Mais técnicos, menos bacharéis - Revista Cidade Nova

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martina cavalcanti cartas@cidadenova.org.br

Mais técnicos, menos bacharéis MERCADO DE TRABALHO Mais de 42 milhões de brasileiros ascenderam à nova classe média na última década, trazendo consigo um sonho: investir nos estudos e crescer profissionalmente. É possível desfazer o mito do diploma universitário e garantir a mão de obra qualificada de que a economia necessita?

“A

maioria acha menos nobre trabalhar na indústria. Mas as pessoas­ não sabem que um técnico petroquímico, por exemplo, ganha mais que algumas profissões de nível superior”, esclarece o gerente de estudos e prospectivas do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), Márcio Guerra, para quem o mito só pode ser desfeito na base de informação. Estudo da Confederação Nacional da Indústria (CNI) mostra que 82% concordam que as pessoas com certificado de qualificação profissional têm salários maiores. Apesar disso, são poucos os que buscam esse tipo de formação. Entre os jovens, a maioria cursa o superior (18%), seguido do médio (15%) e do fundamental (5%). O ensino profissional é opção de apenas 3% deles. Em países com tradição no ensino técnico, como os europeus, o Japão, a Coreia do Sul e os Estados Unidos, foram necessários em média 150 anos para estabelecer as escolas profissionais, explica Divonzir Arthur Gusso, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Não à toa, na média das nações mais 10

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ricas, o índice de pessoas que passam pela educação profissional é de 46%: quase o dobro do percentual registrado no Brasil, de acordo com os dados da Organização para a Coo­ peração e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Formação Para Luis Alberto Piemonte, professor da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-EAESP), os recentes programas federais são uma boa resposta para a falsa ideia de que cursar uma faculdade é sempre a melhor opção. Enquanto o governo Lula ficou conhecido pelo Prouni, programa voltado para inserção da população de baixa renda em faculdades particulares, a valorização da educação profissional tem sido uma das principais bandeiras do governo da presidente Dilma Rousseff. Lançado em 2011, o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e ao Emprego (Pronatec) conta com 5,7 milhões de matrículas e a meta é chegar a 8 milhões ainda neste ano. O Sistema de Seleção

Unificada da Educação Profissional e Tecnológica (Sisutec) seleciona jovens e adultos que já concluíram o ensino médio para as vagas oferecidas pelo programa. Apesar do substancial aumento da oferta, três pontos prejudicam a expansão do projeto, de acordo com levantamento do Ipea: vagas ociosas, evasão de alunos e déficit de professores. Segundo o gerente do Senai, instituição responsável pela maior oferta de cursos no Pronatec, o problema da evasão só pode ser resolvido com ensino básico de qualidade, já que muitos alunos desistem do curso por não terem conhecimentos suficientes de português e matemática para acompanhar as aulas. Atualmente é de 50% o índice de abandono nos cursos de qualificação profissional, de acordo com o Ipea. Já Piemonte, da FGV, destaca a importância da conscientização. “É preciso explicar aos estudantes que o curso técnico é um caminho seguro para encontrar um emprego interessante”, aconselha. O perfil assinalado pelo especialista é mais comum do que se imagina. Dos 22,5 milhões de jovens brasileiros entre 18 e 24 anos, cerca de um terço concluiu o


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ensino médio e não ingressou em nenhum outro sistema de ensino, superior ou de formação técnica. A questão das vagas ociosas deve ser combatida na medida em que aumenta o conhecimento da população sobre o programa, afirma o professor da FGV. “O Pronatec foi criado há dois anos, mas só começou a ser conhecido agora. Representantes da escolas do Pronatec vão a instituições de ensino médio e informam sobre a existência do programa, mas essa forma de divulgação não tem sido suficiente”, opina. O gerente do Senai assinala também a relevância de integrar ensinos médio e técnico: “A integração é um bom mecanismo para associar teoria à prática. Em uma aula de física, é possível utilizar um laboratório industrial para realizar determinado fenômeno. Na química, pode-se simular a existência de um novo plástico. Dessa forma, você re-

duz o desinteresse pela educação tradicional, dando concretude ao processo de aprendizagem”. Mesmo com dificuldades, o programa possui a virtude de levar ensino médio e técnico de melhor qualidade para o interior do país, argumenta o pesquisador do Ipea. “De 2011 a 2013, o governo gastava R$ 3,59 bilhões e passou a gastar R$ 4,5 bilhões, sendo que R$ 3 bilhões são aplicados na manutenção das suas próprias escolas, o número de alunos aumentou muito”, contabiliza Gusso. Segundo ele, o objetivo do governo com a interiorização da oferta do ensino técnico é “conferir maior ‘empregabilidade’ aos jovens e dar-lhes melhor escolaridade e preparo técnico para contribuir no desenvolvimento de suas regiões de origem”. Para Márcio Guerra, do Senai, com a utilização da nota do Enem, exame utilizado como vestibular em algumas universidades, o in-

gresso de alunos através do Pronatec deve crescer ainda mais.

