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Negócio da China TRATADOS COMERCIAIS O principal parceiro comercial do Brasil assinou acordos que somam US$ 53 bilhões. O que esses tratados podem trazer ao país?
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oração de contrafilé na brasa. Esse foi o prato principal servido ao premiê chinês, Li Keqiang, em sua visita ao Brasil, no dia 19 de maio, para firmar um acordo que voltará a colocar na mesa dos chineses carne bovina, exportada por oito frigoríficos brasileiros embargados desde 2012, em razão de uma suspeita não confirmada de vaca louca. Em encontro com a presidente Dilma Rousseff, o primeiro-ministro assinou um total de 35 acordos bilaterais em diferentes áreas como infraestrutura, transporte, energia, agricultura, mineração, tecnologia e comércio. Um valor que supera os US$ 53 bilhões. A princípio é possível pensar que o resultado do encontro seja positivo para o Brasil, num ano de recessão econômica e cortes no Orçamento. No entanto, de acordo com especialistas de Relações Internacionais e Economia ouvidos por
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Cidade Nova, os acordos, ainda não regulamentados, podem chegar a não ser concluídos e seus efeitos em longo prazo são questionáveis. “É uma carta de intenções entre os dois lados. São compromissos mútuos, mas não oficializados. Eles ajudam no sentido psicológico ao dar credibilidade para investidores estrangeiros com a percepção de que o Brasil não está isolado economicamente”, afirma José Augusto Guilhon, professor de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Grupo de Estudos Brasil-China na Universidade de Campinas (Unicamp). “É bom devido à grande repercussão que teve nos outros países, não só na mídia, mas em centros de pesquisas internacionais e geoestratégicos. Porém, do ponto de vista prático, nos próximos dois anos em que essa crise vai continuar, não há nenhum efeito imediato”, pondera.
Segundo o especialista, o fim do embargo aos frigoríficos é um dos únicos tratados de vigência imediata. O potencial de exportação é de US$ 150 milhões por ano. Ele cita como certa também a retirada da barreira aos aviões da Embraer. Os dois países acordaram um financiamento sobre a compra de 40 aeronaves da empresa brasileira. Para Rogério Naques Faleiros, professor de Economia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), o governo deve ter clareza na hora de regulamentar os acordos para não pôr tudo a perder. “Chineses são negociadores implacáveis, são duros de negócio e às vezes os acordos emperram em detalhes técnicos. Corre-se o risco de que seja uma grande fumaça”, afirma. “O governo brasileiro tem que ousar mais e ter mais clareza no processo de transferência de tecnologia e internalização visando aumento de produtividade e [solução de] gargalos na infraestrutura que são evidentes.”
Roberto Stuckert Filho | PR
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Concentração A China é o principal parceiro comercial brasileiro. Em 2014 as exportações destinadas ao país asiático somaram US$ 40,6 bilhões e as importações chegaram a US$ 37,3 bilhões, gerando um fluxo comercial de US$ 77,9 bilhões, segundo números do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC). Neste ano, de janeiro a abril, o comércio entre as duas nações somou US$ 21,7 bilhões. O Brasil é o principal parceiro comercial da China na América Latina e o oitavo destino das importações chinesas, com 2,6% de participação. Os acordos podem aumentar ainda mais a dependência do Brasil em relação à China, diz o professor de Economia da Universidade de Brasília (UnB) Jorge Saba Arbache. “Os chineses compraram bem menos do Brasil do que no ano passado. Corremos o risco de sair de uma situação de superávit comercial com a China para uma de déficit porque os preços das commodities [bens em estado bruto, sem processamento industrial] caíram. É uma relação extremamente assimétrica”, afirma. Como solução, ele defende não só a diversificação de parceiros comerciais, mas principalmente dos itens produzidos e exportados pelo Brasil. O MRE afirma que o Brasil vem diversificando suas parcerias econômicas e intensificando relações comerciais com países africanos, com as economias sul-americanas, com o EUA, e negociando o acordo Mercosul-União Europeia.
