Vítimas ou algozes?

Page 1

martina cavalcanti revista@cidadenova.org.br

Dylann Storm Roof, responsável pela morte de nove pessoas em ataque a uma igreja da comunidade negra em Charleston, na Carolina do Sul (EUA)

Charlotte Observer | Getty Images

internacional

Vítimas ou algozes? COMPORTAMENTO Jovens americanos expostos a uma cultura competitiva e violenta respondem cada vez mais ao bullying e ao isolamento social com tiroteios em massa. Como explicar isso?

D

ois garotos fortemente armados invadem uma escola­, matam 12 estudantes e um professor, ferem outros 21 e se suicidam. Este é o resumo do famoso massacre de Columbine, nos Estados Unidos, em abril de 1999. O caso chocou a sociedade norte-americana, ganhou repercussão internacional e inspirou diversas obras, como o documentário “Tiros em Columbine”, de Michael Moore, premiado com um Oscar em 2013. Infelizmente a tragédia também serviu de inspiração para outros atentados isolados, marcando o início de uma crescente onda de violência. Antes de Columbine, tiroteios protagonizados por até duas pessoas contabi-

28

Cidade Nova • Setembro 2015 • nº 9

lizavam no máximo quatro vítimas e não passavam de 80 casos anuais. Depois de 16 anos da tragédia, as estatísticas não param de crescer. Em 2015, a média é de quase um caso por dia – foram registrados 224 tiroteios que terminaram em três ou mais mortes ou com mais de três feridos, de acordo com dados catalogados pelo site ShootingTracker. Até 10 de agosto, os tiroteios haviam deixado 286 vítimas fatais e 828 feridos. O número já se aproxima do total de casos registrados em todo o ano de 2014. Mas, afinal, que histórias estão por trás desses números? O que leva uma pessoa a cometer um ato tão cruel? Por que situações como essas aconte-

cem com tanta frequência nos Estados Unidos e não em outros países?

Bode expiatório Não são os “terroristas” do Oriente Médio nem suas organizações, tão temidos e criminalizados pelo governo norte-americano, que estão por trás desses atos. Os protagonistas são inimigos internos: cidadãos americanos ou naturalizados no país. Trata-se de jovens ou adultos do sexo masculino, que, por iniciativa própria e em posse de armas, atacam em lugares públicos, como escolas, shoppings e cinemas. A difundida ideia de que somente pessoas com doenças mentais come-


tem esses atos é um equívoco, segundo a antropóloga Ana Lúcia Pastore, coordenadora do Núcleo de Antropologia do Direito da Universidade de São Paulo (USP). “É justamente a sociedade americana, extremamente competitiva e consumista, que produz esse tipo de pessoa”, afirma. Segundo ela, a sociedade norte-americana é aparentemente democrática e inclusiva, mas o grau de cobrança é muito alto e há quem não aguente. “A violência é algo intrínseco à vida social. Cada sociedade produz certo padrão de violência e geralmente escolhe seus bodes expiatórios para dizer que o problema está neles e não na forma que a própria sociedade se estrutura.” A literatura científica aponta fatores sociais de risco para que esse tipo de atentado aconteça e, nos EUA, alguns deles são exacerbados por fatores como a alta competitividade, por exemplo. “São sociedades que exigem capacidades e dotes individuais, que, se você não possuir, é considerado fracassado. No contexto escolar, quando a identidade ainda está sendo construída, isso é emocionalmente pesado para grande parte dos meninos, que sofrem a violência da exclusão e da desmoralização”, afirma Marina Bazon, professora de psicologia da USP de Ribeirão Preto, que estuda adolescentes em situação de risco psicossocial. Ao sentir ódio podemos fantasiar a morte de alguém e nos satisfazer com isso. No entanto, para o adolescente, realidade e fantasia ainda estão muito misturados, o que exige uma atenção redobrada. “Quando a sociedade dá a possibilidade de transformar fantasia em realidade, a situação complica”, alerta Bazon.

