Quando o revide é mais forte que o golpe

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martina cavalcanti revista@cidadenova.org.br

Quando o revide

é mais forte que o golpe TOTALITARISMO O governo turco foi ameaçado por um golpe de Estado freado pela população nas ruas. Mas a repressão oficial após a tentativa segue ameaçando a democracia – um bem que a sociedade turca parece querer defender a todo custo

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ma fração de menos de 2% do Exército tentou tomar o poder à força na Turquia no último dia 15 de julho, espa­ lhando pânico e revolta em Ancara e Istambul. Apesar do toque de reco­ lher imposto pelos golpistas, oposi­ tores e governistas ocuparam as ruas em manifestações contrárias ao ato antidemocrático. A resposta popular impediu o golpe, mas o revide do governo foi tão forte que atingiu em cheio a democracia, ainda em risco. O governo de Recep Tayyip Er­ dogan, conhecido por seu autorita­ rismo, garantiu a sua permanência no poder, mas pesou a mão ao afas­ tar do Estado figuras divergentes. Enquanto o confronto entre mili­ tares e civis deixou 270 mortos du­ rante a tentativa de golpe, a reação governista afetou a vida de 60 mil pessoas com demissões e prisões. Muitos foram torturados, de acordo com a ONG Anistia Internacional. “Normalmente todo contragol­ pe se caracteriza por ser tão ou mais violento do que o golpe em si. Pa­ rece que o mesmo aconteceu na Turquia”, opina Sérgio Luiz Cruz Aguilar, professor de Relações In­ ternacionais da Universidade Esta­ dual­Paulista (Unesp). “A quantida­

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de ­absurda de instituições fechadas nas últimas semanas indica um prejuí­zo muito grande para a socie­ dade turca.” Estima-se que mais de 2 mil instituições tenham sido dis­ solvidas, entre elas veículos de co­ municação e instituições de ensino. As ações colocam em risco a segurança, a educação e a liberda­ de de imprensa, além de afastar o país da adesão à União Europeia. A Turquia, importante ponte entre o Oriente Médio e a Europa, parece afastar-se do avanço obtido nos úl­ timos anos rumo à democracia. Es­ pecialistas consultados por Cidade Nova pre­ veem um futuro obscuro para a nação, mas também confiam na força da luta do povo turco rumo à liberdade.

Um golpe que caiu do céu Após o golpe, as autoridades tur­ cas demitiram, prenderam ou colo­ caram sob investigação milita­ res, policiais, juízes, professores, fun­ cionários públicos e jornalistas. O objetivo é livrar as instituições de membros do movimento político­ -religioso Hizmet, chamado por Edorgan de “Estado paralelo”. O grupo, que não é representado por

um partido, mas atua em vários se­ tores da sociedade civil, é encabe­ çado pelo clérigo Fethullah Gulen, exilado nos Estados Unidos e acu­ sado de tramar o golpe. O religioso repudia a acusação. Integrante do Hizmet e editor do portal Voz da Turquia, o jornalis­ ta Kamil Ergin nega a participação do movimento no golpe e critica a dificuldade do governo Erdogan em conviver com opiniões políticas ­divergentes. “Nós somos contra qual­ quer tipo de golpe. Estamos no sécu­ lo 21, todo mundo sabe que o melhor sistema é a democracia”, declara. “O que vemos é um regime ile­ gal que tentou ser libertado por ou­ tro regime ilegal. Não sei dizer qual é pior. Certamente não era isso que a Turquia sonhava em 80 anos de República”, explica Ergin. Segundo o jornalista, o movimento Hizmet prega a tolerância e a integração en­ tre as culturas e religiões. Os críticos de Erdogan supõem que o golpe pode ter sido armado pelo próprio governo para justificar a repressão indiscriminada contra a dissidência. “Não resta a menor dúvida. Esse pseudogolpe caiu do céu para Edorgan passar vassourada em setores que já queria ter contro­


Getty Images | AFP

Manifestação organizada pelo governo para demonstrar apoio popular após a tentativa de golpe

lado há mais tempo e não conse­ guia pelo espaço de liberdade que havia”, observa Estevão de Rezende Martins, professor de Relações Inter­ nacionais da Universidade de Brasília (UnB). Aguilar também vê o golpe com desconfiança. “Não houve prisão das autoridades nem o total contro­ le das instituições-chave, incluindo a infraestrutura estatal. Historica­ mente isso é ponto pacífico em qualquer tentativa de golpe. Mas o presidente não só pôde retornar à capital como circulou livremente conclamando a população a reagir”, diz. O professor ainda estranha que o serviço de inteligência do país, tão eficaz ao listar os inimigos do governo, não tenha levantado a pos­ sibilidade de golpe a tempo.

Já André Barrinha, professor de Relações Internacionais da Universi­ dade Cantebury Christ Church, no Reino Unido, considera improvável a teoria conspiratória. Para o espe­ cialista, o golpe serviu aos seguido­ res do clérigo Gulen como tentativa de reagir à limpeza planejada pelo partido de Erdogan – Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) – meses antes, mas que não deu certo porque não contavam com apoio suficiente dentro do Exército. Em resposta à rebelião, Erdogan declarou estado de emergência na Turquia pela primeira vez em 15 anos. O instrumento permite ao presidente assinar leis sem aprova­ ção prévia do Parlamento e amplia os atuais quatro dias de prisão pre­ ventiva legal para até 30 dias.

