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Dinheiro virtual ECONOMIA Moedas digitais, como o Bitcoin, ainda têm aceitação restrita no comércio, mas sua inovadora tecnologia promete mudar o jeito como cidadãos e bancos lidam com o dinheiro

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ma moeda que não é de metal ou de papel, nem pode ser usada como cartão de débito ou crédito. Restrita a investidores e aceita em poucos locais do comércio comum, essa forma de pagamento pode não ser muito popular, mas sua tecnologia deve mudar a maneira como lidamos com o dinheiro.

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Cidade Nova • Fevereiro 2017 • nº 2

Conhecidas como moedas virtuais ou digitais, elas são geradas por usuários através da resolução de problemas matemáticos em seus computadores durante horas a fio. A moeda não é controlada por nenhuma instituição financeira ou governo. São os próprios usuários os responsáveis por gerenciar o sistema.

Para seus defensores, a falta­ de controle por órgãos oficiais é a grande vantagem desse tipo de moeda. A liberdade de gerenciar ajudaria a fugir de crises econômicas. Já os críticos do sistema entendem que a ausência de regulação clássica representa riscos aos investidores e pode estimu­lar crimes. No entanto, há um ponto pacífico: as moedas virtuais vão influenciar o modo de comprar e o próprio sistema financeiro corrente, que terá de se adaptar às novidades tecnológicas. Cidade Nova conversou com especialistas para explicar melhor o que são essas moedas e a mudança que elas podem representar no futuro.


O que são?

Falta de controle Ao contrário de moedas nacionais correntes, as virtuais são manejadas pelo método “peer-to-peer”, ou seja, de pessoa a pessoa, sem intermediários. Colaborativa e livre do controle de um Banco Central, a moeda digital pode ser entendida como uma resposta à crise financeira global e à desconfiança em relação a instituições financeiras. A falta de controle é, para alguns, o grande argumento contra do Bitcoin, mas é justamente seu ponto positivo para os que o apoiam. Thiago Cesar, CEO do Bit.One, uma das empresas que operam a moeda no Brasil, lembra que a existência de Bancos Centrais é um fenômeno recente na história humana, coincide com a expansão do Estado moderno. Já as moedas digitais remeteriam ao passado, funcionando como o ouro ou a prata. De acordo com essa visão, a dificuldade de resolver problemas matemáticos para gerar bitcoins, na ação conhecida como mineração, seria a mesma da mineração real, cuja escassez e dificuldade conferiu valor aos metais preciosos durante milênios. “Não é absurdo pensarmos no Bitcoin como o ‘ouro’ digital, já que as proprie­ Creative Commons

As moedas virtuais integram um sistema cujas transações usam códigos criptografados para garantir confidencialidade. As informações encriptadas são armazenadas em uma carteira eletrônica ou no computador de seu dono e podem ser intercambiadas usando uma rede de informação coletiva, onde se verifica a autenticidade das operações. Esse sistema é conhecido como “Blockchain” e é uma de suas inovações mais interessantes. Há diversos tipos de moeda, mas a mais conhecida e utilizada é o

tencialmente inseguros, o que pode não ser interessante para o cidadão comum nem ao próprio investidor. No Brasil, com altos impostos para adquirir tecnologia, além de elevados custos de banda larga e de energia elétrica, a operação é vista por alguns como desfavorável. O que se gasta para gerar um Bitcoin no país pode superar o valor em que ele está cotado – cerca de R$ 2.500.

­ itcoin. Ativo desde 2009, o Bitcoin B foi concebido por agentes privados que permanecem anônimos até hoje. Eles são criados à medida que as pessoas colocam seus computadores à disposição do sistema para a criação de novos algoritmos, sendo remuneradas por isso. A criação de moedas digitais, porém, é restrita. É necessário ter um computador potente e gastar muita energia elétrica para isso, o que limita sua popularização. “O investimento para se minerar BitCoins é cada vez maior e sua usabilidade não é tão amigável ainda”, explicar Victor Haikal, advogado especialista em Direito Digital e Segurança Cibernética. Para o especialista, isso implica investimentos ruins a curto e médio prazo, além de po-

dades que conferem valor ao metal são emuladas no âmbito computacional”, afirma o empreendedor. Dessa maneira, as operações com Bitcoin seriam mais seguras e “reais” que as realizadas com a moeda de papel. Isso porque hoje basta a assinatura do banqueiro central para “garantir” o valor e a circulação da moeda de acordo com o valor nela impresso, enquanto antes a moeda em papel era lastreada e conversível em metais, argumenta Cesar. O empreendedor explica que o antigo sistema impunha limites ao controle monetário por parte de governos, que não podiam se endividar muito além de suas reservas metálicas. “As moedas digitais, principalmente o Bitcoin, trazem um novo paradigma macroeconômico, já que representam um sistema financeiro próprio que substitui a autoridade central, os pontos únicos de falha e humanos corruptíveis por matemática, criptografia e incentivos econômicos.” Para ele, em um cenário onde moedas digitais passem a se posicionar como meio circulante preferido pelos indivíduos, haverá ruptura no modelo estatal de controle sobre o sistema financeiro e distribuição do poder. “A mudança significaria algum tipo de ruptura na própria concepção de controle estatal sobre a economia, tanto do ponto de vista da aceitação de moedas digitais para pagamento de impostos, por exemplo, como a livre concorrência das moedas estatais com as moedas digitais”, afirma. O professor do Instituto de Economia da Unicamp Antonio Carlos Macedo e Silva critica a visão segundo a qual o Estado representa uma indesejável concentração de poder. “Pessoalmente, não tenho nenhuma simpatia por essa utopia – que acho equivocada e inexequível”, afirma. “Como se diz nos Estados Unidos, as únicas coisas certas no Cidade Nova • Fevereiro 2017 • nº 2

