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Trecho de “Canção do Contrabandista”, de Rudyard Kipling Cinco com vinte pôneis, Trotando na escuridão – Conhaque para o vigário, o fumo do vendedor. Rendas para uma dama; cartas para o espião, Olhe para o lado, meu bem, quando a caravana passar! Se vierem os homens do rei, em suas fardas de soldado, Tenha cuidado com a língua, meça bem as palavras. Se lhe chamarem “bela moça” e fizerem algum agrado Não revele meu paradeiro, nem aponte nenhum lado! Cinco com vinte pôneis, Trotando na escuridão – Conhaque para o vigário, o fumo do vendedor. Quem nada questiona mentiras não terá – Olhe para o lado, meu bem, quando a caravana passar!

INTRODUÇÃO Este livro e os eventos nele descritos nasceram do amor e da raiva: do amor por dois países (Estados Unidos e Venezuela), pela liberdade e dignidade; e da raiva contra a repressão, a corrupção e a manipulação. Está no meu sangue. Os meus avós Neumann eram judeus tchecos que perderam a maior parte de suas famílias para o nazismo e, mais tarde, escaparam da repressão soviética com a ajuda de um contrabandista que os fez chegar à Venezuela depois de terem sido rejeitados nos Estados Unidos. Em 1949, o país estava sob uma ditadura militar, mas, mesmo assim, era como a Terra Prometida para um casal de refugiados pobres: os meus avós trabalharam duro e prosperaram tanto que, dez anos mais tarde, estavam enviando o filho (meu pai) para um colégio interno em Millbrook, Nova York. Esse filho acabou se casando com uma garota americana de classe média que entrou na sua vida apresentada pelos padrinhos, funcionários da Shell trabalhando na Venezuela. A empresa familiar dos Neumanns, a Corimon, figurou na lista da Bolsa de Valores de Nova York em 1993, uma das primeiras companhias sul-americanas a conseguirem esse feito. Nós e um grupo de outros empresários venezuelanos criamos um programa de MBA que não só era inspirado no modelo de Harvard como contava com a orientação do professor da Faculdade de Administração de Harvard Michael Porter, o guru dos negócios que assina os livros Estratégia Competitiva e Vantagem Competitiva. Eu era ingênua demais para me dar conta disso na ocasião, mas havia uma transformação em curso. Quando era aluna da Universidade de Columbia, eu passava as férias de verão trabalhando na redação do The Daily Journal (o nosso jornal em língua inglesa, tocado por um grupo que


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mais tarde seria transferido quase na íntegra para o The Latin American Herald Tribune, fundado por um ex-editor do Daily Journal) e circulando pelos departamentos financeiro e de planejamento corporativo da Corimon. E, como uma socialite de Caracas que era na época, eu vivia aparecendo nas colunas sociais, em capas de revistas e até nos noticiários exibidos em salas de cinema. O último voo entre Paris e Caracas do Concorde da Air France aconteceu em 23 de março de 1982, poucos meses antes de eu me mudar para os Estados Unidos. A classe média venezuelana costumava escarnecer da pobreza dos americanos, e nessa época eram comuns as viagens de compras em voos que saíam de Caracas para Miami levando grupos que desembarcavam na cidade pela manhã, passavam o dia circulando pelas lojas e voltavam no final do dia. Eles eram o mote perfeito para esquetes de humor na linha do Saturday Night Live: hordas de venezuelanos sem modos, recém-alçados à classe média, que virariam Miami do avesso antes de encerrar o quadro com o bordão: “Está barato, vou levar dois”. Estávamos no auge da “era dos 4,30”, quando o câmbio da moeda do país, o bolívar, estava em 4,30 para 1 dólar. Hoje, a taxa é de 2.200.000 BsF para US$ 1* , e o canal de TV que exibia o Saturday Night Live na Venezuela – fundado pelo ramo da família Phelps radicado no país, ligado aos Rockefellers – foi fechado há muitos anos pelo presidente Hugo Chávez. O canal era o que tinha maior penetração entre os venezuelanos. Foi ali que a transformação começou, mas eu era ingênua demais para me dar conta das implicações que ela teria. O coronel Chávez surgiu no cenário político com a sua retórica revolucionária inflamada e o seu enorme carisma por ocasião da sua tentativa frustrada de golpe em fevereiro de 1992. Durante o minuto de transmissão televisiva que o então governo lhe concedeu para desmobilizar suas tropas, Chávez anunciou: “A nossa luta não foi vitoriosa por ahora”. Esse por ahora (por enquanto) iria se transformar no seu lema político – e continuou sendo repetido mais de uma década mais tarde, quando ele já estava ocupando a presidência. O discurso televisivo de 1992 foi a mistura de uma determinação do tipo “eu voltarei” com a tomada de responsabilidade pelo que havia saído errado naquele dia. Furiosos, * Valor aproximado, a partir de janeiro de 2017, quando o Bolívar Fuerte (Bs.F.) era negociado em cerca de Bs.F. 2.200 = US$ 1 no mercado negro. Devido à inflação fora de controle, o Bolívar Fuerte (Bs.F.) substituiu o Bs. (Bolívar) em 1o de janeiro de 2008. Bs.F. 1 = Bs. 1.000.

