca. Como posso habitar algo que, na concepção imediata do termo é uma realidade exterior a mim próprio e ao sítio em que me encontro? Associada à amplitude do nosso olhar, a paisagem remete antes para uma ideia de cenário ou pano de fundo, uma realidade que coexiste connosco mais do que uma entidade com que podemos interagir. Lembro os esquissos de Álvaro Siza, através deles expressa a sua apreensão do que vê, não se limitando só a ver, vê em relação a si próprio enquanto observador e ao mesmo tempo parte integrante dessa realidade que observa. A sua presença e o seu registo fazem também parte da própria construção cultural da paisagem, numa dimensão intelectual ou talvez até emocional. (figura 10) Habitar uma paisagem cultural, mais do que uma atitude passiva, constitui uma posição dinâmica perante uma realidade complexa. Podemos apenas abrir os olhos para a ver, mas a sua sobrevivência na nossa memória depende de quão intencionalmente a apreendemos. Quando fazemos, por exemplo, um registo fotográfico, mais do que uma simples imagem, estamos perante um testemunho carregado da nossa intensão. De algum modo estamos a criar um novo lugar, aquele pedaço de tempo e de espaço a que

30 HEIDEGGER, Martin - Vortrage und Aufsatze, Gunther Neske Pfullingen, 1954, p.145-162. Tradução do original alemão por Carlos Botelho. 31  FRAMPTON, Kenneth; excerto do texto Sobre A Linha De Siza in Álvaro Siza: Esquissos De Viagem. Documentos de Arquitectura. Porto: 1988.

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escolhemos dar eternidade. Duarte Belo dizia-nos que existe qualquer coisa de voyeur, ao seguir os passos de Orlando Ribeiro, nesta descoberta da sua posição no espaço, no contexto de uma imensidão de possibilidades que sempre se colocam a quem fotografa os lugares. Ele, pioneiro geógrafo, tinha uma peculiar forma de se apropriar dos espaços que percorria, a permanência nos lugares, um olhar demorado e atento a uma imensidão de detalhes que escapam ao comum dos cidadãos.32 Também John Ruskin, viajante inato, dizia que a compreensão dos espaços e culturas é essencial para a apreensão da beleza que nelas reside e que a única forma de verdadeiramente nos apoderar-mos desta beleza é descrever os tais lugares mágicos através da nossa arte, escrevendo ou desenhando, sem considerar se acaso teremos um mínimo de talento que justifique fazê-lo.

Há sempre no mundo mais coisas do que as que podem ver os homens, ainda que caminhem muito devagar, não as verão melhor por andarem mais depressa. As coisas realmente preciosas são uma questão de pensamento e de visão, não de velocidade.33

3.2 | O SUBLIME Tal é a lição escrita nas pedras do deserto e nos campos de gelo dos pólos. Escrita com tanta grandeza, que voltamos desses lugares, não esmagados, mas inspirados pelo que está para além de nós; como se fosse um privilégio descobrirmo-nos vinculados a necessidades tão soberanas. O sentimento do respeito que nos toma pode então chegar ao ponto de se combinar com um desejo de adoração.34 O imaginário da itinerância pela paisagem, seja ela mais ou menos natural, está sempre ligado a uma ideia de descoberta e de conquista de determinados pedaços de mundo que de alguma forma nos toquem. Encontrar um lugar com uma grandeza que não conseguimos explicar é falar do sublime. Uma qualidade de extrema amplitude ou força, que transcende o belo, ligado ao sentimento de inacessibilidade diante

32  BELO, Duarte - Portugal - Luz e Sombra, 2012 op cit, p.311 33 Citado em: BOTTON, Alain - A Arte de Viajar. Lisboa: Dom Quixote, 3ª ed. 2008, p. 218 34 Ibidem p.214

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do incomensurável.35 Muitas vezes é a intrínseca beleza do mundo natural que não sabemos habitar, pela estranheza que nos causa, pela sua escala transcendente, fora das nossas medidas. Outras vezes trata-se da percepção da incrível mão humana, na elegância com que domina um território tão inóspito como o vale do Douro, ou como constrói o cenário idílico da Serra de Sintra. Agora o viajante precisa de um largo período sem ver mais que paisagem. Quer distrair-se olhando as modestas colinas destes lugares, árvores que não têm arrebatamentos, campos que sem maior resistência se deixam cultivar.36 Mais ou menos conscientes da verdade por trás do que se desenrola à nossa volta somos forçados à admiração, nem que seja pela pura experiência estética. Esta emoção, inspirada pelo medo ou respeito, é indissociável da experiência física. Lembrando as reflexões de Juhani Pallasmaa, o confronto com a arquitetura ou com os espaços naturais, mais do que apenas através do olhar, privilegiado pela sociedade ocidental, deve ser enriquecida com todos os nossos sentidos. Estas experiências passam para dentro de nós, e inconscientemente vamos catalogando determinados cantos de mundo como os nossos lugares mágicos. Paulo Pereira escreveu Lugares Mágicos de Portugal - monumentos, paisagens que se refugiam na nossa memória para de lá nunca saírem e que inevitavelmente revisitamos como se eles procedessem de um património próprio e familiar.37 É nestes lugares, que importa explorar a capacidade de evocação de uma espécie de experiência de “passagem”, uma experiência não apenas estética mas existencial.38 Uma interpretação permanente, que é dinâmica em si mesma, e que nos coloca a todos em contacto com aquilo a que costumamos chamar a 4ª dimensão do património. É essa, obviamente a “passagem” mais importante: a passagem de um mundo tridimensional e reconhecível, relativamente codificado e físico, para esse outro mundo, feito de memória, e conhecimento, muitas vezes imaterial e incorpóreo, o da cultura, simbolizando pela “aura” do lugar (...) são subitamente integrados numa espécie de universo de exceção 39 Entendeu-se que a sua verdadeira percepção só pode ser conseguida pela experiência física, encontrando na figura da viagem a forma primordial de perseguir

35 Significado do termo sublime enquanto conceito estético. Disponível em Wikipédia, consultado em 29 Maio 2013 36 SARAMAGO, José; Viagem a Portugal. Lisboa: Caminho. 1999, p.236 37 PEREIRA, Paulo - Colecção Lugares Mágicos de Portugal. Lisboa: Temas e Debates. 2009 38 PEREIRA, Paulo - Património edificado. Pedras Angulares. Lisboa: Aura. 2000 p.90 39 Ibidem p.106

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FIGURA 11 | THE EYES OF THE SKIN I confront the city with my body; my legs measure the length of the arcade and the width of the square; my gaze unconsciously projects my body onto the facade of the cathedral, where it roams over the mouldings and contours, sensing the size of recesses and projections; my body weight meets the mass of the cathedral door, and my hand grasps the door pull as I enter the dark void behind. I experience myself in the city and the city exists through my embodied experience. The city and the body supplement and define each other. I dwell in the city and the city dwells in me.

IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete TEXTO: Juhani Pallasmaa, The Eyes of the Skin

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esta cultura. Munidos com a informação de fundo necessária, interessa perceber em que medida o desenho arquitetónico surge como suporte e estas relações, permite estas experiências e pode incentivar estas novas procuras. The body is not a mere physical entity; it is enriched by both memory and dream, past and future. (...) Perception, memory and imagination are in constant interaction; the domain of presence fuses into images of memory and fantasy.40

40 PALLASMAA, Juhani - The Eyes of the Skin. Architecture And The Senses. Chichester: John Wiley and Sons Ltd. 2005

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FIGURA 12 | MÉRTOLA Se a cultura é a natureza já medida, encaixotada (ou de uma outra forma: se a cultura é a parte da floresta que transformámos em vaso), a arquitetura é o expoente máximo do ato de medir, de controlar. A arquitetura é um medir não apenas quantitativo, mas um medir qualitativo. Diga- mos: um medir que se preocupa com a componente estética: o resultado da medição não deve apenas ser certo, exato - verdadeiro - mas também confortável, agradável aos olhos - belo, portanto.

IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete TEXTO: Gonçalo M. Tavares, Opúsculo 14, Arquitetura, Natureza e Amor


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4 | ARQUITETURA E PERCEÇÃO DA PAISAGEM CULTURAL Um dos impulsos que nos dominam quando encontramos a beleza é o desejo de a prendermos: de a possuir e de lhe dar um lugar maior nas nossas vidas. É como se nos permisse a vontade de dizermos: Estive aqui, vi-a e isso foi fundamental. (...) Podemos igualmente tentar deixar uma nossa impressão física num lugar predileto, na esperança de, tornando-nos mais presentes nele, o tornare-mos mais presente em nós. (...)41 Alain Botton, 2004 As itinerâncias e percursos da memória que se propõem com este trabalho, mais do que um novo apelo ao reconhecimento do valor patrimonial de paisagens e lugares, assentam na exploração desenho arquitetónico contemporâneo como forma operativa de despertar paisagens culturais adormecidas para uma nova percepção, acessível e apelativa a todos. Propõe-se uma reflexão arquitetónica assente neste desejo que desde sempre levou os povos a deixarem macas físicas nos lugares onde encontraram algum tipo de beleza ou valor, na esperança de o transmitir. Considerando as suas vertentes antropológicas e sociológicas, a arquitetura, enquanto arte de construir a transformação é, não raras vezes, uma mais valia na qualificação dos lugares da paisagem.

4.1 | SUBLINHAR A PAISAGEM O trilho, a estrada ou a linha do caminho de ferro, impõem a sua presença na paisagem e tornam-na acessível. A rota que traçam determina por onde passamos e, mais do

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BOTTON, Alain - A Arte de Viajar, 2008 op cit p. 214

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FIGURA 13 | UM TRILHO NA PAISAGEM ...porque nada pode começar, nada se pode fazer sem uma orientação prévia – e toda orientação implica a aquisição de um ponto fixo. (...) Para viver no Mundo é preciso fundá-lo – e nenhum mundo pode nascer no “caos” da homogeneidade e da relatividade do espaço profano. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete TEXTO: Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano

FIGURA 14 | PIÓDÃO As marcas de uma passagem. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

FIGURA 15 | STONEHENGE O ritual materializado. IMAGEM: Disponível em http://blog.powersof10.com/

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que isso, influencia tudo o que somos levados a observar. Sem temos consciência, a maior parte das vezes, a paisagem que contemplamos como beleza natural, pelo facto de nos ser acessível, é já um produto da cultura. (figura 13) As primeiras marcas que o homem deixa na paisagem são os sinais do seu movimento e paragem. Os trilhos e estradas por onde caminha, bem como, os sítios que, por necessidade ou escolha, resolve fazer seus. Independentemente do tempo que permanecemos num lugar, deixamos marcas. Estas marcas, como os animais ao marcar o seu território, podem ser apenas uma pegada ou uma pequena frase que uma criança grava numa rocha. (figura 14) Mas podem também ser estruturas notáveis como o Stonehenge ou Moais da ilha da Páscoa. Vamos pontuando o território como quem sublinha um texto. Criamos a nossa hierarquia na paisagem, com as estruturas que erguemos, e assim condicionamos toda a experiência futura. Tal qual da mesma maneira que lemos um livro sublinhado, temos a opção de ignorar as marcas e apreender o seu conteúdo original, mas não podemos deixar de ser levados, num momento que seja, a uma reflexão mais ou menos profunda acerca das motivações que levaram à escolha de determinadas palavras, indagamos quem o terá feito e com que intenção. Assim, ao ver uma pequena ermida na montanha, podemos apenas ver a montanha, mas raramente conseguimos evitar que o pensamento recaia sobre o que levou tais homens a construir a ermida. Questionamos o lugar e questionamos o tempo. E ainda que o texto e a montanha não desapareçam, são dotados de uma interpretação que alguém materializou na sua existência. Architecture is the art of reconciliation between ourselves and the world, and this mediation takes place through the senses.42 A arquitetura assinala a paisagem como uma cruz num monte ermo. A partir do momento em que deixámos de ser nómadas e começámos a ter noção do tempo e dos espaços, tivémos também consciência da nossa existência, da nossa presença no mundo. O significado das construções primitivas é exatamente esse, a celebração do ser integrado no mundo e na natureza. Ao longo da história da arquitetura, que é também a história do homem, fomos assinalando a paisagem através da adição de uma qualquer estrutura determinante na organização e na leitura do território. Como Stonehenge, celebram o sítio, transformando-o em lugar e afirmando-o também como símbolo cultural. (figura 15) Mas nem sempre estas marcas aparecem pela crença ou fé. As fortificações, por exemplo, reconheceram um valor estratégico na paisagem, e

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PALLASMAA, Juhani - The Eyes of the Skin, 2005 op cit

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pela sua função pontuam-no. Marcar a ruptura com a homogeneidade - o mundo natural primordial - através da marcação de um ponto constitui uma expressão do entendimento do espaço e da sua vontade de o modificar, a necessidade de um limite físico, de um domínio do espaço, ainda que por vezes ilusório, é condição necessária ao habitar do homem.

4.2 | OS NOSSOS TEMPOS Nas diferenças que a natureza estabelece por si mesma, a pedra não é dura nem mole, e junto o magma dos vulcões foi líquida e deixou de o ser. A pedra só é dura e durável em confronto com os seres humanos, que deverão ter visto nela o contrário da fragilidade da carne, que lhes terá dado a ver outras formas de durar que não as orgânicas, mostrando que há outras temporalidades dentro do tempo. 43 A paisagem, o espaço e os edifícios vão-se alterando para responder às mudanças sociais das sociedades. As marcas permanecem, mas alteram-se. O gesto contemporâneo alia-se à incontornável lição do passado para suprimir o supérfluo que dá lugar a novas estruturas que possam responder a novas vivências. É a quarta dimensão do mundo, a do tempo e dos seus ritmos. A paisagem natural é cambiável por si própria, tem os seus ciclos e as suas estações. Também estas foram elemento condicionante da nossa arquitetura vernacular. Os rituais e as vivências das populações, principalmente no mundo agrícola também se regem por estes ciclos. O tempo de uma vida de trabalho, por oposição ao imediatismo da contemporaneidade. É diferente o tempo. É diferente, muito diferente, o modo como habitamos os lugares, a sua diversidade crescente, e a velocidade com que nos deslocamos entre dois pontos mais ou menos afastados.44 Se tomarmos como exemplo um trilho ao longo do curso de um rio, no Portugal mais ignoto, facilmente imaginamos que o significado que lhe é atribuído depende de quem por ele caminha. Certamente que o arqueólogo que visita os recantos do vale do Côa, consegue fazer uma restituição das camadas de história que compõem cada 43  MIRANDA, J. Bragança, Pedra, Disponível em http://rae.com.pt/, consultado em 29 Maio de 2013 44  BELO, Duarte - Portugal - Luz e Sombra, 2012 op cit, p.15

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sítio arqueológico, e consegue sem dificuldade entender o significado das marcas ali presentes, cartografando exatamente a presença de povoações há milhões de anos. Por hipótese, a este arqueólogo, que não tem raízes locais, escapa-lhe a experiência emocional e sentimental que só alguém nascido naquelas terras é digno de possuir. O reconhecimento de troços de paisagem que deram lugar a brincadeiras de criança, do sítio onde o avô costumava pescar, dos cheiros sazonais do trabalho no campo e das inúmeras histórias e lendas contadas nos dias solarengos. O arquiteto tem outro olhar, eventualmente, um olhar transformador. E se esta casa de pedra, já em ruína e sem telhado, que outrora fora palco a uma vida familiar, pudesse vir a oferecer um prato de bolas toscas do senhor Acácio a um visitante mais curioso? De certo viria acompanhado de alguma história, daquelas dos bons velhos tempos que ele sempre conta com entusiasmo. Porque também este transeunte tem um papel na leitura deste trilho. - À descoberta de aventura, ou pela simples curiosidade na fauna ou flora local, vai admirar a beleza da paisagem e vai levar consigo, para um outro lugar, aquele que é seu, novas memórias de outras vivências. O viajante viajou no seu país. Isto significa que viajou por dentro de si mesmo, pela cultura que o formou e está formando, significa que foi, durante muitas semanas, um espelho refletor das imagens exteriores, uma vidraça transparente que luzes e sombras atravessaram, uma placa sensível que registou, em trânsito e processo, as impressões, as vozes, o murmúrio infindável de um povo.45 Falar de intervenção na paisagem é falar da incontornável figura de Christian NorbergSchulz,: o local é fundamental na obra do arquiteto norueguês, no sentido de que reconhece que a arquitetura densifica o ambiente físico que a envolve. Tudo em torno de nós está ligado, desde a paisagem até às mais pequenas coisas. Os fenómenos naturais dão luz para a nossa compreensão do espaço construído. Na sua obra Genius Loci, apresenta a teoria do espírito do lugar onde postula que estar no mundo é uma condição integral, porque as pessoas, a paisagem e as casas têm em si as mesmas características. A experiência da arquitetura é, portanto, uma questão de familiaridade e proximidade: nas suas formas, vemos-nos a nós mesmos e a natureza que nos rodeia.46 Estas ideias são a base de muitas das leis de preservação do património e até da mais contemporânea intervenção, nomeadamente no que diz respeito à preservação das

45 SARAMAGO, José; Viagem a Portugal. 2009 op cit 46  Traduzido livremente de Store Norske Leksikon. Disponível em http://snl.no/, consultado em Abril de 2013

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qualidades estéticas, conseguida pela constante inspiração nas técnicas de construção locais. Pelo estudo da forma como estas respondem às condições naturais da sua envolvente, e iria mais longe, incluindo o estudo das vivências que as comunidades locais têm nesses locais, com determinadas condições. A integração de um objeto arquitetónico no seu contexto, não passa apenas por usar os mesmos materiais, mas antes entender o porquê e a forma como são utilizados e das implicações que tem na qualidade de vida dos que habitam esses espaços desde os tempos mais remotos. As construções graníticas da aldeia portuguesa de Monsanto, na Beira Interior, que convivem em harmonia com a natureza do lugar expressando o possível equilíbrio entre a necessidade de habitar, o vernáculo e a acidentada e heterogénea topografia onde se inscrevem. As características naturais de Monsanto são densificadas pela arquitetura que não é mais do que uma aculturação do território pelo homem. O sítio passa a assumir o estatuto de lugar revestido de significado de modo a constituir, no plano do simbólico, uma expressão de cultura.47

4.3 | CONSTRUIR OU NÃO DESTRUIR, EIS A CONFUSÃO A intervenção atual é mais uma, desenhada com regras claras que resultam da interpretação da história, incluindo a contemporânea. (...) restaurando, corrigindo, repondo ou, ao contrário, demolindo qualquer elemento espúrio que provoque opacidade na leitura clara da essência do projeto global, entendido como um processo coletivo de longa duração.48 Dar a possibilidade de habitar, fruir e compreender este património de escala territorial através de intervenções arquitetónicas pontuais, de reabilitação e nova construção, numa escala não urbana, constitui a base deste projeto, o que levanta algumas questões: Como podem ser relacionados os vários elementos que constituem uma paisagem, os visíveis e os invisíveis? Como se pode intervir numa paisagem cultural sem que esta perca as características que a tornam singular e única? Onde entram as várias camadas de vivências e história de séculos de ocupações tão diferentes? Como deve

47  Existe uma crescente motivação para repensar estas questões, na Declaração de Québec, uma série de linhas de orientação foram lançadas, entre elas a ideia de que em vez de separar o espírito do lugar, o intangível do tangível e considerá-los como antagónicos entre si, devemos investigar as muitas maneiras dos dois interagirem e se construírem mutuamente. ICOMOS. Declaração De Québec - Sobre a preservação do “Spiritu loci”. Assumido em Québec, Canadá, em 4 de outubro de 2008 48 ALVES COSTA, Alexandre - A arte de construir a transformação. Património o Estudos nº 3 2002 IPPAR - Departamento de Estudos. p.127-128

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ser desenhada uma base para novas vivências, um património para o futuro? Como podem coexistir elementos novos, e por isso estranhos, com os outros de caráter primordial destes lugares? É fundamental recorrer a ferramentas de outros campos de investigação como a Geografia, Geologia, a História, etc. O arquiteto, como profissional de uma atividade que se centra na organização do espaço, deve munir-se de uma sólida base de informação proveniente dos mais variados campos e com eles desenhar novas estruturas informadas pela cultura passada que serão pontos de partida para mais cultura; assim se constrói o novo património, o das gerações futuras.

Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra. – Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? —pergunta Kublai Khan. – A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra —responde Marco—, mas pela curva do arco que estas formam. Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta: – Por que falar em pedras? Só o arco me interessa. Polo responde: – Sem pedras, o arco não existe.49

Se entendermos a topografia como a primordial arquitetura - a primeira pedra foram necessárias todas as outras para que a paisagem cultural existisse. Fomos aprendendo a tirar partido de tudo o que a natureza nos dá em cada momento da história. Também agora faz sentido ponderar a paisagem como mote para novas estratégias de desenvolvimento. Quando questionamos as paisagens do passado, não exclusivamente procuramos compreender as razões da sua existência primordial, mas precisamos de apreender tudo o que permitiu desenrolar-se à sua volta, para idealizar o que poderá vir a possibilitar no futuro. Para aqueles que nasceram para acrescentar ao passado algo de presente e algumas possibilidades de futuro50 é extremamente importante perceber como o desenho arquitetónico pode trazer consigo novas possibilidades de fruição de paisagem. A existência de um apontamento de contemporaneidade vem despertar o interesse para a descoberta de um território, algo, que, por exemplo, aconteceu recentemente

49  CALVINO, Italo - Cidades Invisíveis. Lisboa: Editorial Teorema. 2008 50  TÁVORA, Fernando. O problema da Casa Portuguesa p.1947 op cit

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FIGURA 16 | LIGARES Uma cruz num monte ermo IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

FIGURA 17 | MUSEU DO CÔA VISTO DE UM DOS TROÇOS DA ITINERÂNCIA Erguer um museu na paisagem. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

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com a construção do centro interpretativo das gravuras rupestres do Côa. (figura 17) A nova estrutura museológica inaugurou um novo capítulo na discussão sobre este património classificado. Às vezes, é necessária uma pequena pista para decifrar um território ou para renovar o apelo da terra, trazendo esta nova intervenção, uma nova camada de história e cultura. When I build on a site in nature that is totally unspoiled, it is a fight, an attack by our culture on nature. In this confrontation, I strive to make a building that will make people more aware of the beauty of the setting, and when looking at the building in the setting, a hope for a new consciousness to see the beauty there, as well.51 Às vezes, os edifícios, para cumprirem a sua missão devem ser em si estruturas icónicas, consequentemente estranhas ao lugar, mas que com ele, estética e funcionalmente, formem um equilíbrio, uma harmonia. O já referido caso do Museu do Côa, dos arquitetos Pedro Lacerda Pimentel e Camilo Bastos Rebelo, é aclamado devido à evolução do corpo do museu – enquanto prótese metamórfica – que tem por base um pressuposto único de integração na paisagem. Neste sentido é simultaneamente um gesto forte e afirmativo, mas também subtil, sensível à topografia e dialogante com a paisagem que o recebe. É também digno de comentário o centro interpretativo do Castelo Velho de Numão, dos arquitetos Alexandre Alves Costa e Sérgio Fernandez. A estratégia passa por erguer um edifício/miradouro afastado das ruínas das muralhas, que tem uma dupla função: a de olhar não só sobre elas, mas também sobre a paisagem, proporcionando um momento de entendimento da estrutura em si, mas também da sua implantação estratégica no território. Nas ruínas, a intervenção consiste apenas num passadiço em madeira que traça o percurso sem danificar as estruturas. Desse modo, o objeto arquitetónico consubstancia “significado” adquirindo a expressão de signo que qualifica, que acrescenta e que simboliza. Mas não retira valor ao existente, não altera as tais características que o tornam singular e único.

51  Citado na apresentação da conferência Sverre Fehn, a Homage em 5 de Junho de 2009 organizada pelo Office for Contemporary Art Norway, disponível em http://www.oca.no/programme/seminars-lectures/sverrefehn-a-homage, consultado em 29 de Maio de 2013

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FIGURA 18 | CASTELO VELHO DE NUMÃO Centro interpretativo do Castelo Velho de Numão, dos arquitetos Alexandre Alves Costa e Sérgio Fernandez. O edifício miradouro olhando a paisagem e as ruínas. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

FIGURA 19 | ARQUITETURA VERNACULAR Se na arquitetura tradicional a forma era muito determinada pela função, pela disponibilidade dos materiais e pela incapacidade de fazer movimentos de terra de larga escala, agora tudo isso vai quase desaparecer e ser substituído por um elemento, um conceito, aparentemente muito mais simples: o desenho, ou o design. Uma ordem ancestral, arcaica, primitiva, que condicionava a forma obrigando-a a integrar-se na paisagem envolvente, vai ser substituído pela liberdade do desenho, por um conceito muito mais aberto de capacidade de transformação da terra. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete TEXTO: Duarte Belo, Portugal - Luz e Sombra

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Acreditamos vivamente no desenho do território, da paisagem, da cidade, dos espaços públicos e da arquitetura, sendo tudo Arquitetura. Deveremos recuperar a confiança no desenho transformador. Não existe nenhuma cidade, nenhuma paisagem serena, bela e útil, sem desenho.52 Retomando as palavras de Alexandre Alves Costa, recuperação e criação são complementos. Para uma informada intervenção no património, é preciso reconstruir memórias mas não cair na armadilha da recuperação literal de espaços de um passado que já não pode voltar. É necessário criar a possibilidade para novas memórias e para uma nova história; são necessários novos usos para a contemporaneidade. Na escala da paisagem ou do pequeno edifício o desafio está lançado. Formalizar, através da organização do espaço-território, a expressão do pensamento e do conhecimento adquirido. Tornar o património inteligível, questionar, tecer ligações, abri-lo a diferentes leituras, estabelecer uma mediação entre os vestígios materiais e a curiosidade e expectativas do presente.

52 ALVES COSTA, Alexandre. Identidade Nacional e Património Construído - Arquitectura, Cidade e Território, 2009 op cit

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II | A PROPOSTA Nos edifícios, nas cidades ou no território sempre humanizado, a arquitetura dos próximos anos será marcada pela prática da recuperação. Recuperação e criação serão complemento e não especialidades passíveis de tratamentos autónomos. Reconhecer-se-á que não se inventa uma linguagem. Reconhecerse-á que a linguagem se adapta à realidade para lhe dar forma. Tudo será reconhecido como património coletivo e, nessa condição, objeto de mudança e de continuidade. Os instrumentos de reconhecimento do real chamam-se História, a arte de construir a transformação chama-se Arquitetura. Uma sem a outra chama-se fracasso da arquitetura contemporânea, dizemos nós

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Álvaro Siza Vieira, 2009 Falou-se de paisagem, identidade, património, memória e cultura, o que mais valioso temos em Portugal, e aquilo que nos deve diferenciar num mundo global. Neste momento, em que todos vivemos mais depressa, que as auto estradas acabam com a ideia idílica de viagem e que a máquina fotográfica, substitui os momentos de introspecção do desenho e da escrita, é necessário olhar para trás. Enunciam-se agora os precedentes e os princípios de uma proposta onde todos estes elementos se unem para contar uma história de um país no seu ritmo devido. Voltar à viagem e à descoberta destes lugares mágicos onde podemos recuperar a calma e o olhar contemplativo, onde o património ensina a ver e a ver-nos.

