É preciso ocupar o medo

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Brasil

É preciso ocupar o medo

Marcos Santos | USP Imagens

martina cavalcanti revista@cidadenova.org.br Um país sob o olhar da fraternidade

segurança Diante dos alarmantes índices de violência no país, a sensação de insegurança cresce a cada dia entre os brasileiros. Mas trancar-se em casa não vai resolver o problema e pode até piorá-lo

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ma semana após a rebelião no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, as ruas do centro da cidade estavam desertas em ple­ na sexta-feira à noite. “Antes era 4 da manhã e o samba ainda estava correndo solto. Agora todo mundo tem deixado de sair por medo”, me conta o garçom de um tradicional bar manaura. “Inclusive o dono do bar está fechando mais cedo, por­ que o negócio sofreu um arrastão na s­ emana passada.” Depois de procurar em vão por um lugar aberto, eu e meus amigos

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engolimos nossa vontade de sair para nos divertir. Voltamos ao hotel sem conhecer propriamente a vida noturna da região e alarmados pelo clima de insegurança. Essa é apenas uma dentre as mui­ tas mudanças de comportamento provocadas pelo medo da violência. É cada vez mais comum deixar de sair à noite, apertar o passo quan­ do um estranho se aproxima, evitar circular por certas ruas e bairros e até trocar de residência ou mudar os filhos de escola. Sete em cada dez brasileiros já tomaram algum desses cuidados,

deixando de aproveitar aspectos da cidade e da vida nos últimos três anos, segundo pesquisa da CNI (Confederação Nacional da Indús­ tria), publicada em março deste ano. Não é por menos. De acordo com o estudo encomendado ao Ibo­ pe, oito em cada dez cidadãos foram expostos a pelo menos uma situa­ ção causadora de insegurança, ape­ sar de um número inferior – quatro a cada dez – ter sido vítima direta de atos violentos. A criminalidade no 15° país mais violento do mundo assusta e, en­ quanto o medo nos une, este mes­


mo sentimento pode nos separar e deixar as ruas vazias serem domina­ das de vez pela violência. Segundo especialistas, a criação de uma polícia cidadã, uma rede de apoio entre vizinhos e a ocupa­ ção do espaço público, assim como estar aberto às surpresas da vida e ter coragem para lidar com eventuais ameaças, pode diminuir a sen­ sação de insegurança e nos desen­ carcerar do medo.

Fantasia x realidade Diversos estudos já demonstra­ ram que a sensação de insegurança supera as taxas de criminalidade real. Segundo pesquisa Datafolha em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a taxa de homicí­ dios no Brasil em 2016 caiu 2%, mas o medo de ser assassinado subiu e pre­ ocupa três entre quatro brasileiros­. “Mesmo que a violência aumen­ te, o medo é sempre maior”, afirma Najla Frattari, pesquisadora do Ne­ crivi (Núcleo de Estudos de Crimi­ nalidade e Violência), da Universi­ dade Federal de Goiás. Para ela, o medo é despertado não pelo que tem mais chance de acontecer, mas sim pelo que causa­ maior sensação de insegurança, como a falta de iluminação e a su­ jeira nas ruas. As histórias que cir­ culam no bairro, na escola e no tra­ balho, além dos crimes divulgados com sensacionalismo pela mídia, também contribuem para aumen­ tar a possibilidade da violência no imaginário das pessoas. O impacto social de um senti­ mento potencialmente tão violento quanto o próprio crime não deve ser subestimado. “Não se trata de uma fantasia coletiva”, sublinha Frattari. “O sentimento de insegurança tem respaldo na violência real, ainda mais no Brasil com altos índices de criminalidade.”

O país concentra 10% dos homi­ cídios no mundo e metade da Amé­ rica Latina e Caribe, de acordo com números do BID (Banco Interame­ ricano de Desenvolvimento). Com 279 mil mortes intencionais entre 2011 e 2015, a violência no Brasil superou a guerra na Síria, que re­ gistrou 256 mil mortos no período, segundo o Datafolha. Esse verdadeiro cenário de guer­ ra evidencia a aproximação cada vez maior entre a expectativa de insegurança e o perigo real, opina César Barreira, professor de Ciên­ ­ cias Sociais na Universidade Federal do Ceará, onde coordena o Labora­ tório de Estudos da Violência.