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marginalizados e mergulhados na pobreza, os venezuelanos ficaram impressionados quando o ouviram. Havia décadas que não se via um líder político do país assumir responsabilidade por algo de errado que acontecia: pela escalada da criminalidade, pelos índices crescentes de desigualdade social ou pela corrupção cada vez maior. Hugo Chávez foi alçado instantaneamente por muitos à posição de herói revolucionário: a batalha por justiça para os oprimidos acabava de ganhar um rosto heroico (o de Chávez) e um slogan (por ahora). Posto em liberdade depois de ter cumprido a pena pela tentativa de golpe, Chávez levou a melhor nas eleições presidenciais de 1998 – surfando alto na onda de revolta e protestos que o levou ao palácio da presidência. Depois que Chávez venceu a eleição, meu avô foi o cofundador de mais um jornal, chamado de Tal Cual. A expressão, que pode ser traduzida aproximadamente como “assim mesmo”, é usada pelos venezuelanos para enfatizar os detalhes de uma história que está sendo narrada (“Foi assim mesmo que aconteceu!"), ou então para expressar concordância com uma narrativa que esteja sendo feita por outra pessoa. O Tal Cual foi pensado para combater o chavismo, nome pelo qual a ideologia de Hugo Chávez passou a ser conhecida, e para ser distribuído nas regiões mais pobres e mais chavistas do país. O outro cofundador do jornal, que assumiu também o posto de editor-chefe, era o ex-guerrilheiro comunista Teodoro Petkoff, dono de uma trajetória pessoal que tornava ainda mais poderosa a sua rejeição ao regime de Chávez. A tese de doutorado que eu defendi na Universidade de Columbia, no princípio dos anos 2000, apresentava uma crítica à ascensão de Chávez à presidência da Venezuela e à sua subsequente consolidação de poderes, que ele justificou com uma retórica inflamada e divisionista. A meu ver, essa manobra seria uma porta aberta para a corrupção e para a violação ditatorial dos direitos humanos. E eu estava com a razão. Em 2006, meu tempo era dividido entre o cargo de professora de Filosofia Política no Hunter College, em Nova York, e um cargo no Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, um laboratório de ideias baseado em Londres que se especializou na análise de conflitos armados. Na época, eu estava estudando detalhes da guerra civil de baixa intensidade que se desenrolava na Colômbia e examinando os papéis desempenhados tanto pelo governo venezuelano de Chávez do


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outro lado da fronteira quanto pelo tráfico de drogas para o fortalecimento da violenta guerrilha narcoterrorista no país (uma insurgência terrorista que assumiu o controle da produção de drogas em território colombiano) sob o nome de Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, mais conhecidas simplesmente como Farc. Graças à minha pesquisa, eu sabia que a Revolução Bolivariana liderada por Chávez estava repleta de criminalidade e corrupção e seguia uma agenda imperialista própria, mas, ao longo de sua primeira década na presidência, Hugo Chávez havia se fortalecido à custa do ressentimento econômico da população quase até as raias da invencibilidade. Uma brecha nessa couraça acabou aparecendo, entretanto, em dezembro de 2007, quando o presidente perdeu o referendo que aprovaria mudanças constitucionais capazes de lhe garantir o poder ditatorial de governar por decreto, suspendendo os direitos civis e efetivamente instaurando a sua permanência vitalícia no cargo. Mais que depressa, Chávez reagiu ao resultado das urnas com uma postura desafiadora: “A meu ver, essa não foi uma derrota. Isto é apenas por ahora”. Em 2008, o casamento me levou a fazer parte de uma família britânica envolvida tanto com o ramo do jornalismo quanto com a política: meu sogro, o parlamentar Bill Cash, era famoso como um Tory Thatcherista (um conservador, contrário à integração europeia da Grã-Bretanha); e meu marido, William Cash, era escritor e dono de revista. A festa do nosso casamento aconteceu no salão da Câmara dos Comuns do Palácio de Westminster, onde funciona o Parlamento Britânico, e teve entre os convidados os editores e donos de todas as principais publicações do país, do Financial Times ao The Sun, com exceção do The Guardian. Insatisfeito com os resultados do referendo de 2007, o presidente Chávez convocou uma nova consulta popular em 2009 – a que me levou a dar entrevista para a BBC e lançou minha carreira como comentarista política. Quando eu já estava de volta a Nova York, o interesse da mídia pela Venezuela permaneceu em alta, e foi o que me levou a aparecer na Al Jazeera English, a continuar a contribuir com a revista britânica Standpoint e estrear como colunista na publicação americana de viés conservador The Weekly Standard. Foi nessa época, também, que o governo colombiano (conservador, pró-EUA e antichavista) me convidou duas vezes a ir ao país.