53 Citado em: ALVES COSTA, Alexandre. Identidade Nacional e Património Construído - Arquitectura, Cidade e Território, 2009 op cit

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FIGURA 20 | MAPA DA VIAGEM DO REI CHRISTIAN VI The National Tourist Routes is an important initiative that is viewed as a laboratory for the development of contemporary Norwegian architecture. But it is also interesting as part of a long tradition of staging the experience of the landscape and as a project that researches and experiments at the nexus of architecture, technology, infrastructure, art and nature. The idea of organising things practically, and thereby preventing dangerous situations that might arise in dramatic terrain, and of defining points along the road where the traveller can experience beautiful and picturesque, or sublime and terrifying, views, can be placed in a 300-year-old tradition in Norway. Dangerous stretches of road and magnificent natural settings were documented when Christian VI, king of Denmark and Norway, inspected his kingdom in 1733. Since then, photographers, painters, and tourists have been drawn to Norway’s roads, fjords, precipices, and mountain peaks

IMAGEM e TEXTO: Views. Norway Seen from the Road 1733-2020


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5 | ITINERÂNCIAS - AS REFERÊNCIAS Antes de desenvolver a argumentação sobre os pilares em que este projeto repousa, importa entender as suas referências. Existem vários projetos que importaria mencionar, uns pela sua procura de uma forma de representar Portugal, como foi o levantamento feito no Inquérito à Arquitetura Regional nos anos cinquenta, ou o recente Horizonte Portugal, onde Duarte Belo procura dar a conhecer, pelo seu espólio fotográfico o país mais desconhecido. Outros, pelo pontuar da paisagem e dos seus percursos com pequenas intervenções, como a Ruta del Peregrino no México, os centros de visita Naturum na Suécia, ou as travessias feitas pelos alunos da escola de arquitetura de Valparaiso, Chile, e mesmo a sua Ciudad Abierta em Ritoque. Há ainda os que ensinam pelo seu exemplar desenho com o lugar e a sua cultura. Numa perspetiva de recuperação como foi o caso da intervenção em Idanha-a-Velha de Alexandre Alves Costa. Na perspetiva de comunicação dos valores patrimoniais, como na intervenção no castelo de São Jorge, por João Luís Carrilho da Graça e João Gomes da Silva. Ou ainda pela integração na paisagem, como a Casa das Mudas de Paulo David ou o Museu da Luz de Pedro Pacheco e Marie Clement. No entanto, pela importância fundacional que teve para a presente investigação, apresenta-se como principal caso de estudo o Nasjonal Turistvegar na Noruega. Na medida em que o projeto toca em quase todos os temas primordiais deste trabalho: a paisagem cultural, a comunicação de uma identidade e a ideia de percursos. É um exemplo de uma estratégia implementada nacionalmente, em processo avançado de concretização e resultados muito positivos económica e culturalmente. Por tudo isto, é sobre ele que agora se faz uma discussão crítica à luz das Itinerâncias e Percursos da Memória, lançando algumas pistas para os pontos em que os projetos se aproximam e se afastam.54 54 Algumas imagens e pequenos apontamentos sobre outros casos de estudo encontram-se no final do ANEXO IV - LIVRO DE PROCESSO E REFERÊNCIAS.

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FIGURA 21 | VIEWS

FIGURA 22 | NASJONALE TOURISTVEGER

Views - Norway Seen from the Road 1733-2020, compilado em simultâneo com uma exposição em 2012 por, Nina Frang Høyum e Janike Kampevold Larsen. É uma retrospetiva dos antecedentes culturais que deram origem ao projeto, fazendo uma viagem pelas estradas norueguesas desde as rotas do rei Christian VI até às recentes intervenções contemporâneas.

Nasjonale Touristveger - National Tourist Routes in Norway editado por Nina Berre que faz parte da Norwegian Public Roads Administration e Hege Lysholm representando Norsk Form. Este livro descreve as intenções do projeto em várias vozes e mostra, através de desenhos e fotografias, as intervenções arquitetónicas ao longo das 18 rotas nacionais.

5.1 | NASJONAL TURISTVEGER - DISCUSSÃO CRÍTICA There are still roads that are not merely designed to get you to your destination as quickly as possible. National Tourist Routes are beautiful drives with that little bit extra. The routes are carefully selected by the Norwegian Public Roads Administration, and each of the 18 routes has its own history and character. Our job is to make sure the routes are adapted to travellers’ needs. We do so by building spectacular viewpoints with service buildings, car parks, furniture, paths and art.55 O projeto está amplamente divulgado na internet, livros e revistas. Conta com prestigiados nomes da arquitetura contemporânea - como Snohetta, Jensen & Skodvin, Mart Dunbolt, Peter Zumthor, entre outros - enquanto o reconhecimento internacional é marcante, o sucesso deste projeto não é consensual. Esta discussão foi feita com base nos dois livros sobre estas rotas, mas muitas das questões surgiram na visita a muitas destas intervenções e também nas conversas informais com alguns dos intervenientes e críticos no panorama do ensino arquitetónico na Noruega, principalmente, Mari Hvattum, departamento de história e teoria e Marianne Skjulhaug, líder do departamento de paisagismo na Oslo School of Architecture. (figura 21 e 22) 55

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Disponível em http://www.nasjonaleturistveger.no/en, consultado em 10 janeiro 2013.


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5.1.1 | FORÇA DE UM PROJETO HOMOGÉNEO NUM PAIS EM CRESCIMENTO Each National Tourist Route has its own identity but is nevertheless part of a comprehensive mosaic consisting of 18 stretches of road. 56 Em primeiro lugar importa referir a maior das proezas conseguida pelo projeto norueguês: preservar a identidade de cada lugar, e de cada intervenção desenhada por arquitetos tão diferentes, que ainda assim consegue passar uma imagem de coerência nacional. Com efeito, os projetos foram desenvolvidos debaixo do mesmo tecto de princípios, o que garantiu a sua homogeneidade. In order to emphasise the distinctive features of each roadway, the routes need to bee spiced up with different contents. Here it is important to be bold and daring, particularly in respect of architectural expression. In addition, aesthetical challenges must be solved with a basis in the situation and atmosphere found at each individual location. Exciting, functional and innovative solutions have to be created so that it is durable and age with dignity. 57 O comissário pede diversidade e individualidade, e no entanto, as intervenções representam diferentes cores numa mesma pintura nacional, que foi exibida e reconhecida a nível mundial. Mas este sucesso não foi gratuito, foi fruto do trabalho organizado de muitas pessoas, incluindo um conselho de qualidade assistido por um conselho de arquitetos e um curador de arte. This initiative covers nine county municipalities, 60 municipalities, other public bodies, industry, local communities and enthusiast. In national terms, a coordinated commitment is required from a number of ministries and national bodies.(...) is an initiative with planned costs in the region of NOK 3.4 billion (425 million euros).58 Por trás do projeto das rotas norueguesas existe um rol de contribuições, misturando ingredientes variados na procura de um resultado comum. O projeto é fortemente enraizado nos poderes centrais, sendo apoiado e desejado por construtores de estradas, arquitetos, municípios locais e pelo governo. A elaboração das rotas tornou-se uma complexa máquina oleada por competência, ambição e, claro, poder

56 57 58

LYSHOLM, Hege; BERE, Nina- Nasjonal Touristveger, 4º Ed. Oslo: Norsk Form. 2010 Ibidem Ibidem

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FIGURA 23 | TROLLSTIGEN An author I once read said: “If a place is truly beautiful, you cannot afford to be there” and interesting part of the story of these routes is of course their non-commercial character and their funding by public budgets. As a norm the project also tries to be a breeding ground for Norwegian architecture by recruiting the young and talented. IMAGEM E TEXTO: Nasjonal Touristveger

económico aliado a estabilidade social. Todas estas contribuições são controladas pelo pulso firme e experiente da administração das estradas públicas com um longo passado de intervenções na paisagem e território norueguês. A Noruega é provavelmente o único país europeu que não sofreu de uma recessão na turbulência dos últimos anos de crise económica na Europa. Na verdade, está melhor que nunca, o comércio, salários e o mercado imobiliário está em largo crescimento atingindo picos a cada ano, refletindo-se numa taxa de desemprego de 3 porcento.59 E foi, por isso, neste contexto político que encontraram possibilidade de crescer como projetos públicos, sítios especiais e acessíveis para todos.

5.1.2. VALORIZAR OU EMOLDURAR A PAISAGEM CULTURAL? Apesar destes valores, deixa-se claro que a ideia inicial do projeto se centra em motivações económicas, estratégias turísticas e de marketing, aponta-se para a necessidade de aprender a explorar este lado do país de forma mais competitiva. “Valuable experiences”, the government`s tourism strategy, states that Norwegian nature and people in nature shall form the basis for highlighting 59 Disponível em http://www.tradingeconomics.com/norway/unemployment-rate, consultado em Agosto 2013 48


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Norway and marketing the country to prospective tourists.(...) Our unique nature, our scattered population and the comprehensive communications network that make all of this accessible give Norway a competitive edge that we need to know how to exploit. (...) The attraction with its look-out platforms, layb-bys, service facilities and stopping places displays a unique and innovative Norway in the middle of a magnificent natural and cultural landscape. 60 Foram talvez estas as palavras que espoletaram no arquiteto e escritor Bertram Brochmann, a escrita de um artigo crítico no jornal norueguês Morgenbladet. Sob o título A New Norwegian National Romanticism, fala-nos de um movimento poético original norueguês que tem sido evocada nas últimas décadas no panorama arquitetónico, iniciado por ocasião Jogos Olímpicos de Inverno 1994, em Lillehammer. Neste polémico artigo, o arquiteto que leciona na Bergen School of Architecture, refere que as rotas se esconderam por detrás desta ideia: they became a limitless playground for Norwegian architects, onde a arquitetura se evidência mais do que a paisagem que quer dar a ver. Some projects are so concerned with showing themselves as “hybrid architecture” of best kind that they steal the attention from the surroundings they are placed in. A majority of the projects are so strong objects that the visitors lose awareness of the nature of the place. The architecture “produces” itself more than it represents the landscape.61

National Tourist Routes in its existing spectacular shape needs to be stopped. The resources should go to building up functions and commerce along the roads that show the tourists examples of ecological buildings and sustainable local societies, both in new and old cultural landscapes. 62 Brochmann, continua, acusando a maioria destes projetos de ignorarem preocupações ambientais e se tornarem apenas road pearls que criam mais distância do que contacto com a paisagem. No seu exagerado tom ambientalista lançou pistas para algumas questões interessantes relacionadas com a razão de existência e utilidade das intervenções. Nesta linha de reflexão, numa conversa com Mari Hvattum, foi dado a entender que muitas destas intervenções não tiveram em consideração a situação dos habitantes locais onde se inseriram, as suas necessidades ou as suas 60 61 62

Ibidem BROCHMANN, Bertram - A new Norwegian National Romance, Morgenbladet 26 de Julho de 2009 Ibidem

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FIGURA 24 | DØNING

FIGURA 25 | SVANDALSFOSSEN

O centro comunitário combina instalações de apoio aos visitantes nas épocas mais movimentadas com um centro para jovens durante todo o ano. Associado à intervenção na estrada e na paisagem os arquitectos responderam a um problema local

Pormenor da ligação da intervenção arquitectónica com o ambiente natural existente. Depois de garantido o acesso desde o parque de estacionamento, o visitante é apenas guiado para a sua própria experiência da queda de água.

IMAGEM: Disponível em www.nasjonaleturistveger.no

IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

FIGURA 26 | EGGUM Reabilitação de construções da Segunda Guerra Mundial, a escala humana na paisagem. FONTE: Norwegian Tourist Routes

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singularidades culturais. Há muitas formas de contar uma história, algumas intervenções podem não resolver problemas imediatamente, mas pelo facto existirem, permitiram um aumento da procura do comércio e serviços locais na medida em que trazem os visitantes a sítios que não iriam antes. Eles precisam de locais para comer, descansar e dormir e são as populações locais que dão resposta a isto. Ainda com este pensamento em mente, é elucidativo olhar mais de perto para alguns exemplos que por vezes ficam de fora nas comunicações internacionais. O centro comunitário Dønning desenhado pelos arquitetos Jarmund & Vigsnæs, onde instalações sanitárias, cafetaria e um centro para jovens é desenhado sob o mesmo tecto, respondendo a uma necessidade local de forma muito pragmática. (figura 24) No projeto em Svandalsfossen, Ryfylke, é peculiar a forma subtil como melhora as infraestruturas existentes ao mesmo tempo que proporciona uma experiência autónoma ao visitante, reforçando apenas a segurança da experiência de visita desta queda de água. (figura 25) De outro ponto de vista, em Eggum, algumas construções alemãs da Segunda Guerra Mundial foram reconstruídas e transformadas num anfiteatro pelo atelier Snøhetta. A reabilitação dotou este lugar de instalações sanitárias, parque de estacionamento e zonas de descanso, conferindo uma escala humana à paisagem (figura 26) Estes projetos mostram que existe também sensibilidade para outros layers: necessidades das comunidades locais, a genuinidade da experiência do visitante, face ao património construído e à paisagem. É aqui que o caso de estudo e a proposta mais se aproximam: encontrar formas em que os interesses das comunidades locais e dos visitantes se cruzem de uma forma enriquecedora para ambos, na utilização de pré-existências, sejam elas físicas ou apenas rituais. Em jeito de síntese, as intervenções arquitetónicas nas 18 rotas norueguesas são conhecidas por todo o povo norueguês e pelos seus muitos visitantes de todo o mundo. É um projeto obviamente bem sucedido mas, na hora de propor estas itinerâncias, o que temos a aprender com elas? Alguns críticos, perguntam se, durante o processo de desenho, foram tidos em conta aspectos de caráter social e sustentável. Foi dito que várias das intervenções - com formas espectaculares e apresentação cénica da paisagem - parecem ser mais uma arquitetura de imagem deixando de lado possibilidades de construir equipamentos de encontro às necessidades locais. Mas ao mesmo tempo é elogiada a exemplar organização e envolvimento de um amplo leque de profissionais, a qualidade garantida em cada ponto e a oportunidade de mostrar o talento de jovens arquitetos ao mesmo tempo que se revisita a secular paisagem. Perante isto, qual é então a pertinência de um projeto de rotas, ou melhor, de itinerâncias, em Portugal?

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FIGURA 27 | UM NOVO OLHAR PARA PORTUGAL

PÁTRIA Soube a definição na minha infância Mas o tempo apagou As linhas que no mapa da memória A mestra palmatória Desenhou. Hoje Sei apenas gostar Duma nesga de terra Debruada de mar. IMAGEM: Wikipédia por Jose Manuel, baseado no publicado em Theatrum Orbis Terrarum, Abraham Ortelius,1570 TEXTO: Miguel Torga, Portugal, 1950, p.9


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6 | ITINERÂNCIAS E PERCURSOS DA MEMÓRIA Apesar de tudo, pertencendo à geração dos que lutaram pela felicidade para hoje, somos de opinião que se poderiam lançar alguns trabalhos experimentais para regeneração do existente. E entre o pesadelo das análises do real, talvez pudessem sair sonhos realizáveis de algum reordenamento.63 Alexandre Alves Costa, 2009 Das inquietações atrás referidas, e perante o caso de estudo exemplar, emerge a vontade de uma proposta de caráter nacional que integre valores naturais e culturais que estão dispersos e desarticulados. Uma forma de reativar o nosso património, que incentive ao seu conhecimento e estima e ao mesmo tempo o associe a uma imagem de usos e vivências contemporâneas, Em vez de uma musealização do património construído, o desenvolvimento de um projeto útil ancorado na identidade local.

6.1 | UM NOVO OLHAR PARA PORTUGAL Apesar de ideia para este projeto ter nascido no seio da inspiração norueguesa, nasceu também com a consciência que os dois países, para além de serem geográfica e historicamente muito diferentes, estão a viver numa situação socio-económica completamente antagónica. Enquanto na Noruega urge a enorme necessidade de nova construção em função do crescimento populacional e económico, em Portugal são iniciadas políticas de reabilitação e preservação como consequência da crise económica, da mutação do mercado de arrendamento, e com uma visível diminuição na nova construção.

63 ALVES COSTA, Alexandre. Identidade Nacional e Património Construído - Arquitectura, Cidade e Território, 2009 op cit

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Num país cheio de história espalhada pelos 943 quilómetros de costa e 1214 quilómetros da mais antiga fronteira europeia, é com algum desapontamento, que se constata que fora das grandes cidades e dos centros históricos, onde os esforços começam a dar alguns frutos, continua o interior, abandonado nas marcas do seu passado, profundamente rural e taciturno.(figura 27) Propõe-se agora, em alguns pontos, esclarecer em que medida o conceito de itinerâncias e percursos da memória, difere do conceito de outras rotas turísticas e apontar algumas das ambições para estas intervenções. Estes pontos serão retomados e ilustrados na parte III O PROJETO.

6.1.1 | CONTINUIDADE O que importa não é a verdade, a beleza ou a justiça de cada coisa olhada isoladamente; o que importa é o que resulta da relação entre as coisas, da ligação entre as coisas.64 O principio basilar destas intervenções é a interpretação de um território como um todo, física, cultural e socialmente. Mais do que analisar um edifício isolado interessa compreender cada itinerância enquanto momento de encontro de realidades. Em vez de isolar variáveis independentemente da sua posição geográfica - como fazem as rotas temáticas - as itinerâncias de memórias, pretendem ser o elemento de reunião dos layers que formaram essa terra, os seus elementos naturais e os homens.

6.1.2 | DEMORAR-SE Para reforçar esta ideia de continuidade, importa que a itinerância crie um imaginário associado à deslocação lenta e à paragem. Tal como a proposta norueguesa, apoiase na ideia de omveg (desvio), aqui traduzido pela expressão demorar-se, remetendo para a ideia de viagem que foi idealizada anteriormente. Fazer um desvio, demorar a percorrer, demorar para entender, demorar para conversar, demorar para refletir e criar laços: fugir às auto-estradas e revitalizar pontos ao longo das estradas nacionais, para que na interação entre o movimento e a paisagem se proporcionem experiências de reconhecimento cultural. A verdade é que as auto-estradas em Portugal podem levar qualquer um de Norte a Sul do país em menos de nada. No entanto, há muito para ver nos sítios por onde estas

64 TAVARES, Gonçalo M. - Opúsculo 14, Arquitectura, Natureza e Amor. Porto: Dafne Editora. 2008 p.6 Disponível em http://www.dafne.com.pt/pdf_upload/opusculo_14.pdf, consultado em Agosto de 2013.

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estradas não passam. Para alguns, a aventura das estradas antigas é imperativa em qualquer viagem; para outros é necessário algum incentivo. É neste incentivo, através do desenho, ou redesenho, de locais estratégicos de interesse e de paragem ao longo dos percursos, que se pretende promover uma alternativa aos eixos principais, e consequentemente um maior e mais real contacto com a realidade de cada local. Perceber o território como continuo, sem entrar na bolha que experimentamos quando viajamos de avião, por exemplo. Parece já nem haver essa disponibilidade sensorial por parte de quem viaja. A paisagem corre apressada pelos espelhos e pelos vidros mas dentro do habitáculo em movimento o ambiente torna-se cada vez mais autónomo. (...) excetuando a continuidade do traço branco ou a fila dos postes de eletricidade, nada mais revela sinais de outras continuidades ou identidades.65

6.1.3 | ESPAÇOS ENTRE O desenho destas intervenções é como um intervalo, tanto um intervalo entre a partida e a chegada, como um intervalo entre o ser humano e a paisagem. Um espaço intermédio. Traz à colação a eterna discussão sobre o espaço de transição em arquitetura para uma escala territorial e questionam-se as premissas do desenho dos dispositivos que fazem a transição entre a passagem e a paragem, a dualidade entre o movimento e a permanência. - um espaço entre - que já não pertence à velocidade da estrada mas que ainda não pertence ao ritmo de contemplação. Retomando a discussão dos dispositivos arquitetónicos de transição, quando entramos nestes espaços estamos num processo, o de habitar a transição, como que num umbral.

6.1.4 | INSPIRAR Se na Noruega, o culto da paisagem já existia e as intervenções vieram apenas qualificar a experiência, em Portugal, parece haver, principalmente nos últimos anos, um general desconhecimento e falta de vontade para a descoberta. Esclarece-se que a proposta consiste em organizar novas rotas ou reinventar antigas formas de percorrer determinados territórios, criando linhas orientadoras e desenhando infraestruturas de grande qualidade arquitetónica, impulsionadas pelo valor intrínseco dos lugares já existentes. Pretende-se criar pontos de partida para motivar a exploração pessoal de cada um. Através da existência de marcos

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DOMINGUES, Álvaro - A Rua da Estrada. Porto: Dafne Editora. 2009

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FIGURA 28 | O RURAL

FIGURA 29 | O HOMEM E A SUA MEMÓRIA

É imperativo questionar a predominância das preocupações com o viajante nas intervenções dos últimos anos, onde se encenam cenários românticos e idílicos com o principal propósito de responder às imagens que se criam destes ambientes. Esta imagem do campo deixa de fora os problemas que afectam tantas vezes estes lugares, a pobreza, a falta de emprego e de serviços, o encerramento de escolas, a falência da agricultura e o ressurgimento dos incultos.

Os homens passaram mas a sua memória demora séculos a apagar-se. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

FIGURA 30 | ATORES LOCAIS (...) proporcionar oportunidades responsáveis e bem geridas para os membros da comunidade residente e para os visitantes experimentarem e compreenderem em primeira mão o património e a cultura dessa comunidade.(...) Ele tem um papel importante na vida moderna e deve ser tornado física, intelectual e/ou emocionalmente acessível ao público geral. Os programas estabelecidos para a proteção e conservação dos atributos físicos, dos aspectos intangíveis, das expressões culturais contemporâneas e de contexto alargado, devem facilitar uma compreensão e uma apreciação do significado do património, pela comunidade residente e pelos visitantes, de uma maneira equitativa e sustentável. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete TEXTO: Carta Internacional do Turismo Cultural

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reconhecíveis em sítios específicos, estas intervenções abrem novos caminhos aos mais motivados e dão ao visitante mais distraído uma estruturada interpretação da paisagem e da cultura. Não se pretende promover paisagens petrificadas no pitoresco ou na artificialização do rural, em que as intervenções se transformam no típico local do retrato de uma história acabada, mas antes ciar o guião que permite ao visitante encenar a sua própria performance.

6.1.5 | RECUPERAR Um dos temas mais marcantes do panorama arquitetónico atual em Portugal são as inúmeras políticas de reabilitação que têm sido criadas. É neste contexto, que se propõe usar o que já temos - séculos de história e um legado arquitetónico notável. De acordo com uma visão contemporânea devem reinventar-se formas de o reutilizar. Esta estratégia só faz sentido se todo o processo for feito com recursos locais, tanto os materiais como os humanos. Pretende-se que nos territórios mais ignotos, sejam a sua forte expressão patrimonial e a sua identidade própria, os pontos de partida para a sua recuperação socio-económica.

6.1.6 | O VIAJANTE O público alvo destas itinerâncias culturais não será o turista que procura o entretenimento fácil e as experiências imediatas, mas antes aquele que, motivado pelo seu próprio enriquecimento cultural, espera encontrar mais perguntas que respostas aspirando a uma procura autónoma do conhecimento.

6.1.7 | ATORES LOCAIS E O VIAJANTE Se é verdade que por vezes temos a ilusão de achar uma coisa bela ou interessante com base no que observamos imediatamente, também é verdade que é através da nossa memória e das experiências que nela assimilamos que vamos buscar os referentes para entender o que está diante de nós. Na percepção da paisagem, para além da nossa memória, pode evocar-se a memória coletiva. Somos sempre levados pela experiência cénica que uma paisagem produz, - a beleza dos palácios de Sintra e dos socalcos do Douro - mas não deve ficar por entender, pelo que é necessário que nos contem a sua história e que apresentem aos seus atores. Trata-se de utilizar os recursos locais existentes, reminiscências de um tempo passado,

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para contar essa história na primeira pessoa. São as pessoas, os atores locais, que devem contar a história do seu passado, transmitir os seus saberes, pelo facto de terem participado, em maior ou menor escala, do processo de construção da sua terra. São pessoas simples, mas a exemplo das paisagens que habitam, apresentam um forte caráter e uma cultura decantada de séculos. (figura 29)

Geralmente as preocupações e desejos da população residente vai ao encontro do crescimento económico da área, criação de empregos e melhoria de serviços e infra-estruturas, enquanto que os visitantes aspiram às infraestruturas de apoio ao turismo e da preservação ambiental do lugar. (...) Os residentes vêem a sua área de residência como um espaço de produção de alimentos e matérias primas, sendo para eles difícil de aceitar as funções que os atores urbanos pretendem implementar. 66 Existe de facto um rural para viver, outro para visitar, perante duas visões para um mesmo território, poderá o desenho arquitetónico ajudar no encontro de um equilíbrio? Como desenhar um território comum? Não se pode ignorar que os principais afetados são efetivamente os principais agentes na preservação e monotorização destes lugares.67 Argumenta-se que as itinerâncias da memória, podem ser uma mais valia para estas pessoas que por vezes apenas precisam de um alerta para o valor do seu património. Promover da sua participação, desde a recolha de informação até à implementação física do projeto pode levar a que se sintam donas desses locais e assim motivadas para os protegerem pela sua apropriação e sentimento de pertença. (figura 30) Quase como um processo natural, ao perceberem que o propósito das novas intervenções não é descaracterizar os seus espaços mas antes dá-los a conhecer, as populações, agora mais advertidas sobre o valor das suas raízes culturais, retomam o imaginário que povoa as suas memórias. Adquirem competências e incorporam-nas no seu quotidiano, sensibilizadas para o seu valor intrínseco sentem-se exortadas a exprimir- se, e fazem-no recorrendo às expressões tradicionais. Por ver e ouvir as

66 FIGUEIREDO, Elisabete - Um Rural para viver, outro para visitar – o ambiente nas estratégias de desenvolvimento para as áreas rurais. Tese de Doutoramento em Ciên- cias Aplicadas ao Ambiente, Departamento de Ambiente e Ordenamento, Universidade de Aveiro. 2003 Disponível em http://biblioteca. sinbad. ua.pt/teses/2009000062, consultado em Agosto de 2013 67 FIGUEIREDO, Elisabete; VALENTE, Sandra. Habitantes e Visitantes – Uma ‘luta’ inevitável. V Colóquio Hispano-Português de estudos rurais. Brangança 2003. Disponível em http://www.sper.pt/VCHER/Pdfs/ SandraValente.pdf, consultado em Agosto de 2013

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populações locais, descobrir os últimos representantes de um saber consuetudinário, o viajante sente-se parte de uma experiência real em vez de pomposas recriações históricas, ou incursões de cariz efémero em práticas rurais, de um turismo profundamente elitista. Para além deste desejo de integração e participação local, é importante criar mais valia local, pensando nas potencialidades do impacto local do projeto para a vida diária. As intervenções devem passar por melhoramento dos espaços públicos, criação de acessos, espaços para oportunidades de comércio. Reabilitar as estruturas destas populações e fazer com que sejam elas a dinamizá-las e tirar proveito destas itinerâncias.

