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Milhares de anos de civilização foram arruinados pelos combates em Homs, na Síria
ORIENTE MÉDIO A Síria busca negociar com os rebeldes o fim da guerra civil, mas eles já não são os únicos personagens envolvidos nesse conflito, que se torna cada vez mais complexo e de difícil resolução
O
ano começou com uma tarefa difícil para a comunidade internacional: negociar a paz na Síria. Para acabar com a guerra civil que devastou o país nos últimos seis anos, governo e opositores se reuniram em janeiro, no Cazaquistão. O encontro foi mediado por Rússia e Irã, os principais suportes do regime de Bashar al-Assad, e Turquia, apoio dos rebeldes. As negociações ocorrem em um novo contexto esboçado nos últimos meses, após a decisiva intervenção militar russa em apoio a Assad
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e a surpreendente vitória de Donald Trump, cuja condução da política externa ainda é desconhecida. No encontro, consolidou-se o acordo de cessar-fogo assinado em 30 de dezembro entre governo e rebeldes. No entanto, com a diversidade de atores envolvidos no conflito, além da ausência do Estado Islâmico nas negociações, a paz ainda parece distante. Cidade Nova conversou com especialistas para entender como essas novas forças devem interferir no conflito e quais são as reais perspectivas de paz no país.
Diversos atores em jogo Um dos motivos do impasse na Síria é não haver apenas dois lados, senão vários atores em guerra. Como cada um tem sua agenda própria e interesses particulares, o conflito se torna ainda mais complexo. Apenas entre os opositores, é estimada a existência de mil grupos distintos. Entre eles, estão os rebeldes que lutam contra o Exército sírio e a liderança de Assad, além dos partidos políticos que responsabilizam o presidente por fraudar eleições para
© UNHCR | Qusai Alazroni
Em busca de paz
manter o poder em suas mãos. “Há ainda políticos moderados, ex-integrantes das forças armadas, membros da Al Qaeda…”, complementa Paulo Wrobel, professor de Relações Internacionais da PUC-Rio. Para o especialista, a fragmentação da oposição em vários grupos a enfraquece diante do regime sírio, além de criar um impasse nas negociações de paz. “Não há um interlocutor, mas centenas. Para o processo de negociação é difícil porque esse processo implicaria que as partes se reconhecessem e se aceitassem”, diz. O recuo dos rebeldes após a perda de territórios na Síria possibilitou a assinatura do acordo de cessar-fogo e a realização da reunião com o governo, mas a paz efetiva ainda estaria distante. “A intervenção russa não é suficiente para levar a médio e curto prazo a uma vitória militar de Assad sobre os rebeldes”, sentencia Wrobel. Pio Penna Filho, professor de Relações Internacionais da UnB, concorda. “Não acredito que chegou o momento da paz”, diz. “Outras tentativas já aconteceram. O que diferencia esta é que os insurgentes, divididos em vários grupos, estão enfraquecidos.” “Os grupos rebeldes são muitos, com apoios diferenciados e posições muito diversas”, pontua Christian Lohbauer, membro do Grupo de Análise de Conjuntura Internacional, da USP. “O que os une é querer ver o fim do regime de Assad. E isso não ocorrerá enquanto a Rússia tiver Putin no comando.”
Os russos voltam com toda a força Aliado de Assad, o presidente russo Vladimir Putin tem tido um papel central na vitória do governo contra os rebeldes. Apesar de serem muitos, os opositores perderam força após a recuperação de Aleppo,
capital econômica e cidade mais populosa da Síria, em uma ação protagonizada por Moscou. “A Rússia é o ator externo mais importante no momento por sua presença militar. Sem ele, o governo Assad haveria caído”, opina professor Pio Penna. Segundo ele, o país cansou de ver os Estados Unidos e a União Europeia derrubando governos na região de acordo com seus interesses e quis fazer diferente na Síria. A relação amistosa entre os dois países não é de hoje. Wrobel relembra que a Rússia foi o principal fornecedor de armas da Síria durante a Guerra Fria e sustenta a oligarquia da família Assad há mais de quatro décadas. “O próprio fato da reunião ser no Cazaquistão, com a ausência de EUA e Arábia Saudita, já expõe o completo domínio russo da situação”, acrescenta João Fernando Finazzi, pesquisador do Grupo de Estudos em Conflitos Internacionais (Geci). O especialista também chama a atenção para outro grande ator internacional desse conflito, cujo papel se modificou ao longo da guerra. “A Turquia passou de uma fase em que apoiava assertivamente a saída de Assad para um esforço mais velado, embora continue apoiando grupos de oposição. Isso faz com que os turcos sejam os principais interlocutores da Rússia, principalmente no que tange os curdos e o Estado Islâmico”, define. “É bem provável que os dois grupos representem as principais preocupações ao longo das negociações.”
