A doença dos planos de saúde - Revista Cidade Nova

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cn em série Saúde

martina cavalcanti revista@cidadenova.org.br

A doença

© Tyler Olson | Dreamstime.com

SAÚDE PRIVADA Com um número de usuários cada vez maior, o modelo apresenta problemas antes restritos ao sistema público. Quais os remédios para essa doença?

dos planos de saúde

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o Brasil, o desejo de ter um plano de saúde só perde para o de adquirir um imóvel e ter acesso à educação de qualidade, segundo pesquisa Datafolha/IESS (Instituto de Estudos de Saúde Suplementar). A prioridade do tema, a insatisfação com o sistema público e o aumento de renda da população se traduziram na crescente contratação de planos privados nos últimos anos. De acordo com o Instituto Bra­ si­ leiro de Geografia e Estatística (IBGE), um quarto dos brasileiros possuía planos de saúde em 2012,

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quase o triplo de usuários contabilizados dez anos antes. Mas se, por um lado, a maior procura levou ao aperfeiçoamento da regulamentação do sistema privado de saúde pelo Estado, esse aumento também aprofundou a insatisfação quanto ao atendimento nos hospitais particulares. Em 2013, as reclamações dos usuários superaram a marca de ­ 100 mil, número quase cinco vezes maior do que uma década antes. Falta de acesso a procedimentos e até mesmo longos períodos de espera na fila estão agora entre as quei-

xas mais frequentes também do sistema privado. Dados compilados pelo IBGE a pedido do Conselho Paulista de Medicina evidenciam a carência de médicos no país. Somente a região Sudeste cumpre a meta de 2,5 profissionais para cada mil habitantes. “Justamente esse é um dos gargalos da saúde suplementar. As operadoras dos planos não credenciam número suficiente de médicos na mesma velocidade em que cresce o número de usuários”, alerta o vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Aloísio Tibiriçá.


O reajuste da remuneração dos profissionais da saúde também segue a passos lentos, resultando no desinteresse dos médicos em atender os planos. Segundo as associações médicas, a alta da receita das operadoras também não refletiu na melhoria da estrutura hospitalar. Citando dados da ANS, o Conselho de Medicina demonstra que, em setembro de 2009, existiam no Brasil cerca de 144 mil leitos para planos de saúde. Três anos depois, o número caiu para 127 mil, uma redução de 12%. “Acesso à maternidade é mais difícil ainda, porque não dá lucro para o hospital. Se a mulher quiser fazer parto normal na rede privada hoje, não consegue vaga em nenhum lugar. Com três meses de antecedência, só terá acesso à cesariana”, exemplifica Tibiriçá.

Altos custos As operadoras admitem o aumento da receita, mas defendem que os altos custos limitam o lucro das companhias, reduzindo seu poder de investimento. “Em 2013, a margem ficou abaixo de 1%. Os custos giraram em torno de 83% e 17% foram destinados para o pagamento de impostos”, quantifica Antônio Carlos Abbatepaolo, diretor executivo da Associação Brasileira de Medicina de Grupo (Abramge), que agrega mais de 200 operadoras. “Mesmo assim, o reajuste dos fornecedores e médicos geralmente está acima da inflação”, sustenta. Para o representante, a Variação de Custos Médicos e Hospitalares, medido pelo índice VCMH, foi acima de 16% em 2013, uma diferença grande em relação à inflação de 5,91% registrada no mesmo ano. O constante avanço da tecnologia na área da saúde é um dos fatores de aumento dos custos. “Cada

