Exemplar 609 Ano LIX Nยบ 1 Janeiro de 2017 www.cidadenova.org.br
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Cidades inovadoras
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URBANIZAÇÃO Cidade Nova foi a Quito e a Medellín para conhecer projetos de transporte e espaço públicos que mudaram o cotidiano de cidadãs e cidadãos em municípios de todo o mundo
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após o projeto. A escada não ajuda apenas na locomoção dos moradores pelas subidas inclinadas, mas também atrai turistas, movimenta a economia local, melhora a segurança e incentiva o embelezamento ao redor, com muros grafitados, áreas verdes e bibliotecas. O projeto é apenas um dos exemplos de investimento no espaço público em Medellín. A cidade, onde um cartel de drogas foi fundado nos anos 1970 pelo famoso narcotraficante Pablo Escobar, protagonizou uma mudança substancial: passou de um lugar associado a guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), que controlavam as comunas, a um
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passaria a “escalera eléctrica” da Comuna 13, espécie de favela de Medellín, no norte da Colômbia. Depois disso, houve a desapropriação de casas para dar início à obra. “Em 2011, eles realmente terminaram de construir. Ainda é difícil acreditar. Parece um sonho”, afirma Holgin. Antes da obra, alguns dos mais de 100 mil moradores eram obrigados a subir até 350 degraus de concreto após passar o dia trabalhando no centro da cidade. As escadas tiveram um custo de mais de 10 bilhões de pesos colombianos, equivalente a R$ 11 milhões. A Comuna 13, anteriormente um dos bairros mais violentos do município colombiano, mudou de cara
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uando ouviu pela primeira vez a proposta de construir uma escada rolante nas ladeiras da comunidade onde vive, Miriam Holgin não podia acreditar. “No fim dos anos 1990, a associação de moradores era questionada pelo poder público se queria a construção de uma estrada ou da escada. A gente dizia: ‘queremos escada’, e todos riam, parecia piada”, relembra a dona de casa, hoje aos 60 anos. A ficha só começou a cair quando apareceram os primeiros geólogos para analisar o terreno por onde
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unicípio urbanisticamente planem jado tambémpara os mais pobres. Apontada como uma das cidades mais inovadoras do mundo, Medellín foi citada como exemplo durante a Conferência Habitat III promovida pela ONU em Quito, capital do Equador. O evento, que acontece a cada 20 anos, reuniu especialistas, gestores públicos, líderes de comunidades locais, empreendedores e curiosos de todo o mundo em mais de 700 mesas de debate sobre questões e soluções urbanas em outubro de 2016. 50 mil pessoas se inscreveram para participar da conferência, demonstrando o forte interesse despertado pelo tema. Cidade Nova esteve em Quito e Medellín e traz a seus leitores projetos urbanos para inspirar o incremento da qualidade de vida e ajudar na resolução de problemas comuns às nossas cidades neste ano que se inicia.
Espaço público Estima-se que, em 2050, 70% da população mundial viverá em cidades. Com a concentração cada vez maior de habitantes, cresce a busca por soluções aos inúmeros problemas urbanos. Diante dessa urgência, a ONU criou a Nova Agenda Urbana para orientar ações públicas nos municípios nos próximos 20 anos. Apresentado durante a Habitat III e fruto de dois anos de debates com atores urbanos do governo, da sociedade civil e do setor privado, o documento propõe um debate aprofundado sobre questões urbanas. A agenda se baseia em três princípios: não deixar ninguém para trás, economias urbanas sustentáveis e inclusivas e sustentabilidade ambiental. Nesse contexto, um dos temas mais importantes é o estímulo a espaços públicos ativos. O documento estabelece a meta de que 50% do terreno urbano deve ser composto por 22
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ruas e espaço público, sendo 30% para ruas e calçadas e entre 15% e 20% para espaços abertos, zonas verdes e equipamentos públicos.
Academias ao ar livre Em Medellín, áreas vazias sob os viadutos e entre vias com grande circulação de carros receberam academias ao ar livre. Os equipamentos de ginástica estimulam a prática de exercício entre os cidadãos, além de manter o espaço público ocupado, iluminado e, portanto, mais seguro. A iniciativa partiu dos próprios cidadãos, com a construção de apa relhos de ginástica improvisados em espaços públicos próximos a quadras de futebol na periferia. Acolhendo a ideia, o Departamento de Esportes e Recreação de Medellín (Inder) expandiu o projeto. Hoje são mais de 100 academias espalhadas pela cidade e está prevista a construção de mais 24 unidades. Edinson Sanchez, de 38 anos, nunca havia pisado em uma sala de ginástica, mas começou a praticar exercícios ao ar livre há três meses, quando uma nova academia foi aberta perto de seu trabalho e de sua casa, na zona sul da cidade. “Chego para praticar à noite, antes de ir trabalhar como vigilante em um prédio, e me sinto com mais energia e mais motivado”, diz. Além da saúde, ele ressalta a importância da gratuidade do projeto e a interação social inerente a ele. Esse é apenas um dos muitos projetos de Medellín para o espaço público, que abarca 15% do total do território total da cidade – percentual, no entanto, ainda muito inferior à meta de 50% estabelecida pela Nova Agenda Urbana.