Fator Estado Islâmico Apesar de muito distintos, todos os atores envolvidos nesse conflito possuem algo em comum. Governo, opositores e os países citados combatem o grupo extremista Estado Islâmico. O EI (ou Isis) trava uma guerra
feroz contra todos os lados na tentativa de dissolver as fronteiras entre Síria e Iraque e construir seu próprio Estado – o primeiro jihadista em todo o mundo –, custe o que custar. “O EI é inimigo de todo mundo, não tem aliados”, resume Pio Penna. “Se as negociações de paz avançarem, até os insurgentes estariam lutando junto ao governo sírio contra o grupo”, vislumbra. Alheio a qualquer encontro diplomático e afeito à violência indiscriminada, o grupo não participou das negociações de paz e é uma das principais ameaças à sua conquista. “Quem ainda acha possível estabelecer diálogo com o Isis ainda não entendeu seus objetivos”, diz Lohbauer. “O que deveria acontecer é uma união entre Arábia Saudita, Irã, Turquia e Israel, para fortalecer Iraque e Síria, contra o Isis. É muito difícil que aconteça nas atuais circunstâncias”, lamenta. O EI já domina 50% do território sírio, segundo o Observatório Sírio de Direitos Humanos. Graças ao vácuo de poder ocasionado pela instabilidade no Oriente Médio, a facção terrorista conseguiu conquistar territórios na região e expandir sua influência e sua capacidade de realizar atentados tanto ali como no Ocidente. “Grande parte do país foi ocupada pelo EI a partir de um vácuo no Iraque com a saída das tropas americanas que se expandiu para a Síria”, explica Wrobel. “Não há hipótese de negociar com o EI, um grupo fundamentalista e radical que só pode ser derrotado militarmente de outra maneira”, opina. Para Finazzi, o combate armado é insuficiente para acabar com o Estado Islâmico. “E pode vir a ser até mesmo contraproducente, uma vez que os bombardeios intensificam a propagação da radicalização”, diz. Para exterminar de vez o grupo, ele sugere cortar o problema pela Cidade Nova • Março 2017 • nº 3
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raiz. “É preciso levar em conta seus apoios materiais – como a venda internacional de petróleo, inclusive para Europa e Turquia – e imateriais, como a sua ideologia e os motivos que a levaram a se propagar.”
Mudança de rumo Na reunião de janeiro, pela primeira vez, os EUA não tiveram um papel-chave e atuaram como meros observadores. Ainda assim, a eleição de Donald Trump deixa os especialistas apreensivos sobre a participação da nação no conflito. Apesar de a nova política externa norte-americana seguir como uma incógnita, algumas declarações do novo presidente indicam a linha que poderá seguir. A gestão Trump sinaliza o afastamento dos EUA da oposição síria, aproximando-se de Assad e Putin, uma grande novidade em relação ao governo anterior. “Obama não aceitava a presença de Assad”, diz Pio Penna. “Trump dá sinais de que quer conter o terrorismo e os jihadistas. Nada melhor que manter Assad no poder para isso.” Outra promessa do republicano é incrementar o envolvimento militar americano no Oriente Médio para combater o EI. “Me parece que haverá envolvimento maior de tropas americanas contra o EI”, diz Wrobel. “Forças especiais americanas como as enviadas ao Iêmen são um prenúncio do que pode vir por aí.” Já a recente proibição da entrada nos EUA de estrangeiros de sete países de maioria muçulmana, entre eles a Síria, pode aumentar a antipatia nutrida contra o país. “A imagem que os países cultivam é importante. A proibição é mais um complicador dessa situação difícil”, afirma o professor da PUC. “A proibição tem como efeito mais direto, além de afetar a vida de milhares de refugiados, aumentar o po32
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der de grupos como o Estado Islâmico, uma vez que reforça seus próprios argumentos e sua ideologia: ‘Vejam: os EUA nos bombardeiam, nos destroem e ainda recusam que nossos refugiados entrem na aclamada terra da liberdade!’”, aponta Finazzi.
A paz possível Como resultado das recentes negociações, criou-se um mecanismo para monitorar e implementar o fim das hostilidades no país. A medida promete permitir a entrega mais efetiva de assistência a áreas isoladas pelos combates. Aproximadamente 650 mil pessoas vivem em regiões sitiadas no país, de acordo com dados do Escritório para Coordenação de Assuntos Humanitários.
“Mais de 200 mil pessoas já perderam a vida desde o início do conflito, segundo organizações humanitárias”
Após o encontro de janeiro, uma nova rodada de negociações de paz foi convocada pela ONU (Organi zação das Nações Unidas), para o final de fevereiro. O encontro, que não havia ocorrido até o final desta edição, reunirá, em Genebra (Suíça), o governo sírio, rebeldes e representantes dos países envolvidos no conflito. Para especialistas ouvidos pela reportagem, no entanto, a questão síria só será realmente resolvida no longo prazo. Wrobel faz uma analogia com a Guerra Civil do Líbano, que durou 15 anos. “Durante esse tempo, houve centenas de tentativas de pacificação que não levaram a nada”, relembra.
Já Lohbauer compara a questão síria com casos como o da Caxemira , do Chipre e da Coreia do Norte. “Quando não há jogo de forças possível para movimentar um contencioso no caminho da paz tem-se um impasse permanente. Nesses casos a solução vem no longo prazo. E a história demonstra que muita gente tem que morrer antes do colapso de uma das partes que sustentam o impasse”, afirma. Mais de 200 mil pessoas já perderam a vida desde o início do conflito, segundo organizações humanitárias. “Estamos diante da mudança de uma estrutura de estados nacio nais criados artificialmente há cem anos. Até que outra ordem se estabeleça no Oriente Médio ainda passarão mais cem anos”, aposta o pesquisador da USP. Para Pio, os atores externos devem diminuir sua presença na Síriase quiserem ajudar a resolver o problema. “A oposição não tem munição. Quem fornece são países da União Europeia, Estados Unidos e Arábia Saudita. Existem outros meios de derrubar um regime que não alimentando a guerra”, diz. Finazzi chama atenção para o fato de a guerra na Síria fazer parte de um processo que não começou da noite por dia e não terminará num piscar de olhos. “Foi uma escalada de hostilidades que teve como estopim a resposta do governo sírio aos protestos populares por mais liberdade e direitos humanos ocorridos na esteira da eclosão da Primavera Árabe em 2011 e que teve desdobramentos ao redor de todo o mundo, inclusive no Brasil”, explica. “O que vemos hoje é a reação a esse movimento. Qualquer solução que não leve isso em conta será frágil, principalmente nas localidades de forte oposição a Assad – e ao que ele representa”, aposta o pesquisador de conflitos internacionais.