6.2 | IDEIA, PROCESSO E METODOLOGIA Em Junho de 2012, ainda na Noruega, foi fundamental uma primeira conversa com Per Ritzler, um dos gestores do projeto, onde se discutiram mais a fundo as metodologias usadas. Esclareceu que a seleção destas 18 rotas nacionais se iniciou com um pedido aos municípios para que identificassem as mais representativas estradas do seu território administrativo, todo o projeto evoluiu com dois membros do grupo, percorrendo todas elas e acabando por fazer as escolhas, as viagens demoraram dois anos. 68 Inspiradas por esta conversa, as viagens feitas durante o verão de 2012 consistiram no primeiro trabalho de campo e no segundo momento fundacional da proposta. Tentando, ingenuamente, percorrer todo o território nacional, os dois meses de viagem revelaram-se, apesar de tudo, fundamentais para a compreensão in situ da terra portuguesa. Orientada por relatos de viagem, mapas antigos e atuais, e motivada por algumas das principais monografias já citadas, foi neste contacto direto com realidade das paisagens e da convivência com as pessoas que o desejo de propor este trabalho se afirmou e se revelou cada vez mais pertinente.

6.2.1 | TRABALHO ACADÉMICO O passo seguinte foi a transformação dessa ideia numa proposta de final de mestrado, entendida como uma oportunidade de fazer algo fora do âmbito convencional da disciplina de projeto, para enriquecer a última etapa do formação em arquitetura com um novo desafio muito pessoal. A sua metodologia assenta num método indutivo de 68 Depois de um estimulante resumo sobre os principais momentos da viagem que deu origem a estas rotas, foi ainda importante a incursão comentada na primeira pessoa pela exposição Views. Norway Seen from the Road 1733-2020, no Arkitektur Muset, local onde ocorreu a conversa

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FIGURA 31 | ITINERÂNCIAS TERRITORIAIS 1. FINISTERRAS; 2. RAIA; 3. VALES; 4. SERRAS Esta divisão aproxima-nos mais dos factores físicos - a topografia, os recursos locais - que são materiais da prática da arquitetura. Assim, sem deixar de ter a cultura como pano de fundo, são deliberadamente deixadas de parte outras argumentações possíveis, provenientes de estudos geológicos, climáticos, sociológicos, antropológicos, etnográficos, só para nomear alguns. IMAGEM: Elaborado por Mariana Calvete

minho

douro superior gerês

Proposta inicial de 12 itinerâncias, no ANEXO III, são ilustradas e comentadas.

douro ignoto

costa centro costa de lisboa

FIGURA 32 | ITINERÂNCIAS EM PORTUGAL

FONTE: Elaborado por Mariana Calvete

altos lugares beira

ribatejo

arrábida guadiana

costa vicentina

FIGURA 33 | SÍMBOLO Desenhado como uma reintrepretação da Cruz de Cristo, eternamente associado às conquistas de Portugal, nas velas dos seus barcos e nas asas dos seus aviões. Redesenhada com os seus braços entrelaçados remetendo para os símbolos de proteção. Reflete assim a uma estratégia de proteção de um passado de conquistas, história e cultura. FONTE: Elaborado por Mariana Calvete

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análise cruzando diversas fontes escritas e muitos testemunhos. A procura destes lugares fez-se num primeiro tempo através de investigação bibliográfica colmatado com algumas conversas - em primeiro lugar com os orientadores Prof. José Aguiar e Prof. Paulo Pereira, e depois com Duarte Belo, Álvaro Domingues com responsáveis do Museu do Douro e do Centro de Estudos Geográficos. Foram ainda entrevistados informalmente - como referido acima -, habitantes locais durante as viagens. Foram deliberadamente deixados de fora inquéritos, gravações e estudos de mercado: ficaram apenas os registos informais de conversas ocasionais e inspiradoras.69

6.2.2 | DESEJO DE UMA ESCALA DE INTERVENÇÃO NACIONAL A discussão da divisão do território português é complexa e ocorre ciclicamente, muitas vezes decorrendo de critérios científicos, outras vezes de critério sociopolíticos, que podem ser ciência em si mesmo, mas que acusam a extensão de problemas atávicos.70 Como hipótese de partida dividem-se estas itinerâncias em quatro categorias que se nomeiam segundo o elemento que persiste como matriz geográfica e cultural do território a representar. (figura 31) Não é ambição deste trabalho, nem poderia ser, devido ao seu caráter individual e à sua duração, dar uma resposta que cubra todo o território português. No entanto, para que não se perca a ideia original do projeto e a sua intenção de amplitude nacional, são apresentadas um conjunto de 12 itinerâncias, que a título de exemplo, demonstram o que pode vir a ser a implementação do projeto Itinerâncias e Percursos da Memória em Portugal. (figura 32)

6.2.3 | COMUNICAÇÃO Para que o conceito das Itinerâncias e Percursos da Memória seja reconhecível é necessário existir uma homogeneização da sua apresentação. Em primeiro lugar pela existência de um símbolo, ou logótipo, como elemento unificador e reconhecível. (figura 33) Depois, com a função metafórica e literal de hipertexto, foi criado o site

69 Este processo contou, como foi relatado, com a participação de inúmeras ajudas, intermináveis conversas, muitas visitas de campo com muitas fotografias e muitos desenhos. Pensa-se que nem o corpo principal da dissertação, nem o projeto desenhado conseguem refletir toda a riqueza do processo que tem sido a elaboração desta itinerâncias, por isso, procura documentar-se o processo num conjunto de 4 livros (em anexo), incluindo instrumentos como cadernos de viagens que reportam este percurso de uma forma mais informal e pessoal. 70 Desde o Mediterrâneo e Atlântico de Orlando Ribeiro, a Geografia de Portugal de Amorim Girão, as Unidades de Paisagem de Cancela d’Abreu e Pinto-Correia até às complexas divisões regionais, políticas e administrativas. Não se pretende entrar a fundo nesta discussão, o consistiria numa dissertação em si.

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FIGURA 34 | WEBSITE http://www.percursosdamemoria.com/ Criado para a divulgação da informação reunida neste trabalho de final de mestrado com a ambição de ser continuado em projetos futuros. FONTE: Elaborado por Mariana Calvete

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www.percursosdamemoria.com onde se mostram os conceitos principais do projeto, e, para cada itinerância, os principais factos, mapas e fotografias. Numa perspectiva de continuação deste projeto, pretende-se que à medida que cada itinerância seja desenvolvida se vão incorporando os mapas e desenhos correlativos. Neste trabalho, é apenas desenvolvida a parte relativa à Itinerância do Douro Ignoto (figura 34) Na construção física das itinerâncias, seria desejável a materialização desta homogeneidade através de uma linguagem comum do desenho das infraestruturas básicas e comunicação. Para que não se confundam com intervenções isoladas: são, efetivamente, vários contributos locais para um todo maior.

6.2.4 | INTERVENIENTES EM PORTUGAL O Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional, provavelmente com outros, talvez com todos, poderia gastar algum dinheiro em projetos experimentais, de execução imediata, fazendo apelo a profissionais de várias disciplinas e estudantes que estivessem dispostos a pensar e a desenhar um futuro possível. 71 Embora no âmbito deste trabalho académico, estas questões não sejam cruciais, foi importante levantar algumas questões acerca da possível implementação do projeto. Entre outras coisas, lançam-se pistas para a ideia de estabelecer ligação com instituições de ensino superior. O desenho de itinerâncias e as suas intervenções poderia ser implementadas como sugestão em unidades curriculares de projeto ou trabalhos de final de mestrado nas escolas de arquitetura, preparando os estudantes para a atual situação que terão de enfrentar depois de terminar a educação. De um ponto de vista sócio-profissional, e tendo em conta as potencialidades de novos programas de financiamento pós-QREN no contexto da UE, a proposta de itinerários como este, pode suscitar trabalho, para um mercado de profissionais conjunturalmente contraído na área da arquitetura, arquitetura paisagista e interiorismo. O desenho destes programas, se entendidos a uma escala simultaneamente nacional e regional, mesmo com caráter intermunicipal como seria desejável, ajudarão a transformar, de forma leve - quer em termos de investimento, quer em termos de obra construída - um controlo da paisagem e uma reformulação de áreas deprimidas do interior, ou das periferias do litoral, igualmente atingidas pelo flagelo da crise global.

71 ALVES COSTA, Alexandre - Identidade Nacional e Património Construído - Arquitectura, Cidade e Território, 2009 op cit

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FIGURA 35 | INQUÉRITO À ARQUITETURA REGIONAL Os desenhos deste inquérito, procurando dar eternidade a vivências, formas de organização do espaço, utilização de materiais e técnicas construtivas. IMAGEM: Arquitectura Popular em Portugal, 1988

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É neste âmbito que este trabalho de final de mestrado é desenvolvido e inventado - como um projeto imaginário que potencialmente poderia resolver alguns dos problemas que o sector da arquitetura enfrenta. De uma forma básica, entendendo o que de melhor temos e o que podemos fazer com isso.

As Itinerâncias e Percursos da Memória são pedaços de estrada onde património e paisagem se unem para contar a história da terra e das suas gentes. Pontuados por lugares onde o desenho arquitetónico é o ponto de partida para a descoberta da identidade e da memória de Portugal.

6.3 | TRAÇOS DO NOSSO (OUTRO) TEMPO Importa agora, antes de entrar num território específico, colmatar estes princípios estratégicos com pistas para as intervenções em si; falar desta ambição que passa pelo território da reabilitação e reintrepretação de construção e técnicas de construção antigas e tradicionais. (figura 35) Mas irão também perder-se também os saberes tradicionais, corporizados em métodos construtivos que hoje diríamos sustentáveis, pela ligação com os materiais locais e pela capacidade de se adaptarem ao meio e ao clima? Que futuro afinal para o nosso passado? 72 National Tourist Routes in Norway - Traces of our own time: é este o título do artigo escrito por Jan Andresen, diretor do departamento das Norwegian Tourist Routes onde anota, ainda: They are currently developing an attraction that will bear the marks of our own time.73 Fica claro que uma das maiores ambições do projeto é deixar as marcas do nosso tempo que, no caso norueguês, passa por produzir arquitetura contemporânea que deva refletir a criatividade e a capacidade técnica e industrial que o país conseguiu atingir nas últimas décadas. Numa fase de escassos recursos, estas itinerâncias potenciam os saberes e a tecnologia existentes para revitalizar os traços de um passado, o nosso outro tempo, que se está prestes a dissolver. O traço da arquitetura contemporânea em Portugal

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AAVV - Arquitectura Popular em Portugal, 1988 op cit LYSHOLM, Hege; BERE, Nina - Nasjonal Touristveger, 2010 op cit

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FIGURA 36 E 37 | DESENHAR COM O CONHECIMENTO Visito o Convento de Refóios. A grande massa de construção, bem no centro da paisagem; um detalhe de uma paisagem subordinada ao uso e à glorificação da terra. (...) A ideia do projeto já ai estava, recortada contra o convento, contra a montanha. Projetar é captar, o momento exacto, uma ideia perturbadora e errante - e repor a serenidade. (...) A arquitetura que não corróio nasce da capacidade de emoção. E essa, sem dúvida, é uma capacidade universal.

IMAGEM: Planta e esquissos de Fernando Távora para a recuperação do Convento de Refóios. TEXTO: Álvaro Siza em Fernando Távora Obra Completa, 1992

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passa indiscutivelmente pela reabilitação, a maior herança que o nosso tempo pode deixar são testemunhos de habilidade, sensibilidade e inteligência, reintrepretando conceitos e revitalizando técnicas, e até recuperando a sabedoria local. Humildade e modéstia são qualidades nobres. Quando o arquiteto consegue olhar para as características intrínsecas do lugar e para os ensinamentos locais, em oposição a expor-se como mestre, a arquitetura de qualidade aparece. Quando nos é permitido, em domingos desertos, percorremos a obra, como quem percorre o que lhe é alheio, vádio inconsciente da procura até ao encontro. A construção é quase igual a uma ruína. Se algo do entusiasmo inicial reaparece, então a obra torna-se ruína de um palácio.74 Álvaro Siza, acredita que projeto já está lá, só é preciso encontrá-lo através do desenho. Há sempre algo, diz, e é necessária a sua teimosa procura pelo desenho criador. Estes pensamentos refletem uma extrema sensibilidade cultural e respeito pela intervenção arquitetónica, na sua integridade profissional, defende e acredita nas qualidades de cada lugar, lembrando ideologias muito enraizados na arquitetura dos países nórdicos particularmente a norueguesa que é indissociável da figura de Christian Norberg-Schulz. (figura 36 e 37)

6.3.1 | A ARQUITETURA SEM ARQUITETOS Havia uma arquitetura, dita popular, de enorme qualidade. Mas essa qualidade, de desenho, de uso dos materiais, era feita com aquilo que a terra dava e a terra dava pouco. O desenho era uma possibilidade de poucas opções, o que levou a arquitetura e espaços urbanos de uma economia clarividente e inventiva, mas precária.75 Esta arquitetura tão clarividente por vezes perde-se pelo excesso de meios e referências, outras vezes pela vulgaridade das opções tomadas. Se no passado a criatividade e inovação eram postas ao serviço da qualidade dos espaço, agora são postas ao serviço de benefícios económicos. No Portugal rural, será que faz sentido continuar a permitir a construção de grandes equipamentos como solução óbvia e imediata para colmatar as necessidades inerentes a uma expansão cultural? Com um

74 SIZA, Álvaro - Textos - 01 textos. Porto: Editora Civilização. 2009 75 Sobre as fotografias de Orlando Ribeiro, em BELO, Duarte - Portugal - Luz e Sombra, 2012 op cit, p.301

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olhar mais atento, talvez fosse importante fazer uma análise das estruturas existentes, do que pode ser aproveitado para cumprir estas funções. Numa altura em que a sobrevalorização da imagem se sobrepõe ao espaço e à construção como matérias primeiras da arquitetura, é necessário evocar a história como um instrumento operativo que permite reconstruir narrativas.

6.3.2 | AS INTERVENÇÕES Mais do que mimetizar formas de outras épocas e outras vivências, importa saber se é possível preservar algumas delas com novas funcionalidades, mas mantendo a coerência de conjuntos que são verdadeiras lições da arte de construir., com economia de meios e estreita relação com o sítio.76 De um modo geral, as intervenções consistem, em primeiro lugar, em encontrar vestígios, estruturas que podem ser objeto de intervenção. Numa segunda fase, encontrar uma nova forma de as utilizar quando a sua função principal se tornou obsoleta. Importa estudar a sua posição na paisagem, a sua relação com a envolvente. E por fim, estudar as suas especificidades tipológicas e construtivas que devem dar pistas ao desenho, materiais e técnicas utilizadas. Assumem-se como premissas de desenho os factores físicos e humanos de cada lugar. São transportadas as reflexões teóricas para uma intervenção informada. Não se deseja traçar uma imagem eminente de contemporaneidade, mas antes usar as experiências que temos para deixar falar o passado. A intervenção não deve ser o foco de atenção mas antes uma moldura para o que já existe em cada lugar. Aspirar a ser um gesto intemporal, mais do que um gesto fundador. Uma pequena intervenção que dê uma nova voz ao existente em vez de falar por cima dele. Não se confunda esta atitude como uma redução da complexidade do desenho arquitetónico; trata-se antes de controlar a escala da intervenção e aumentar a complexidade na sua subtileza. Um objeto arquitetónico complexo mas de pequena escala. Desenhar com o significado dos espaços mais do que desenhar com a sua forma. Uma arquitetura do território e de alcance social, escapa às lógicas de desenho do edifício singular pela complexidade da paisagem. Pressupõem uma investigação acerca da linguagem vernacular/tradicional da construção local, quer dos monumentos, quer da sua envolvente. (Re)Interpretar estas técnicas, associando-as a novas tecnologias adequadas na materialização da

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AAVV - Arquitectura Popular em Portugal, 1988 op cit


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proposta. Aliás, a fraca compreensão do funcionamento natural das áreas rurais é um obstáculo para muitos projetistas que leva a decisões e estratégias que geralmente não são entendidas, nem aceites, pelos próprios residentes destas áreas. Desenvolver a capacidade de antecipação relativamente ao futuro da solução apresentada é assim essencial.

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III | O PROJETO Apenas construindo o novo, faze-mos o passado falar.77 Sverre Fehn, 1997 Nestes capítulos pretende-se ir ao encontro do problema de projeto, demonstrando de que forma a fundamentação teórica informa o desenho das itinerâncias. Este trabalho escapa às lógicas do projeto convencional e por isso é imperativo entender todo o processo, as metodologias utilizadas e dificuldades encontradas. Como motivo de discussão, apresenta-se a itinerância do Douro Ignoto. Apesar de toda a argumentação se centrar nas características intrínsecas deste território, não raras vezes remeterá para princípios gerais enunciados atrás, visto que se trata de um exemplo para demonstrar uma intenção maior. São apontadas quatro áreas de intervenção, - cada uma delas com a complexidade inerente a qualquer intervenção territorial e patrimonial - devido à curta duração da elaboração deste trabalho, são mencionadas intenções, por vezes ilustradas de forma simples através de desenhos conceptuais ou diagramas. Em prol da qualidade do projeto e da sua representação, a maior parte do tempo será investido no desenvolvimento do projeto de São Salvador do Mundo, encontrando aqui a oportunidade de argumentar visualmente as intenções enunciadas no desenrolar do trabalho.

77 Tradução livre do norueguês: Kun ved å bygge det nye, får vi fortiden i tale. Parte do discurso de recepção do Prémio Pritzker em 1997.

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FIGURA 38 | QUNTA DA CORTE [Vinho do Porto] Um vinho que deve ter a doçura do açúcar do Brasil, a riqueza e os sabores das especiarias das índias. Deve ser como uma chama líquida no estômago, mas não deve queimar como a pólvora de um canhão. Uma região diferente, na terra, no clima e na sociedade. Mas o fulcro de todas as suas singularidades foi o vinho. Como é evidente, a terra formou os homens e os homens moldaram a terra. O que porém, os uniu nesta influência recíproca foi o vinho. Quem provou o Vinho do Porto sabe da sua grande generosidade e doçura. A sua fama estende-se entre dois extremos: desde a primeira menção que lhe é feita em 1675 –uma referência feita num documento de exportação de vinho do Porto para a Holanda - até à vulgarização da expressão interrogativa e de oferta a glass of port?, tantas e tantas vezes repetida e editada em filmes ingleses ou norte-americanos e - não por acaso conhecido, sobretudo como the englishmen’s wine.

IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete TEXTO: Citado em Lugares Mágicos de Portugal, Paulo Pereira


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7 | A ESCOLHA DE UM TERRITÓRIO - O VALE DO DOURO Patético, o estreito território de angústia, cingido à sua artéria de irrigação, atravessa o país de lado a lado. E é, no mapa da pequenez que nos coube, a única evidência incomensurável com que podemos assombrar o mundo.78 Miguel Torga, 1950 A dificuldade na escolha de um território para uma demonstração de uma intenção que se quer nacional mostrou-se mais difícil do que parecia. Em primeiro lugar, pelo inevitável pensamento de que o território escolhido seria determinante para a aceitação das premissas enunciadas para as itinerâncias, correndo o risco de se confundir com um projeto demasiado local. Depois, pelo vastissímo leque de opções encontras nas muitas viagens e conversas. As questões do que escolher, o que é representativo e o que deixar de lado, perduraram por alguns meses.

7.1 | OS UNIVERSOS DENTRO DO DOURO Depois de escolhido o vale do Douro foi necessário conhecê-lo, entender os seus limites e a sua identidade, a primeira viagem com a consciência desta escolha, foi feita numa perspectiva de reconhecimento do território integralmente. Em vez de seguir determinadas estradas, a ideia foi seguir todo o curso do rio, desde a foz até ao final do seu troço fronteiriço. O vale do Douro é talvez um dos locais com mais história em termos de divisão e demarcação. Esta história é sabiamente contada por António Barreto, no seu livro Douro.79 Sem ambição de refazer história, ou de encontrar uma verdade absoluta, 78 79

TORGA, Miguel - Portugal. 3ª Ed. Lisboa: Dom Quixote. 2010 BARRETO, António - Douro. Lisboa: Edições Inapa. 2001

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FIGURA 39 | ROTAS NO DOURO 1 | O DOURO RELIGIOSO - VALE DO VAROSA - Temos, por isso que procurar os inventores do vinho do Porto, num meio social diferente da aristocracia nobre. Poderiam ser, por exemplo, (...) alguns monges de Salzedas, Tarouca ou S.Pedro das Águias, pelo menos os mais pacientes e gulosos, ou seja, aqueles que, apesar das austeras recomendações de S.Bernardo, se deixavam seduzir pela ambígua via da sublimação dos prazeres corporais. Portugal, o Sabor da Terra

2 | O ALTO DOURO VINHATEIRO - Douro é vinho. Vinho e vinha. Pode ser rio, pode ser terra. Região ou vila. Mas é, sobretudo, vinho. A monocultura é assim, impregna tudo, os montes, as casas e os homens. (...) Mas também reina na paisagem, naqueles formidáveis socalcos que, montanha acima, acabam por lhe dar forma e feitio. António Barreto. Douro

3 | O DOURO INTERNACIONAL OU DOURO SUPERIOR - De Barca de Alva para montante, a paisagem altera-se progressivamente. De um vale profundamente humanizado, da terra quente, vinhateira, deparamo-nos com um espaço inóspito e agreste. É agora o Douro do granito, dos profundos declives, da dimensão grandiosa e intemporal de uma terra que já não tem a escala humana. Portugal, o Sabor da Terra

IMAGEM: Elaborado a partir de uma imagem do Google Maps

NUTS II - Norte

NUTS III - Douro

DISTRITOS - Vila Real, Bragança, Viseu

MUNÍCIPIOS: Alijó, Armamar, Carrazeda

e Guarda

de Ansiães, Freixo de Espada à Cinta, Peso da Régua, Sabrosa, São João da Pesqueira, Tabuaço, Torre de Moncorvo, Vila Nova de Foz Côa.

FIGURA 40 | ÁREA DE INTERVENÇÃO NAS DIFERENTES DIVISÕES DE PORTUGAL Complexidade da divisão administrativa do território portugues. IMAGEM: Elaborado a partir de imagens da Wikipédia.

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FIGURA 41 | DOURO RELIGIOSO, O VALE DO VAROSA A posição da paisagem do Mosteiro de São João de Tarouca IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

FIGURA 42 | ALTO DOURO VINHATEIRO Típica paisagem de uma quinta no Alto Douro IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

FIGURA 43 | DOURO SUPERIOR O impressionante rasgo do Douro na fronteira com Espanha. IMAGEM: Fotografias aéreas de José Aguiar

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FIGURA 44 | AS CULTURAS DO DOURO Aproveitamento, pela oliveira, de terrenos de vinha morta pela filoxera. À direita, vinha americana plantada de novo e posteriormente enxertada. IMAGEM: Fotografia nº 4171 do espólio de Orlando Ribeiro cedida pelo Centro de Estudos Geográficos

FIGURA 45 | A VINHA E AS AMENDOEIRAS As vinhas predominam no Baixo e Cima Corgo enquanto que as oliveiras e as amendoeiras ganham maior representatividade no Douro Superior e também no Cima Corgo, onde as condições climáticas se tornam mais adversas. As oliveiras, as amendoeiras e outras árvores de fruto, como as cerejeiras, têm uma presença muito significativa na compartimentação da paisagem no Baixo e Cima Corgo. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

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identificaram-se três unidades paisagísticas com um certo grau de homogeneidade interna, considerando aspectos geomorfológicos e culturais. (figura 39 a 43) Os títulos encontrados procuram refletir o denominador comum, o fio condutor em que é tecida a divisão. Depois de analisar o potencial de desenhar itinerâncias nestes três locais, foi escolhido o Alto Douro Vinhateiro. Agora, em várias perspectivas, importa traçar o seu retrato!

7.2 | ALTO DOURO VINHATEIRO - PAISAGEM CULTURAL 80 As coisas grandes têm uma arquitetura grande e uma significação maior ainda... Doiro, rio e região é certamente a realidade mais séria que temos, Nenhum outro caudal nosso corre em leito mais duro.81 No imaginário coletivo, esta é a imagem do Douro: é o vinho e são os socalcos. Limitada pela Régua a jusante e por Barca D’Alva a montante. Esta região é conhecida pelo caráter cénico da sua paisagem sabiamente criada pelo Homem e pela Natureza, num trabalho coletivo e secular. Foi de uma persistente relação com a escassez que nasceu esta imensa obra. E o Alto Douro, é talvez a região portuguesa sobre a qual mais se escreveu, sobretudo no século XIX e princípios do atual.82

7.2.1 | A ANTIGA REGIÃO - CORREDOR DE POVOS E CULTURA E foi assim que o Douro se tornou a melhor vinha e o melhor vergel de Portugal... e que uma raça de gigantes ergueu o mais belo e doloroso monumento ao trabalho do povo português. Esses foram os Lusíadas sem Camões.83 O Douro é uma paisagem de declives acentuados e vales encaixados. As formações geológicas da região são muito antigas. Datam desde o Pré-Câmbrico e são essencialmente constituídas por xistos e intrusões graníticas. O solo é praticamente inexistente, e aquele que encontramos pelas encostas é todo fabricado pelo Homem. Os terrenos, aparentemente pouco propício para culturas, parecia dizer que melhor 80 Esta síntese foi baseada principalmente na compilação feita por Paulo Pereira no livro Lugares Mágicos - Espírito da Terra acerca do rio Douro e também no texto de candidatura do Alto Douro Vinhateiro a Património Mundial. Complementou-se com pequenas leituras da extensa obra Viver e Saber Fazer, do Museu do Douro e do livro intitulado Douro de António Barreto. Sem descurar o poético Roteiro Sentimental do Douro, escrito por Manuel Mendes, complemento mais emocional ao tema. Todas as referências na categoria DOURO na Bibliografia. 81 TORGA, Miguel - Portugal. 3ª Ed, 2010 op cit 82 BARRETO, António - Douro, 2001 op cit 83 CORTESÃO, Jaime - Portugal. A Terra e o Homem, 1966

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seria abandoná-lo. Porém uma teimosia paciente encarou de frente esta aparente brutalidade. A dureza do xisto e a escassez da água parecem não ter constituído obstáculos à plantação da videira, da oliveira, da amendoeira e também da figueira e da laranjeira que constituem verdadeiros símbolos da cultura mediterrânica. (figura 45) Desde quando descobriu que a vinha dava o melhor de si nos terrenos cascalhentos do xisto? (...) Quem descobriu tudo isto, como é evidente, foram os homens do Douro. Mas não conhecemos o nome de nenhum deles. Ora esse espírito não se encontra facilmente noutras regiões agrícolas de Portugal, predominantemente passivas e tradicionalistas.84 A paisagem do Alto Douro Vinhateiro revela, enfim, a complexidade do entrecruzamento de culturas, quer como zona de transição, quer como zona de assentamento e sedimentação. Os romanos estruturaram o território assim como introduziram técnicas de plantação da vinha e de produção do vinho, iniciando-se então a caminhada para a afirmação de uma vocação ininterrupta. A fixação de ordens religiosas no final da Idade Média, nomeadamente os cistercienses, também deixou marcas expressivas na paisagem. E mais tarde, o comércio do vinho do Porto foi atraindo gentes vindas de fora, nomeadamente os galegos para participar nos trabalhos da vinha. Neste território se exibem testemunhos de humanização primigénios, reportando-se a todos os momentos da pré-história e da história europeias. Por isso, existe um notável património imaterial associado às águas deste rio, que povoou o imaginário de poetas e contadores de histórias. - Miguel Torga, Manuel Mendes, Alves Redol, Eça de Queiroz, entre outros - Serviu de inspiração para as cantigas e animavam a dura faina das rogas. Foi também a paixão e devoção de muitos, como os que, entre as elites de possidentes, ficaram famosos: Barrão de Forester, Dona Antónia - a Ferreirinha.