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Riscos Para Haikal, outro ponto contrário ao novo sistema seria sua vulnerabilidade a ações criminosas estimuladas pelo anonimato garantido pelo Blockchain. “Alguns ataques já foram bem-sucedidos em múltiplas transações com BitCoin”, afirma. “A dificuldade na rastreabilidade dos valores fomenta insegurança jurí­ dica, especialmente porque há transações em BitCoins ligadas a atividades ilícitas praticadas na Deep Web e em comunidades voltadas para experts em computação.” O Bitcoin pode ser usado para fins ilegais, como comércio de armas, droga, pornografia infantil, lavagem de dinheiro e evasão fiscal. “Isso se deve ao fato de que as transações são feitas de forma anônima, sendo muito difícil rastrear movimentações de qualquer indivíduo em particular”, explica. Segundo uma pesquisa da Southern Methodist University, nos Estados Unidos, 41 golpes ocorreram com o uso de moedas digitais entre 2011 e 2014, totalizando um prejuí­ zo estimado em US$ 11 milhões. Segundo seus críticos, o anonimato proporcionado pela moeda também facilitaria o financiamento do terrorismo, o que preocupa governos europeus e dos EUA. Outro fator que pesa contra a moeda é sua volatilidade. Desde que os Bitcoins foram lançados pela primeira vez, seu preço passou de apenas alguns centavos de dólar a várias centenas da moeda americana. Enquanto, em 2014, o preço caiu 32

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em 60%, de 2015 a 2016, o Bitcoin teve valorização de 133% e tem se mantido em alta, estabelecendo-se em US$ 800 em janeiro de 2017.

Mais rápido e seguro Apesar de ser criticado pelo anonimato que proporciona, o Block­ chain desperta grande interesse e sua tecnologia pode influenciar mudanças no sistema financeiro em todo o mundo. Com a função de guardar todas as transações ocorridas na rede, podendo ser acessado publicamente, o Blockchain é um mecanismo de auditoria distribuída na ausência de

“A falta de controle é, para alguns, o grande argumento contra do Bitcoin, mas é justamente seu ponto positivo para os que o apoiam” uma autoridade central. Esse processo supriria deficiências das instituições tradicionais, como custo e tempo de operação. Atualmente, é necessário pagar taxas de até R$ 200 e esperar, em média, quatro dias para concluir uma transferência internacional. Com a nova tecnologia, estima-se uma redução de 40% no preço da operação, que, além disso, passaria a durar apenas uma hora.

Uso massivo De acordo com Silva, as moedas virtuais de circulação mais ampla têm, sim, crescido rapidamente. Porém, representam ainda uma massa de poder de compra bastante pequena. Segundo o site Coin Map, um

total de 9 mil serviços, empresas e profissionais aceitam a moeda em todo o mundo. No Brasil, são apenas 150, de acordo com o Mapa ­Bitcoin. Nas Filipinas e no Quênia já é possível fazer remessas e transferências de dinheiro via Bitcoin, aponta o FMI. O órgão estima o valor total de mercado das moedas virtuais em US$ 7 bilhões, enquanto as moedas e cédulas comuns em circulação, além de dinheiro em conta corrente, somam US$ 12 bilhões. Mesmo desejando a expansão da moeda, Cesar também é cético quanto à sua massificação. “O ­ Bitcoin continuará sendo um ativo de nicho para indivíduos que querem diversificar seus investimentos, proteger-se de más políticas econômicas ou internacionalizar suas finanças, mas ainda não vejo o Bitcoin como meio circulante mainstream”, opina. “Acredito que uma adoção massiva só viria com uma eventual ruptura total do sistema financeiro tradicional. Quem sabe nos próximos cem anos, quando a fé no aparato estatal como regulador seja substituída por desempenho e usabilidade superiores da tecnologia”, aposta. Para o empresário, entre os entraves para a expansão estão as barreiras técnicas, a volatilidade de preço e a ausência do aparato estatal para oferecer garantias, além do costume de clientes de ter bancos gerenciando suas contas. “O ganho em liberdade vem acompanhado do aumento de responsabilidade sobre o próprio dinheiro.” O Bitcoin não é uma moeda de uso massivo e talvez não chegue a se tornar, mas será possível num futuro próximo realizar um pagamento ou um depósito usando sua tecnologia sem sequer notar. É importante estar atento às mudanças e disposto a ter mais responsabilidade sobre suas finanças para não ser pego de surpresa.


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