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Brasil
A saída
para os tempos de crise ECONOMIA COLABORATIVA Enquanto empresários abrem mão da individualidade e apostam no diálogo com o concorrente, cidadãos passam a confiar em desconhecidos para economizar e acabam retomando a fé nas relações humanas
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reços altos, queda nas vendas do comércio e na renda das famílias, demissões, pre juízo e endividamento. Esses são alguns dos efeitos nocivos vivenciados por consumidores e em presários na atual crise econômica. O cenário é tido como o início de um período de recessão inédito no Brasil – que na voz de economistas já comprometeu 2016. Ainda assim, olhos criativos enxergam a situação crítica como uma oportunidade de reinventar a lógica econômica brasileira. A cooperação aparece como o principal motor dessa mudança, que promete trans-
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formar o jeito de consumir e de fazer negócios no país. São diversos os exemplos de que a união e a criatividade fazem a força. Empresários do mesmo setor modificaram a relação com os concorrentes para se unirem e conseguirem reduzir os preços dos fornecedores. Assim repassam um aumento menor para os consumidores e não comprometem as vendas. Encontrar utilidade para o que está parado em casa, como alugar o carro que fica a maior parte do tempo na garagem, também vale. Até mesmo pedir a ajuda do vizinho para furar a parede em vez de comprar uma
furadeira ou ensinar alguém a tocar violão em troca de aulas de gaita são tentativas dos consumidores para driblar a crise e, de quebra, conhecer novas pessoas através de plataformas de economia colaborativa.
União Foi esse o mote que juntou mais de 50 pizzarias de São Paulo na Associação Pizzarias Unidas (APU), criada em 2002, após um programa do Sebrae (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), com a finalidade de discutir problemas e soluções do setor de maneira in-
tegrada. “O primeiro benefício, e o que a gente estima ser um dos melhores, é a troca de informações entre empresários, que acelera o processo de evolução das empresas e do setor. É riquíssimo”, diz Carlos Zoppetti, vice-presidente da APU. A tática de fazer compras conjuntas para conseguir preços mais baixos com fornecedores, por exemplo, permite evitar ao máximo repassar reajustes aos consumidores. “O que muda é fazer compra planejada de um mês. Dessa forma, o fornecedor já sabe o que vai produzir, otimizando sua produção e logística. Todos esses bônus os fornecedores acabam repassando para a gente em forma de desconto na matéria-prima”, diz Zoppetti. De acordo com o empresário, é possível conseguir em média 10% de desconto com a negociação conjunta. A redução não é o suficiente para cobrir os 17% de queda nas vendas do setor neste ano, mas, somada a outras iniciativas da associação, já evita demissões e maiores prejuízos. Não ficar no vermelho é vantajoso em um cenário no qual, durante o segundo trimestre de 2015, o faturamento de bares e restaurantes caiu 6,34% na comparação com os três primeiros meses do ano, segundo dados da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel). De acordo com a pesquisa, um em cada quatro estabelecimentos registra prejuízo. E são empresas com preço médio entre R$ 30 e R$ 70 – o que inclui as pizzarias – as mais afetadas. Outra solução criada pela APU é um grupo de Whatsapp chamado “Fora Crise”. Nele os empresários discutem ideias para alavancar vendas, enxugar custos e divulgar suas marcas. A inserção das pizzarias em aplicativos de delivery de comida, como o iFood, foi uma das soluções mais eficazes. “Fomos trocando ideias de como manter a
pizzaria no nível mais alto de avaliação nesses aplicativos. A gente se capacitou bastante, o que nos ajudou muito, inclusive, com aumento das vendas”, destaca Zoppetti. Segundo ele a associação comprova que a cooperação pode ser mais benéfica que a concorrência, mesmo no mundo dos negócios. “Quando participa da entidade, um empresário percebe que o outro empresário, mesmo perto dele e atuando no mesmo mercado, ajuda e troca informação. A ideia de que o concorrente é inimigo acaba sendo ultrapassada, já que o ganho de cooperar é muito maior.”