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Em 2010, eu me estabeleci como Vanessa Neumann, pessoa jurídica. Minha primeira incursão profissional ao mundo obscuro das transações comerciais ilegais ocorreu em 2011, quando fui chamada para dar suporte a uma investigação anticorrupção. Uma empresa de investigações da cidade de Washington me procurou especificamente por saber que eu teria acesso privilegiado à firma que estava sendo investigada. A contratante da investigação (uma empresa com longa tradição no mercado, legitimidade e porte gigantesco) tinha passado pela situação de ver uma parte significativa de seus ativos confiscados por agentes governamentais em benefício de uma rival (a tal firma à qual eu teria acesso). Os ativos roubados foram usados como garantia para um empréstimo tomado de um banco estrangeiro, e boa parte do dinheiro desse empréstimo fora parar em contas em nome dos tais agentes governamentais em uma jurisdição com forte sigilo bancário. Não era um caso fácil de ser destrinchado ou explicado, mas a vitória acabou sendo nossa. Daí por diante, o combate à corrupção se transformou em uma causa pessoal minha. Em 2013, fechei meu primeiro contrato duradouro com um cliente, uma multinacional que vinha tendo problemas sérios tanto com falsificações de mercadorias quanto com a concorrência de empresas pertencentes a grandes organizações criminosas. Foi nesse momento que rebatizei minha firma com o nome de Asymmetrica, para passar a aplicar os princípios da guerra assimétrica (o conjunto de procedimentos que levam um lado menor e mais ágil a derrotar um oponente maior) com a missão expressa de combater o comércio ilegal a mando de clientes corporativos e governamentais. E o que você está prestes a ler é a história da nossa experiência de lá para cá.


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UMA SIMPLES TRANSAÇÃO Jackie adora uma oferta, e é uma mulher elegante que anda sempre na moda. Como banqueira que é, ela sabe reconhecer um bom negócio quando está diante de um, e esse foi um negócio que definitivamente chamou sua atenção1. Ela saía da Bloomingdale’s de Manhattan, onde tinha ido para comprar um frasco do seu perfume favorito, quando passou por um camelô com sua banca de bolsas de luxo falsificadas. Com uma passada rápida de olhos, ela conferiu as ofertas: uma edição limitada da Louis Vuitton assinada pelo artista japonês Takashi Murakami (nas versões decoradas com estampas de cerejas ou flores), algumas bolsas a tiracolo Prada e Chanel revestidas de matelassê. – Bela seleção – comentou Jackie. Seus olhos pousaram numa Chanel creme. O homem alto e de pele muito escura estava atento. – Você tem muito bom gosto – reagiu ele, com seu sotaque franco-africano. Jackie pegou a bolsa para examiná-la. O couro era macio, uniforme, e as costuras retas e bem-feitas. – De onde você é? – ela quis saber, enquanto abria a bolsa. – Do Senegal.


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Ela ergueu os olhos. – Alors, vous parlez français? – Oui. A bolsa não tinha o alto-relevo dos Cs entrelaçados na parte de dentro, mas por fora era uma réplica convincente. – Quanto é? – Cento e cinquenta dólares. – Está cara – ela reclamou. Uma verdadeira custa mais de US$ 4.300. – Mas é coisa fina – respondeu o homem. – Faltam os Cs estampados no forro – retrucou Jackie. Ele provavelmente não devia saber a diferença, mas ela estava mostrando que conhecia o produto muito bem: caso conseguisse convencê-lo dos defeitos, talvez o fizesse baixar o preço. O camelô se manteve firme. – O preço é bom pra coisa tão fina. – Oitenta – ofereceu ela. – Não. Cento e cinquenta. – Cento e vinte – Jackie insistiu. – Tudo bem. Um gritinho de satisfação escapou dos lábios de minha amiga quando ela tirou as seis notas de vinte da carteira e entregou-as ao homem. O nome do sujeito era Amadou, e sua família continuava no Senegal. Ele estava tentando tirar os parentes da pobreza, do jugo da Al Qaeda no Maghreb Islâmico e dos traficantes e separatistas que infestavam a região senegalesa do Casamance, onde vivia a família, um ponto estratégico de onde os rebeldes disparavam ataques através das fronteiras contra os seus países de origem situados na vizinhança, Gâmbia e Guiné-Bissau. Toda essa complicação política se traduzia em um monte de homens contrabandeando armas pelo povoado da família de Amadou. Homens armados também eram uma presença constante para proteger as lavouras senegalesas de maconha e carregamentos de heroína vindos do Sudeste e do Sudoeste Asiático e cocaína da América do Sul – todas as drogas a caminho do seu destino final na Europa. Contrabandistas haviam infiltrado Amadou no território americano, pela fronteira com o México, a um custo de $ 10.0002. Para o camelô, essa era uma quantia nababesca, mas lhe disseram que ele poderia pagar aos