7.2.2 | A VINHA E O VINHO O vinho e o seu processo de produção, como de todos os vinhos de qualidade, obedece a princípios estritos, e a sua catalogação e avaliação também. Não descurando a importância primordial deste produto na área de estudo, não seria pertinente entrar em extensas descrições, que se acredita serem melhor explicados por especialistas da área, por exemplo os incluídos no documento da sua candidatura. Importa antes sublinhar que o processo produtivo concilia as técnicas mais sofisticada com séculos 84

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MATTOSO, José; et al - Portugal, o Sabor da Terra, 2010 op cit


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de rigorosa tradição, pelo que se podem ainda observar-se vinificações segundo a técnica ancestral. A vinha interessa principalmente na sua dimensão de técnica vernacular de construção, para armar a encosta, criaram muretes baixos de pedra seca justaposta, sobre a qual se delimitam terraços ou socalcos, que ondeiam, acompanhando a encosta, constituindo uma arquitetura de terra e pedra de um efeito plástico assombroso. A comunicação entre os socalcos faz-se através de pequenas rampas e de escadas, sabiamente implantadas através de um trabalho moroso e castigador, dir-se-ia curvas de nível transpostas de uma prancheta de desenho para a escala real. Estes terraços passaram mais tarde, na fase pós-filoxérica, a ser sustentados em muretes mais altos e rectilíneos, calçados em baixo através do seu alargamento, estruturando as fundações.

FIGURA 46 | MUROS EM PEDRA Erguer muros em xisto foi o primeiro gesto da arquitetura vernacular desta região. Sobre eles se criaram as outras construções. A construção de muros e socalcos, não só para o cultivo da vinha mas também para a definição de caminhos, espaço público e áreas de construção. IMAGEM: Esquissos de Mariana Calvete

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FIGURA 47 | UM DIA EM CAMPELOS Ora um dia sucedeu que dois gigantes, um vindo de Trás-os-Montes e o outro da Beira Alta, mais gigantes na alma que no corpo, galgaram as serras, desceram as encostas e, depois de olhar os fundões do rio e provar o néctar dos frutos bravos, entenderam que aquela terra e aquele rio eram, pela sua áspera grandeza, dignos da labuta de gigantes. E resolveram meter o picão às fragas; reduzi-las a terrunha; amparar os seus “veios” estreitos com “socalcos” de pedra solta; e plantar sobre as escarpas, que eram sarças de fogo, os primeiros bacelos de videira. Quando mais tarde voltaram, viram com surpresa que as vides carregavam e as uvas ressumavam um licor capitoso, que lhes dava leveza aos passos e alegria às almas. (...) Ainda hoje, os netos dos gigantes de outrora continuam a permanente e dura faina de transformar em oásis o deserto e a rocha em ambrósia; ou acodem, nas “rogas” de Trás-os-Montes e da Beira para colher a uva e transportá-la, cadenciados pela harmónica, nos grandes cestos vindimeiros. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete TEXTO: Jaime Cortesão, A Terra e o Homem

FIGURA 48 | ARQUITETURA VERNACULAR Porque o Douro não é só uma bela paisagem e porque a atividade agrícola e os agricultores são os grandes arquitetos da paisagem é importante que as vinhas classificadas não sejam abandonadas em prol de outras com melhores condições de produção. É necessário a reconversão de muros de xisto tradicionais, utilização de materiais das pedreiras locais e nunca materiais industriais IMAGEM E TEXTO: Arquiteturas da Paisagem Vinhateira

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Estas técnicas construtivas têm sido amplamente estudadas e documentadas pelo Museu do Douro, numa tentativa de não se perderem estes conhecimentos. Na obra Arquiteturas da Paisagem Vinhateira85, caracterizaram fotográfica e cartograficamente 57 manchas exemplares de socalcos tradicionais do vasto território duriense. Mas não são só as manchas de socalcos, são também as construções para a condução de água (gateiras e tanques), os abrigos agrícolas, as arquiteturas de produção (quintas, adegas e lagares). 7.2.3 | AS DEMARCAÇÕES Por tudo isso, o nome do Douro, transbordou das águas para as margens. Deixa de ser apenas um rio para ser um enclave mediterrânico no meio das terras altas chuvosas e frias, ligado ao resto do mundo pelas águas deste rio. Não são só as características visuais desta paisagem que a tornam homogénea, são também razões históricas e administrativas. O Alto Douro Vinhateiro existe como a mais antiga região vitícola demarcada e regulamentada do mundo. (figura 50)

7.2.4 | PATRIMÓNIO MUNDIAL Retoma-se agora o tema da paisagem cultural, pelo revisitar do processo que resultou na sua classificação como Paisagem Cultural Evolutiva e Viva, a 14 de Dezembro de 2001, na 25ª sessão do Comité do Património Mundial, de acordo com critérios obrigatórios de autenticidade e integridade, e ainda os seguintes critérios: Criterion (iii): The Alto Douro Region has been producing wine for nearly two thousand years and its landscape has been molded by human activities.

Criterion (iv): The components of the Alto Douro landscape are representative of the full range of activities associated with winemaking - terraces, quintas (wine-producing farm complexes), villages, chapels, and roads.

Criterion (v): The cultural landscape of the Alto Douro is an outstanding example of a traditional European wine- producing region, reflecting the evolution of this human activity over time.86

85 FAUVRELLE, Natália; ROSAS, Lúcia - Arquiteturas da paisagem vinhateira. Peso da Régua: Fundação Museu do Douro, 2008. 86 Report of the 25th Session of the Committee, documentação disponibilizada pela UNESCO em http:// whc.unesco.org/en/list/1046/documents/ , consutada em 20 de Agosto de 2013

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FIGURA 50 | A REGIÃO DEMARCADA DO DOURO O Alto Douro Vinhateiro existe como a mais antiga região vitícola demarcada e regulamentada do mundo. A história destas demarcações remontam ao período entre 1757 e 1761, quando vê as primeiras demarcações pombalinas no reinado de D. José I, seguidas das primeiras normas regulamentares em 1756. Contrariamente ao ocorrido com a anterior demarcação de outras regiões, aqui, a originalidade foi o acompanhar da demarcação por mecanismos de controlo de qualidade suportados por um vasto quadro legal e por um sistema de classificação e qualificação de vinhos e vinhas. Esta legislação tornou-se modelar e, em certa medida, está na base de legislação moderna adaptada por muitos países produtores de vinho. Foram demarcados por um padrão ou marco divisório de pedra – alguns dos quais ainda existentes - com a inscrição, em letras capitais, da palavra FEITORIA, aplicada no seu lado mais visível da estrada ou do caminho mais próximo, o que constitui um factor identitário para toda a população da zona, assumindo um valor simbólico notável. IMAGEM: Agência de Exportação de Vinhos do Douro. Disponível em http://export.com.pt/

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FIGURA 49 | MAPA DO DOURO PORTUGUES E PAIS ADJACENTE, 1848 O nome do rio, tem uma origem decerto longínqua mas que se desconhece. Remete para outros rios igualmente dotados de grande significado mítico-histórico (eixos semânticos que se perpetuam em outros países na designação de cursos de água, como as doires francesas). E em Portugal adquire uma aura poética ao remeter para o ouro –para a riqueza real e simbólica- , como rio d’ouro. Como lembra Paulo Pereira, apetece fazer uma analogia, exagerada, é certo, mas que comunga desta mito-poesia, entre o Douro e o Nilo. Se colocarmos o mapa de Portugal deitado - como algumas vezes aconteceu no século XVII e XVIII - vê-se o Douro estender-se por um território, “de baixo para cima”, entre o Alto e o Baixo Douro, estruturando diversos centros produtivos, centro de poder e até lugares sagrados, desembocando numa grande cidade (o Porto, neste caso). Esta comparação, exagerada certamente, serve apenas para refletir no peso civilizacional do rio Douro. IMAGEM: Cartografia da Biblioteca Nacional TEXTO: Lugares Mágicos de Portugal, Paulo Pereira

FIGURA 51 | FIXAÇÃO DE POPULAÇÕES NO VALE DO DOURO ...não escolheram sítio para nascer, e empoleiraram-se nas cristas das serranias, acompanhadas de soutos e pinheirais, ou sem sombra que lhes valha; suspendem-se de ravinas sobre o rio, como se viessem suicidar-se, lutando com penhascos agressivos e possantes; despenham-se pelas vertentes dos montes, a modos com pressa de chegarem a um destino que não se realizou; espraiam- se por veigas verdes e risonhas, onde veios de água vêm sussurrar queixas da serra e as árvores ganham alturas gigantes, esbracejando à vontade, bajulam o rio, como se precisassem das águas para viver ou do seu espelho para se mirarem. IMAGEM: Arquitetura Popular em Portugal TEXTO: Alves Redol, Porto Manso

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FIGURA 52 | PATRIMÓNIO MUNDIAL AO LONGO DO DOURO IBÉRICO É concerteza um rio sagrado desde sempre, como o atestam as gravuras paleolíticas das margens do vizinho rio Côa ou do rio Sabor entretanto descobertas – estando o vale do Côa já inscrito na lista de Património Mundial. Mas não se fica por aqui, ao longo do seu curso o rio Douro tem 4 elementos incritos na UNESCO, desde Salamanca, passando pelo Douro Vinhateiro, as referidas gravuras do Côa e a cidade do Porto. IMAGEM: Rota do Património Mundial Douro-Duero, disponível em http://www.douroiberico.com/

Esta classificação encerra um duplo significado, por um lado, o reconhecimento universal do caráter excecional do património duriense, da sua autenticidade e integridade, que deve motivar, estimular e acelerar as dinâmicas em curso e novas oportunidades e, por outro, a responsabilidade zelar pela sua preservação, comprovar o mérito nesta distinção. A Região Demarcada do Douro é uma extensa paisagem cultural, - com cerca de 250 000 ha - dentro da qual, existe a área classificada pela UNESCO, - com uma área de apenas 24 600 ha - que isola de forma crítica e equilibrada a seleção com mais qualidade paisagística, a área de maior excelência e representatividade de toda a região. Esta área, uma enorme língua de terrenos acidentados, cerca de 10% da área total, corresponde também há área mais bem conservada. (figura 50) Com a recomendação para criar um plano de gestão e planificação integrada do território, foi criado o Plano Intermunicipal de Ordenamento do Território do Alto Douro Vinhateiro (PIOTADV).

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O facto de ser uma paisagem Evolutiva e Viva, reflete a assunção clara do seu dinamismo, como paisagem em vias de intervenção e ainda plenamente produtiva, apta, portanto a ser entendida como receptora de futuras transformações que não irão quebrar, porém, a sua autenticidade. O Museu do Douro, instituído pela Lei 125/97, foi concebido como um museu do território, polivalente e polinuclear, vocacionado para reunir, conservar, investigar e divulgar o vasto património museológico e documental disperso pela região.87 O trabalho Viver e Saber Fazer - Tecnologias na Região do Douro88, é um primeiro reconhecimento do território para alicerçar esse museu do território que a lei prometeu ao Douro. (...) território-museu que pretende ser mais consentâneo com a categoria de paisagem património da humanidade, que está ainda em grande medida por inventariar, estudar e valorizar, e para a gestão da qual é indispensável contar com toda a comunidade e com os poderes que a representam.89

7.3 | A (ÓBVIA?) ESCOLHA DO DOURO Em 1876 era publicado no Porto O Douro Ilustrado, da autoria de visconde de Vila Maior, obra de referência sobre o “Paiz Vinhateiro” - ...é contudo bem certo que a phisionomia original e quasi musteriosa d’esse paiz priviligiado pela natureza é ainda quasi desconhecida. Eram bem raros ainda ha pouco os viajantes que se aventuravam a percorrer, em toda a sua extensão, as regiões que o Douro atravessa dentro do território português. - Hoje, quando deixamos as estradas principais e nos embrenhamos por vales, ou subimos a pontos altos, continuamos a descobrir, incessantemente, um Douro ignoto.” 90 Depois de consultar o processo desta candidatura, uma das mais abrangentes e

87 O Museu deve constituir um instrumento ao serviço do desenvolvimento sociocultural da Região Demarcada do Douro. Numa perspetiva de “museologia de comunidade”, assume-se como processo cujo desenvolvimento deverá envolver a colaboração ativa com as instituições locais, regionais e internacionais. (...) Para atingir a sua missão o Museu do Douro preserva, estuda, expõe e interpreta objetos materiais e imateriais representativos da identidade, da cultura, da história e do desenvolvimento da região do Douro... - Apresentação do Museu do Douro disponível em http://www.museudodouro.pt/, consultado em 20 Agosto de 2013 88 AAVV - Viver e Saber Fazer - Tecnologias tradicionais na Região do Douro: estudos preliminares, 2º Ed. Peso da Régua: Fundação Museu do Douro, 2006. 89 Ibidem 90 MATTOSO, José; et al - Portugal, o Sabor da Terra, 2010 op cit p.199

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FIGURA 53 | O DOURO RECONHECIDO... IMAGEM: As primeiras imagens obtidas pela pesquisa da palavra Douro no motor de busca www.google.com

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FIGURA 54 | ... E O OUTRO DOURO O Douro encontrado nas viagens, novos pontos de reflexão e potencialidades para o território do Douro IMAGEM: Fotografias de Mariana Calvete

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ambiciosas, a escolha deste território com excesso de identidade e com um óbvio reconhecimento da sua unidade paisagística, parece a princípio um antagonismo em relação às intenções antes apresentadas. Ante este espetáculo, não há dúvida que a humanidade se mantém dividida nas suas castas (...) O proprietário do Douro, seja ele português ou Inglês, socorre-se do trabalho mais que primitivo das rogas, e usufrui nas suas quinta privilégios como os dos antigos senhores. (...) 91 À primeira vista, toda a paisagem está catalogada e explicada, e qualquer intervenção neste lugar será com certeza alvo de atenção. Mas se há algo de óbvio nesta escolha, é o facto de ser o território rural em Portugal com mais visitantes, e ainda assim, as populações locais não beneficiam desse privilégio, ainda hoje, continuando a refletir o palco de séculos das maiores desigualdades sociais. Numa das paisagens mais esteticizadas de Portugal, os visitantes são levados em recriações cénicas pelas águas do Douro dentro das Quintas, muitas delas recentemente transformadas em hotéis de luxo. Não se pretende aqui questionar os atuais valores do Alto Douro Vinhateiro nem negar a qualidade da experiência dos atuais visitantes do Douro. Esta ambição de dar uma nova visão sobre a paisagem duriense, assenta no princípio de revelação do que permanece fora dos circuitos turísticos. Com base neste retrato feito em largas pinceladas, funda-se a convicção de que há muito a dizer sobre o rio Douro como complemento da inquestionável beleza da sua paisagem e valor do seu vinho O valor patrimonial da paisagem reduz-se, muitas das vezes, a um exercício de cenografia descolado das condições intrínsecas de produção e de evolução dessas paisagens, e que sobrevaloriza os elementos pitorescos tradicionais (socalcos, muros, arquiteturas vernaculares, ruínas, sítios arqueológicos, lugares excepcionais, simbologias, mitos...), convertidos em ícones de uma autenticidade cultural perdida e em imagens de modos de vida supostamente harmoniosos e bucólicos92

91 MENDES, Manuel - Roteiro sentimental do Douro. Ed. original 1963 Porto: Afrontamento e Museu do Douro. 2002 p.128 92 DOMINGUES, Álvaro - A paisagem revisitada, em Finisterra: Revista portuguesa de geografia, vol.36, no72, p. 55-66. Disponível em http://www.ceg.ul.pt/finisterra/numeros/2001-72/72_05.pdf , consultada em Agosto de 2013

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Fazendo um exercício de pesquisa rápida na internet pelo nome Douro, o resultado é um conjunto de imagens de socalcos e vinhas, as maiores protagonistas, obras de arte, tatuagens contínuas na grossa pele dos montes, dando-lhes diferente configuração, que não tinham quando abandonados ao seu capricho selvagem. Desde sempre o fascínio foi reproduzido e documentados das mais variadas formas, desde as gravuras e aguarelas dos ingleses, passando pelas fotos do Alvão, as recentes fotografias aéreas. A divulgação generalista e estereotipada deste espaço tende à reificação do património, esquecendo o homem-autor em toda a sua espessura histórica e antropológica. No entanto as viagens revelaram algo bem diferente, nos trilhos do Douro, há muito mais dimensões que merecem ser assinaladas. (figura 53 e 54) Uma serpente imensa e alvacenta, que se enrosca por entre as montanhas, como dizia Alexandre Herculano93, eis o denominador comum das diversas memórias que persistem ao longo do território a relação com o rio pauta as experiências vividas pelas comunidades locais, não só, nos modos de vida e de subsistência, mas também nas relações afetivas e simbólicas que com o rio sempre se estabeleceram.

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MATTOSO, José; et al - Portugal, o Sabor da Terra, 2010 op cit p. 188

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FIGURA 55 | UM NOVO OLHAR Intervenção de Alexandre Alves Costa no Castelo Velho de Numão IMAGEM: Fotografia de Bjarte Stav


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8 | O DESENHO DE UMA ROTA - O DOURO IGNOTO Às terras do Douro é preciso vê-las, uma só vez que seja, do nível humilde das águas, para que ante os nossos olhos se levantem na verdadeira imponência e força do seu poder. O viajante que faz o trajeto pelas vias de hoje mais comuns, quer pelo caminho de ferro, a espreitar à janela duma carruagem do comboio, quer pela estrada, surpreende-se a cada passo com a espantosa fascinação deste rio, mas mal cuida como ele corre por entre os montes, como aqui se estrangula e além se espraia, naquela mancha acidentada e deslumbradora; como os povoados surgem das margens, (...) alguns tão humildes e primitivos que os diremos afastados milhões de léguas de tudo o que seja civilização94 Manuel Mendes, 1963 Os seguintes capítulos pretendem demonstrar na prática o desenho de uma itinerância, uma forma de olhar para o território. Passo a passo apresentam-se os objetivos e a forma como foram perseguidos no território do Douro. A concepção de uma itinerância cultural deve em primeiro lugar assentar na definição dos limites de uma área, entender a sua variedade geomorfológica, marcar os principais eixos de transporte e os principais aglomerados populacionais. É também importante proceder a um inventário cartografado dos pontos mais marcantes na sua percepção e o património construído. Será útil ter noção da existência e localização dos principais edifícios públicos e importantes equipamentos turísticos. Ao contrário do que se viu acontecer na implantação do projeto norueguês - onde foi considerada apenas a componente cénica da paisagem de um pais com densidade viária e populacional muito reduzida - a tarefa não se apresenta fácil num país como Portugal, com a imensa diversidade de paisagens, culturas e redes numa área tão pequena.

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MENDES, Manuel - Roteiro sentimental do Douro. 1963. op cit p.40

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FIGURA 56 | TOPOGRAFIA DO VALE DO DOURO A diversidade topográfica do território. A imensa variedade de paisagens. IMAGEM: Elaborado a partir da Carta Militar de Portugal à escala 1:25 000

FIGURA 57 | PENEDO DURÃO O vale da Ribeira do Mosteiro, lugar da Calçada de Alpajares, Penedo Durão e o início do Douro internacional. IMAGEM: Elaborado por Mariana Calvete a partir da Carta Militar a 1:25000

FIGURA 58 | TOPOGRAFIA EM SÃO SALVADOR DO MUNDO Como chamado por Orlando Ribeiro, a garganta selvagem numa nesga de granito. IMAGEM: Elaborado por Mariana Calvete a partir da Carta Militar na escala 1:25000

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8.1 | ENCONTRAR E REPRESENTAR AS SINGULARIDADES Após identificar as singularidades deste território, importa entender como representálas, o que convoca, talvez o maior desafio deste trabalho, que sai fora da amplitude de escalas convencionais em arquitetura, abrangendo desde os desenhos territoriais a 1:100 000 até aos tradicionais desenhos de definição espacial e construtiva, até 1:25. Esta sucessão de escalas é enriquecedora na compreensão do âmbito alargado do problema, demonstrar como o projeto se mantem fiel a si próprio em todas elas é o desafio.

8.1.1 | GEOGRAFIA Para a percepção da paisagem cultural o ponto de partida é a terra, através da geografia,95 para se encontrarem as principais singularidades desta ilha mediterrânica no Norte de Portugal. Entre os característicos vales, destacam-se episódios geológicos como a falha da Vilariça, o sinclinal de Moncorvo, o maciço granítico de Carrazeda de Ansiães ou o Penedo Durão. Logo aqui apareceram os primeiros problemas de escala e de representação. Depois de ultrapassadas as dificuldades em obter informação cartográfica e depois de adquirir conhecimento sobre a produção destes desenhos, os dados topográficos e as suas ferramentas de manipulação tridimensional revelaram-se essenciais para colmatar os trabalhos de campo, na percepção de vistas e relações entre lugares. Foram também as bases para a produção de mapas e maquetas. (figura 56 e 58)

8.1.2 | TRILHOS DO DOURO Apesar das dificuldades de deslocação no território e no próprio rio Douro, este foi sempre um corredor de passagem de povos e culturas. A importância do vinho e o seu valor comercial fez com que fosse uma área privilegiada na política nacional de transportes e comunicações. [sobre um marinheiro do Douro] Fala e logo no entono das palavras se sente o amor e orgulho que nutre pelo rio. Aqui nasceu e aqui tem vivido - é este o cenário de toda a sua existência. Conhece isto a palmo, entra nos rápidos com a segurança e destreza de quem é mestre no ofício, tem de memória onde estão as pedras submersas, os perigos que a todo o custo é forçoso evitar.

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GUEDES, Maria Teresa Valente de Sousa - O Alto Douro na Obra de Orlando Ribeiro. Porto: FLUP. 2010

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FIGURA 59 | AS ESTRADAS DO DOURO O rio, a mais velha estrada, e os precários caminhos no Douro, perto da Calçada de Alpajares. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

FIGURA 60 | DOURO, FAINA FLUVIAL Os célebres barcos rabelos, estruturas únicas da marinharia fluvial, movimentados pelo vento que enfuna a sua vela de pano redondo e pelo remo do barqueiro –a espadela-, empurrado quase sempre contra a margem, carregados de tonéis vazios ou cheios, devidamente carimbados, (...) atividade duríssima entretanto obsoleta mas documentado num justamente celebrado filme de Manuel do Oliveira, Porto, Faina Fluvial, de 1931. De origem sueva segundo alguns autores, estes barcos possuem uma configuração especializada, dando espaço à carga, aumentando a altura da vela para melhor visibilidade do barqueiro e colocando-o a este em lugar elevado para melhor controlo e melhor apoio. IMAGEM: Cenas do documentário Douro, Faina Fluvial, de Manoel de Oliveira em 1931 TEXTO: Lugares Mágicos de Portugal, Paulo Pereira

FIGURA 61 | MAPA DAS LINHAS DE COMBOIO EM PORTUGAL, 1952 E ATUAL A primeira o Plano da Rede Unificada Portuguesa em 1952, a linha do Douro como a principal forma de ligação a todo o norte do país. Agora, no mapa atual dos serviços, quase todas as linhas do norte foram desativadas, substituídas por estradas. IMAGEM: Comboio de Portugal, disponível em www.cp.pt

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O Douro tem sido a sua estrada de sempre - almocreve destes caminhos fluviais.96 As primeiras estradas a marcar o seu caminho pela paisagem portuguesa foram os seus rios. (figura 59) Em seu redor começaram a criar-se as primeiras populações e as suas formas de cultivar o solo, criaram rotas pelas suas águas, tornando possível a viagem e o comércio. O Douro foi disso exemplo, sempre foi o eixo de penetração no interior do país, apesar dos riscos de navegação fluvial. Nos célebres barcos rabelos fazia-se a comunicação entre o Porto e a Régua, levando o vinho e trazendo produtos abastecedores para o Alto Douro. (figura 60) Os 200 quilómetros da linha férrea, que atravessaram a região do vale do Douro, apesar de aparentemente modestos, revelaram-se uma das obras mais determinantes deste período. Nessa província de fronteira, parca em homens e materiais, mas abundante em doenças endémicas, a construção da nova topografia ferroviária transcendeu, em larga medida, material e simbolicamente, os limites geográficos locais.97 O caminho de ferro, por sua vez, foi uma das maiores obras de engenharia feitas no território duriense, antes da era das barragens. Era considerada como uma tarefa quase impossível. Pela mão de Fontes Pereira de Melo, os trabalhos para a abertura da Linha do Douro começaram em 1873 em Ermesinde e terminaram em 1887. Pelas marcas que deixou na paisagens, percebemos a grandeza do feito, obedecendo à topografia, no seu percurso sinuoso de curvas apertadas, que deixa também testemunhos da sua teimosia, longos túneis e elegantes pontes em pedra ou ferro. Apesar da sua modernização é ainda hoje uma interessante experiência na contemplação do território. How the road, the path, and the railway line quite literally carve their way into the landscape and make it accessible. The route not only determines where we walk or drive but also what we see.98 Como vimos, desenhar uma estrada ou um caminho é a forma mais elementar do homem marcar um território, sem muros ou vedações, delimita aquilo de que se quer

96 MENDES, Manuel - Roteiro sentimental do Douro. 1963. op cit p.47 97 MACEDO, Marta - Projectar e Construir a Nação. Engenheiros, ciência e território em Portugal no século XIX. Lisboa: ICS 2012 98 HØYUM, Nina Frang; LARSEN, Janike Kampevold - Views. Norway Seen from the Road 1733-2020. Oslo: Press Publishing and The National Museum of Architecture. 2012

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FIGURA 62 A 67 | INFRAESTRUTURAS DO DOURO As barragens, artisticamente recriadas; as antigas pontes; e as novas estradas que querem parecer as antigas. IMAGEM: 62 - Fotografia de JosĂŠ Aguiar; 63 a 67 - Fotografias de Mariana Calvete

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apropriar. Apesar de se apontarem algumas possibilidades de articulação com os outros meios de transporte, é nas estradas que se focam estas itinerâncias. Estas linhas que, agora mais do que nunca, organizam a forma como vemos o território, impõe-se a questão: quais serão as estradas que possamos podem ser consideradas considerar fulcrais na percepção do universo duriense? A estrada é um espaço de cruzamento, destinos e vivências pautam-se pelos quilómetros do território. Mais do que encontrar a opção mais rápida de passar pelo rio Douro, interessa encontrar a estrada com mais história, aquela que contém em si a maior possibilidade de percepcionar, para além da beleza da paisagem, os rituais locais de movimento. Nesta questão, o rio foi desde sempre a derradeira barreira, ou estavam numa margem ou na outra, os seus vales encaixados e a bravura das suas águas faziam da construção de uma ponte uma tarefa de heróis. Agora, com as barragens a acalmarem a sua velocidade, as opções multiplicaram-se. Através da consulta a mapas antigos foi possível ter uma ideia de quais as estradas mais antigas, apesar de a sua leitura ser por vezes um pouco ambígua. Com esta informação e através das várias viagens feitas, percorrendo quase todo o sistema viário desta zona, foi traçada o percurso. (figura 68)

8.1.3 | PATRIMÓNIO NATURAL E CONSTRUÍDO Muitos foram os que através da sua paixão por este território foram deixando pistas para encontrar os tais lugares mágicos. Assim, uma outra parte desta pesquisa consistiu numa tentativa de cartografar estes lugares, alguns pelo seu valor patrimonial, outros pelas suas histórias e os outros ainda pela singular possibilidade de um claro entendimento da paisagem que se observa. Depois de identificados e localizados foi necessário estabelecer relações entre eles. O que escolher e o que deixar de lado ganhou um novo significado. Numa terceira viagem de consolidação dos conhecimentos adquiridos, mais do que os livros, os principais instrumentos passaram a ser a fotografia e o caderno de desenho. Compor uma itinerância impõe que se perceba o movimento, de onde se chega e parte, o que se vê e que se quer ver, e isso só é possível desenhar no local. (figura 69)

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8.2 | A ESTRATÉGIA DA ITINERÂNCIA O eixo principal da itinerância consiste numa das principais formas de movimento no alto douro, em alguns dos troços, a mais antiga. Propõe-se um percurso linear entre Peso da Régua e Barca de Alva pelas estadas nacionais, principalmente N222 e N322 num total de 110 quilómetros. Peso da Régua tem, atualmente, cerca de 9 000 habitantes. Atravessada pela A24 que a liga ao Norte e ao Sul do país, por aqui se começa o percurso para o Porto (1h20) e para Lisboa (3h20). A itinerância desenvolve-se na margem sul do rio, ao longo do percursos existem alguns desvios, que por vezes o atravessam. Existem vários pontos de interesse durante este trajeto, todos eles com características muito diferentes. Alguns já foram alvo de obras de revitalização e outros encontram-se apenas conservados.99 Neste trabalho propõe-se olhar para quatro áreas, onde que se propõem algumas intervenções. Se em alguns territórios seria importante encontrar o traço de identidade dominante, a itinerância do Douro Ignoto repousa numa intenção de dar a conhecer as 99 Não será feita aqui uma descrição de todos os pontos. No entanto, como foram importantes para perceber a riqueza do território em questão, no ANEXO II - LIVRO DA ITINERÂNCIA DO DOURO IGNOTO, mostram-se algumas das fotografias feitas e as principais informações sobre estes lugares. A itinerância ponto por ponto.