Teleféricos Um dos grandes problemas das grandes cidades brasileiras é o tem-
po de deslocamento entre a casa e o trabalho. Moradores de oito capitais gastam pelo menos duas horas para ir e voltar do emprego, segundo estudo da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan). A situação mais crítica é a do Rio, onde 2,8 milhões de pessoas perdem, em média, duas horas e 21 minutos todos os dias. Na periferia, o tempo perdido para ir e vir tende a ser ainda maior. Em Medellín, onde as áreas mais pobres estão em morros afastados do centro, foram construídos teleféricos para interligar a periferia à linha de metrô, diminuindo o tempo de viagem. Se antes os moradores levavam uma hora e meia para subir o morro de ônibus, com os chamados Metrocables tardam apenas 20 minutos. A primeira linha abriu suas portas em 2004 e foi rapidamente seguida por outras duas. O Metrocable tem quase dez quilômetros de extensão, atende a pelo menos quatro comunidades e a um total de 45 mil passageiros por dia. Outras duas linhas com três estações cada estão em construção. De acordo com usuários ouvidos pela reportagem, o transporte é seguro, ambientalmente correto, valoriza as áreas pelas quais passa com a construção de parques, bibliotecas
lecem sobre as necessidades básicas das pessoas”, critica.
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Quem ganha com a valorização?
e realização de atividades culturais, além de facilitar o acesso dos mais pobres aos serviços e às oportunidades do centro da cidade. No Brasil, o projeto inspirou o teleférico do Morro do Alemão, integrado à malha ferroviária. Com seis estações, muita publicidade e R$ 200 milhões de custo – seis vezes mais que os R$ 33 milhões gastos na linha L do Metrocable de Me dellín –, o transporte não deslanchou e se encontra inoperante. Entre os motivos está o desinteresse de empresas, que consideram o negócio pouco lucrativo. Há também o receio da própria população e de turistas, temerosos com os constantes tiroteios na comunidade, que, apesar de ter recebido Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), continua sofrendo com a violência policial e do narcotráfico.
Desigualdades que persistem De 2004 a 2011, Medellín apresentou um acréscimo de 6,22 pontos percentuais no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), alcançando 86,32. Em San Javier, bairro onde está a Comuna 13, a variação foi de aproximadamente 4 pontos percen-
tuais no mesmo período. Apesar das obras inovadoras, há muito a ser feito pelo poder público na periferia da cidade, onde os índices de pobreza são altos e o acesso a serviços básicos ainda não foi universalizado. Segundo Censo de 2005, 4,6% dos habitantes de San Javier não possuem acesso à água, 5,4% não têm rede de esgoto enquanto 2,1% seguem sem energia elétrica. Em Medellín, o Coeficiente Gini – índice de 0 a 1 que mede a desigualdade de renda – diminuiu 1,7% de 2002 a 2010, mas não baixou dos 0,5, o que a prefeitura admite ser um nível de desigualdade alto (quanto mais próximo de zero, menor a desigualdade). O município ainda apresenta o maior nível de disparidade econômica entre as principais cidades da Colômbia. Para a arquiteta Gabriela Navas, pesquisadora de consequências sociais de reformas urbanas em Guayaquil, no Equador, e em Barcelona, na Espanha, trata-se da triste e velha história latino-americana. “Em vez de investir em serviço público, parte da eterna dívida dos gestores latino-americanos, a prioridade é valorizar o preço do solo para favorecer o mercado imobiliário e inserir as cidades no turismo internacional. São os interesses econômicos que preva-
O investimento no espaço público aumenta o valor do solo e do custo de bens e serviços em lugares próximos. Isso afasta a população de baixa renda das áreas melhoradas e beneficia grandes imobiliárias e construtoras, um fenômeno conhecido como gentrificação. Para diminuir as desigualdades geradas e devolver ao Estado os investimentos que ele próprio aplicou, uma das soluções encontradas pela gestão pública de alguns países foi cobrar mais impostos dos setores que se beneficiam com essa valorização. A taxa tem como objetivo captar o valor agregado pelo investimento público e destiná-lo a áreas sociais nas zonas onde ocorreu a valorização, financiando a expansão da cidade e garantindo a manutenção de obras já concluídas. Na Colômbia, as cidades captam entre 30% e 50% do aumento do valor do solo procedente do investimento público, o que serve para cobrir as despesas de projetos públicos. Durante a Habitat III, o presidente do Equador, Rafael Correa, anunciou que seu país seguirá o exemplo colombiano. No Brasil, a Constituição estabeleceu o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) progressivo, no qual o imposto pode ser uma espécie de punição por descumprimento da função social da propriedade. Ou seja, se proprietário não usar ou subutilizar a propriedade, está sujeito a pagar valores maiores de IPTU ao longo do tempo. O aumento do valor pode forçá-lo a abrir mão do imóvel ao qual o poder público deveria atribuir uma efetiva função social. Cidade Nova • Janeiro 2017 • nº 1
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No entanto, diferente da modalidade adotada na Colômbia, o destino da arrecadação do IPTU no Brasil não é vinculado à finalidade de investir no espaço público e pode ser aplicado em qualquer área pelo município.