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poucos com o que ganhasse com seu trabalho, e que na América seria muito fácil arrumar um emprego e até ter dinheiro de sobra para mandar para a família no Senegal. Só que foi uma viagem difícil, e a realidade que o esperava era bem diferente da que havia sido vendida pelos contrabandistas. Amadou recebeu um passaporte falso e foi embarcado num voo para a Espanha. De lá, ele foi levado de barco até a Colômbia – Cuba, Equador ou Argentina seriam os outros destinos possíveis. Na Colômbia, o senegalês se estabeleceu e trabalhou por seis meses, até juntar um pouco mais de dinheiro para pagar pelo restante da jornada até o México e de lá para os Estados Unidos. A dívida com os contrabandistas parecia nunca diminuir. Os homens encarregados do seu transporte se tornaram senhores do seu destino: confiscaram o passaporte de Amadou e cobravam pelo abrigo e comida que lhe davam em um prédio no Queens, que servia de depósito para muitos outros estrangeiros ilegais que eles levavam para o país. As condições do alojamento eram precárias: os ilegais passavam as noites tremendo em sacos de dormir, os corpos gelados amontoados sobre o chão frio. Amadou achava que as pessoas que o levaram para o país talvez tivessem ligação (uma parceria de negócios ou, mais provavelmente, laços familiares) com os contrabandistas chineses que fabricavam e levavam para os Estados Unidos as bolsas falsificadas que ele fora recrutado para vender. As bolsas provavelmente passavam pela Zona Franca de Jebel Ali, em Dubai, para entrar nos Emirados Árabes Unidos. Alguns dos funcionários da aduana do país, informados dos carregamentos vindos da China, dão um jeito de lidar pessoalmente com eles, por causa da propina que recebem do representante local da rede criminosa. Esses funcionários corruptos carimbam os documentos para dar a entender que a mercadoria foi dividida em outros lotes e acrescentam nomes de empresas locais para fazer parecer que as bolsas são feitas em Dubai, não na China, já que a procedência chinesa faria disparar o alerta da alfândega americana em busca de contrabando. Para garantir que as réplicas não sejam confiscadas, bolsas e etiquetas são enviadas separadamente, e elas só são presas aos produtos depois que a mercadoria chega ao depósito do Queens. Sem as marcas, as bolsas falsificadas não configuram violação das leis de propriedade intelectual e não podem ser apreendidas pelos agentes da lei. A prática do envio


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legal de produtos genéricos para que depois trabalhadores – muitos deles imigrantes ilegais – carimbem, bordem ou colem os logotipos das grifes ou outros detalhes identificadores antes que eles sejam vendidos no varejo é chamada de “finishing” ou acabamento3. A Chanel que Jackie adquiriu, assim como as outras bolsas vendidas por Amadou, provavelmente foi feita em Guangzhou, na China. A China é a principal fornecedora de contrabando e mercadoria pirata no mundo: os produtos chineses correspondem a 63% de todas as apreensões, a um valor total (baseado no preço de revenda sugerido) de $ 772 milhões. O segundo lugar fica com Hong Kong, com $ 310 milhões em apreensões ou 25% do total4 . Pode ser também que a bolsa tenha sido feita na Tailândia, por meio da escravidão infantil, por crianças menores de 10 anos que trabalham sentadas no chão costurando as bolsas de couro. As condições são brutais: algumas delas têm as pernas quebradas para que não possam se levantar, e em alguns casos a perna é amarrada à coxa para que a fratura não cicatrize nunca5. A rede de criminosos chineses (uma das que são conhecidas como as tríades) que é dona das fábricas também cuida do envio de heroína, cristais de metanfetamina e cocaína, às vezes escondendo a droga dentro das bolsas contrabandeadas. São eles que transportam imigrantes ilegais, como Amadou, além de garotas asiáticas que se tornam prostitutas em Paris ou Amsterdã ou vão trabalhar em “casas de massagem” de Camden, Nova Jersey, ou qualquer outra cidade. As tríades são redes altamente organizadas de criminosos, mas elas têm conexões políticas profundas na China e em outros países com presença expressiva de chineses – e em todos os bairros do tipo Chinatown pelo mundo, para começo de conversa. Os lucros do tráfico de drogas e pessoas passam então por um processo de lavagem de dinheiro que envolve apostas fixas e cassinos também comandados pelas tríades. Um jogador baseado em um país pode acessar uma plataforma on-line situada em outro para talvez apostar nos resultados de uma partida esportiva disputada em um terceiro país, tudo em tempo real. Dos cassinos, o dinheiro ganho é enviado para Londres ou diretamente a Genebra, onde um banqueiro competente recebe uma comissão maior que a de hábito para “estratificar o dinheiro” – combinando-o com fundos de diversos outros clientes em produtos financeiros mantidos por trustes e