Matéria-prima x manufaturados A maioria dos itens enviados pelo Brasil à China (84,4%) é composta por produtos básicos. A soja aparece em primeiro lugar, seguida por mi-
nérios, combustíveis, pastas de madeira e açúcar. Já a China tem como base da sua venda para o Brasil produtos manufaturados, que ocupam quase a totalidade (98%) dos importados ao país. Os destaques ficam para máquinas, produtos químicos, plásticos, automóveis, vestuário e instrumentos de precisão. Os novos acordos, segundo o economista Rogério Faleiros, “reforçam a dependência brasileira em relação à exportação de bens primários. O fluxo que se estabelece me preocupa. No passado, o país ousou se arriscar na industrialização, mas nessa conjuntura volta a se concentrar na produção de commodities. Trata-se de uma reversão neocolonial. É um movimento cruel para a economia nacional, já que a participação da indústria no PIB é decadente”. Os produtos básicos chegaram a representar 48,7% da receita de exportação em 2014, a maior participação em cerca de 40 anos, segundo dados do MDIC. Já as vendas de manufaturados recuaram 13,7% em relação ao mesmo período de 2013 e somam 35,6% dos produtos exportados. Para Guilhon, a relação entre os dois países é desigual e o Brasil ten de a sair perdendo com os acordos. “Minério e petróleo podem ser substituídos com grande facilidade porque são commodities. A qualidade, definida internacionalmente, é a mesma em qualquer parte. O mesmo não acontece com o Brasil, já que depende da tecnologia e dos industrializados da China. Se o país não é capaz de competir nem internamente com os produtos de fora, quem dirá no mercado exterior”, critica. O MRE não vê incompatibilidade entre a exportação de commodities e o desenvolvimento industrial e tecnológico. “Grandes exportadores de produtos agrícolas, como os EUA, são também potências tecnológicas. Além disso, a agricultura é
hoje um setor intensivo em tecnologia: a alta produtividade agrícola brasileira é o resultado de pesados e contínuos investimentos em biotecnologia”, assinalou o Ministério. De acordo com o economista Rogério Faleiros, os acordos também tornam a economia do país vulnerável ao preço internacional das commodities, que vem caindo nos últimos anos. “Na década passada, o preço foi ascendente, mas a tendência se reverteu. Por isso e não só, o país teve vários problemas de déficit público e fiscal”, afirma. O preço internacional da soja, item cuja participação corresponde a 40,9% nas exportações brasileiras para a China em 2014, caiu 35,5% em abril deste ano, em comparação com abril do ano passado, segundo o Índice de Preços Alimentos Fiesp-Deagro (Departamento do Agronegócio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo). Já o minério de ferro, segundo item mais exportado pelo Brasil aos chineses, acumula perda de 58,5% em valor no mercado internacional em um ano. Somente em 2015, a depreciação foi de 31,49%. Segundo previsões, o preço atual de US$ 48,82 deve cair ainda mais. O Citigroup cortou as projeções para US$ 30 a tonelada até 2020.
Obras de infraestrutura A demanda por bens agrícolas e outras commodities é crescente na China, na medida em que a sua gigantesca população de 1,3 bilhão de habitantes, um sétimo da população mundial, tem se urbanizado gradativamente nos últimos anos. Em 1980, a população rural chinesa compunha 80% do total. Em 2010, os dois grupos se igualaram e, dois anos mais tarde, pela primeira vez na história chinesa, os habitantes das cidades superaram Cidade Nova • Julho 2015 • nº 7
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internacional os do campo. A renda per capita da China também aumentou, chegando à casa dos US$ 7 mil em 2011 e gerando uma grande quantidade de consumidores em potencial. “O consumo urbano é diferente do rural. A busca por produtos e mercadorias novas é crescente, assim como a pressão chinesa pela apropriação de minério de ferro e bens primários produzidos em outros lugares do mundo”, exemplifica Faleiros. Para atender a essa grande demanda, a ferrovia transoceânica, que pretende ligar o Brasil ao Oceano Pacífico, passando pelo Peru, é uma das obras mais ousadas de infraestrutura previstas no acordo, para possibilitar o envio de produtos primários do território brasileiro e latino-americano à China. Mas a construção da ferrovia é considerada remota. Está