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FIGURA 68 | PÁGINA DE UM CADERNO DE VIAGEM À procura de uma itinerância FONTE: Esquisso de Mariana Calvete

camadas mais escondidas pela cénica paisagem vinhateira, que tem vindo a tornar este território conhecido. (figura 70 e 71) O Douro atual mantém ainda uma grande imponência, mas tornou-se um enorme animal enjaulado. Para reencontrar a pureza da paisagem que ele domina é preciso abandonar o espectáculo das vinhas e das barragens e subir ao cimo de uma serra como a das Meadas ou a um santuário como São Salvador do Mundo, e daí contemplar a sucessão das montanhas a perder de vista...100

100 MATTOSO, José; et al - Portugal, o Sabor da Terra, 2010 op cit p.188

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Geralmente a noção de rota e percurso vem associado a uma realidade linear, no entanto há outras posibilidades que foi necessário explorar. Neste caso, a complexidade das estradas no Douro, ao contrário do que acontece com as rotas norueguesas ou até com outras das itinerâncias que vimos, não permitiu criar um simples percurso linear ou circular que passe por todos os pontos de intervenção. Foi adoptada uma estratégia de um eixo principal linear com possibilidade de fazer alguns dos tais desvios. Não sendo em si um percurso circular acredita-se que esta itinerância possa ser suficientemente flexivel para se adaptar a várias pessoas, com muito ou pouco tempo.

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Os lugares mágicos, encontrados com a ajuda de: Barrão de Forrester, com os seus mapas, as primeiras explorações cartográficas do Douro; Orlando Ribeiro, como foi referido, com o seu olhar de geógrafo e humanista; Gaspar Martins Pereira, Natália Fauvrelle, Teresa Soeiro pelo profundo conhecimento de anos de estudo do Alto Douro; Álvaro Domingues pela sua peculiar forma de ver a paisagem; Duarte Belo pela vasta experiência na estrada; Miguel Torga, pela sua paixão;

FIGURA 69 | FRAGMENTOS DE VIAGEM Desenhos, fotografias, mapas e textos elaborados nas várias itinerâncias pelo Douro. Os restantes elementos encontram-se no ANEXO IV - LIVRO DE PROCESSO E REFERÊNCIAS

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FIGURA 70 | LOCALIZAÇÃO DOS DESVIOS PARA AS ÁREAS A INTERVIR E OUTROS PONTOS DE INTERESSE 1 - Vale do Távora | 2 - São Salvador do Mundo | 3 - Linha do Douro Desativada | 4 - Alpajares, a Calçada do Diabo FONTE: Elaborado a partir de vista aérea do Google Maps

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ESPANHA

FIGURA 71 | ITINERÂNCIA DOURO IGNOTO O mapa da itinerância cruzando topografia, percurso principal, desvios e principais pontos de interesse. Uma revisitação deste território pautado por um eixo patrimonial com pontos de interesse selecionados e redesenhados em função das histórias que se pretende dar a conhecer. FONTE: Elaborado por Mariana Calvete

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FIGURA 72 | LUGAR DO CACHテグ DA VALEIRA Curva do rio Douro onde, atテゥ ao sテゥculo XVIII, deixava de ser navegテ。vel. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete


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9 | QUATRO ÁREAS PARA A DESCOBERTA DE OUTRO TERRITÓRIO O deslumbramento pela monumentalidade da paisagem não se desdobra em hipérboles literárias fáceis, antes busca, em prosa límpida, os atores de carne e osso, sejam eles os pedreiros construtores dos muros de xisto dos socalcos, os últimos marinheiros do rio, os escritores ou outros protagonistas que marcaram a memória do lugar. 101

Gaspar Martins Pereira, 2002 Em conformidade com os princípios que atrás se enunciaram, a itinerância da memória do Douro Ignoto é um percurso com cerca de 110 quilómetros que pretende colmatar a percepção do território do Alto Douro Vinhateiro, agora dominada pela expressão plástica da paisagem viticultura, com as outras realidades inerentes à construção deste terra e das suas gentes. Mais do que marcar no mapa cada pequena aldeia, onde se visita a igreja e se segue viagem, procurou-se encontrar quatro pequenas pérolas deste território que sirvam de pretexto para dar a conhecer algumas curiosidades. (figura 72 e 73) Depois do longo processo de viagens, cartografia e leituras acima descrito, foram estas as áreas de intervenção estabelecidas, muitos outros lugares mereceriam atenção. Neste capítulo para além de se procurar passar o espírito da itinerância como um todo, interessa agora perceber especificamente o enquadramento paisagístico de cada um destes lugares e a forma de os habitar quando os visitamos atualmente. Partindo desta base, são enunciadas algumas das possíveis formas de desenhar, ou redesenhar, estes lugares. Importa, como foi referido, a construção de sequências espaciais. Apelar à observação à distância, contemplação do momento

101 Gaspar Martins Pereira em MENDES, Manuel - Roteiro sentimental do Douro. 1963. op cit p.11

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FIGURA 73 | SINALIZAÇÂO ALGURES NO VALE DO VAROSA A típica opção nas aldeias portuguesas, encontrar a igreja ou encontrar a saída. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

de aproximação, prolongamento da paragem e a exploração da envolvente. É ainda imperativo o reconhecimento do papel do património construído destes lugares na vivência das comunidades ao seu redor. Entender as suas relações para que a intervenção, sempre que possível, não se esgote na recepção de visitantes, mas possa integrar mais valias aos que lá habitam. À luz das inquietações atrás desenvolvidas, acredita-se que cada lugar tem a ganhar com uma exploração do sentimento de pertença dos que habitam próximo, os que se identificam com aquele território. Como se vê no mapa da itinerância, (figura 71) os locais apontados para a intervenção são em si bastante abrangentes em escala. Não se trata de quatro edifícios, mas antes de quatro áreas em que o território será pontuado de pequenas intervenções arquitetónicos, umas de revitalização e outras de nova construção. Cada uma delas com a sua especificidade, têm em comum a luta do homem para se mover no duro território do vale do Douro. De barco, em São Salvador do Mundo (figura 74); de carro, ou carro de bois, pelas cénicas e tortuosas estradas do Vale do Távora (figura 75); de comboio, pela linha do Douro (figura 76); e a pé, o homem do Douro traçou estradas que se diz serem do Diabo, tal é a peculiaridade sua composição, como na Calçada de Alpajares. (figura 77)

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Para além desta teimosia perante a dureza com que a natureza se apresentava diante dos seus olhos, o homem do duriense teve-lhe um enorme respeito e devoção. A construção da paisagem cultural do Douro fez-se de encontro ao que a terra lhe concedeu. Contra ela e com ela, os homens através dos séculos, foram interpretando os seus ciclos, integrando as fatalidades que esta lhes entregava. Os santuários rurais e os cultos cíclicos, revelam este respeito pela natureza ou pela terra sagrada. Efetivamente, não existe melhor do que esta região para se falar em espírito da terra.102 Nos seus altos lugares o Douro é pontuado por este respeito, os seus povos subiram aos montes e marcam a sua presença num ordenamento simbólico que quer tomar posse perante o mundo. Estes lugares e as suas construções - como os santuários de Santo Apolinário, em Urros, de Santa Marinha em Provezende ou São Salvador do Mundo - demonstram a gratidão e a devoção às forças celestes.103 A questão religiosa é aqui segredada pela imensidão e grandiosidade da natureza, pelos homens transformadores, que carecem da licença e proteção divina para prosseguir as suas atividades mantendo as terras férteis e o tempo clemente. Sublinha-se que o estudo destas quatro intervenções apontam para possíveis formas de atuar perante locais variados com presenças no território muito diversas. São ideias básicas e simples para ilustrar com exemplos práticos de que forma se ambiciona materializar as intenções antes enunciadas; a continuidade, a demora, a transição e a perceção. 104

102 PEREIRA, Paulo - Colecção Lugares Mágicos de Portugal. 2009 op cit 103 Ibidem 104 Foi necessário deixar de fora outros casos que poderiam ser, aos olhos de alguns, até mais necessários, mas que iriam exigir um tempo de desenvolvimento e pesquisa mais alargado. Por exemplo o caso da Vila Muralhada de Numão, o Castelo de Ansiães, as incontornáveis pedreiras do Poio ou até os lugares arqueológicos da Vila do Romana do Romansil e do Prazo. Cada um destes lugares mágicos, independentemente do seu estatuto também teriam muito para contar. Estes lugares e os desenhos relativos a estas quatro áreas estão compilados no ANEXO II - LIVRO DA ITINERÂNCIA DO DOURO IGNOTO.

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1 | SÃO SALVADOR DO MUNDO - Revitalização de um sítio histórico, património natural, arqueológico e etnográfico.

FIGURA 74 | SÃO SALVADOR DO MUNDO Vista da Barragem para o Ermo, onde se encontra o santuário. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

2 | VALE DO TÁVORA - Experiência cénica, N323 e o românico escondido.

FIGURA 75 | SÃO PEDRO DAS ÁGUIAS Vista da para a igreja românica, peculiaridade da sua implantação no território. IMAGEM: Fotografia de Bjarte Stav

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3 | A LINHA DESATIVADA DO DOURO - Ver a paisagem, através do património ferroviário.

FIGURA 76 | ESTAÇÃO DE ALMENDRA Aspecto da estação abandonada de Almendra. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

4 | ALPAJARES, A CALÇADA DO DIABO - Descoberta pedestre, a cultura e os mitos.

FIGURA 77 | CALÇADA DE ALPAJARES Característica formação geomorfológica associada a inúmeros rituais e mitos. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

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FIGURA 78 | VALE DO TÁVORA Paisagem vinhateira IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

9.1 | VALE DO TÁVORA (...) temeroso amontoado de fraguedos que pareciam opor-se de modo terminante ao rompimento de qualquer via de trânsito. Mas, assim como o Bonaparte, em face de um grande bloco de penedia, (...) teria dito a um oficial de engenharia, que deixasse as adversativas para outra ocasião e que abrisse sem demora a precisa rota de trânsito, assim, aqui, em 1885, (...) o imperativo íntimo de romper estes temerosos fraguedos, decidindo-se a talhar, nos seus flacos, o ravinoso trecho de estrada que estamos a ver e a transpor.105 Esta área de intervenção é, como foi dito, motivada pelo percorrer do território por meios viários. É marcada pelo percurso cénico da estrada N323, um dos mais bonitos testemunhos da beleza da paisagem vinhateira. (figura 80) Ao longo do curso do rio Távora, importante afluente do Douro, o vale encaixado e a estrada tortuosa tornam incontornável a escolha deste local.

105 AAVV - Guia de Portugal V Trás-os-Montes e Alto Douro II - Lamego, Bragança e Miranda. 3ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian 1995 p.776

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FIGURA 79 | ÁREA DE INTERVENÇÃO VALE DO TÁVORA 1. Penedo do Fradinho | 2. S.Pedro das Águia FONTE: Elaborado por Mariana Calvete com base na Carta Militar de Portugal 1:25.000

9.1.1 | IGREJA DE S. PEDRO DAS ÁGUIAS Sendo, das quatro, a que mais se relaciona diretamente com culto da vinha e do vinho, não deixa de levantar outras importantes questões como a presença da ordem de Cister no vale do Douro, materializando-se, nesta área na pequena Igreja de São Pedro das Águias e no mosteiro com o mesmo nome. Este ponto pretende elucidar o importante papel que Cister teve para o desenvolvimento do Vale do Douro, sendo um sítios dos primordiais do estabelecimento desta ordem em Portugal. Aqui se aponta um percurso que pode ser colmatado com uma incursão aos trilhos do vale do Varosa já mencionados. O que mais fascina nesta igreja é a sua peculiar implantação. Foi construída neste vale abrupto, sobre um pequeno plateau desnivelado a meia encosta. Peculiar é também a sua proximidade ao maciço rochoso, cerca de 1 metro, para o qual se volta com um ornamentado portal. Não é possível vê-lo de longe. Como se ao construtor não importasse o efeito decorativo nem a expressão plástica, mas tão só a impregnação do sagrado.106 Para além disso, a pequeníssima ermida de nave única e capela

106 MATTOSO, José; et al - Portugal, o Sabor da Terra, 2010 op cit p. 213

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FIGURA 80 | VISTA DA ESTRADA N323

FIGURA 81 | ACESSO À IGREJA

Vale encaixado do Távora, o contras te das vinhas e das zonas selvagens.

Cénica aproximação ao pequeno tesouro do românico escondido no vale do Távora.

IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

Será difícil descobrir em qualquer parte um sítio tão recolhido e tão sugestivo, como autêntico memento dos remotissímos tempos em que a procura ascética da solitude e do ermo correspondia, ao mesmo tempo, a uma necessidade de viver em silêncio e de resguardo contra os perigos de frequentes assaltos de gente expoliadora e adversa. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete TEXTO: Guia de Portugal

FIGURA 82 | VISTAS INTERIORES ANTES DO RESTAURO Condição geral da igreja como encontrada pela DGEMN, antes do seu restauro entre os anos 40 e 50. Pensa-se que a sua fundação remonta a meados do século XII, e que desde cedo se tenha acolhido à proteção da Ordem de Cister, na filiação de S. João de Tarouca. A data concorda, em traços gerais, com a estrutura e decoração da igreja que ali hoje se vê implantada, o certo é que as referências a uma ocupação sacralizadora daquele local, recuam, pelo menos, a inícios do século XI. IMAGEM: DGEMN TEXTO: Lugares Mágicos, Paulo Pereira

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mor rectangular é a mais elementar do românico nortenho, contrastando com a sua decoração quase “barroca” de inesperada densidade, como se todo o investimento tivesse sido apenas dirigido aos aspectos simbólicos. Um exemplo inédito no românico em Portugal. Antes do seu restauro durante os anos 40 e 50, a igreja encontrava-se em completa ruína. (figura 82) Foram reconstruídas as partes em falta e incorporados muitos elementos dispersos. Os portais, porém, mantiveram a sua configuração, bem como o templo, na sua generalidade. A população mais próxima desta igreja é Granjinha, com apenas 57 habitantes (em 2011). O seu acesso encontra-se em boas condições e bem sinalizado. A aproximação ao pequeno templo anuncia aquilo que encontramos, um lugar sagrado, isolado e escondido. (figura 81) Neste lugar não existe qualquer necessidade de reabilitação das estruturas existentes, no entanto, tendo em conta a distância necessária para chegar a este lugar, e a beleza natural envolvente, propõe-se a criação de estruturas de permanência, onde os visitantes possam demorar-se. Desenha-se uma pequena plataforma de onde se acredita entender a singular implantação da pequena ermida neste local, num final de um trilho de montanha. Tendo em conta o isolamento e paz deste local, sugere-se ainda uma zona de descanso perto de uma pequena ponte no rio Távora, existente perto da igreja. Pretende-se infra estruturar os troços de chegada a estes locais. (figura 83 e 84) No primeiro momento, dir-se-ia um mesquinho capricho arquitetónico perdido neste vale. Mas essa impressão depressa se desvanece para um sentimento de simpatia, fazendo acordar no espírito de quem chega muitas sugestões acerca do que teria sido neste sítio ermo uma cripta tão discreta e tão bela.107 Na base do desejo demonstrado pelas intervenções já feitas neste local, não são desenhadas instalações sanitárias ou outros serviços para preservar o espírito deste lugar, e também devido à proximidade da população a cerca de dois quilómetros. Pensa-se que será mais valioso para a comunidade local deixar este local com o mínimo de intervenção. Seria no entanto importante que fosse possível facilitar a visita ao seu interior, este minúsculo templo é no seu interior rico de intimidade e de penumbra.108 Provavelmente será algum dos habitantes locais o guardador da chave.

107 AAVV - Guia de Portugal. 1995 op cit p..776 108 Ibidem

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FIGURA 83 | INTERVENÇÕES AO REDOR DE S. PEDRO DAS ÁGUIAS Local calmo e de contacto com a natureza, pretende-se dar um mote para contemplar esta peculiar igreja. IMAGEM: Fotografias de Mariana Calvete

FIGURA 84 | IMPLANTAÇÃO DAS DUAS INTERVENÇÕES Locais de permanência e observação do território. IMAGEM: Ilustrações elaboradas por Mariana Calvete

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9.1.2 | CURVA E CONTRA CURVA A cerca de dois quilómetros de Tabuaço, a principal povoação localizada nesta área de intervenção, existe um troço de estrada onde a curvatura é bastante acentuada. Assim, em curva e contra curva, existem alguns elementos que enunciam merecer uma paragem. Em primeiro lugar, uma intrigante escada em madeira, serpenteando pelas fragas, ligando o nível da estrada, dotado de parque de estacionamento e merendas, até a um ponto elevado com uma impressionante vista sobre o vale. Este ambiente é dominado pelo som de uma queda de água que existe ao lado desta escada. O cenário completa-se pela presença, do outro lado da estrada, de uma pequena ruína do que parece ter sido uma antiga quinta abandonada. Este sítio, localmente chamado Penedo do Fradinho, é muito utilizado para escalada, motivado principalmente pelas inúmeras lendas de fragas inacessíveis, penedos rachados e lobisomens. Nesta área, a estratégia encontra-se mais em linha com os princípios de intervenção noruegueses sendo que a estrada é mesmo a protagonista principal. Propõe-se o redesenho da plataforma de chegada da escada, que neste momento é apenas um pedaço de terra batida. E desenha-se uma zona de descanso com bancos e mesas, para todos o que o desejam, possam recuperar o folego e contemplar a vista. Este local é também acessível por estrada: assim desenham-se estacionamento automóvel para o tornar acessível a todos. Tendo em conta a escada existente, a intervenção é desenhada também em madeira, incluindo ainda a substituição da guarda existente. (figura 86) Propõe-se ainda a recuperação de um pequeno caminho ao longo da queda de água que passa por baixo da estrada e dá acesso à quinta, onde podem ser incluídas instalações sanitárias e se for justificado, a recuperação do edifício para a sua transformação, num local onde possam ser dadas indicações para encontrar as mais peculiares formações rochosas e contadas estas lendas, um precioso testemunho oral da imaginação popular suscitada perante a forma que a terra aqui tomou.109 (figura 87)

109 Estas lendas foram compiladas em PARAFITA, Alexandre - Património imaterial do douro. Narrações Orais. Contos. Lendas. Mitos. Vol. I - Tabuaço, 2ª Ed. Lisboa: Âncora Editora e Fundação Museu do Douro. 2010

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FIGURA 85 | TROÇO DA N323 E QUINTA ABANDONADA Local de beleza única, representado numa bonita curva na estrada, com a presença de escadas de madeira, desenhadas para acompanhar a morfologia do macisso rochoso, esta escada enquadra-se no tom destas itinerâncias, permitindo chegar a um local mais elevado para a perceção da paisagem.

IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

FIGURA 86 | INTERVENÇÃO NA PLATAFORMA DE CHEGADA DA ESCADA Local de permanência e contemplação da paisagem.

IMAGEM: Ilustração elaborada por Mariana Calvete

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escadas de

plataforma de

madeira

descanso e miradouro

N 323

centro de informações

FIGURA 87 | CURVA E CONTRA CURVA Implantação das intervenções e planta conceptual. IMAGEM: Ilustrações elaboradas por Mariana Calvete

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FIGURA 88 | VISTA DA ERMIDA DE SANTA BÁRBARA A vinha em primeiro plano e São Salvador do Mundo ao fundo. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

9.2 | SÃO SALVADOR DO MUNDO Devido ao fascínio exercido nos homens pela grandiosidade do vale do Douro, vão erguer pequenos santuários de romaria em pontos notáveis da sua paisagem. Mirantes de contemplação de um lugar mágico.110 Apesar de todo o território deste vale ser indissociável do rio, das quatro áreas de intervenção, esta é a que se liga mais a ele. Em primeiro lugar pelo tortuoso traçado do seu curso e depois pelos tais pontos altos, onde pequenos santuários marcam locais de observação da paisagem onde se percebe muito bem a ligação do rio com as encostas cultivadas. A estratégia é dominada pelo lugar de São Salvador do Mundo, ponto escolhido como caso de projeto. (figura 89) Nesta área, a paisagem do Douro xistoso é interrompida por um maciço granítico que tornou impossível o cultivo destas encosta, o que é facilmente detetável na topografia do mapa. As perspectivas deste contacto entre xistos e granitos foram desde sempre muito apreciadas.

110 MATTOSO, José; et al - Portugal, o Sabor da Terra, 2010 op cit p. 186

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MIRADOURO DE LOURDES

CEVADEIRA

N

5

MIRADOURO OLAS

6

STA. BARBARA

3

SÃO SALVADOR DO MUNDO

SÃO JOÃO DA PESQUEIRA

2

FIGURA 89 | ÁREA DE INTERVENÇÃO SÃO SALVADOR DO MUNDO 1. Miradouro Lurdes | 2. Quinta do Sidrô | 3. Santuário e Miradouro de São Salvador do Mundo | 4. Miradouro de Campelos para São Salvador do Mundo | 5. Miradouro Santa Barbara | 6. Miradouro das Vargelas IMAGEM: Elaborado por Mariana Calvete com base na Carta Militar de Portugal 1:25.000

Visto que a intervenção em São Salvador contem em si estes vários aspectos, pouco mais será proposto. No entanto aqui ilustrados alguns pontos complementares à percepção desse lugar. Por exemplo, o miradouro de Lurdes, implantado nas fragas, este santuário tem uma das mais belas vistas para o rio e o percurso da linha de caminho de ferro, que teima em afirmar-se perante a dura rocha.(figura 1) Contrastando com este universo, na estrada de acesso ao santuário, a Quinta do Cidrô, imponente casa da Real Companhia Velha, ao passar por ela, a vinha ao alto é claramente dominante, apesar de se já se ver o granito ao fundo, é aqui a primeira vez que se avista o santuário, destacando-se a igreja a meia encosta. (figura 1) Existe, contudo, um local de onde a incrível posição do santuário de São Salvador do Mundo é especialmente bem compreendida, assim como o cachão da Valeira. Este ponto, onde se localiza um marco geodésico, é acessível por uma estrada vinda da pequena aldeia de Campelos. Acreditando ser um sítio de excepcional beleza, propõe-se que seja desenhado um pequeno dispositivo que permita ter uma mais alargada perspectiva. (figura 95)

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FIGURA 90 | QUINTA DO CIDRÔ São Salvador do Mundo ao fundo. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

FIGURA 91 | MIRADOURO DE LURDES

FIGURA 92 | QUINTA DO CIDRÔ

O impacto do rio nestas encostas ainda intocadas.

Vinhas ao alto

IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

FIGURA 93 | MIRADOURO DE LURDES O impacto do rio nestas encostas ainda intocadas. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

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Ao mesmo tempo que se oferece aos visitantes essa possibilidade, incentiva-se a passagem por Campelos, que pelo seu isolamento encontra-se quase abandonado. Outra das razões que leva a esta proposta é o facto de a população de Campelos ser muito devota a São Salvador do Mundo, acreditando-se que já se deslocam a este lugar para o contemplar. Segundo os locais, toda a população participa na romaria ao Ermo.