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controlados por firmas de advocacia de Liechtenstein ou do Panamá. Dessa forma, o dinheiro se torna perfeitamente seguro e impossível de rastrear. O competente banqueiro suíço, quando solicitado, fará transferências milionárias (ou de dezenas de milhões) para uma companhia baseada nas Seychelles com escritório em Dubai e conta bancária em Guernsey. Essa companhia pertence a um negociante de armas que envia material para soldados das Farc colombianas, do Hezbollah libanês, do Boko Haram e da Al Qaeda no Maghreb Islâmico da África Ocidental, para o Al Shabaab da Somália e para o Daesh (nome árabe pelo qual o Estado Islâmico – EI – é conhecido) na Síria e no Iraque. Toca a campainha na minha casa. É a Jackie. – Menina, eu preciso lhe mostrar o que comprei! Ela saca a Chanel creme nova. – Não é maravilhosa? Mal se nota que é falsa. Você tem um fornecedor incrível bem aqui na esquina. Eu paguei cento e vinte dólares, em vez dos quatro mil e trezentos que custa na loja. Eu sei que, mesmo a esse preço, a margem de lucro pode valer um grama de heroína, mas nem Amadou nem os fornecedores dele, e muito menos os funcionários corruptos da alfândega, devem ser presos por causa disso. Um bipe no telefone anuncia a mensagem de texto do meu namorado: ele está a caminho do Iraque para se juntar à Ofensiva de Mossul, a operação iraquiana com apoio de uma coalizão de forças ocidentais para libertar a cidade do jugo do EI. Mossul está entregue à violência do grupo terrorista desde junho de 2014, quando o EI tomou toda a região de assalto feito um raio. Foi esse evento que mostrou ao mundo que não se tratava de um grupo terrorista como qualquer outro. Depois que o exército iraquiano bateu em retirada, deixando para trás suas armas de fabricação americana, elas foram prontamente recolhidas pelos terroristas e acrescentadas ao seu arsenal cada vez mais poderoso. Em Mossul, o líder do EI Abu Bakr Al Baghdadi anunciou a implementação do Califado Islâmico e a instauração do regime brutal que impõe às mulheres o uso do niqab (véu negro que cobre o rosto inteiro, deixando só uma fenda para os olhos) ou as transforma em escravas sexuais, que manda cortar as mãos e a cabeça daqueles que não seguem as regras e faz com que homossexuais sejam atirados do alto dos prédios. Meu namorado, Chris (esse não é o nome verdadeiro dele), estava indo fazer parte das Forças Especiais que lutariam


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pela retomada da cidade. Caso acabasse capturado pelo EI, talvez um dia eu tivesse que assistir a um vídeo com a imagem dele sendo decapitado. Olhando para a bolsa Chanel falsificada trazida por Jackie, eu me pego pensando no preço verdadeiro dela.

UM MUNDO DE FALSIFICAÇÕES A pirataria atinge de fórmulas para alimentação de lactentes a medicamentos, levando a resultados trágicos ou mesmo à morte de seus consumidores. Mas, entre quem consome esses produtos, são poucos os que se dispõem a exigir o combate efetivo da falsificação: consumidores gostam de uma boa oferta. O mercado de produtos ilegais é imenso. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que define diretrizes de política econômica para os seus trinta e seis países-membros e que me tem como conselheira da sua Força-Tarefa para Combate ao Comércio Ilegal, estimou que o contrabando e o comércio de mercadoria pirata representaram 2,5% de todas as transações comerciais no mundo em 2013, movimentando um total de US$ 461 bilhões6. Na União Europeia esse número ficou mais alto, com até 5% de todas as importações7. Ainda assim, há quem olhe com desconfiança as alegações feitas pelas marcas que são alvo de pirataria a respeito dos imensos prejuízos causados por essa prática à indústria. Um nome que se destaca nesse grupo dos mais céticos é o do professor David Wall, da Universidade de Durham. Wall foi o coautor de um relatório que afirmava que o custo verdadeiro da falsificação talvez correspondesse a apenas um quinto do resultado calculado anteriormente, e que os consumidores raramente se deixam ludibriar pelos fabricantes do mercado negro, na verdade acolhendo de bom grado a opção de consumo oferecida pelas falsificações. O relatório, além disso, chegava a dizer: “A pirataria, na verdade, é benéfica para as empresas que são alvo dela, acelerando o ciclo da moda e aumentando o fator de notoriedade das suas marcas”8. A falsificação de produtos de luxo, portanto, é um problema menor no entender do professor Wall, que acredita que as autoridades devem investir sua energia no combate às “coisas que representem ameaças verdadeiras ao bem-estar das pessoas”, como “peças de procedência duvidosa para aeronaves”.

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Falta a David Wall um entendimento mais completo do funcionamento desse universo e uma visão sobre como o simples ato de “puxar o fio da meada” na investigação sobre a pirataria de produtos que são consumidos todos os dias leva a um tipo de conhecimento capaz de impactar os peixes grandes do comércio ilegal e dar às autoridades ferramentas poderosas para agir em defesa do cidadão. No mundo formado por esse “delitoduto crime-terror”, o dinheiro da venda de bolsas falsificadas, cigarros e remédios piratas acaba sendo usado para comprar armas que matam nossos soldados e bombas que aterrorizam as nossas cidades. O atentado ao World Trade Center, em 1993, provavelmente foi financiado em parte pelo comércio de camisetas falsificadas, segundo apuração da Coalizão Internacional de Combate ao Contrabando9. Angel Acebes, na época ministro do Interior da Espanha, declarou que “um dos suspeitos [membro da Al Qaeda] presos [pelo atentado a bomba de 11 de março de 2004 em Madri] já era um contrabandista conhecido das autoridades”10. Cigarros piratas financiam grupos paramilitares na Irlanda do Norte; CDs e outras mercadorias piratas financiam as atividades do Hezbollah no Oriente Médio. Partidários da Al Qaeda foram flagrados com quantidades enormes de mercadorias de contrabando. “Achar um criminoso ligado à Al Qaeda portando algo assim é como flagrar uma barata ou um rato na sua casa”, diz o ex-secretário-geral da Interpol Ron Noble. “Uma única ocorrência já deve ser suficiente para deixar você em alerta.” Mercadorias piratas são imensamente populares. De acordo com o relatório de Wall, todos os anos mais de dois quintos dos consumidores (43%) compram itens falsificados de alguma das maiores grifes mundiais, como Louis Vuitton, Yves Saint-Laurent, Burberry ou Gucci. Quase um terço das vendas do mercado de alto luxo é feito via Internet, e 90% dessa parcela das vendas envolve itens falsificados11, segundo dados do maior conglomerado mundial voltado para esse segmento de consumo, a LVMH12. E não estamos falando aqui apenas de roupas ou acessórios – tudo o que nós consumimos pode ser pirateado: produtos eletrônicos, remédios e itens de cuidado pessoal, óculos e lentes de contato, brinquedos e até mesmo os logotipos e etiquetas que identificam todos eles, que, como vimos anteriormente, em muitos casos são enviados separadamente. Até mesmo comida é alvo da pirataria: desde a década de 1990, vêm acontecendo