previsto um estudo de viabilidade da obra, ainda sem valor definido, a ser realizado pelos chineses. O documento com as conclusões deve ser apresentado até maio de 2016. Segundo Faleiros, as dificuldades técnicas para a realização da obra são “tremendas”, pois seria necessário atravessar os Andes, a floresta amazônica e o Pantanal. O especialista também questiona se a maneira de realização da obra será benéfica para o Brasil. “Esse know-how será compartilhado ou seremos país hospedeiro de uma tecnologia completamente estranha?”, indaga. O economista José Guilhon ressalta a tendência de a obra beneficiar principalmente o país asiático. “Se a China conseguir realizar o projeto, estará exportando materiaisde construção, mão de obra técnica e engenharia”, diz. Em resposta à reportagem, o MRE declarou que a infraestrutura resultante do investimento chinês já é, em si, um ganho para o Brasil. “A China tem feito investimentos 30
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de alta tecnologia no Brasil. Esses investimentos seguem as leis brasileiras em termos de participação de capital nacional; contratação de mão de obra brasileira e utilização de fornecedores brasileiros.” De acordo com Saba, a construção de rodovias, portos e ferrovias pode ajudar a ativar a nossa economia em recessão, mas é importante manter os investimentos em longo prazo. “No curto prazo, se o dinheiro for utilizado na totalidade, trará beneficio, porque tem entrada de dólar. Precisa saber se isso para em pé no longo prazo. O ultra curto prazismo já deu inúmeras provas de que não é a solução. Não podemos repetir nossos erros”, ressalta. “Do ponto de vista politico é importante a China aparecer como um país que traz benefícios para a América Latina e para o principal país da região, além de dar a imagem de que está ganhando terreno no quintal dos Estados Unidos”, afirma Guilhon. Junto com o canal da Nicarágua, também sob responsabilidade das companhias chinesas, a criação da ferrovia será uma alternativa ao canal do Panamá, que tem forte influência do governo norte-americano. De acordo com Faleiros, os investimentos consolidam uma mudança geopolítica que vem sendo traçada ao longo dos anos. “Brasil, Argentina, Peru e Paraguai estão na alça de mira dos investimentos chineses e isso coloca questões geopolíticas mais amplas. A histórica predominância norte-americana estabelecida no continente tem sido de alguma maneira contestada com essa aproximação com o governo chinês. O que esses investimentos evidenciam é um processo que já está em curso há pelo menos uma década”, afirma. Segundo o MRE, a ferrovia é apenas uma alternativa e não significa necessariamente uma perda de terreno aos Estados Unidos na relação
com a América Latina. “Pelo contrário, a ferrovia poderá inclusive beneficiar investimentos americanos no Brasil e na América do Sul.”
Projeto para o país Segundo Saba e Faleiros, os acordos são positivos, mas ressaltam nossas mazelas sociais e econômicas, daí a necessidade de buscar um caminho próprio para que o Brasil tire o melhor das negociações e dos investimentos chineses. A experiência da China na Zâmbia deve servir de alerta, segundo Faleiros. “Os chineses transferem para o país toda a cadeia produtiva. Os trabalhadores geralmente não são africanos, mas chineses e de outros lugares da Ásia, o que perpetua o ciclo de pobreza agravado pela degradação ambiental que a extração de minérios provoca”, exemplifica. O economista também destaca a necessidade de que o país tenha uma política mais ativa e trace um projeto nacional claro. “Esses acordos têm potencial para completar as cadeias produtivas no nosso país? O projeto que temos é caminhar cada vez mais em direção às commodities ou assimilar tecnologia, empreender know how e realizar pesquisas em conjunto com a China?” E alfineta: “Quem vai bolar projetos para que eles tenham efeitos multiplicadores e desenvolvam a tecnologia no Brasil? Eu não vejo ninguém: nem empresários nem políticos”. De acordo com o Itamaraty, o governo se preocupa em garantir que a parceria tenha resultados equilibrados e promova o máximo de desenvolvimento para a economia brasileira. “O Ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão criou mecanismos de estudo e coordenação das oportunidades de investimento em estudo com a China”, afirmou o órgão em resposta à Cidade Nova.