Alimentando desigualdades Baseada ou não na realidade, o fato é que a sensação de inseguran­ ça direciona as ações de indivíduos e do Estado. “O medo é uma sen­ sação poderosa, independente de índices, principalmente devido às suas consequências”, afirma Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP. Amedrontada, a população tende a cobrar das autoridades resultados imediatos contra a violência. Mesmo tendo a quarta maior população car­ cerária do mundo (dado do Minis­ tério da Justiça), 82% dos brasileiros culpam a impunidade como uma das principais causas da alta crimi­ nalidade, de acordo com o estudo da CNI. Para a grande maioria, deve ha­ ver uma política de tolerância zero (83%), redução da maioridade penal (85%) e penas mais rigorosas (75%). O resultado desses clamores é o recrudescimento da repressão contra os jovens negros ou pardos de baixa escolaridade – que já são 74,58% das vítimas de homicídio no país, segundo o BID –, alimen­ tando o ciclo vicioso da violência

sem que o problema seja efetiva­ mente resolvido.

Tá dominado O medo tem sido um dos princi­ pais arquitetos das capitais brasilei­ ras. “A cidade amedrontada começa a ser construída em bolhas nos anos 1980”, explica Bruno Manso. Grades, muros, cercas elétricas, condomínios fechados e shoppings são os princi­ pais elementos urbanos para evitar o espaço público e o convívio social. “A ideia da cidade como espaço de convívio e interação entre os diferen­ tes perde força e ela passa a ser espaço de medo”, descreve Najla Frattari. Além de ferir a liberdade de ir e vir, o abandono torna o espaço público ainda mais vulnerável à atuação de criminosos, que se apro­ priam dos ambientes esvaziados. “Quanto mais nos trancamos, mais ameaçador se torna tudo lá fora”, sentencia a especialista, que já presenciou ruas em Goiânia sen­ do fechadas por seus moradores com muros e portões.

Perdas e ganhos A violência, antes restrita a certos lugares da cidade, está cada vez mais difusa e, portanto, mais ameaçado­ ra, explica César Barreira, da Univer­ sidade Federal do Ceará. “As cidades vão perdendo lugares seguros. Ca­ sas, igrejas e universidades perderam a marca de segurança que já tiveram, sendo alvo de criminosos”, diz. Para diminuir a insegurança nos locais privados, torna-se comum a utilização de alarmes, portões eletrô­ nicos, câmeras de segurança, segu­ ros contra roubo e carros blindados. De acordo com o CNI, três em cada quatro pessoas gastaram dinheiro próprio para aumentar a segurança. No Brasil, o gasto com seguran­ ça privada (47,9%) supera o gasto Cidade Nova • Maio 2017 • nº 5

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­ úblico nesse quesito (36,1%). A dis­ p paridade evidencia a insuficiência do serviço de segurança prestado pelo governo, segundo as famílias brasileiras. Sustentadas pelo medo, as em­ presas de segurança são cada vez mais numerosas e obtêm lucros crescentes, mesmo em tempos de crise. Entre 2014 e 2015, a Fenavist (Federação Nacional de Empresas de Segurança Privada e Transporte de Valores) registrou crescimento de 8,6% do setor. Na contramão do mercado de automóveis comuns, o setor de blindados cresceu 21% em 2013, se­ gundo a Abrablin (Associação Bra­ sileira de Blindados). Com 120 mil veículos blindados, o Brasil possui a maior frota desse tipo no mundo.