Me empresta o seu carro? A cooperação não se dá apenas entre donos de restaurante. O compartilhamento também invadiu a internet e atualmente há vários sites e aplicativos que possibilitam trocas. É a chamada economia colaborativa. O administrador de empresas Rafael Deieno, 48, tem um carro, mas usa o da mulher no dia a dia. Como o MMC Lancer “só dava despesa” parado na garagem, ele teve a ideia de alugar o veículo criando um perfil no Fleety. Através dessa plataforma usuários disponibilizam seus carros para locação por horas, dias e até semanas a motoristas que precisam de um veículo, mas não querem ou não podem comprar um. “O brasileiro tem muito apego ao carro, como se fosse membro da família. Para mim, o carro existe para ser usado, se está parado, só gera prejuízo”, afirma. Rafael contabiliza despesas com seguro, manutenção e licenciamento, gastos que a locação ajuda a pagar. “Até agora tive um crédito de R$ 400 em três locações. Não dá para complementar a renda, mas é possível deixar de gastar mais”, declara. Para o feriado de 20 de novembro, Dia da Consci-
ência Negra, ele chegou a anunciar no aplicativo uma promoção de 20% para incentivar usuários a ficarem com o carro durante três dias. A locação de um carro no Fleety varia entre R$ 15 e R$ 30 a hora. Se um usuário ficar uma semana com o carro, o valor pode chegar a mil reais ou mais. Do total, até 15% fica com a empresa, que, em troca, oferece seguro, serviços e atendimento 24 horas aos usuários.
Poupar recursos A intenção é que produtos já fabricados não fiquem ociosos, evitando o consumo desnecessário, além de garantir um dinheiro extra para quem empresta, uma locação mais barata para quem aluga e estimular o crescimento de novas empresas de tecnologia, as startups. “Durante toda a nossa existência nos pautamos em consumir muito, mas agora atingimos o limite do consumo”, define um dos fundadores da Fleety, André Marim. “A sharing economy [economia colaborativa] é uma evolução ou revolução do capitalismo que proporciona consumir serviços, dando uma utilização mais rentável e inteligente aos bens de consumo. É a ideia de que não preciso ter um produto para ter acesso a ele”, explica Marim. O diretor observa ainda que a iniciativa ajuda a solucionar problemas urbanos, como o da mobilidade. Segundo pesquisa da KPMG, cada carro compartilhado representa de quatro a 13 veículos a menos circulando nas ruas, o que, em larga escala, pode amenizar o congestionamento em grandes metrópoles e reduzir a emissão de CO2. Para Marim, em tempos de crise, a economia colaborativa se torna ainda mais relevante, na medida em que as empresas que intermedeiam as trocas e locações pagam impostos Cidade Nova • Dezembro 2015 • nº 12
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e os usuários, poupando recursos, aumentam seu poder de compra, impulsionando a economia como um todo. Por isso, o aplicativo mostra crescimento de usuários mês após mês. “Com a economia em crise, há uma melhor utilização dos recursos, uma mudança cultural e de estilo de vida que acaba acelerando muito o crescimento do Fleety e de outras plataformas colaborativas”, afirma.