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apreensões de ovos falsificados na China e em países vizinhos13. A gema, a clara e a casca desses ovos falsos são feitas de pó de gesso, carbonato de cálcio e cera, e o custo de produção pode chegar à metade do que se paga por ovos de verdade – especialmente durante as altas de preços vistas em crises de abastecimento como a provocada pelo surto de gripe aviária de 2012, que fez os ovos falsos se tornarem mais lucrativos e mais comumente encontrados no mercado.

A CONVERGÊNCIA Todas as mercadorias ilegais que chegam às nossas mãos tão facilmente – cigarros baratos, petróleo bruto, prostituição, Viagra falso, bolsas de grife falsas e até DVDs piratas – geram dinheiro para bandidos perigosos. Os próprios produtos ou o lucro da venda deles passam pelas mãos da máfia russa, do Jihad muçulmano, dos cartéis mexicanos, das tríades chinesas e de chefes de Estado da Europa Oriental. E quem está entregando o dinheiro a todos eles somos nós, consumidores. Desde as selvas colombianas até os corredores do poder de Washington e de Paris, eu rastreei as alianças cada vez mais fortes entre criminosos, terroristas e o comércio globalizado. A participação dos terroristas tem sido cada vez mais frequente no negócio, sob a forma de transações ilegais e comércio ilícito. Se antes o dinheiro sujo era usado para financiar a compra de armas, hoje são as armas que protegem a tramitação desse dinheiro, e aí está o lado mais sombrio da globalização: tanto criminosos quanto terroristas se aproveitam da infraestrutura do livre comércio mundial, na qual mercadorias atravessam fronteiras com uma facilidade que nunca se viu. Os lucros são estratosféricos. Graças a altas drásticas na tributação do produto legalizado, os cigarros de contrabando hoje têm uma margem de lucro semelhante à da cocaína, e bolsas falsificadas rendem tanto quanto heroína; isso sem mencionar que a penalidade para quem for flagrado contrabandeando mercadorias assim é ridiculamente leve. Diante disso, por que os terroristas não quereriam se envolver cada vez mais no comércio ilegal de bens de consumo? O contrabando é uma atividade em alta. As autoridades têm noção do problema. Quando eu estive nos Emirados Árabes em novembro de 2014, ouvi de um consultor do emir de Abu Dhabi em uma reunião particular que o país enfrentava “um problema de imagem, especialmente no tocante a Dubai e à Zona Franca de Jebel

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Ali. Quando escutam as palavras ‘Dubai’ e ‘Jebel Ali’, as pessoas pensam imediatamente em comércio ilegal. É por isso que os Emirados Árabes Unidos estão fazendo todo o possível para aderir a todos os protocolos contra a lavagem de dinheiro e o contrabando existentes. Mas o que acontece é que os criminosos e terroristas estão aí, e eles infestam como parasitas as infraestruturas que nós construímos”. Esse funcionário do governo estava claramente se sentindo encurralado: “Eles arruinaram o que nós construímos aqui, e não sabemos o que fazer a respeito. Agora os terroristas se meteram nas transações comerciais e estão querendo lucrar o máximo que puderem, e os criminosos – que antes eram mais fáceis de combater, porque só agiam para ganhar muito dinheiro – agora agem com objetivos políticos. É um pesadelo!”. Esses comentários do consultor dos Emirados Árabes resumem bem a questão: os terroristas estão cada vez mais se comportando como empresários do crime, voltando seu foco da revolta para a cobiça, ao passo que os criminosos cada vez mais se voltam contra os governos – além do que, quanto mais interagem entre si, mais os criminosos e terroristas aprendem uns com os outros. A razão para isso tudo é simples: o terrorismo precisa de dinheiro. Países que foram provedores de fundos significativos para terroristas no passado (como Irã, Líbia, Arábia Saudita e Rússia) agora destinam bem menos dinheiro para eles. Paralelamente a isso, doadores individuais tiveram os seus fluxos de capital monitorados e interceptados. Privados de suas fontes tradicionais de renda, os terroristas passaram a querer fazer negócios com criminosos. Isso quer dizer que os dois grupos compartilham informações, aprendem mais depressa e têm sido mais bem-sucedidos do que em qualquer outro momento da história. Essa é a realidade apavorante da conexão entre crime e terror: uma convergência entre a ameaça da criminalidade e a ameaça do terrorismo – e problemas em dobro. Essa convergência crime-terror contradiz o pensamento usual nos estudos sobre segurança, que diz que terroristas e criminosos não vão querer ter nada a ver uns com os outros. O argumento para isso costumava ser: criminosos vão querer passar longe da carga extra de escrutínio e agitação que a parceria com o terrorismo traria, e terroristas são movidos demais por causas ideológicas para quererem trabalhar com bandidos que só pensam em ganhar dinheiro; criminosos transferem quantias grandes de dinheiro ao longo de períodos de tempo mais extensos, e o terrorismo