vez surgem mais opções de sobre­ vida que vão encarecendo os custos. A ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar] coloca procedimentos caros na lista obrigatória de cobertura, o que eleva o preço para os usuários e diminui as margens das empresas”, diz Libânia Rangel de Alvarenga, especialista em Administração Hospitalar e Sistemas de Saúde pela Fundação Getúlio Vargas. “A saúde tem ficado cada vez mais cara, pois fica cada vez mais eficiente”, argumenta. Não foi o que o pai de Fabio Henrique Bim constatou no momento em que mais precisava de assistência. Aos 70 anos, beneficiário de um plano de saúde contratado cerca de duas décadas antes, o aposentado teve um implante de cateter negado pela operadora. O procedimento, essencial para dar continuidade ao tratamento de quimioterapia contra um câncer no fígado, teve que ser pago do seu próprio bolso devido à urgência do caso. “Com o cateter, meu pai continuou o tratamento pelo plano, que tem sido bom. Agora a luta é conseguir o ressarcimento”, diz Fabio. Ele pretende contratar um advogado para obter a devolução do valor pago pelo procedimento médico e pelos materiais utilizados. Mas o processo pode ser dificultado pela falta de provas, já que a operadora se negou a justificar por escrito a não-autorização. Pela legislação atual, a atitude implica multa no valor de R$ 30 mil contra a empresa. No entanto, até o momento, a operadora não sofreu qualquer tipo de sanção. De acordo com a ANS, o rol de procedimentos obrigatórios é atualizado permanentemente para qualificar o atendimento à saúde do cidadão, inclusive a partir de consulta pública. A partir de 2014, a cobertura obrigatória passou a incluir os medicamentos orais contra câncer

e mais recentemente remédios para tratamento de efeitos colaterais da doença. “A inclusão desses medicamentos representa um maior cuidado com as pessoas e menores riscos à saúde”, sustenta a ANS, em resposta à Cidade Nova.

Regulação Órgão responsável por regular as operadoras de planos de saúde, a ANS suspende os serviços com maior número de reclamações. Atualmente, negativas indevidas de cobertura, além do descumprimento de prazos máximos para a realização de consultas, exames e cirurgias são incluídas nas notificações. Com o programa, a ANS já suspendeu 991 planos de 141 operadoras de planos de saúde desde 2012. Somente na última avaliação, realizada no dia 16 de agosto, a agência impediu a comercialização de 123 planos, de 28 empresas. Segundo a agência, a mediação de conflitos vem apresentando alto índice de solução em prol do consumidor. Em 2013, o percentual chegou a 85,5%. A Abramge afirma que as reclamações são levadas a sério pelas operadoras, mas discorda da metodologia de suspensão baseada na média das queixas dos usuários em ciclos trimestrais. O diretor da associação também relativiza a crescente insatisfação com o serviço privado. “O aumento tem a ver com a elevada utilização dos planos. Ao longo de 2013, tivemos um bilhão de atendimentos. Portanto, o índice de reclamações é baixo: menos de 0,1%”, argumenta. Abbatepaolo também reclama da judicialização. “O paciente não tem acesso a determinada cobertura, recorre ao Judiciário e muitas vezes ganha a causa”, diz. Segundo ele, a frequência com que a situação se repete cria um desequilíbrio nas Cidade Nova • Outubro 2014 • nº 10

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cn em série Saúde c­ ontas das empresas, obrigadas a arcar com custos mais elevados do que os efetivamente pagos pelos usuários. Para Fernando Facury Skaff, professor de Direito da Universidade de São Paulo, a suspensão leva à concentração do número de planos nas mãos de poucas operadoras, limitando a escolha do consumidor. “O ideal é que haja variedade de empresas para que o consumidor tenha um leque maior de opções no mercado. É uma regra básica de direito concorrencial”, alerta. Segundo dados da Abramge, de 2000 a 2013, o número de empresas atuantes no mercado caiu pela metade, totalizando 1.100 companhias ativas hoje. “Pelas baixas margens [de lucro], questões de custos, alta judicialização, novas tecnologias obrigatórias e suspensões, o setor tem tido problemas de sustentabilidade”, sentencia Abbatepaolo. Para Maria Inês Dolci, coordenadora institucional da Proteste, associação de defesa dos direitos do consumidor, a concentração já existia antes da metodologia de suspensão, indispensável para garantir os direitos dos usuários. “Não adianta vender planos que não cumprem contratos”, opina.