Adaptações Mas será que as montadoras, já em dificuldades, podem ser ainda mais prejudicadas pela novidade? Marim acredita que não e afirma que três grandes companhias do setor automobilístico já estão em contato com a Fleety para em breve inovarem seus serviços. “Em questão de pouco tempo teremos carros compartilhados através de montadoras, como já acontece na Europa. Não há opção: ou essas empresas jurássicas se reinventam para acompanhar o novo consumo ou vão perder para serviços de tecnologia”, aposta. Acompanhar as mudanças parece ser a única alternativa para as companhias tradicionais não ficarem para trás, já que a economia colaborativa cresce exponencialmente. Só em 2014, os empreendimentos do setor movimentaram mais de US$ 110 bilhões ao redor do globo, de acordo com a revista Forbes. Segundo pesquisa da Nielsen, que ouviu 30 mil pessoas em 60 países, 68% afirmaram estar dispostos a compartilhar bens em troca de dinheiro, enquanto 66% usariam ou alugariam produtos oferecidos por outras pessoas em sites de compartilhamento. Apesar de tantas apostas, a tecnologia de compartilhamento no Brasil ainda é recente e apresenta algumas falhas. Rafael chegou a per14
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der uma locação porque o sistema de pagamento por cartão de crédito do Fleety apresentou problemas. Devido à intensa participação de usuários, a empresa soube de reclamações e uma solução, com um sistema interno de pagamento, deve chegar ao usuários nas próximas semanas. Segundo Marim, os erros são rapidamente solucionados porque o conceito da plataforma se baseia na interferência direta dos usuários, que podem dar palpites em tempo real.
Outras colaborações Além do Fleety, existem dezenas de outras plataformas de compartilhamento. Na Airbnb, é possível locar um cômodo ocioso da casa ou até mesmo a casa toda para turistas, enquanto no Dinner, a proposta é que os usuários ofereçam refeições para desconhecidos, em suas casas, por um valor determinado. Já o “Tem Açúcar?” pretende resgatar os laços de comunidade ao estimular empréstimos de objetos entre vizinhos. No Bliive o mote é trocar tempo e conhecimento ensinando o que você sabe e aprendendo o que os outros têm a ensinar. É possível encontrar desde aulas de piano, desenho, costura e fotografia até sessões de massagem, ioga, leitura de mapa astral e até mesmo companhia para cantar no karaokê. Educadora financeira e especialista em sustentabilidade, Andy De Santis estuda o tema e resolveu se cadastrar em várias dessas plataformas para testá-las e aplicá-las a suas necessidades cotidianas desde 2012. No início, havia alguns temores pela sua segurança e de seus objetos pessoais, mas hoje ela é uma entusiasta da nova maneira de fazer economia. “Não estamos acostumados porque é um jeito novo de pensar. No Fleety, por exemplo, fiquei com
medo de entregar o carro para um desconhecido e até de encontrar a pessoa pela primeira vez”, admite. “Mas foi surpreendentemente positivo. Meus clientes são muito bons. Um lavou o carro para me entregar limpinho, outro deixou um brinde, até troca de cartões já aconteceu!”, relembra. De Santis ressalta ainda que essa e outras plataformas ajudam a retomar a fé nas relações humanas. “Além da troca em si, é possível fazer amizades e networking. São experiências que vêm de onde você menos espera: de uma pessoa totalmente desconhecida.” Segundo ela, a confiança é uma das principais moedas de troca nessas redes, o que alimenta essa esperança. “Todas essas plataformas são como bancos, mas em vez de dinheiro, as moedas são outras, como são outras as possibilidades”, compara. “Eu avalio a pessoa com quem fiz a troca, coloco estrelinhas, faço um comentário… Quem está vendo decide se vai ou não trocar com aquele usuário com base nessas avaliações. Por isso as pessoas não querem dar mancada. Se ela fizer besteira, pode ser que nunca mais consiga fazer trocas ali”, diz. As plataformas de economia colaborativa resgatam um senso comunitário que se perdeu nos grandes centros urbanos e que ainda existe em locais mais afastados e em comunidades de baixa renda, onde as trocas, o compartilhamento e a famosa “vaquinha” são maneiras de ter acesso a determinados produtos e serviços, reflete De Santis. “No esquema capitalista, as pessoas de maior renda vão ficando individualistas e as relações, cada vez mais frias. A gente não conhece nem o vizinho”, afirma. “Esses aplicativos resgatam e pode ser até que motivem a gente de fato a ter essa simplicidade de bater na porta ao lado para pedir ou oferecer algo.”