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não necessita de tanto dinheiro assim. Mas não foram essas as conclusões do meu trabalho, em que a investigação das rotas de contrabando de bens de consumo falsificados revelou ligações com o tráfico de drogas, terroristas e funcionários públicos corruptos. Na Colômbia, na Venezuela e no Líbano eu apurei como a cocaína financia o Hezbollah, que também recebe dinheiro das vendas de cigarros contrabandeados nas Américas do Norte e do Sul. No Panamá, vi como produtos esportivos falsificados mantêm programas radicais islâmicos. Na Europa Oriental, Iraque, Síria e Turquia, o estudo apurou como o “mercado branco ilícito” (produtos enviados por contrabando, mas não falsificados) de cigarros custeia a rede de crime organizado russa ligada ao serviço de inteligência do país e às missões secretas conduzidas por ele na Síria e na Ucrânia. Se um ataque terrorista individual pode sair barato (sendo organizado facilmente com menos de $ 10 mil), manter uma rede de terrorismo operante é outra história. Os membros ativos espalhados pelos braços de atuação da rede (que em alguns casos se estendem por todas as partes do mundo) precisam ter moradia, alimento, treinamento e transporte. As redes terroristas mantêm também websites, jornais e canais de televisão, e muitas vezes se encarregam de prover serviços sociais para as comunidades locais que formam os seus distritos de atuação e fontes de suporte. O custo total de uma operação assim chega às centenas de milhões de dólares por ano. O recrutamento e a doutrinação dos combatentes para as linhas de frente do terrorismo também têm custo alto, assim como o treinamento para que saibam operar na clandestinidade. O treino precisa acontecer em locações afastadas, que têm um custo de manutenção, assim como as casas fortificadas que serão usadas para abrigá-los. Falsificadores de documentos e contrabandistas de pessoas precisam receber dinheiro para permitir que os terroristas atravessem fronteiras, da mesma forma que guardas aduaneiros, investigadores e agentes governamentais. É preciso haver também um suprimento constante de telefones descartáveis e aplicativos criptografados14. Isso num modelo tradicional de operação terrorista. A mudança que levou os terroristas a adotarem as redes sociais como meio para o recrutamento de “lobos solitários” (em geral, indivíduos descontentes com a vida e que sofrem de distúrbios psicológicos) que compram suas próprias armas e planejam por conta própria os ataques para

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depois classificá-los como “jihad” provocou transformações na organização tradicional do terror que serão exploradas a fundo mais adiante. De olho na oportunidade de ganhos financeiros, os terroristas se envolveram com o comércio ilegal. Para isso, eles se aliam a grupos criminosos multinacionais ou empregam os métodos adotados por esses grupos e entram, eles próprios, para a criminalidade. Afinal, revolucionários precisam de dinheiro para comprar armas, recrutar soldados e organizar sistemas paternalistas nos territórios dominados de modo a garantir a dependência das populações locais. O Hezbollah é um exemplo brilhante dessa estratégia: no Líbano, o grupo representa uma fonte mais segura do que o governo local de alimento, assistência médica, moradia e até mesmo de abastecimento de água, coleta de lixo e energia elétrica para a população xiita que forma sua base de apoio. O EI agiu da mesma maneira em Raqqa, na Síria, onde está a história de governança mais duradoura entre todos os seus territórios ocupados. É uma área onde o islamismo militarizado doutrina os alunos das escolas, o grupo controla a distribuição de água e pão e mantém patrulheiros armados para garantir que as vestes e a conduta das pessoas obedeçam às normas de pureza muçulmanas. Sem dinheiro, nada disso seria possível. Esse dinheiro vem de doadores ricos do Golfo Pérsico, da mesma maneira que no modelo tradicional, é verdade, mas a porção mais significativa dele se origina do comércio ilegal: contrabando de petróleo e cigarros e tráfico de pessoas – na forma de escravas sexuais para os soldados e de reféns que são capturados de outros grupos e vendidos para renderem o pagamento de resgates ou que acabam decapitados quando o resgate não é pago. O Hezbollah é dono do comércio ilegal de produtos com tabaco na América Latina e é o principal agente do tráfico de heroína e cocaína para a região do Levante – pouco importando que o consumo de drogas seja proibido pela charia muçulmana. Os guerrilheiros marxistas das Farc são os narcoterroristas que deram origem ao termo: os maiores produtores mundiais de cocaína que respondem também pela insurgência terrorista mais duradoura do mundo. Sendo assim, em resumo, terroristas eficazes precisam se tornar criminosos eficazes, contrabandistas e especialistas em crime organizado.