FIGURA 94 | CAMPELOS É uma pequena adeia com uma configuração interessante com um pequeno largo com uma fonte de onde saem todas as ruas. Uma delas em direção ao tal ponto escolhido. O caminho é silencioso e a presença do rio não se pressente. IMAGEM: Esquisso de Mariana Calvete

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FIGURA 95 | PLATAFORMA DE OSERVAÇÃO EM CAMPELOS Uma plataforma em madeira que se adapta às rochas a partir do marco geodésico. Á sua frente, São Salvador do Mundo, no lugar do Cachão da Valeira. Até esta intervenção é recuperado um caminho e desenhado um pequeno parque de estacionamento. . IMAGEM: Ilustração elaborada por Mariana Calvete

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FIGURA 96 | VISTA PARA A ESTAÇÃO DO CÔA Estação do Côa ainda em funcionamento. FONTE: Foto Felizes em http://fozcoafriends.blogspot.pt/

9.3 | A LINHA DO DOURO DESATIVADA Esta importante via de comunicação ligava o Porto a Espanha e ao resto da Europa. O último troço foi inaugurado em 1887, após cerca de 100 anos de utilização, o declínio desta ligação começa a sentir-se. Com o fim do caráter internacional da Linha do Douro e com a melhoria das condições das estradas, a utilização do troço do Pocinho a Barca de Alva, cerca de 27,9 km, tornou-se obsoleto. Com muito poucos passageiros e inúmeros incidentes, a linha foi descativada definitivamente em 1988. Apesar das manifestações de descontentamento por parte dos locais e de algumas promessas de reabertura do tráfego internacional, a decisão parece ser definitiva. O património construído encontra-se em estado avançado de degradação, resultado da falta de preservação. Pensa-se que a recuperação desta linha, completamente destruída e tomada pela natureza, iria traduzir-se numa elevada quantia que muito provavelmente não seria rentabilizada. Não querendo deixar esta linha em esquecimento propõe-se repensar a sua utilização. (figura 98)

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1:2000

5

3

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FIGURA 97 | ÁREA DE INTERVENÇÃO 3 - A LINHA DO DOURO DESATIVADA 1. Estação do Côa | 2. Museu do Côa | 3. Miadouro S.Gabriel | 4. Castelo de Castelo Melhor | 4. Ruínas de Calábria | 6. Estação de Almendra FONTE: Elaborado por Mariana Calvete com base na Carta Militar de Portugal 1:25.000

Deve-se perder algum tempo nesta estação e apreciar a quantidade de património que infelizmente se perderá para sempre se nada se fizer para o recuperar em breve.111 São quatro as estações descativadas, ruínas do que em tempos foram belos e imponentes pontos de chegada ao vale do Douro: Côa, Almendra, Castelo Melhor e Barca de Alva. Esta última, a ligação internacional, era composta por inúmeras estruturas, certamente para apoio ao intenso tráfego.(figura 99 e 100) Ao longo da linha existem ainda pontes, túneis, apeadeiros e outras estruturas de apoio. Todas abandonadas. Enquanto o comboio continua a perder terreno a favor do transporte rodoviário, a intenção é olhar para estes caminhos abandonados, encontrar uma nova forma de descobrir o Douro com um outro ritmo.

111 Relato de uma das caminhadas. Disponível em http://www.espirito-de-aventura.iblogger.org, consultado em Agosto 2013

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FIGURA 98 | TOMADAS PELA NATUREZA Prestes a cruzar um dos túneis, os poucos locais onde os viajantes podem descansar e refrescar-se à sombra. FONTE: Fotos de Mariana Calvete

FIGURA 99 | COCHEIRA E PONTE ROTATIVA, BARCA D’ALVA

FIGURA 100 | CASA DE APOIO À LINHA PERTO DA PONTE DE AGUIAR

Memória da antiga utilização desta estação, outrora imponente e poderosa.

Um dos muito edifícios onde seria possível ter um ponto de descanso e abastecimento de água.

FONTE: http://www.espirito-de-aventura.iblogger.org

FONTE: http://www.espirito-de-aventura.iblogger.org

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9.3.1 CAMINHEIROS, PESCADORES E VIAJANTES A par das decisões políticas, as populações foram criando os seus rituais. São vários os grupos que organizam frequentemente caminhadas ao longo deste troço de linha descativado assim como são muitos o curiosos que visitam os edifícios abandonados, memória de uma passado de uma vitória gloriosa.112 Os percursos são sempre feitos em vários dias (2 ou 3), e por isso incluem dormidas. Todos mencionam não existir qualquer ponto de apoio ao longo de toda a linha, apenas notando que junto às antigas estações existem estradas que permitem o acesso a viaturas de apoio. Estas estradas, são cénicos percursos em que o único destino é mesmo a estação, encontram-se em bom estado de conservação. Há também alguns relatos de passeios de bicicleta que tendo optado não pelos trilhos que tinham previsto, mas sim, pela linha do comboio, foram levados pelo cansaço, falta de água e a dificuldade de progredir na via com as bicicletas. Para além destes caminheiros, são muito os que fazem os quilómetros que ligam estes edifícios às povoações mais próximas para neles procurarem isolamento e proximidade com o rio. Nas visitas às estações, foram avistadas várias pessoas a mergulhar nas águas do Douro e a praticar desportos aquáticos. Foi possível falar com alguns pescadores que utilizam estes locais com regularidade. Há ainda os que acorrem a estes locais pela sua biodiversidade, principalmente a observação de aves.

9.3.2 | A IDEIA DE INTERVENÇÃO Alguns dos problemas enfrentados por estes caminheiros, que aliás, por várias vezes tornaram a experiência dolorosa ou até impossível para alguns, podem ser resolvidos pela arquitetura. A passagem nas pontes ferroviárias (...) Apresentam todas elas sinais de degradação pelo que todo o cuidado é pouco. Atualmente todas as pontes se encontram interditas a todo o trânsito. (...)

112 Não tendo a possibilidade de fazer o percurso no decorrer desta investigação, foram muito úteis os vários blogs onde se relatam experiências, e neles se baseia a argumentação feita, a par de alguns comentários com transeundes no local, conhecedores destas práticas. Destaca-se o blog intítulado Espírito de Aventura, que faz ainda uma pequena secção dedicada a linhas férreas extintas, com a sua história e pequenos roteiros. Disponível em http://www.espirito-de-aventura.iblogger.org, consultado em Junho de 2013

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FIGURA 101 | CAMINHEIROS DA LINHA DO DOURO Prestes a cruzar um dos túneis, os poucos locais onde os viajantes podem descansar e refrescar-se à sombra. As estações também são ponto de descanso e contemplação do património ferroviário, locais onde algum apoio pode chegar por estrada. Atravessámos a vila, sempre pela linha, e fomos logo percebendo que a tarefa não iria ser fácil, pela pedra e pelo mato que já se verificava existir no trilho. O calor também se fazia sentir e à medida que os Km’s se sucediam, os pés começavam a sentir as pedras da linha, os ombros o peso das mochilas e uns arranhões no mato complementavam o cenário. (...) Chegámos à primeira ponte da viagem e logo com um início sugestivo, dado que os passadiços nos primeiros metros já não existem. IMAGEM E TEXTO: http://www.espirito-de-aventura.iblogger.org

FIGURA 102 | RUÍNAS Estas ruínas, na estrada de acesso à estação de almendra, estavam rodeadas de uma paisagem verdejante em Abril. Ao voltar ao local, em Agosto, a área à sua volta foi queimada. Para além de recuperar as estações, com estas intervenções, apela-se à utilização destas estradas, onde se podem encontrar alguns pontos interessantes, por exemplo, a caminho da estação de Almendra, a cerca de sete quilómetros, existem as ruínas do Castelo de Calabre onde na época romana, segundo contado pelos locais de Castelo Melhor, existia um importante centro político e religioso, aqui chegou a ser cunhada moeda durante o século XII. O que levou ao quase desaparecimento deste local ainda está por descobrir.

IMAGEM: Fotografias de Mariana Calvete

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(...) A vegetação em algumas zonas pode aumentar, mas à data da realização da nossa atividade, em Abril de 2013, em nenhum momento impediu totalmente a passagem.113 Propõe-se que as zonas com menos segurança, as pontes ferroviárias principalmente, sejam alvo de reparação, para permitir a continuação destes rituais. Limpar algumas das zonas em que a vegetação ameaça impedir a passagem. Intervenções deste género já existiram, por exemplo, na linha do Sabor, onde 15 km da linha foram convertidos numa ecopista, preparada para caminhar e para circulação de bicicletas. As mochilas, grandes e pesadas, podem tornar-se mais leves se estes testemunhos do património ferroviário forem dotados de pequenas infraestruturas de apoio. Sítios para preparação de comida, sem por a área em risco de incêndio; camas para que pudessem dormir dentro da estação em vez de transportar tendas; pontos de abastecimento de água para que não tenham de carregar a quantidade necessária para responder às temperaturas elevadas do Verão; iluminação destas estruturas, entre outras. Estes percursos, depois dos seus melhoramentos, podem começar em Barca de Alva ou no Pocinho e podem ser ligados a uma viagem de comboio ou, no espíritos das itinerâncias, ser uma alternativa a alguns troços de estrada, por exemplo entre a estação do Côa e a de Almendra. Acreditando que o espírito do percurso não se torna menos natural com estas intervenções, mas antes permitem um maior conforto na contemplação, quando alguns destes obstáculos são ultrapassados. Não sendo possível fazer um estudo exaustivo de todo o património ao longo da linha, fazem-se algumas ilustrações do que poderiam ser as intervenções nas estações de Almendra e Côa. (figura 103 a 105)

113 Ibidem

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FIGURA 103 | INTERVENÇÃO ESTAÇÃO DO CÔA A estação do Côa, muito próxima do rio, a uns escassos oito metros, é sítio de eleição para a pesca. A estação em si é composta por dois volumes, um maior, com dois pisos, cerca de 75 m2 e um pequeno volume com as istalações sanitárias com cerca de 12 m2. Do edifício principal restam as suas paredes exteriores, com algum do seu revestimento a azulejo e alguns rebocos. Sem cobertura ou laje, o edifício foi invadido por vegetação. À chegada, por estrada, encontram-se em ruína também, dois volumes construídos em alvenaria de pedra com cerca de 45m2 cada um. Propõe-se que sejam recuperados como estruturas de apoio aos pescadores e caminheiros. IMAGEM: Elaborado por Mariana Calvete

FIGURA 104 | ESTAÇÃO DE ALMENDRA Proposta de intervenção da abandonada estação de almendra, transformando-a num local de apoio aos caminheiros, pescadores e viajantes. IMAGEM: Ilustração elaborada por Mariana Calvete

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FIGURA 105 | INTERVENÇÃO ESTAÇÃO DE ALMENDRA A estação de Almendra, é mais afastada do rio, cerca de 80 metro com um desnível de cerca de 10 metros para a água. É semelhante à estação anterior, apesar de se encontrar em melhor estado de conservção. Ainda possuí cobertura e laje. Apesar de os rebocos estarem muito danificados. A dimensão é também semelhante, mas esta estação tem um terceiro volume com a mesma dimensão do primeiro. A cerca de 80 metros, e com um desnível de 20 metros, encontra-se um conjunto de cinco edifícios em alvenaria de pedra que também se encontram em ruina. Com o mesmo príncipio de intervenção que se propõe para as ruinas da Quinta da Valeira, explorado no capítulo seguinte, estes locais podem servir de informais sítios de alojamento. Propõe-se conotá-los entre si, com a estação e com o rio. IMAGEM: Elaborado por Mariana Calvete

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Ruinas Castro de São Paulo

Túmulo

Ponte Capela

PERCURSO PEDESTRE CALÇADA DE ALPAJARES

Limite ZEP da Fraga do Gato e da Calçada de Alpajares classificada como IIP pelo Decreto nº 129/77

3

Imóvel classificado SIP

Ponte

INTERVENÇÃO 1 Serviços de Apoio ao Percurso Miradouro

INTERVENÇÃO 2

FIGURA 106 | PERCURSO PEDESTRE Marcação das várias ruínas ao longo deste percurso. FONTE: Elaborado por Mariana Calvete com base na Carta Militar de Portugal 1:25.000

9.4 | ALPAJARES, A CALÇADA DO DIABO A beleza violenta e sombria da Boca do Inferno, em Cascais, ficaria ofuscada em face do rochedo ciclópico do Penedo Durão, do grandioso espectáculo natural das escarpas silúricas da Ribeira do Mosteiro - exemplo singularissímo de belo horrível, do panorama aterrador. (...)114 A última área de intervenção é marcada pelo vale da Ribeira do Mosteiro e pelo Penedo Durão. Esta área, no final do que é considerado Alto Douro, pretende ser a ligação do universo vinhateiro com o caractér mais selvagem do Douro Superior.

Quando, já próximo do termo da terra duriense, nos dirigimos de Barca de Alva para Freixo de Espada à Cinta, ao passarmos a Ribeira do Mosteiro, viramos

114 AAVV - Guia de Portugal. 1995 op cit p.1063

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FIGURA 107 | ÁREA DE INTERVENÇÃO 4 - ALPAJARES A CALÇADA DO DIABO 1. Centro Intrepretativo Riberira do Mosteiro | 2. Calçada e ponte de Alpajares | 3. Castro de S.Paulo | 4. Penedo Durão | 5. Miradouro sobre a Ribeira do Mosteiro FONTE: Elaborado por Mariana Calvete com base na Carta Militar de Portugal 1:25.000

à esquerda e seguimos por uma estrada de tom rosado. Entramos como que num mundo diferente. A ribeira escava um vale profundo, de xisto revolto. Para atravessar este mundo de caos foi, em tempos recuados, construída a Calçada de Alpajares, obra do Diabo, nos dizeres do povo.115 A ribeira do Mosteiro é um verdadeiro conjunto paisagístico e patrimonial. São várias as construções a apontar, entre elas a Calçada de Alpajares, ou Calçada dos Mouros, como é mais conhecida localmente. É uma via romana classificada em 1977 como Imóvel de Interesse Público. Atualmente, restam apenas alguns dos seus troços originais, visíveis perto da convergência das ribeiras da Brita e do Mosteiro, a partir da qual se prolonga pela encosta de Alpajares de forma ziguezagueante, até chegar ao muralhado do povoado de São Paulo, edificado na Idade do Ferro no cimo de um espigão sobranceiro àquelas mesmas ribeiras. 115 MATTOSO, José; et al - Portugal, o Sabor da Terra, 2010 op cit p. 206

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FIGURA 108 | CALÇADA DE ALPAJARES

FIGURA 109 | CALÇADA DE ALPAJARES

Troço da calçada onde se pode observar o aparelho construtivo

Troço da calçada onde se pode observar o aparelho construtivo.

FONTE: IGESPAR

Foto da exposição Três Olhares sobre Alpajares: Três olhares perspicazes e reputados partiram à descoberta da beleza infindável da Calçada de Alpajares. Por convite do Museu do Douro, Egídio Santos, Luís Ferreira Alves e João Paulo Sotto Mayor impressionaram-se com a grandiosidade deste que é um dos mais belos percursos do Douro, com excecional valor paisagístico e cultural. O resultado mostra bem a carga mágica de um caminho que transcende a mera perceção. Não foi por acaso que os locais atribuíram a esta via romana, classificada como “imóvel de interesse público” em 1977, diversos epítetos. FOTO E TEXTO: Museu do Douro

FIGURA 110 | CENTRO DE INTREPRETAÇÃO DA RIBEIRA DO MOSTEIRO Localização do parque de estacionamento e centro de intrepretação, no local de ínicio/fim do percurso. FONTE: IGESPAR

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FIGURA 111 | CALÇADA DE ALPAJARES Troço da calçada onde se pode observar o aparelho construtivo FONTE: IGESPAR

Estruturada ao longo de cerca de oitocentos metros em lajes afeiçoadas em xisto e seixos de pequena dimensão, a calçada possui degraus intercalados com certa regularidade, entre três a quatro metros, sendo ainda reforçada com uma parede lateral na zona em que o declive da encosta se revela mais acentuado.116 (...) de construção tão arrojada, que o povo diz ser obra do Diabo, levada a cabo numa só noite tempestuosa, para abrir caminho a um frade perdido, a quem, com tal serviço teria ganho a alma. (...) Via de acesso castrejo, obra árabe, estrada militar romana discretamente promovida e gizada por algum preto? Não está averiguado. O que é incontestável é a sua singularidade.117 Neste local, cuja existência povoa o imaginário da população com histórias e lendas, existe um percurso pedestre circular que cobre a maioria destes testemunhos históricos. Nas visitas ao local, foram vistos alguns grupos a fazer o circuito, principalmente espanhóis. No entanto, não existe nenhum tipo de apoio aos caminheiros, não existe estacionamento e não existe nenhum local com informação sobre o local. Tendo em conta a quantidade de estruturas com valor, acredita-se que seria uma mais valia existir uma pequena zona de informação e serviços, a intervenção deve implantar-se no início/fim deste percurso de forma a não interferir com o caráter natural e patrimonial do vale. (figura 106 a 110) A colmatar esta zona, existe o Penedo Durão, uma das referências geográficas chave do itinerário do Douro. Marca o sítio onde este rio inflecte aqui a sua linearidade, conformando a fronteira entre os dois países.

116 Texto adaptado da descrição da sua classificação, disponível em http://www.igespar.pt/en/patrimonio/ pesquisa/geral/patrimonioimovel/detail/69741/, consultado a 5 de Setembro de 2013. 117 AAVV - Guia de Portugal. 1995 op cit p..1064

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FIGURA 112 | SALZEDAS, ALPIARÇA, NISA Apropriação de estradas, que já são rua e largo. Identidade nacional. FONTE: Fotos de Bjarte Stav

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Mostrou-se que vale do Douro é mais do que o vinho, que uma simples curva na estrada é, não raras vezes, mais do que aparenta; que a mais pequena ermida trás intermináveis memórias consigo; que a pedra por baixo dos nossos pés diz muito do que somos; que uma linha, assim que traçada sobre a terra, dificilmente será apagada; e que as mais singulares construções inspiram histórias durante milhares de anos. Neste capítulo foi traçado um retrato deste território pela boca das suas gentes, com as suas cores e as suas texturas. Na verdade, neste nosso admirável País, muito há ainda que descobrir, e o Português avisado, no seu deambular, bem andaria combatendo a tendência de apenas apreciar o que é estrangeiro, menoscabando o que tem em casa, e que acabaria por amar se melhor conhecesse.118 Retratar uma região apontando os seus lugares mágicos não é uma ideia nova e também é antiga a consciência de que os portugueses olham mais para fora do que para si mesmo. No entanto, mais do que cristalizar estes lugares do passado, em livros com diversas formas, é imperativo usar o desenho, que mais do que a fotografia, é um dos mais nobres e eficazes utensílios de perenização de que dispomos. Porque cada aldeia do nosso país, por mais remota que seja, tem mais para oferecer do que a sua igreja e a sua saída e porque cada uma delas tem os seus atores e os seus tempos. As suas populações expectantes possuidoras de memórias intermináveis.

118 Retirado do breve posfácio escrito em 1970 da obra AAVV - Guia de Portugal. 1995 op cit p..1081

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FIGURA 113 | RIO DOURO VISTO DO SANTUÁRIO DE SÃO SALVADOR DO MUNDO Fotografia tirada por Orlando Ribeiro a partir do santuário em 1954, antes da construção da barragem da Valeira. Há dois dias que trago os olhos deslumbrados com estas terras de assombro, paisagem ao mesmo tempo sedutora e medonha, natureza petrificada numa convulsiva agitação de cataclismo, mar tormentoso, a levantar-se nas ondas encrespadas dos seus barrocais, mais aflitivo talvez que o outro mar, pois se queda em silêncio, imóvel nos agrestes fraguedos (...) O que aqui se vê, e além se vislumbra, fixa-se para sempre na retina, prende-senos entranhadamente na alma, e ficará a vibrar numa impressão porventura dolorosa e inesquécivel. Estas serranias impõem-se pela beleza abaladora, o ondulado constante em que se estendem, acompanhando as sinuosidades do rio - o rio que tudo domina. (...)

IMAGEM: Foto nº 5622 do espólio de Orlando Ribeiro cedida pelo Centro de Estudos Geográficos TEXTO: Manuel Mendes, Roteiro Sentimental do Douro, 1963


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10 | SÃO SALVADOR DO MUNDO A história admirável deste rio, como a história desta gente daqui, cuido que ainda está por contar como merece, na veemência do drama e na miúda descrição das suas vicissitudes. Talvez porque o motivo assuste (...) Perante o que assombra, a maioria das vezes o homem não encontra palavras para se expressar - sofre e cala-se, reduzido ao sentimento humilde da sua evidente e incontornável pequenez. 119 Manuel Mendes, 1963

Em tom mais estratégico, desenvolveram-se quatro áreas de intervenção, onde o desenho parou com a liberdade do esquisso. Agora, surge a escolha de São Salvador do Mundo para o projeto de arquitetura. Onde se descrevem as soluções espaciais e construtivas propostas, a par das intenções que elas carregam. Acredita-se que este é um daqueles lugares mágicos em que património, território e paisagem se conjugam de forma exemplar. É também um daqueles casos onde se pode falar de reabilitar como restituir o lugar à estima pública.120 A escolha repousa também numa consciência de que, com uma envolvente alargada de elevado valor em termos de paisagem vitivinícola, este sítio, enquanto exceção, tem muito potencial como alternativa ou complemento indispensável ao enoturismo e

119 MENDES, Manuel - Roteiro sentimental do Douro. 1963. op cit p.31 120 Lembrando as palavras de Luís Valente Pereira.

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ao turismo em espaço rural que se tem desenvolvido.121 Não só pela impressionante paisagem granítica, que foge ao espectável quando falamos de Douro Vinhateiro, mas também como representativo das layers que compõem uma paisagem cultural, todas as camadas de história que aqui estão esquecidas ou talvez apenas escondidas à espera de uma nova voz. Para além da sua enorme qualidade paisagística, é obviamente a devoção religiosa que motiva a visita. Ao longo dos últimos anos são milhares os visitantes que chegam a este local. Devido à sua proximidade com a bela Quinta do Cidrô e pelos outros atrativos de São João da Pesqueira, provavelmente também pela sua posição, à beira da estrada que liga a Carrazeda de Ansiães. Importa referir a existência de documentos que atestam a vontade, por parte das comunidades e instituições locais, de valorizar este sítio de forma a ser mais utilizado, pelo menos desde os anos 50. Diz-se que o facto de o santuário ter passado da tutela do município para a diocese, em 1949, veio ferir os interesses do município e dos munícipes, que vêem assim desvanecido o velho desejo de ver transformado aquele pitoresco local num recinto turístico de interesse e propriedades municipais.122 Este velho desejo de que se fala é também documentado no ano anterior a esse, onde se sugere que o famoso e aprazível sítio da ermida de São Salvador do Mundo, seja simultaneamente alvo de três projetos. Um de infraestruturação, outro de construção de alojamento e por fim um plano também especializado de arborização própria.123 Há que acrescentar que existe um texto escrito por J. A. Gonçalves Guimarães em 2009124, que lança algumas pistas para uma proposta de rentabilização do Ermo.125 Neste documento, elaborado a pedido da autarquia, sintetiza a situação atual do Ermo, afirmando que tal deve-se exclusivamente ao facto da sua gestão estar entregue à Comissão Fabriqueira da Paróquia que não tem tido nem vocação, nem visão, nem capacidade de gestão para a sua valorização. (...) os ermitas cristãos foram construindo capelinhas, marcando os passos de subida como se fossem os passos de Cristo para um calvário. (...) Lá no

121 GUIMARÃES, J.A. Gonçalves - Para uma arqueologia da paisagem duriense – S. Salvador do Mundo e Ribeira de Galegos em S. João da Pesqueira: proposta de rentabilização para fins turísticos em Actas das I Jornadas Internacionais sobre Enoturismo e Turismo em Espaço Rural. Porto/Maia: APHIN/GEHVID/ISMAI. 2009 p. 111 122 Mencionado num documento de 1951 em que o Ermo e Santuário de São Salvador do Mundo são alvo de despacho do ministério das finanças - transcrito em GUIMARÃES, J.A. Gonçalves (coordenação) - São Salvador do Mundo santuário duriense. Vila Nova de Gaia: Município de São João da Pesqueira/Edições Gailivro, 2007. p.126 123 Mencionado num documento de 1950, encontrado no Arquivo Distrital de Viseu, Processos de Correpondência, cx 2635 nº 20:7 e 8; relatório do presidente da câmara. Ponto XIV - São Salvador do Mundo, repovoamento florestal; construção de uma pousada e um abrigo; aproveitamento do ponto turístico e panorâmico - transcrito em Ibidem p.125 124 Director do Solar Condes de Resende e investigador do Gabinete de História, Arqueologia e Património de Vila Nova de Gaia. 125 GUIMARÃES, J.A. Gonçalves, 2009 op. cit. p.111-128.

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alto é São Salvador do Mundo. É já o Paraíso, e ali mora um Deus poderoso mas compassivo que reparte milagres a quem os vem pedir. (...) os homens que viajam até ao Ermo e sobem a colina (...) mesmo que não avistem outros homens, sabem que não se encontram sós.126 Antes de mais referências à proposta, importa fazer uma pequena síntese para que se entenda um pouco as várias ocupações deste lugar e das suas construções que testemunham diversos momentos históricos. Faz-se uma descrição sucinta dos valores que justificam a divulgação do santuário duriense e da sua paisagem envolvente, se bem que, mesmo sem histórias, basta olhar para as fotografias e desenhos para perceber a excepcionalidade do lugar. 127 Esta análise foi obviamente mais alargada no decorrer do processo; aqui são apenas escritas as linhas fundamentais. As restantes informações acompanham as decisões de projeto e em última instância encontram-se, juntamente com todas as peças desenhadas, no ANEXO III- LIVRO DE SÃO SALVADOR DO MUNDO, que será fundamental consultar na leitura das seguintes páginas.

10.1 | VERDADEIRO CONFRONTO ENTRE O SER HUMANO E A NATUREZA Bem ao lado das paredes do Cachão, lá em cima, no cucuruto, um sitio único, de que só um nome é um programa: São Salvador do Mundo! O que dele se pode dizer é sempre pouco. Local de romaria e peregrinação, também é sitio de isolamento e meditação. Ou de deslumbramento. Quem lá subir, antes de poder olhar metade do Douro, ou será para metade do Mundo?, encontrará um mistério.128 São Salvador do Mundo, ou Ermo, como é chamado pelos locais, é referência de todos os que vivem nesta região, pela sua morfologia e simbologia. São Salvador, relacionado com o rio, remete para um equilíbrio cósmico necessário à felicidade e à abundância.