Planos coletivos X individuais Atualmente, 80% dos planos de saúde são coletivos, ou seja, oferecidos por empresas, associações e sindicatos a seus funcionários ou membros, enquanto apenas 20% são individuais ou familiares. É cada vez mais escassa a oferta de planos do segundo tipo, principalmente para o público que mais necessita do serviço: idosos ou pessoas com doenças pré-existentes. A regulamentação do reajuste nos planos individuais pela ANS é o principal motivo do desinteresse 16

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das operadoras, que privilegiam a oferta dos coletivos, reajustados por meio de acordos entre as operadoras e as empresas contratantes. “No coletivo, pode haver rescisão unilateral, ou seja, a operadora pode rescindir contrato com aquela carteira a qualquer momento, deixando o usuário mais vulnerável”, acrescenta Samantha Pavão, supervisora da área de saúde do Procon-SP. Na opinião da especialista, para garantir a totalidade dos direitos dos consumidores e equalizar a oferta, é necessário que a agência passe a regulamentar os dois tipos de serviços. Já o executivo da Abramge, cujos associados oferecem planos coletivos, defende que, à parte a ausência reguladora da ANS sobre esse tipo de serviço, a empresa contratante tem margem de manobra para negociar, o que garante a equidade dos preços. “Por um lado, pode haver críticas porque os reajustes são superiores, mas representam a carteira daquela operadora. Sem esse reajuste, a operadora vai ter prejuízo. E isso, a longo prazo, colapsa todo o sistema de saúde”, defende Abbatepaolo. A ANS entende que as empresas privadas possuem maior poder de negociação junto às operadoras, resultando na obtenção de percentuais­ vantajosos para o contratante. A agência discorda ainda que a falta de regulamentação tenha diminuído a oferta de planos individuais. “Nos últimos dez anos, o número de beneficiários em planos individuais cresceu cerca de 19,7% atingindo 10 milhões de vínculos”, calcula o órgão.

Perspectivas Os especialistas ouvidos por Cidade Nova parecem unânimes ao eleger uma saída ao sistema privado de saúde: equilibrar a garantia dos direitos dos consumidores e a sustentação econômica das opera-

doras. A saúde de uma das partes pressupõe a vitalidade da outra. A cura pode até parecer distante, mas não faltam receitas para tratar um sistema que ainda está doente. Para Libânia, o sistema privado de saúde só será mais eficiente quando investir na gestão hospitalar por meio de um sistema unificado de informações, atualmente ilhadas em cada unidade de saúde. A Abramge concorda que a integração é fundamental para a saúde do setor e afirma que as operadoras já trabalham no desenvolvimento de um prontuário eletrônico através do qual o histórico médico do paciente poderá ser acessado de ­diversos terminais. Já o Conselho Federal de Medi­ cina aposta na Lei 13.003 para sanar os conflitos entre médicos e operadoras ainda este ano. A norma estabelece o dia 30 de março como data-base para o reajuste e, em caso de falta de acordo, deixa a decisão a cargo da ANS. Na visão de Facury Skaf, outra solução para atingir a equidade entre os interesses das operadoras e dos usuários seria a criação de tipos diferentes de contratos. Nem todas as operadoras tem capacidade de oferecer toda a gama de serviços e atividades impostas pela ANS. Uma alteração do modelo permitiria que novas empresas surgissem, oferecendo aos vários tipos de consumidores novas opções. Apesar das dificuldades, é inegável o avanço do sistema privado. Diminuição de contratos lesivos ao consumidor, ampliação da faixa etária para idosos e garantia de atendimento de urgência foram algumas das melhorias implementadas nos últimos anos, segundo Maria Inês, da Proteste: “Estamos avançando. Mas temos que começar a trabalhar questões novas, como a regulação dos planos coletivos”.


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