armas de fogo. “O que há de comum em todos os ataques são as armas”, sentencia o sociólogo Pedro Bodê, professor de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Nos Estados Unidos, não é preciso ter uma licença para obter uma arma de fogo e sua distribuição é extremamente facilitada. Elas podem ser compradas, inclusive, pela internet, como fizeram os protagonistas do massacre em Columbine. No final de julho, depois de um homem ter matado duas pessoas, ferido nove e se suicidado dentro de um cinema de Louisiana, o presidente Barack Obama disse que sua maior frustração no governo foi não ter conseguido aprovar um controle de armas mais rigoroso no país. Obama chegou a fazer uma com­ paração contundente: “Se observa­ rem o número de americanos mor­ tos desde 11 de setembro pelo ter­ rorismo, são menos de cem. Se observarem o número de pessoas mortas pela violência devido às armas de fogo, estão nas dezenas de milhares”, declarou o presidente. Enquanto a maioria dos liberais democratas é favorável às restrições, os conservadores republicanos, que dominam o Congresso, são contra, o que tem travado a aprovação do projeto. O direito constitucional de proteger a propriedade privada a ­ balas é um dos principais argumentos dos opositores. Segundo eles, é necessário garantir pelas próprias mãos a segurança em cidades menores, onde os serviços do governo norte-americano não chegam. É exatamente nesses municípios mais afastados que os principais ataques de lobos solitários costumam ocorrer.

Política das armas

Cultura bélica

Uma das maneiras de realizar esse tipo de devaneio é através de

A cultura das armas nos EUA é bastante antiga. A história começa

durante o processo de colonização, quando os americanos se armaram para conquistar a independência, na Guerra Civil de 1861-1865. No imaginário do país figuram como heróis os grandes pistoleiros da literatura folhetinesca do século 18. Esse tipo de publicação se difundiu bastante depois que as igrejas contribuíram para a alfabetização em massa da população norte-americana na época. “São heróis cujas principais características são a boa pontaria, ser rápido e certeiro. Depois, os temas de armas de fogo e de morte se intensificaram com o cinema”, afirma Marcio Scalércio, professor de Relações Internacionais da PUC-Rio. Produções norte-americanas distribuídas ao redor do mundo são conhecidas pelas altas doses de ação e violência. Além disso, o país produz e consome largamente games de armas, que funcionam como simuladores, onde jovens são treinados a atirar. “A arma potencializa a propagação da violência, não há a menor dúvida. Uma política de restrição diminui a violência na medida em que reduz o instrumento da violência”, defende o especialista. Os Estados Unidos são o maior produtor de armas no mundo. A presença do lobby da indústria de armamentos no país é muito forte, o que impediu as políticas de restrição. “As pessoas ficam falando de armas nucleares, mas as que mais matam no mundo há décadas são as armas leves e portáteis”, diz Scalércio. Um dos riscos é de que o armamento seja usado por uma terceira pessoa contra o dono da arma. “A ideia de estar armado é estar protegido. Mas, segundo pesquisas, estar armado é estar vulnerável a se tornar vítima da própria arma”, afirma a antropóloga Ana Pastore. Cidade Nova • Setembro 2015 • nº 9

c 29


internacional Imprevisibilidade e medo São muitos os jovens que sofrem psiquicamente os efeitos da cultura norte-americana, mas prever quais optarão pela atitude extrema de ­cometer um atentado é quase impossível, segundo a psicóloga Ma­ rina Bazon. “São atos planejados e não impulsivos. Mas o planejamento se dá geralmente na intimidade da própria cabeça. Jovens isolados e em sofrimento são muitos, que jogam games violentos também, mas quais deles vão cometer esses atos?”, indaga. A imprevisibilidade gera um forte medo na sociedade, o que alimenta ainda mais a violência e o isolamento social, num círculo vicioso. “Viver em uma sociedade muito violenta cujo mote é ‘cada um por si, Deus por todos’, é ruim porque o outro é tido como um perigo. Isso aumenta o distanciamento entre as pessoas e a competitividade”, afirma Bazon. “Os EUA vivem menos problemas de criminalidade comum, mas a questão da violência entre os jovens produz justamente mais meninos que estão sozinhos e sofrendo.” Para piorar, a mídia norte-americana espetaculariza e difunde largamente as tragédias. “Quando a mídia divulga demais e gasta muito tempo com eventos violentos, a intensidade da exposição dos eventos gera sensação de quantidade”, afirma a especialista. A repetição desses eventos nos veículos de comunicação gera medo e ao mesmo tempo serve de exemplo para meninos que já sofrem com a cultura do próprio país.