126 Maria Antónia Vasconcelos citada em RIBEIRO, António Augusto - As gentes do Douro Vinhateiro : tradições e manifestações religiosas. Guimarães: Universidade do Minho. Tese de Mestrado - disponível em http://hdl.handle.net/1822/5643 - Consultado em 21 agosto 2013 - p.23 127 Esta síntese foi principalmente baseada na leitura da compilação coordenada por J.A. Gonçalves Guimarães no livro São Salvador do Mundo, santuário duriense e nos textos disponíveis na internet no website do Munícipio e do SIPA. Complementou-se com pequenas leituras de outros textos que remetem para este lugar e com os conteúdos das conversas com população local. Todas as referências encontram-se na bibliografia 128 MENDES, Manuel - Roteiro sentimental do Douro. 1963. op cit

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FIGURA 114 | TUNEL DA VALEIRA Ambiguidade na protecção ou não do santuário. FONTE: http://www.luminous-lint.com/

FIGURA 115 | ÁREA ABRANGENTE PELA CALSSIFICAÇÃO DA UNESCO A escassa dúzia de quilómetros percorridos, meto a um desvio da estrada e lá no termo subo a pé por íngremes caminhos de cabras, para alcançar no viso do monte aquele tosco e alcandorado santuário, por entre as árvores bravias, que o vento e a neve torceram de dor. Deixo atrás a igreja, peça mestra do rústico conjunto de edificações de São Salvador do Mundo, e trepo mais alto, para ir encontrar, enraizada nas fragas cimeiras, a minúscula capelinha, assustadoramente debruçada sobre as ribas dramáticas do rio, que neste lugar se contorcem e apertam, num estrangulamento angustioso de serras ciclópicas, cavando abismos de fazer medo, pasmosos pela impressionante e aterradora grandeza das proporções. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete TEXTO: Manuel Mendes, Roteiro Sentimental do Douro, 1963, p.30

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Sítio com vistas sobre o vale do Douro, o planalto de Carrazeda de Ansiães, a Ferradosa, a Quinta de Cidrô e dele se avistam ainda outros miradouros da região. É um dos mais impressionantes do Douro, com uma paisagem de esmagadora beleza, pela sua vista a pique, dominando o abismo, no fundo do qual foi construída a barragem da Valeira. Na encosta em frente, vê-se também a famosa linha de caminho de ferro do Douro passando no mais longo túnel. (figura 114) É constituído por um imponente cone granítico, numa altitude máxima de 502 m. Contornado a nascente e norte pelo Rio Douro. O acesso é feito pela estrada 222-3, passando pela vila de São João da Pesqueira, até ao entroncamento com a estrada 1121, que faz curva apertada no Alto das Garridas, onde fica a entrada para o santuário, continua descendo até à Barragem em direção a Carrazeda. Chegar aqui por boa estrada alcatroada é um facto relativamente recente: em 1882 a Estrada Real das Bateiras a São João da Pesqueira parecia não ter continuidade aceitável e o acesso ao Ermo, seria feito por uma estrada de almocreve a partir da vila, como se vê no Mappa do Paiz Vinhateiro do Alto Douro de 1845. Este local tem ocupação confirmada desde a Pré-Historia recente, com especial enforque para o período romano. A atual feição começou a formar-se com a construção das capelas que trepam ao longo do monte, remontando as mais antigas ao século XVI.129 Segundo a tradição, a fundação deste santuário terá sido por volta de 1594, quando o piedoso ermita Gaspar da Piedade se teria recolhido a este lugar ermo, à pequena gruta ali existente, depois de uma viagem aos lugares santos de Roma e da Palestina, em que milagrosamente teria escapado um naufrágio. Santuário composto por nove capelas, oito das quais numeradas, representando os Passos da Paixão de Cristo. A principal, de maiores dimensões e construção mais antiga, localiza-se a meia encosta, e apresenta o número cinco. As restantes, pequenos templos semelhantes entre si, alterando apenas um ou outro pormenor decorativo, desenvolvem-se desde a base até ao topo do monte, quase encobertas pela densa vegetação. Próximo da capela principal encontram-se algumas estruturas de apoio às festividades, a casa dos romeiros e do ermitão. 130 A este lugar está associada uma romaria, no dia do Corpo de Deus, a qual tem vindo a sofrer alterações, as que se verificam um pouco por todo o lado nestes eventos. com 129 Ver ANEXO I para descrição de cada uma das capelas. 130 SIPA - Sistema de Informação para o Património Arquitectónico - Disponível em http://www. monumentos.pt/ - número do santuário São Salvador do Mundo IPA.00013335, consultado em Abril 2013.

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FIGURA 116 | ÁREA ABRANGENTE PELA CALSSIFICAÇÃO DA UNESCO A única proteção associada a este lugar existe pelo facto de estar incluída dentro da zona de classificação da UNESCO. FONTE: UNESCO

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FIGURA 117 | LOCALIZAÇÃO DE SÃO SALVADOR DO MUNDO Localização da intervenção da área de intervenção em relação à itinerância. FONTE: Elaborado por Mariana Calvete com base na Carta Militar de Portugal 1:25.000

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a substituição da venda de produtos tradicionais pela quinquilharia da globalização. A grande afluência de devotos ao Santuário torna este evento numa das romarias mais concorridas da Região do Douro. Para lá destas práticas devotas, também existem alguns rituais, acredita-se, por exemplo, que uma jovem que vá de peregrinação ao Ermo, se conseguir dar um nó na rama de uma giesta com a mão esquerda sem parar, e se este depois não se desatar, ela casará no espaço de um ano. Se em tempos os eremitas para aqui se retiraram fugindo às tentações do mundo e da carne, bem certo é que o lugar tem vindo a ser escolhido pelos namorados como um altar dedicado à vida. Desde longa data foi objeto de alterações antrópicas, quer no seu enquadramento geológico e hidrológico, quer no seu revestimento vegetal. Ainda assim, a inclinação e inacessibilidade das suas encostas voltadas a norte preservou conjunto de espécies vegetais difíceis de encontrar noutras áreas do vale do Douro.

10.1.1 | INQUIETAÇÕES A vida às vezes causa-nos vertigens maiores que as dos despenhadeiros. Olho, tremo e agarro-me ainda com mais pavor à fraga, para que a voragem não me sorva. Olho, tremo e agarro-me ainda com mais força. Recuo, fujo e estou liberto. Mas eles?!... Os que não emigram, ali nascem e ali morrem. Não é outro o seu destino, subsistindo à merecê de um trabalho ao mesmo tempo mísero e heroico. Li-o depois no rosto da velha com quem me cruzei no caminho. Tem a pele escalavrada e rugosa, feita à imagem dos fraguedos do monte. Foi a erosão que a devastou e curtiu a neve de já muitos invernos. Olha-me pasmada e muda como as pedras, é irmã das fragas.131 Existem algumas inquietações que importa agora sistematizar para que se perceba a necessidade de uma intervenção arquitetónica. Algumas destas preocupações surgiram nas primeiras visitas ao local, na leitura dos variados documentos e outras ainda em conversas com utilizadores do santuário e elementos da Fábrica da Igreja da Freguesia de São João da Pesqueira.132 O santuário de São Salvador do Mundo não está suficientemente infraestruturado de acordo com o intrínseco valor cultural que tem. Não existem espaços de apoio ao visitante, espaços de permanência ou serviços. Não existem também instalações 131 MENDES, Manuel - Roteiro sentimental do Douro. 1963. op cit p.36 132 Agradeço aqui a colaboração do padre Filipe, da Senhora Fernanda, do Senhor António e do Senhor “Antoninho”.

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sanitárias, cafetarias ou restaurantes na zona envolvente. Existe neste local uma falta de informação acerca da importância que tem na história do Douro. O santuário é apenas utilizado em escassos dias do ano, estando os edifícios fechados nos restantes. Não existem números nem estatísticas, mas sabese que é bastante visitado, forasteiros chegam de carro constantemente, constatado pela observação direta durante as várias e longas visitas ao local, e confirmado nas palavras de J.A. Gonçalves, de um modo geral, todos eles percorrem o circuito das capelas, todos lamentam a falta de estruturas de apoio, todos gostariam de saber mais sobre o local e todos prometem voltar. Para além disto, não existe qualquer tipo de interação ou contributo para a população local. O sítio é gerido por membros da Fábrica da Igreja que não recebem nenhuma remuneração pelo trabalho que fazem e não têm recursos para dinamizar este local. Existe ainda uma falta de aproveitamento das oportunidades que este local poderia ter para dinamização do comércio local. Para os pesqueirenses, o Ermo, lá ao fundo, é altar de devoção religiosa, palco de lendas, cenário de marcantes histórias pessoais. É Sagrado. Para os durienses, o São Salvador do Mundo, que encima o cachão, liga-se à secular e dolorosa história da região vinhateira, é um dos seus mais belos mirantes. Para todos os que lá vão, olhar ao redor, é um autêntico deslumbramento cénico, que desperta não raras vezes um sentimento de pequenez.133

Para comprovar estas ideias foi feita uma experiência, guiando alguns destes visitantes pelo local. É geral a opinião de que o local não está vocacionado para ser visitado e compreendido. Depois de guiados pelos habitantes locais e as suas histórias, a opinião geral, foi de que este é um lugar fantástico com bastante interesse cultural e uma boa complementaridade à visita que faziam ao Douro. Acrescentam ainda que as lendas contadas no local, pelos testemunhos vivos tornam inesquecível a experiência, mencionando por exemplo a história da fraga do diabo e a descrição da construção da alvenaria de pedra. Acredita-se que, o que podia ter sido uma passagem rápida para usufruir de uma vista bonita e tirar a típica fotografia, tornou-se uma partilha de

133 António José Lima Costa, Presidente da Câmara Municipal de São João da Pesqueira. em GUIMARÃES, J.A. Gonçalves (coordenação) - São Salvador do Mundo santuário duriense. 2007 op cit

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FIGURA 118 | TOPOGRAFIA EM SÃO SALVADOR DO MUNDO Como chamado por Orlando Ribeiro, a garganta selvagem numa nesga de granito. FONTE: Elaborado por Mariana Calvete a partir da Carta Militar na escala 1:25000

experiências muito interessante.134

10.2 | UM PERCURSO CULTURAL Mas a própria beleza deve ser entendida. Não é subir aos restolhos de Lagoaça, contemplar o abismo e quedar-se em êxtase. Não é espreitar de S. Salvador do Mundo o Cachão da Valeira, e sentir calafrios. (...) É compreender toda a significação da tragédia, é ser nesse chão árido e hostil um novo criador de vida, é dar aí uma resposta quotidiana à morte, transformar cada ravina em parapeito de esperança e cada bagada de suor em gota de doçura. 135 Esta área de intervenção, no espirito das próprias itinerâncias, pretende ser também um percurso. Se é certo que muitas das proposta anunciadas previamente eram apenas pequenos marcos à beira da estrada, este local, pelas várias histórias e valores que se reúnem num mesmo lugar, e pelas inquietações que suscitou, criou a possibilidade de uma intervenção mais elaborada, como é desejado que aconteça em outros pontos, de outras itinerâncias - e como em alguns pontos no caso norueguês, em Trollstigen, Vøringfossen ou até o projeto de Peter Zumpthor em Sauda - Foi também por isso, escolhido como caso de projeto, por responder a uma certa complexidade inerente ao desenho de um projeto de final de mestrado.

134 A experiência foi feita no dia 24 de Agosto, apesar do imenso trabalho que tinham com as festas locais desse fim-de-semana, o Senhor António e o Senhor “Antoninho” disponibilizaram-se prontamente para ir ao Ermo. Os resultados deste dia foram parcialmente filmados e podem ver-se excertos no vídeo da Itinerância do Douro Ignoto, disponível em www.percursosdamémória.com 135 TORGA, Miguel - Portugal. 1950 op cit

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FIGURA 120 | UM PERCURSO CULTURAL A partir do santuário, passa pela Quinta da Valeira, desce até à cicatriz da pedreira, passando pelo memorial ao cachão e continua, serpenteando pelas fragas e vegetação até descer ao novo cais, encontrando o rio. FONTE: Elaborado por Mariana Calvete com base na Carta Militar de Portugal 1:25.000

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FIGURA 119 | UM PERCURSO CULTURAL Fraga do diabo e a Capela VI; Largo das Covinhas; Capela Nossa Sra. Penha; Percurso pelas capelas. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

Os arquitetos vêm qualidades em lugares que os outros não vêem ou não dão importância, com a sua intervenção, por vezes com gestos muito simples, tornam as qualidades existentes no lugar mais evidentes, criam a possibilidade de um novo olhar. Este lugar tem características excepcionais que ultrapassam as características arquitetónicas de cada capela. A sua composição, a integração das construções na paisagem, cada uma num ponto estratégico e, claro, a sua articulação num percurso, desenhado com muros e elementos naturais. (figura 119) Com o desenho que se propõe, o lugar de São Salvador do Mundo poderá ganhar uma nova fase na sua longa e eterna existência. Em vez de olhar para o santuário enquanto conjunto isolado, olha-se para ele na relação que estabelece com a envolvente paisagística, que certamente também motivou a sua existência. Para isso, para além de melhorar a experiência do percurso sacro do santuário, propõe-se uma mistura de museu ao ar livre e caminhada de montanha, em que os visitantes podem seguir uma linha de 2000 metros de percurso desde o topo do santuário, descendo pela encosta até ao rio, andando para trás no tempo, visitando histórias de antigas e poderosas quintas e furiosas águas formando cachões. (figura 120 e ANEXO III) O programa estabeleceu a reabilitação de alguns dos edifícios do conjunto, a sua infraestruturação e a construção de pequenos edifícios ao longo do percurso até ao rio, várias intervenções que se unem num mesmo propósito. A caminhada pode começar no rio ou no santuário, e existem ainda alguns pontos de acesso a viaturas para assegurar uma maior participação de pessoas com mobilidade reduzida, ou os menos dados a esforços físicos. Este acessos já existem, ou existiram, e são apenas melhorados. Depois do percurso pedestre, e de volta ao universo do carro, sugere-se um último percurso desde o santuário até ao miradouro em Campelos, do outro lado do rio, que já foi referido. Contemplando uma vista panorâmica e olhando para trás para o

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FIGURA 121 | ACESSO AO SANTUÁRIO Perceção do santuário vindo de São João da Pesqueira. Na cota mais baixa, a primeira capela A meia encosta a igreja e a casa do Ermitão. E no cimo a capela VII. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

FIGURA 122 | ACESSO AO SANTUÁRIO Perceção do santuário vindo da Barragem da Valeira. A presença quase imperceptível da igreja e da capela VIII. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

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percurso que se fez e percebendo o território que se percorreu, nesta grande sala de um museu da paisagem. Para colmatar a intervenção, e a experiência, são ainda desenhados locais que permitam pernoitar no local. A proposta é desenhada com alguma leviandade, apesar da consciência de que, na possibilidade de existir efetivamente um algum tipo de construção neste lugar, deveria ser estabelecido um intenso diálogo entre o arquiteto e equipas de arqueólogos, já que existe ainda muito por descobrir. E seria também necessário um forte acompanhamento paisagístico, que possa informar acerca da pertinência da implantação das construções devido às características naturais excepcionais deste lugar. Foi o grande respeito e reverência pela história e pela identidade deste lugar que esteve na base da intervenção e criou as condições para o desenho de uma área de visita, descanso e contemplação, que pretende, com a devida dignidade, representar um lugar sempre marcado por partilhas sociais, ao mesmo tempo que se presta homenagem às muitas figuras que por ele lutaram. Uma das outras premissas a este projeto foi a imposição de desenhar uma intervenção muito controlada na sua materialização. Em primeiro lugar, tendo em conta o caráter ainda muito selvagem deste lugar, o qual não se pode perder. Em segundo, pelo caráter primordialmente religioso do Ermo, que assim deverá permanecer, sem que seja descaracterizado pelas novas valências. Fazer desaparecer a arquitetura, torná-la invisível, não só pelas características da sua materialização, mas pela indiferença à possibilidade de o projeto afirmar alguma superioridade.136 A qualidade da natural da paisagem, as cores e texturas dos materiais antigos, as reminiscências de espaços que existiram são a matéria deste projeto.

10.3.2 | SANTUÁRIO A existência deste conjunto arquitetónico, com uma impressionante articulação entre elementos naturais e construídos, é praticamente imperceptível da maioria dos pontos de vista. Apenas pela estrada de acesso a sul se percebe a claramente a presença dos edifícios. (figura 121 e 122) A visibilidade que o conjunto tem desde este eixo tornou claro que a primeira intervenção seria o redesenho deste ponto. É neste sítio que começa o percurso pelas capelas, então é aqui que o movimento do carro deve ser substituído pelo passo de contemplação. Desenha-se aquele tal espaço de transição mencionado anteriormente,

136 Lembrando as palavras de Sérgio Fernandez sobre a Casa de Caminha.

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FIGURA 123 | ESPAÇO DE CHEGADA

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O muro, que limita e qualifica o espaço.

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FIGURA 124 | CASA DO ERMITÃO Construido no meio das fragas. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

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que não existe atualmente. Sem qualquer tipo de esclarecimento, os carros continuam a sua velocidade até a Praça dos Mouros, recentemente objeto de intervenção, onde se construiu um parque de merendas. Importa então evidenciar o início do percurso desde a primeira capela. Para isso, propõe-se que o desenho do largo permita que este funcione como um elemento de transição e integração entre a estrada, o percurso do santuário e o percurso até ao rio. De forma simples, baseia-se na construção de um novo volume, um muro, que ao mesmo tempo organiza a coexistência de carros e pessoas, define os limites deste espaço e contém em si todo o programa funcional de apoio aos visitantes. Foi desenhado de forma a incorporar uma área de recepção, informações, vendas de produtos locais, cafetaria e instalações sanitárias. É neste espaço que se faz a gestão de todos os pontos que esta intervenção cria, sendo o único local que requer a presença de funcionários. (figura 123) É um espaço de chegada onde se conciliam os diversos ritmos. Um espaço de mediação entre os que sabem e os que querem saber. É a partir deste ponto que o visitante, depois de informado acerca do local, pode percorrer o restante percurso como entender. Ao mesmo tempo que se infraestrutura a chegada e a visita, pretendese qualificar um espaço mais apelativo momentos de permanência e partilha de experiências, com outros visitantes e com os trabalhadores locais, que devem explorar estes espaços. Assim, os serviços e o convívio afastam-se do percurso sacro das capelas, local de peregrinação, de contemplação e devoção. Percurso este que foi mudando com os tempos, em busca da expressão universal da comunhão do Homem com a Natureza. Construtivamente é caracterizado pela utilização exclusiva do betão no exterior, assumindo-se assim claramente como novo elemento e traduzindo a intenção de ser o ponto de partida para um novo olhar. No interior retoma-se a utilização da madeira nos espaços de permanência. Os vãos recuados associados ao mobiliário permitem que a fachada do edifício se transforme em locais de vendas em dias de romaria. Também os bancos adossados aos muros e os pavimentos têm em consideração este tipo de ocupação. Reconhecendo que o espírito do lugar é essencialmente transmitido por pessoas e que a transmissão é parte importante de sua conservação, declaramos que é por meio de comunicação interativa e participação das comunidades envolvidas que o espírito do lugar é preservado e realçado da

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FIGURA 125 | CASA DO ERMITテグ Fotos interiores, ver ANEXO I para mais ftografias e desenhos. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

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melhor forma possível.137 Com os novos espaços, o lugar torna-se ainda mais vocacionado para ser palco das romarias habituais, podendo até constituir um incentivo para mais eventos da paróquia e do município, convívios e feiras que por vezes se fazem em estruturas temporárias. É um espaço que conserva a flexibilidade para ser apropriável para usos espontâneos. A estrada encontra-se a um nível ligeiramente mais elevado do que o largo, pegando nessa vantagem, desenha-se o estacionamento a uma cota mais baixa de forma a que a presença dos carros não seja perceptível durante a utilização dos espaços. Neste lugar, deverão ficar todas as viaturas, exceto situações pontuais em que se garante ainda o acesso até à cota mais elevada. É intenção deste projeto preservar a identidade do santuário e as características do percurso, por isso será apenas neste ponto que existe nova construção. Os restantes edifícios mantêm a sua função atual. Devem ser conservadas todas as capelas e garantir a proteção das figuras que contêm, possibilitando a sua fruição e interpretação pelos visitantes. Por isso, são também incluídos alguns elementos informativos ao longo de todo o percurso e alguns mapas, principalmente na entrada e no largo das Covinhas. Todos os edifícios são assinalados numa mesma linguagem, simples, sóbria e resistente, incluindo os lugares associados a histórias, como a fraga do Diabo. O percurso das capelas não necessita de intervenção, apenas o acesso à capela de Nossa Senhora da Penha é redesenhado acesso, devido à falta de segurança no existente. Será usada a mesma linguagem do restante percurso até ao rio, que veremos mais à frente. Valeria também a pena desenhar uma forma de dar a ver a Cova, que se encontra acessível por uma escada, que desce para uma cavidade em parte natural, talhada na rocha granítica, hoje com uma grade de ferro. Sabe-se que foi onde viveu Frei Gaspar da Piedade, é composta por um átrio, corredor e sala, mas ignora-se a sua total extensão. É ainda proposta a reabilitação da casa do ermitão e da casa do forno adjacente. Faz sentido recuperar esta casa, e eventualmente, o abrigo dos romeiros para restaurar um dos usos mais significativos deste santuário, a sua ocupação pelo ermitão que, segundo os locais, há cerca de vinte ou trinta anos que já não vive lá. Neste momento, não tem nenhuma função, a não ser como uma má arrecadação, onde se degrada algum espólio religioso. Este edifício pode ser um espaço de reconstituição de um passado assente numa ideia de casa coletiva, onde o ermitão recebia os romeiros. Este edifício existe sobre um plinto socalcado por muros de granito, consiste em dois 137 ICOMOS - Declaração De Québec - Sobre a preservação do “Spiritu loci”. Québec: 4 de outubro de 2008

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FIGURA 126 | QUINTA DA VALEIRA As ruínas vistas do santuário IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

FIGURA 127 | AS RUINAS DA QUINTA DA VALEIRA Localização e articulação dos edifícios a recuperar. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

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corpos justapostos. Um sensivelmente norte/sul de dois pisos e telhado de duas águas e outro parcialmente adossado a norte, desencontrando, com telhado de uma só água. Aqui situa-se a antiga cozinha, que comunica com uma copa, esta com porta aberta para o átrio exterior. No exterior uma pedra fora do sítio com a data de 1752 gravada pode datar este anexo. Através das suas características espaciais, que são em si testemunho desta vivência, e com a sua adaptação para uma forma contemporânea de partilha, pode restituir-se a memória coletiva associada a este lugar, continuando a ser um espaço de descanso e conforto depois de uma paisagem inóspita. Para isso, importa garantir as condições mínimas para habitar este espaço, a existência de instalações sanitárias, possibilidade de preparação de alimentos e espaços para descansar, pernoitar se necessário. Os espaços do piso térreo serão mais abertos aos visitantes em geral, onde podem ter um momento de paragem depois da caminhada, fazer uma refeição na comprida mesa de uma só pedra granítica ou consultar a pequena biblioteca. O primeiro piso, será utilizado por quem deseje passar a noite. Visto que um dos objetivos destas intervenções é atrair um público muito diferente do típico visitante do Douro, por isso, importa criar alternativas ás quintas de luxo. Existiu aqui a possibilidade de desenhar uma pequena unidade de hospedagem com quartos coletivos e espaços comuns, que proporcione pequenas estadias, a custo reduzido, e que fomente ainda mais, o espírito de comunidade associado à memória deste lugar. São utilizados materiais simples e resistentes, como a madeira e a pedra. A alguns metros desta casa, nas traseiras encontra-se um pequeno edifício, originalmente funcionando como a casa do forno, onde se pode reconhecer características tipológicas rurais. Esta construção, também em granito, aproveita o ângulo das fragas e o desnível dos socalcos. A zona mais baixa seria o estábulo e em cima o forno. Este que poderia ser reativado. Entre as duas construções, enquadrado por fragas que se distribuem em arco, um amplo espaço socalcado por muros graníticos, onde ficariam os campos outrora cultivados para sustento dos ermitães. Todo este conjunto forma uma unidade bem implantada no terreno que vale a pena recuperar. É ambição deste desenho ser uma simples mas rigorosa reabilitação. Assim, a intervenção consiste na recuperação e substituição dos elementos danificados, principalmente a cobertura e os pavimentos em madeira. Os elementos em bom estado, como as alvenaria de pedra, serão mantidos assim como toda a divisão espacial, apropriada para o novo uso, que é no fundo, o antigo. Os elementos existentes em betão e outros, fruto de anteriores intervenções menos controladas,

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FIGURA 128 | NORDISK KUNSTNARSENTER, HAGA & GROV, DALE The Nordic Artists' Centre Dale is designed by the architects Haga & Grov from Stavanger, in collaboration with architects Hjeltnes and Egge. The centre has five private residencies of various sizes for the selected artists. The largest residence (91m²) has 3 bedrooms, two houses (67 m²) have 2 bedrooms and two have one bedroom (56 m²). The houses have bathroom, combined kitchen and living room and are fully equipped. The centre has 5 identical north-lit studios, each 50 m². The artists studios have common design making it possible to work with various techniques. The studio walls are white, floors are wooden and height to the ceiling is 5 meters. The studios have wireless internet access. Artists have access to the main workshop equipped for working with wood. The workshop is also furnished with welding equipment. All together the studio building area is about 670 m². IMAGEM E TEXTO: Disponível em http://www.nkdale.no/

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serão substituídos. Importa também melhorar as condições da instalação elétrica que foi precariamente implementada há alguns anos. É feito um redesenho do espaço exterior, organizando os percursos com pavimentos em madeira e desenha-se uma rampa integrada na vegetação desde a Casa do Forno até ao Largo das Covinhas para garantir o acesso a utilizadores com mobilidade reduzida. Segundo a proposta de revalorização do Ermo mencionado anteriormente, o abrigo dos romeiros tem sido alvo de algumas investigações arqueológicas, o que foi confirmado pelos responsáveis da paróquia. Neste momento o acesso a esta estrutura não está garantido devido à quantidade de vegetação que tomou conta deste espaço. Aqui existiria uma estrutura porticada da qual restam um muro com cerca de 22 metros e três pilares. Seria importante pensá-la como complemento à missão da casa do ermitão.