Informação é poder De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), quase 828 milhões de pessoas vivem em favelas, número correspondente a um terço da população urbana mundial. O continente africano, que passa pela mais rápida urbanização em curso atualmente, é o que mais sofre com a falta de planejamento urbano e com os assentamentos informais. As favelas na África representam mais de 60% de sua população urbana, em um total de 199,5 milhões de pessoas. Essas áreas concentram a maior parte da população economicamente ativa, portanto o investimento na melhoria dos assentamentos informais é importante não apenas ao progresso social do país, como também ao seu desenvolvimento econômico. Para incentivar políticas públicas mais efetivas nos assentamentos informais da África do Sul foi criado o Know Your City (Conheça Sua Cidade, em português). Iniciativa conjunta de diversas ONGs, o projeto se baseia na coleta de dados sobre as favelas sul-africanas por seus próprios habitantes. “O governo trabalha com estimativas que não refletem a realidade das comunidades. Quando nós mesmos fazemos, é mais preciso”, disse Rose Molokoane, líder da Slum Dwellers International (SDI ou População Internacional de Favelas, em tradução livre), entidade que coordena o projeto. “A informação é poderosa e valiosa. Se você decidir por mim, vou cruzar meus braços e não vou dar a informação que cole24
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FRAGMENTOS DE FRATERNIDADE
Projeto OnCity É no espaço da cidade que se podem criar iniciativas para favorecer a relação da fraternidade entre as pessoas. Esta é uma das premissas centrais que levaram três agências ligadas ao Movimento dos Focolares – Humanidade Nova, Jovens por um Mundo Unido e Associação Mundo Unido (AMU) – a realizarem, em 2016, em Roma, o Congresso OnCity. O evento serviu de ponto de partida para a elaboração de projetos a serem realizados ao redor do mundo nos mais diversos âmbitos, tendo em vista o surgimento de espaços de cidadania nas cidades. Para saber mais: http://www.unitedworldproject. org/it/notizie/1147-programma-oncity.html (versões em italiano e inglês; há alguns documentos em português). Luís Henrique Marques
tamos”, afirmou. “Nós vamos entrar nos seus escritórios com nossas roupas sujas. Sabemos o que queremos e como.” Segundo ela, a participação das mulheres é central no programa. Como a maioria é dona de casa, elas participam mais na comunidade, além de serem as grandes gestoras dos gastos familiares, explica Rose.
Mulheres à margem Em um mundo no qual 78% dos parlamentares são homens – segundo dados da Inter-Parliamentarian Union (IPU) –, a construção de cidades que levem as mulheres em conta é escassa. Para dar voz a elas e estimular ambientes mais seguros e equitativos, a pesquisadora indiana Kalpana Viswanath desenvolveu o aplicativo Safetippin (Supporting Safer Cities ou Apoiando Cidades Seguras, em português). “Mulheres e homens usam o transporte público de forma diferente. Elas passam o dia na rua resolvendo coisas e tomam um maior número de viagens curtas”, exemplificou Viswanath, durante o Habitat III. O aplicativo se baseia em nove parâmetros, como iluminação, infraes-
trutura e sensação de segurança, para mapear transporte e espaço públicos. O objetivo é influenciar a execução de políticas públicas a partir de informações fornecidas pelos usuários. Atualmente, o app é utilizado em 30 cidades por 50 mil pessoas. Em Délhi, na Índia, onde o transporte público é o quarto mais inseguro do mundo para as mulheres, de acordo com dados da Reuters, os ônibus passaram a parar em qualquer lugar durante a noite, período no qual o aplicativo revelou que elas se sentem mais inseguras. As informações do app também foram usadas para identificar áreas escuras nas proximidades de estações de metrô e melhorar a iluminação. Segundo a UN Women (ONU Mulheres), os aplicativos são uma alternativa importante pelo anonimato dos dados gerados, tendo em vista que as mulheres ainda temem denunciar abuso formalmente à polícia. A organização, no entanto, ressalta a dificuldade de universalizar os dados, já que grande parte da população mundial ainda não possui acesso a smartphones e o wifi livre não é uma realidade em espaços e transportes públicos das cidades pelo mundo.