Necessidade Foi a impossibilidade de pagar o curso superior de gastronomia que levou Rafaela Damaris a ingressar no técnico em engenharia de alimentos, no Senai, logo após concluir o ensino médio em 2009, antes da criação do Pronatec. “Quando comecei a fazer o técnico, vi que gastronomia não era muito para mim, porque envolve principalmente o preparo e a apresentação do alimento. O técnico é focado na qualidade do alimento, assegurar que vai sair da maneira correta, e foi isso que me deixou mais envolvida com o curso”, conta. No terceiro semestre, Rafaela conseguiu um estágio em uma indústria. Poucos meses depois foi efetivada e trabalhou no local durante um ano e nove meses. Cidade Nova • Abril 2014 • nº 4

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Formado no mesmo curso, Diogo Prates ressalta que as empresas do ramo alimentício valorizam a formação técnica em relação à superior. “Onde eu trabalho tem três técnicos e só um graduado. Inclusive eu recebo um salário maior do que a pessoa com diploma de faculdade”, explica. Ainda assim, Diogo admite que a ausência de um curso universitário limita seu crescimento na empresa. “O engenheiro de alimentos tem registro no Crea [Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia]. Eu não tenho direito a essa afiliação como técnico, o que me impede de assinar alguns documentos. Então acabo limitado no cargo técnico, ainda que eu esteja capacitado a fazer o mesmo trabalho que um graduado”, exemplifica. Para fugir desse tipo de dificuldade, Rafaela decidiu fazer uma faculdade de tecnologia de alimentos, deixou o emprego e percebeu o quanto a qualificação técnica foi importante para abrir as portas do mercado de trabalho. “Essa experiência anterior me ajudou bastante a conseguir o estágio para ensino superior. Na entrevista, eu estava competindo com engenheiros de alimentos e acho que essa formação técnica e a experiência anterior na área foram pontos a meu favor”, diz.

Competitividade e inovação Se os jovens têm pressa em arranjar um bom emprego, a indústria também não vê a hora de preencher suas vagas com profissionais qualificados. Segundo o Senai, mesmo sem crescer desde 2010, o setor industrial gerou 1,1 milhão de novos empregos no ano passado. Além disso, é enorme a rotatividade nesse mercado: 50% dos trabalhadores da indústria trocam de emprego a cada ano. 12

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“Num momento em que a economia não cresce quase nada, continuamos com falta de mão de obra qualificada”, alerta Márcio Guerra. Esse é um problema que afeta 65% das indústrias brasileiras dos segmentos extrativa mineral e de transformação, segundo pesquisa da CNI. “Em todos os países, os graduados recebem mais do que os formados em níveis inferiores. Mas no Brasil, com a falta de trabalhadores qualificados, o mercado de trabalho começa a dar resposta aumentando os salários dos técnicos”, diz. Segundo ele, se hoje já é difícil repor os trabalhadores que trocam constantemente de emprego em busca de remunerações maiores, a longo prazo manter o contingente de mão de obra qualificada será um dos maiores desafios de uma indústria com alto potencial de crescimento. Piemonte alerta também para a questão da competitividade: “Hoje temos que produzir bens com qualidade e com preço competitivo. Se não tiver profissional qualificado, você pode planejar da melhor forma, não vai funcionar”. Como exemplo, cita a Coreia do Sul. Conhecido pela tecnologia de ponta, o país passou por três etapas: copiar, aprender a fazer e, finalmente, produzir melhor. “O Japão, a partir da Segunda Guerra [1939-1945] até hoje, passou pelas três fases. A China está na primeira, mas logo vai começar a melhorar e inovar”, aposta. “Para entrar nesse ciclo, precisa pôr a mão na massa, fazer direito e isso é ensino técnico. A chave do sucesso para ser competitivo não é formar doutores.” O potencial inovador do técnico é tão grande que muitos se formam e acabam fugindo das fábricas ou da continuidade dos estudos para se tornarem donos do próprio negócio. “Quanto melhor você souber fazer e reconhecer as dificuldades, mais vai enxergar alternativas para me-

lhorar, então ser técnico facilita o empreendedorismo”, diz Piemonte.

Perspectivas “Se o país tem plano de desenvolvimento para avançar no processo de agregação de valor dos produtos, no fortalecimento de setores que tenham maior capacidade tecnológica e de inovação, a figura do técnico é crucial. Temos que trabalhar para melhorar essa relação porque isso vai ser bom para a sociedade, para a indústria e para todos os segmentos que exijam esses profissionais”, resume Guerra. Para Piemonte, o principal desafio na expansão do ensino técnico é descobrir quais são as profissões que podem fortalecer o país nos próximos anos. “O Chile optou por não produzir carros porque não possuía mercado interno suficiente. Então investiu em itens mais relevantes para a economia do país: vinho, frutas secas e softwares”, enumera. O gerente do Senai aposta que as áreas com maior potencial no Brasil serão as de biotecnologia e nanotecnologia. “São conhecimentos transversais que estão presentes desde a embalagem até o setor de alimentos ou o automobilístico, e que têm a ver com evolução dos produtos e agregação de valor”, explica. Ainda assim, Guerra assinala a contínua relevância das áreas mais tradicionais, já que a estrutura do país não deve mudar de uma hora para outra. Já Gusso ressalta a necessidade de suprir as escolas “tanto de professores pós-graduados, quanto de bons instrutores com conhecimentos técnicos”. Para ele, também é importante criar currículos mais adequados a esse tipo de formação e às exigências do mercado de trabalho. Assim como o pesquisador do Ipea, Guerra, do Senai, defende o aumento de qualidade dos cursos técnicos.


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