Política externa Com o lema “a melhor defesa é o ataque”, os Estados Unidos já entraram em diversas guerras, como no Irã, no Iraque e agora contra o Estado Islâmico. Segundo especialistas, 30

Cidade Nova • Setembro 2015 • nº 9

martina cavalcanti revista@cidadenova.org.br

essa condução agressiva da política externa também pode influenciar alguns cidadãos americanos que optam por cometer atentados isolados. A insegurança nacional faz com que o medo seja um sentimento crônico entre os cidadãos norte-americanos, estimulando-os a buscar uma falsa solução armamentista em sua vida particular. “Desde 1889, na Guerra contra a Espanha, os EUA participaram de todas as grandes guerras do mundo”, recorda Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Washington e membro do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da USP. “Com mais de um século em guerras, cria-se uma cultura de violência com a qual a sociedade americana convive.” Além disso, a presença americana em conflitos internacionais também produz muitos militares que, ao retornarem ao território norte-americano, não estão preparados para o policiamento clássico e acabam protagonizando atos de violência. “A política externa se aplica aos de fora, mas tem produzido uma espécie de efeito colateral internamente. Uma coisa alimenta a outra: aumenta a segurança, mas os riscos de ataques também”, lembra o so­ ciólogo Bodê. De acordo com Bazon, muitos americanos julgados como fracassados por sua sociedade também acabam sendo recrutados por líderes da jihad, a guerra santa islâmica, para combaterem seu próprio país em nome de interesses externos.

Racismo Meio século após o fim da segregação racial, o racismo continua alimentando atos violentos, incluindo algumas ações de lobos solitários. No caso mais recente, um jovem branco atacou uma igreja da comunidade negra em Charleston,

na ­Carolina do Sul, estado com histórico de discriminação racial, matando nove pessoas. Ataques a igrejas afro-americanas não são de hoje. Um dos episó­ dios mais conhecidos é a morte de quatro meninas de uma igreja em Birmingham, no Alabama, em 1963, num ataque da Ku Klux Klan. A organização já acabou, mas ainda há centenas de grupos na internet que pregam a supremacia racial, um número que disparou depois de Obama ser eleito. Monitorados pela polícia norte-americana, esses grupos não conseguem promover atos organizados, porém ataques solitários são muito difíceis de rastrear. “Nos Estados Unidos, todos os grupos de extrema direita têm um discurso nazista e racista. O histórico escravocrata e racista está entre as principais vértebras da violência no país”, atesta Bodê. Como reverter esse quadro? Além da restrição às armas, que é unanimidade entre os especialistas, outras medidas podem ser tomadas para minimizar os fatores de risco que levam a atentados. Marina Bazom destaca a necessidade de investir na prevenção. “É preciso enriquecer o cotidiano de crianças e adolescentes, trabalhando valores de convivência mais salutares, diminuir a competitividade e valorizar a colaboração”, afirma. Segundo a psicóloga, os adultos precisam identificar e valorar conflitos que se instalam no contexto escolar, além de detectar jovens mais frágeis para oferecer apoio emocional. “É difícil fazer isso descolado da cultura geral, mas no ambiente escolar podemos controlar melhor essas questões”, opina. Ana Pastore acrescenta ainda a necessidade de uma mobilização mais ampla: “É extremamente importante o movimento da sociedade civil organizada para mudar esse quadro de violência”.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.