Cuidar da saúde No entanto, o medo não é só vi­ lão. Antes de ser uma das grandes preocupações contemporâneas, esse sentimento teve papel fundamental na sobrevivência humana. Acelera­ ção cardíaca, respiratória e motora são formas naturais do corpo para se preparar para a fuga e é graças a isso que hoje estamos vivos para contar história. “O medo é uma resposta natural e fisiológica diante de uma ameaça, que pode ser real ou não”, explica Katerine Sonoda, doutora em Psico­ logia Clínica e Cultura pela Univer­ sidade de Brasília. O problema começa quando a sensação de insegurança torna-se exagerada ou constante, afetando negativamente a saúde. Ansiedade, pânico, depressão, transtorno de es­ tresse pós-traumático, baixa auto­ estima, desconfiança, hostilidade e distúrbios do desenvolvimento estão entre os principais sintomas. Engana-se quem pensa que essas doenças afetam apenas a vítima di­ 14

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reta do crime. Quem comete e assiste à violência também pode ser prejudi­ cado, segundo a psicóloga. Ainda as­ sim, a especialista pondera que cada história de vida é singular; portan­ to, nem todos têm a saúde psíquica alterada por uma situação violenta.

Sob controle Para lidar com o medo e com a própria violência, o conselho da psicóloga é se abrir às surpresas da vida, sejam elas boas ou ruins. “Es­ tar aberto a “ver o que não espera­ mos ver” pode ajudar a dar conta de eventos inesperados. E agir diante desses eventos”, afirma. Interiorizar a capacidade de diri­ gir a própria vida também é impor­ tante para se proteger. “Diante de ameaças perigosas, as pessoas que mantém o sentido de autonomia e pensam que dominam razoavel­ mente suas circunstâncias, respon­ dem com mais coragem, resistem melhor e enfrentam mais eficaz­ mente a adversidade do que quem sente que não controla os eventos que os afetam – ou que suas decisões não contam – e põem suas esperan­ ças em poderes alheios”, afirma. O Estado também tem sua res­ ponsabilidade nessa história. “Para tratar e cuidar das vítimas que fo­ ram expostas à violência e desenvol­ veram problemas de saúde também são necessárias políticas públicas que proporcionem ajuda médica e psico­ lógica imediatas”, sugere Sonoda.

Políticas públicas Ninguém dava muita bola para a sensação de insegurança até que meio século atrás essa história come­ çou a mudar e surgiram estudos e po­ líticas públicas nesse sentido. Hoje, a valorização e a ocupação do espaço público são reconhecidas como as melhores respostas ao temor.

Em Medellín, na Colômbia, lu­ gares classificados como perigosos passaram a receber serviços públi­ cos para atrair os cidadãos e afastar o medo. “Instalou-se não só ilu­ minação, mas praças, bibliotecas e museus”, enumera Cesár Barreira, da Universidade Federal do Ceará. Para resolver a desconfiança em relação aos policiais e ao sistema pú­ blico de segurança, os especialistas recomendam concentrar o controle da violência na Justiça e na investi­ gação policial – não na repressão e na justiça com as próprias mãos –, além da cooperação entre agentes de segurança e a sociedade. “É necessário ter uma polícia que conviva com as pessoas e possa re­ ceber delas informações para inves­ tigar”, argumenta Bruno Manso, da USP. “Ao invés de fazer policiamen­ to ostensivo, a ação deve ser focada para investigar toda a cadeia do cri­ me e punir os responsáveis”, sugere. Medidas como essas transformam em realidade a sensação de seguran­ ça e já ajudaram a reduzir o índice de homicídios em São Paulo e em Belo Horizonte. “Como as pessoas estão mais presentes na localidade, agora mais agradável de se estar, os crimi­ nosos se afastam”, afirma a goiana Najla Frattari. “Criar uma rede de proteção entre vizinhos e conhecer os policiais locais também aumenta a sensação de tranquilidade.” Mas somente a efetiva queda de casos de violência deverá diminuir o medo patológico enfrentado pela sociedade brasileira. Nesse contexto, políticas de educação e cultura con­ tra a desigualdade social são essen­ ciais, defende a antropóloga Miche­ line de Oliveira, professora de Gestão em Políticas Públicas na Universida­ de do Vale do Itajaí. “Ainda estamos muito longe dessa realidade, mas políticas sociais que levam em conta a capacidade das culturas locais po­ dem ser o caminho”, aposta.


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