10.3.3 | QUINTA DA VALEIRA - ALOJAMENTO NAS RUINAS - ESPAÇOS DE REFLEXÃO A partir do largo de entrada, descendo pela vertente noroeste, encontram-se as ruinas da Quinta da Valeira, hoje abandonada, são visíveis as suas paredes exteriores e perceptíveis os socalcos com algumas árvores de fruto. (figura 126 e 127) Percebe-se também a existência de um caminho de acesso a partir da estrada principal, apesar de, atualmente, a vegetação não permitir a passagem. A Quinta da Valeira foi um dos edifícios dominantes neste local, no seu tempo, foi importante na região do Douro Vinhateiro. Foi a sede de uma grande área de vinha, existiam então vários edifícios de caráter agrícola construídos para apoiar as atividades produtivas, um grupo de pequenos edifícios de pedra ainda existe, colocados em torno da casa principal. Existe, contudo, pouca documentação acerca deste edifício. A proposta é feita com base em fotografias da estrutura existente, visto que a dificuldade dos acessos não permitiu fazer medições. É agora pertinente retomar o tema da representação que tem acompanhado este texto. Nesta última etapa, o maior desafio prende-se com a representação das construções existentes. Em projetos de reabilitação é imprescindível falar sobre a forma captar a riqueza das suas cores, as texturas, as marcas do tempo, as singularidades. Nem sempre a utilização do convencional desenho em computador nos ajuda a transmitir estas características. Não foi possível recorrer aos meios mais adequados para esta tarefa, como a fotogrametria ou o varrimento laser, também não era esse o enfoque deste trabalho. Por isso, o problema tentou ser ultrapassado com recurso ao desenho à mão, numa primeira fase, e numa tentativa de associação desta representação vectorial com fotografia, tarefa que nem sempre se apresenta fácil. Tendo em conta as

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santuário de são salvador do mundo

FIGURA 129 | CORTE PELO CACHÂO DA VALEIRA No corte percebe-se o encaixe do rio. Vê-se ainda a pedreira e ao fundo o Ermo, onde se encontra o santuário. IMAGEM: Elaborado por Mariana Calvete

FIGURA 130 | BARRAGEM DA VALEIRA Planta e corte da barragem construída nos anos 70. IMAGEM: Disponível em http://cnpgb.inag.pt/gr_barragens/gbportugal/Valeirades.htm

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características deste lugar, povoado de fragas e vegetação, a representação destes elementos naturais volta a ser um outro desafio. Pegando nos princípios de isolamento, base da vida eremítica, para que este local foi obviamente escolhido, propõe-se agora uma “nova forma de ermitismo”. Hoje em dia, se bem que nem sempre passe por motivações religiosas, o isolamento e contacto com a natureza é cada vez mais procurado. Seja para a reflexão artística, filosófica, ou apenas para terminar uma investigação, propõe-se reutilizar as ruinas da Quinta da Valeira, para pequenas celas de alojamento de longa duração. Sítio de introspecção, que podem ser utilizados por escritores ou artistas para a realização dos seus projetos. Fora dos grandes centros urbanos, um refúgio e um reencontro com a natureza, revelar a beleza deste lugar, através de um novo uso para estas ruínas com uma posição privilegiada. A intervenção pode ser resumida na dispersão de quartos pelos vários edifícios, inclusive outras ruinas ao longo da encosta, em vez de optar por nova construção. Em contraste com a dureza da pedra e da paisagem, propõe-se uma intervenção em madeira, associada ao conforto e à natureza. Depois de recuperada a cobertura, garantindo a vida do edifício, novos materiais encontram o seu lugar entre as antigas pedras. Optou-se por desenhar a casa principal, enunciando os princípios que iriam guiar o desenho das outras ruínas de dimensão mais reduzida. Assim, são desenhadas duas tipologias de quartos, uns com espaço de trabalho e outros, mais pequenos, apenas dormitórios, pressupondo que o tipo de trabalho destes utilizadores requer espaços como as oficinas, desenhadas no piso térreo. É ainda desenhada uma biblioteca, sala de estudo, cozinha e sala de jantar. Estes espaços coletivos apelam à troca de ideias e partilha de conhecimentos entre os ocupantes.

10.3.4 | MEMORIAL DA VALEIRA Mais uns quilómetros, entra-se num vale apertado de granito em paredes cada vez mais a pique, até à vertical. O local merece especial respeito: é cachão da Valeira, que já não é cachão, logo seguido da barragem do mesmo nome. Nas paredes, uma inscrição e uma placa comemorativa: da abertura à navegação, ainda no século XIX, e de homenagem ao barão de Forrester, pois foi que ele morreu. (...)

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FIGURA 131 | BARRAGEM DA VALEIRA Imagem do 70. IMAGEM: Disponテュvel em http://cnpgb.inag.pt/gr_barragens/gbportugal/Valeirades.htm

FIGURA 132 | CACHテグ DA VALEIRA Imagem do local antes da barragem. FONTE: Emilio Biel

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FIGURA 133 | INSCRIÇÃO IMPERANDO DONA MARIA PRIMEIRA / JA SE DEMOLIU O FAMOZO ROCHEDO / QUE FAZENDO AQUI / UM CACHAM INACCESSIVEL / IMPOSSIBILITAVA A NAVEGAÇÃO / DESDE O PRINCIPIO DOS SECULOS / DUROU A OBRA / DESDE 1780 ATE 1791 / PATRIAM AMAVI FILIOS QUE DILEX FONTE: Foto de Mariana Calvete

FIGURA 134 | CACHÃO DA VALEIRA Abertura do Cachão. Quadro de João Baptista Ribeiro, ca 1810 FONTE: Extraido de GUIMARÃES, J.A. Gonçalves - São Salvador do Mundo santuário duriense. 2007.

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FIGURA 135 | PLATAFORMA DE APOIO À CONSTRUÇÃO DA BARRAGEM.DRA A situação de abandono deste local com uma impressionante vista. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

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Atualmente, o termo Valeira está mais associado à barragem construída em 1976. Mas Valeira foi também o nome de um fenómeno que neste lugar marcava o rio Douro, o célebre cachão. Até ao século XVIII, marcava o limite de navegabilidade do rio, por isso, para montante, poucas eram as explorações vitícolas. Principalmente pela desmedida dificuldade do transporte dos vinhos. Um casco que se produzisse acima do cachão, teria de subir, em carro de bois, até à Pesqueira, e daí seguir até ao Pinhão ou até ao porto de Bateiras para poder ser transportado, pelo rio, até à Régua e Vila Nova de Gaia. Apesar de terem existido tentativas para destruir o cachão desde 1530, só em 1780 se deu o início da obra de demolição, com mais de 4.300 tiros dados abaixo da linha de água, alargando-se o leito do rio 35 pés. Apesar das dificuldades, em 1789 os primeiros barcos começaram a subir e a descer o rio com alguma segurança. A obra foi dada como concluída em 1792, tendo sido realizada uma inscrição epigráfica na face voltada a Norte num rochedo granítico, localizada em escarpa cortada que emerge do leito do rio Douro. (figura 133) Ao Cahão da Valeira (6 km N. por caminho rústico e íngremes veredas)

Além da perspectiva, grandiosa e funda, que deverá colher do alto do santuário, importará, a quem tiver a paixão de “mirar algo de nuevo” (...), descer ao próprio Cachão. Será um inolvidável passeio para uma boa manhã calcorreante. A descida pela encosta íngreme (ao fundo da qual está a recatada quinta da Valeira), obrigará o excursionista a sofrer talvez alguns escorregões, mas, a contemplação dos grandiosos rochedos compensará com generosidade estopada.138 A ligação do santuário ao rio não é fácil, mas é decerto desejada e apreciada. Podemos ver na citação transcrita, que já em 1970 se recomendava este passeio. Também hoje se manifesta um desejo de ligação, segundo os responsáveis pelo local, duas ou três vezes por semana, os visitantes que passam de barco param na barragem e são levados de autocarro até ao Ermo. Assim, tendo em conta o desejo de possibilitar a exploração pedestre deste local, propõe-se o desenho de estruturas que permitam fazer o percurso em condições mínimas de segurança. Não se trata de um percurso que ambiciona ser infraestruturado para todos, mas antes pequenas estruturas de apoio que permitam ver de perto 138 Escritas em 1970, são estas as recomendações ao visitante do santuário São Salvador do Mundo em AAVV - Guia de Portugal. 1995 op cit

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algumas cicatrizes deixadas no território, primeiro pela explosão do cachão da Valeira, e depois pela própria barragem. Nestas plataformas são enunciadas as histórias destes acontecimentos, nos locais onde são mais perceptíveis. Um percurso, um museu pela paisagem, adaptado ao terreno. A estrutura do percurso é moldado pela natureza e não o contrário, vagueando entre a vegetação, fazendo com que sítios inacessíveis se tornem acessíveis, realçando as qualidades existentes. Partindo do ponto anterior, a Quinta da Valeira, o local de paragem seguinte é a cicatriz deixada na paisagem pela pedreira da construção da barragem, é um dos pontos intermédios da descida do cone granítico. Neste ponto, já começa a ser perceptível a dureza do rio e da paisagem. Aqui é possível chegar de carro, pelo percurso criado para esta construção que ainda permanece. Lá nos fundos, corre o ria, a resmungar no traiçoeiro cachão da Valeira, que tem sido teatro de alguns naufrágios, e onde, naquelas revoltas águas, morreu afogado, vai fazer agora um século (12 de Maio de 1861), o maior e mais devotado amante que o Douro porventura ainda teve, o célebre barão de Forrester, que correu lés a lés, o estudou a palmos, fazendo dele o grande amor e talvez a maior paixão da sua vida. 139 Depois, para uma mais poética compreensão deste local e como um dos pontos excepcionais do percurso, desenha-se um memorial, no sítio de onde se consegue perceber o antigo cachão da valeira. Um memorial em honra daqueles que lutaram pela sua destruição que permitiu o crescimento económico de douro superior. Neste momento o percurso interrompe-se, existe uma pequena estrutura coberta com algumas informações sobre o local, e a partir dela inicia-se a descida pelo terreno mais duro até uma plataforma em dois níveis, convidando à paragem e contemplação. Esta descida é materializada em escadas e patamares que se adaptam às fragas e à vegetação. Voltando ao local informativo continua-se a descida, com alguns momentos de descanso, que termina num cais, fazendo a ligação dos visitantes de barco. A descida ao rio, neste momento não é possível, tendo em conta esta dificuldade de acessibilidade ao local, e a limitação de meios, não foi possível fazer um levantamento preciso deste percurso. Nesta nova dificuldade de representação, optou-se por incluir algumas propostas de desenho para os detalhes das diferentes componentes que podem compor o percurso. Estas estruturas são fundados na rocha, adaptando-se a cada fraga, tal como foram as próprias capelas no santuário.

139 MENDES, Manuel - Roteiro sentimental do Douro. 1963. op cit p..31

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FIGURA 136 | MEMORIAL DA VALEIRA Planta geral do memorial, adaptado à topografia. IMAGEM: Elaborado por Mariana Calvete A

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10.3.4 | ALOJAMENTO ESPORÁDICO Finalmente, como complemento a este percurso cultural, e pela ambição de levar à permanência dos visitantes neste local, desenha-se um novo edifício que dá a possibilidade de alojamento temporário. Esta intervenção, que a principio parece contradizer os propósitos enunciados, faz-se numa outra cicatriz que a construção da barragem deixou. Depois do santuário, antes da inflexão da estrada, existe uma plataforma alcatroada, suportada por um muro, onde se supõe ter existido o controlo desta obra. Atualmente foi abandonado, sendo palco a vivências menos desejadas. Encontra-se em precárias condições de higiene, e por isso se acha necessário a sua recuperação. (figura 125) Aproveitando o muro de suporte existente, propõe-se um longo edifício que segue a topografia da encosta. Integrando-se na paisagem de forma a não perturbar, nem se sobrepor aos restantes elementos. A sua forma alongada remete para os muros dos socalcos vinhateiros, que vimos antes. À sua semelhança, este muro suporta as terras e contém espaços a ele adossados. As escadas que dão acesso individual a cada uma dos espaços são também integradas neste muro. A individualidade e privacidade de cada um dos quartos é garantido não só pelo seu acesso autónomo como pela impossibilidade de passagem na frente do edifício, de forma natural, pela abrupta descida topográfica. (figura 137)

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FIGURA 136 | ALOJAMENTO Implantação do edifício de alojamento. IMAGEM: Elaborado por Mariana Calvete

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As características do habitar deste local são muito diferentes do conceito proposto para a casa do ermitão ou da quinta da valeira. Aqui trata-se de um alojamento mais convencional, onde existem quartos com uma pequena cozinha independente, partilham com os primeiros o facto de ser alojamento de curta duração e com o segundos o desejo de isolamento. Pela sua posição estratégica para vigiar a barragem, este ponto tem uma incrível vista para esta construção, assim como para o Ermo. Por isso, e para rematar o corpo do edifício, é desenhada uma plataforma de observação, que ao mesmo tempo garante o acesso a mobilidade condicionada. A gestão deste local será também feita no edifício desenhado na entrada do santuário, sendo nesse lugar que se podem adquirir as chaves para pernoitar neste local. Tendo um conforto superior, poderá ser uma das formas de rentabilizar este lugar. O aumento dos visitantes, dos artistas ou das romarias, poderá requerer mais locais de alojamento, para tal, seria viável que se expandisse a mesma estratégia para mais locais, mantendo a gestão no santuário. Seria desejável que se recuperassem casas abandonadas nas populações adjacentes. Também nesta perspectiva de antecipação, foi detectado, um edifício à saída de São João Pesqueira, antigo solar, cuja recuperação poderia ser complemento a este percurso. (figura 138)

FIGURA 138 | SOLAR ABANDONADO Edifício na estrada de São João da Pesqueira para São Salvador do Mundo. A sua reabilitação poderia ser um complemento à intervenção no santuário. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

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FIGURA 139 | O SENHOR ANTONINHO NO ANTIGO ABRIGO DOS ROMEIROS Onde relatou as hist贸rias deste lugar. IMAGEM: Fotografia de Mariana Calvete

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Thor Heyerdahl, explorador e etnógrafo norueguês, que viu recentemente o seu arquivo ser reconhecido pela UNESCO como Memória do Mundo, disse: One learns more from listening than speaking. And both the wind and the people who continue to live close to nature still have much to tell us which we cannot hear within university walls. Acredita-se que, mais do que o desenho baseado em investigação bibliográfica, é o desenho baseado na experiência que deve estar na base das intervenções contemporâneas. Adquirir conhecimento local e entender a situação específica de cada lugar é fundamental para as opções arquitectónicas. Porque é na possibilidade de vivência local que se espera conseguir transmitir os valores do nosso património cultural. Dando-lhe uma face, o retrato torna-se mais vivo. O desenho proposto para São Salvador do Mundo está longe de querer ser uma resposta inquestionável a este lugar tão escrito. É o resultado de um processo, que apesar do sólido suporte em obra escrita, privilegiou a vivência deste local no entendimento das suas subtilezas. Falar com pessoas, ouvir e observar. Durante os últimos meses, a par de um processo envolto em questões de fundamentação, surge o desenho, como a última instância da absorção de todo o conhecimento. We believe that to create architecture that is born of the place, in both developing and developed worlds, that we need to source materials locally, we need to use construction methods that are available locally, wherever possible, to recycle, to upcycle, and to be resourceful, and, most importantly, be present in order to discover beauty in unexpected places.140

140 As palavras em que acreditava o arquiteto Ross Langton, morto no recente atentado em Nairobi. QUIRK, Vanessa - Architect Ross Langdon Among Those Killed in Nairobi Siege, Disponível em http://www. archdaily.com/431635, consultado em 25 de Setembro de 2013

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IV | CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho procurou ser a compilação de uma série de inquietações suscitadas pela atual situação do património em Portugal. Fundado na consciência de que a arquitetura e o desenho contemporâneo são cruciais para restituir a estima a estes lugares, agora que olhamos para o nosso país de forma tão desencantada, ganhamos também consciência de que o futuro do passado está confiado à nossa guarda. Este texto procurou desenhar um caminho de leitura pelas Itinerâncias e Percursos da Memória, enquanto projeto que procura incluir um vasto leque de intervenções locais que contribuem para uma intenção maior. Uma composição em três andamentos, que descreve a vontade de um modelo de caráter nacional que propicie a criação de itinerâncias territoriais, apelando à viagem como forma de ver e vermo-nos. Foram intenções fundacionais criar princípios base que despertem interesse sobre a problemática da interpretação contemporânea do património e da paisagem cultural, ambicionando abrir caminho a futuras interpretações. Aceitando este repto, foi desenhado um projeto representativo da estratégia enunciada, a itinerância do Douro Ignoto. A intervenção arquitetónica foi levada para um dos seus lugares mágicos, o lugar de São Salvador do Mundo. Neste lugar, a nova intervenção permite a perceção demorada e continua do território, oferecendo os espaços de transição que permitem a paragem e a contemplação, e que permitem ainda criar relações entre locais e visitantes, criando mais valia para ambos. Tudo isto se consegue pela recuperação das estruturas e lugares já existentes com o desenho contemporâneo, através de um olhar cuidado para o seu significado e para a sua história. Finalmente, a existência destes dispositivos, motiva a exploração do território envolvente. Assim, com a convicção de que neste projeto se materializam as intenções enunciadas, apresenta-se como modelo extensível a outros territórios. O desafio para novas itinerâncias está lançado.

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V | BIBLIOGRAFIA

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BELO, Duarte - Portugal - Olhares Sobre o Património. Lisboa: Temas e Debates. 2008 BELO, Duarte - Portugal - Luz e Sombra, O País depois de Orlando Ribeiro. Lisboa: Círculo de Leitores/Temas e Debates. 2012 BOTTON, Alain - A Arte de Viajar. Lisboa: Dom Quixote, 3ª ed. 2008 BROCHMANN, Bertram - A new Norwegian National Romance, Morgenbladet 26 de Julho de 2009 CALVINO, Italo - Cidades Invisíveis. Lisboa: Editorial Teorema. 2008 CHEVALIER, Jean - GHEERBRANT, Alain - Dicionário dos Símbolos. Lisboa: Teorema. 2007 CHOAY, Françoise - A Alegoria do Património. Lisboa : Edições 70, 2000 CHOAY, Françoise - Património e Mundialização. 2º Ed Lisboa : Editora Licorne, 2005 D’ABREU, Alexandre Cancela; CORREIA, Teresa Pinto Correia - Contributos para a identificação e caracterização da paisagem em Portugal. Évora : Departamento de Planeamento Biofísico e Paisagístico. 2004 DOMINGUES, Álvaro - A Rua da Estrada. Porto: Dafne Editora. 2009 DOMINGUES, Álvaro - Paisagem e identidade: à beira de um ataque de nervos. Em Duas linhas, Lisboa. Costa, P. & Louro, N Editores 2009 DOMINGUES, Álvaro - Vida no Campo. Porto: Dafne Editora. 2011 DOMINGUES, Álvaro - A paisagem revisitada, em Finisterra: Revista portuguesa de geografia, vol.36, no72, p. 55-66. Disponível em http://www.ceg.ul.pt/finisterra/ numeros/2001-72/72_05.pdf , consultada em Agosto de 2013 DOMINGUES, Álvaro - Paisagens rurais em Portugal: algumas razões da polémica em Revista da faculdade de letras – Geografia I série, vol XIX. p.111-117 Porto:2003. Disponível em http://ler.letras.up.pt/uploads/ ficheiros/329.pdf, consultado em Agosto de 2013

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RIBEIRO, Orlando - Geografia e Civilização - Temas Portugueses. Lisboa: Centro de Estudos Geográficos. 1961 SARAMAGO, José - Viagem a Portugal. Lisboa: Caminho, 2009 SCHAMA, Simon - Landscape and Memory. Great Britain: Harper Press. 2004 SIZA, Álvaro - Textos - 01 textos. Porto: Editora Civilização. 2009 TAVARES, Gonçalo M. - Opúsculo 14, Arquitectura, Natureza e Amor. Porto:Dafme Editora. 2008 - Disponível em http://www.dafne.com.pt/pdf_upload/opusculo_14.pdf, consultado em Agosto de 2013 TORGA, Miguel - Portugal. 3ª Ed. Lisboa: Dom Quixote. 2010 TRIGUEIROS, Luiz (edição) – Fernando Távora. Lisboa : Blau. 1993 ZUMTHOR, Peter - Atmosferas. Barcelona:Editorial Gustavo Gilli, SL. 2006 ZUMTHOR, Peter - Pensar a Arquitectura. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, SL. 2009

2 | BIBLIOGRAFIA ESPECÍFICA RELATIVA AO DOURO AAVV - Cister no Vale do Douro. Santa Maria da Feira: Grupo de Estudos de História da Viticultura Duriense e do Vinho do Porto e Edições Afrontamento. 1999 AAVV - Guia de Portugal V Trás-os-Montes e Alto Douro II - Lamego, Bragança e Miranda. 3ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian 1995

AAVV - Viver e Saber Fazer - Tecnologias tradicionais na Região do Douro: estudos preliminares, 2º Ed. Peso da Régua: Fundação Museu do Douro, 2006.

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ANDERSEN, Teresa - A paisagem do Alto Douro Vinhateiro: evolução e sustentabilidade. Disponível em http://www.unizar.es/fnca/duero/docu/p315.pdf - consultado em Agosto de 2013. BARRETO, António - Douro. Lisboa: Edições Inapa. 2001 CENTRO NACIONAL DE CULTURA E TURISMO DE PORTUGAL - Roteiros Turísticos do Património Mundial no Norte de Portugal - Douro Vinhateiro e Vale do Côa. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2012 FAUVRELLE, Natália; ROSAS, Lúcia - Arquitecturas da paisagem vinhateira. Peso da Régua: Fundação Museu do Douro, 2008. GUEDES, Maria Teresa Valente de Sousa - O Alto Douro na Obra de Orlando Ribeiro. Porto: FLUP. 2010 GUIMARÃES, J.A. Gonçalves - Para uma arqueologia da paisagem duriense – S. Salvador do Mundo e Ribeira de Galegos em S. João da Pesqueira: proposta de rentabilização para fins turísticos em Actas das I Jornadas Internacionais sobre Enoturismo e Turismo em Espaço Rural. Porto/Maia: APHIN/GEHVID/ISMAI. 2009 p. 111-128. GUIMARÃES, J.A. Gonçalves (coordenação) - São Salvador do Mundo santuário duriense. Vila Nova de Gaia: Município de São João da Pesqueira/Edições Gailivro, 2007. MACEDO, Marta - Projectar e Construir a Nação. Engenheiros, ciência e território em Portugal no século XIX. Lisboa: ICS 2012 MENDES, Manuel - Roteiro sentimental do douro. Edição original 1963. Porto: Afrontamento e Museu do Douro. 2002 PARAFITA, Alexandre - Património imaterial do douro. Narrações Orais. Contos. Lendas. Mitos. Vol. I - Tabuaço, 2ª Ed. Lisboa: Âncora Editora e Fundação Museu do Douro. 2010

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PEREIRA, Paulo - Colecção Lugares Mágicos de Portugal. Lisboa: Temas e Debates. 2009 REDOL, Alves - Porto Manso, 4a edição, Lisboa: Caminho. 1999 RIBEIRO, António Augusto - As gentes do Douro Vinhateiro : tradições e manifestações religiosas. Guimarães: Universidade do Minho. Tese de Mestrado - disponível em http://hdl.handle.net/1822/5643 (consultado em 21 agosto 2013) TORGA, Miguel - Vindima, 5a edição. Coimbra: Dom Quixote. 1994 VALENTE DE OLIVEIRA, Luís; MAIA PINTO, Fernando; CLUNY, Isabel - Barão de Forrester: Razão e Sentimento - Uma história do Douro (1831-1861). Peso da Régua: Fundação Museu do Douro, 2008.

3 | DOCUMENTOS ELECTRÓNICOS ICOMOS | www.icomos.org Munícipio de São João da Pesqueira | http://www.sjpesqueira.pt/ SIPA - Sistema de Informação para o Património Arquitectónico | http://www. monumentos.pt/ Sítio Oficial Orlando Ribeiro | http://www.orlando-ribeiro.info/home.htm UNESCO | www.unesco.org

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4 | FONTES MANUSCRITAS Biblioteca Nacional de Portugal | Área de Espólios: Caderno de Campo 27 - Portugal, Novembro, 1943 - Serras de xisto, Trás-os- Montes, Alentejo, Algarve e litoral do Minho (páginas 14 a 18); Caderno de Campo 55 - Portugal (E), 1962/65 – Várias regiões (páginas 60a a 69); Caderno de Campo 58 - Portugal (F), 1966 e 1969 – Várias regiões (páginas 69 a 75b relativas a 1966 e páginas 111 a 119 referentes a 1968). BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL | CARTOGRAFIA: REGIÕES DEMARCADAS DO DOURO [ MATERIAL CARTOGRÁFICO] : AS DEMARCAÇÕES DO AO DE 1761 / DESIGN JOÃO MACHADO C.C. 593 A. [MAPA DA] REGIÃO DO DOURO [ MATERIAL CARTOGRÁFICO] : 1932 / COMISSÃO DE VITICULTURA DA REGIÃO DO DOURO C.C. 464 R.

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5 | FILMOGRAFIA BARRETO, António; PONTES, Joana - As Horas do Douro. 2010 OLIVEIRA, Manoel de - Douro, Faina Fluvial. 1931 - Disponível em http://vimeo. com/20497088 (visualizado em 22 de Agosto de 2013) PELICANO, Jorge - Pare, Escute e Olhe. 2009 - Dísponível em http://www.youtube. com/watch?v=FTihP0Xmxbc (visualizado em 23 de Agosto de 2013) PERES, Ângelo - Miguel Torga, O Meu Portugal. 2007 Disponível em http://www.rtp. pt/play/p1212/e115124/miguel-torga-o-meu-portugal (visualizado em Junho de 2013) SAINT-MAURICE, Anabela - Além de Nós: Mudança na Paisagem 2011. Dísponivel em http://www.rtp.pt/programa/tv/p27583 (visualizado em 22 de Agosto de 2013) SARAIVA, António João; GOMES, Manuel Carvalho - Orlando Ribeiro - Itinerâcias de um Geógrafo - Disponível em http://doc-orlandoribeiro.blogspot.pt (visualizado em Maio 2013) http://www.sjpesqueira.pt/PageGen.aspx?WMCM_PaginaId=32235 - videos sao joao pesqueira MORANGO, Hugo; MOTA, Gonçalo - Mó. 2013 - Documentário sobre as imagens e sons que foram recolhidos durante o trabalho de campo que resultou na publicação do livro “Arquitecturas da Água - entre o Coa, o Águeda e o Douro Internacional” Disponível em https://vimeo.com/65564908 (visualizado em Junho de 2013)

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VI | ANEXOS Estes quatro livros foram elaborados ao longo do processo de construção da ideia e do desenho do projeto, foram instrumentos de trabalho e servem de documentação a todo processo. Neles são incluídos fragmentos que não foram incorporados no texto principal mas que a seu tempo foram fundamentais para a sua construção. São documentos escritos e gráficos. Por vezes contém informações mais ambíguas do que esclarecedoras, são o reflexo dos conhecimentos adquiridos nestes meses de trabalho em torno das itinerâncias. ANEXO I - LIVRO DAS ITINERÂNCIAS E PERCURSOS DA MEMÓRIA Representação de uma possível estratégia nacional, desenho das suas itinerâncias elaboradas a partir das viagens, documentação fotográfica e escrita. ANEXO II - LIVRO DA ITINERÂNCIA DO DOURO IGNOTO Documentação acerca desta itinerância que não foi incluído no texto. O percurso ponto por ponto. ANEXO III - LIVRO DE SÃO SALVADOR DO MUNDO Peças desenhadas relativamente ao desenho da intervenção em São Salvador do Mundo. Alguns textos. ANEXO IV - LIVRO DE PROCESSO E REFERÊNCIAS Diário do processo de trabalho. Todas as etapas deste projeto organizadas cronologicamente, mostrando altos e baixos do projeto. Base de dados gráfica e informal dos projetos que foram sendo referência e fragmentos de algumas leituras.

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