Autoritarismo O golpe fracassou, mas levan­ tou dúvidas sobre a legitimidade do polêmico personagem no poder. Erdogan comanda a Turquia há 13 anos e foi originalmente identifi­ cado como um líder muçulmano moderado, mas, nos últimos anos, tem governado o país com mão de ferro. Ele é acusado de barrar inves­ tigações de escândalos de corrupção no seu governo, demitir policiais e juízes, além de censurar a imprensa e a livre expressão na internet. No ano passado foi aprovada uma lei que considera crime “insultar o presidente”, útil para prender oposi­ tores. Graças à maioria absoluta de que dispõe no Parlamento, Erdogan agora tenta alterar a ­Constituição, de Cidade Nova • Setembro 2016 • nº 9

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internacional modo a concentrar os poderes do Es­ tado no Executivo, ou seja, no cargo de presidente ocupado por ele. “Erdogan caminha para criar um sistema totalmente dependente dele. Podemos considerá-lo como a volta do sultanato”, afirma Ergin. Segundo ele, o índice de aprovação do presidente é baixo e Edorgan já teria perdido sua credibilidade após tanto abuso de poder. “Ter 50% dos votos não dá o direito de eliminar os outros 50%. A Turquia merece um regime democrático que deixe espaço para oposição”, defende. O governista AKP é especialista em vencer eleições, mas parece es­ tar perdendo força. Eleito à presi­ dência por três vezes consecutivas, Erdogan venceu em 2015 com 52% dos votos. Segundo pesquisa eleito­ ral, o AKP continua tendo a apro­ vação de pouco mais da metade da população em uma sociedade cada vez mais dividida e amedrontada.

Estratégia de poder Apesar de todas as críticas, há ra­ zões importantes para a manuten­ ção de Erdogan no poder por mais de uma década. Entre elas, a estabi­ lidade econômica, com controle da inflação e crescimento anual médio de 4,5% no período. A partir de 2014 o cenário foi positivo, mas começou a mudar. A taxa de crescimento caiu e o de­ semprego aumentou, situação que pode se agravar com o golpe. “No­ tícias recentes dizem que o golpe re­ presentou um impacto de US$ 100 milhões na economia turca”, sugere Barrinha. “Além disso, o clima de instabilidade pode deixar investi­ dores internacionais com receio de investir no país”, alerta. Outra razão que garante a per­ manência de Erdogan é o medo da população das ameaças externas, aponta Aguilar. “Estado Islâmico 30

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e movimento curdo têm realizado ações na Turquia, especialmente aten­ tados, que fragilizam a segurança do Estado e da população”, observa. “Talvez esses fatos pesem e façam com que a maior parte da população ainda apoie o grupo de Erdogan, em troca de maior segurança.” A concentração da mídia pelo lí­ der dá pouca visibilidade às críticas sobre seu governo, que se fortalece. “Edorgan controlava 90% da mídia. Após o golpe, detém poder sobre 100% os meios de comunicação”, contabiliza o jornalista de oposição, Ergin. “As pessoas na Turquia não têm a chance de não acreditar nele.”

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Erdogan caminha para criar um sistema totalmente dependente dele. Podemos considerá-lo como a volta do sultanato

Tão perto, tão distante

O Ocidente vê a Turquia como parte da solução no Oriente Médio, já que sua localização geográfica permi­ te ao país ser uma ponte entre a tur­ bulenta região e a Europa, controlan­ do inclusive o fluxo de migrantes de uma área a outra. Com 750 mil sol­ dados, o exército turco é a segunda maior força da Organização do Tra­ tado do Atlântico Norte (OTAN), au­ mentando sua relevância estratégica. As atitudes autoritárias de Erdo­ gan e a tentativa de golpe preocu­ pam a Europa e os Estados Unidos,

uma vez que a instabilidade política no país coloca em risco seus inte­ resses. Uma das bandeiras do presi­ dente é implantar a pena de morte, abolida em 2004. A União Europeia (UE) já avisou que a prática enterraria de vez o processo de adesão ao bloco. “Já era difícil que a Turquia tivesse chance de ingressar, pois está muito longe de cumprir as exigências da UE. Recentemente, houve marcha ré de tal forma rápida, que o país volta ao fim da fila”, opina Martins.

Histórico autoritário Antes da chegada do AKP ao poder, a Turquia enfrentou quatro golpes militares entre as décadas de 1960 e 1990. Nessas ocasiões as For­ ças Armadas exerceram a chamada “defesa do secularismo”, ou seja, do estado laico contra a influência da religião no governo. “A tentativa de rompimento constitucional tem relação especialmen­ te com a tentativa declarada de Er­ dogan de implantar um Estado Islâ­ mico num país que, desde a reforma implementada por Mustafa Kemal Atatürk no início do século 20, esta­ beleceu um Estado secular”, explica Aguilar. “Desde então, as forças ar­ madas têm se portado como garan­ tidoras desse tipo de Estado e de sociedade. As tentativas de retornar oficialmente práticas islâmicas fo­ ram impedidas por golpes militares.” A Turquia enfrenta cada vez mais turbulência, e muitos creem que a tentativa de derrubar o presidente Erdogan pode não ser a última. Por outro lado, depois de tantos golpes e tendo em vista a forte reação popu­ lar ao episódio recente, a conclusão é de que a sociedade turca já não to­ lera esse tipo de ameaça democráti­ ca e pode surpreender ao lutar com unhas e dentes por uma sociedade onde a liberdade impere.


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