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Essa ligação não deveria parecer tão surpreendente – há muita coisa em comum entre os criminosos e os terroristas15. Para começar, ambos são quase o tempo todo atores racionais. Em segundo lugar, os dois atuam secretamente. E, em terceiro, recorrem a táticas similares, que incluem sequestro, extorsão e assassinato. Embora as motivações possam ser diferentes, os dois grupos operam em função de interesses semelhantes, no sentido de que tanto criminosos quanto terroristas precisam conseguir recursos e poder para alcançar seus objetivos. Embora a conexão entre redes criminosas e grupos terroristas seja um fato há décadas, a convergência entre os dois lados (como meu amigo em Abu Dhabi observou) está se dando de maneira cada vez mais acelerada. E essa aceleração é produto do nivelamento da estrutura da rede: as organizações dos dois estão menos hierarquizadas. As interações acontecem horizontalmente, mais de igual para igual e com menos chefes. Além disso, células instaladas em localidades geograficamente diferentes têm mais autonomia sobre as ações que disparam – recebendo menos ordens de comandantes no estrangeiro. E isso significa que elas podem fechar negócios sem que outras células do próprio grupo fiquem sabendo. Do ponto de vista do modelo de negócios, está havendo uma transição da liderança corporativa para o sistema de franchising. Da mesma forma que Ray Kroc nem sempre sabia o que estava acontecendo em cada lanchonete McDonald’s, Treviño Morales* não é necessariamente informado sobre o que se passa em cada uma das Zetas. Hoje em dia elas estão mais “horizontais” e menos transparentes – e mais perigosas também. À medida que tanto entre os terroristas quanto entre os traficantes a estrutura de organização foi se achatando, ambos passaram a olhar um ao outro com mais confiabilidade, trabalhando juntos para criar o delitoduto crime-terror que hoje representa uma ameaça tão premente à segurança global. As redes de tráfico de pessoas (que transferem imigrantes ilegais, mas também oferecem escravos da era contemporânea e dão cobertura a movimentações táticas de pessoal), por exemplo, têm ganhado uma importância cada vez maior entre terroristas que pretendem contornar os programas de segurança nacional dos Estados Unidos. Ironicamente, a horizontalização das redes terroristas se deve em parte à eficácia da ofensiva antiterrorismo dos americanos contra as suas * Traficante mexicano. Zeta é a organização criminosa à qual pertence. N. do E.

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lideranças. Ataques usando drones e outras manobras táticas antiterrorismo desagregaram e reduziram significativamente as estruturas de comando de organizações terroristas estrangeiras, contribuindo para engendrar uma nova ameaça híbrida. A combinação da degradação da liderança e do controle com um desejo maior por fontes de dinheiro rápido ajudou a reforçar a parceria florescente entre terroristas e criminosos na América Central e em outras partes do mundo. Sob muitos aspectos, células da Al Qaeda ficaram entregues à própria sorte no que diz respeito ao seu funcionamento, o que resultou numa autossuficiência maior para o levantamento de recursos operacionais. Com isso, elas se tornaram bem mais difíceis de serem localizadas, neutralizadas e erradicadas. Redes mais horizontalizadas contam também com táticas de sobrevivência muito mais adaptáveis e com uma complexidade estrutural maior, dificultando o trabalho das autoridades que pretendem destruí-las. A operação nos moldes de uma trama formada por células frouxamente conectadas dá uma flexibilidade organizacional maior a cada uma delas, reduz o risco de infiltração de agentes da lei, garante uma eficiência mais elevada e protege as lideranças. Esse processo de achatamento e fragmentação é especialmente evidente na Colômbia. Quando as estruturas hierárquicas dos cartéis de Medellín e Cali se viram seriamente abaladas, os traficantes de drogas recorreram a terroristas afastados das Farc e a forças paramilitares desmobilizadas para se reagruparem parcialmente na forma de bacrim, uma corruptela em língua espanhola para o termo “gangues criminosas”. Essas novas bacrim se fortaleceram e tornaram-se dois cartéis mais modernos e poderosos: o Norte del Valle e o Costa Norte. Mas, para se esquivarem da vigilância, captura e desmantelamento nas mãos da Polícia Nacional Colombiana, dos serviços de segurança ou da Agência Americana de Combate às Drogas (DEA), esses cartéis não tardaram a se dividir em cartelitos ou “minicartéis”16. Esse processo constante de ruptura, movimentação, reconexão, expansão e novas rupturas faz com que essas organizações se comportem como um organismo vivo e vibrante, reativo aos estímulos do dinheiro e do poder. Uma ligação mais forte entre eles implica um intercâmbio maior de informação e experiências táticas entre criminosos e terroristas. O relatório de uma comissão do Congresso americano concluiu que eles estão “frequentando os mesmos bares suspeitos, os mesmos hotéis decadentes


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e os mesmos bordéis imundos em um número crescente de regiões do mundo… E com certeza têm conversado sobre negócios e compartilhado lições que aprenderam”17. Eles aprendem uns com os outros e replicam as melhores práticas, o que, em jargão da área de segurança, é chamado de “apropriação de atividades”. Outro motivo que acelera a convergência entre criminosos e terroristas é que ambos os grupos estão recorrendo aos mesmos prestadores de serviços e facilitadores: aqueles que são especialistas nos trâmites do comércio ilegal. O conceito é bem simples: você quer que cada tarefa seja feita da melhor maneira possível, quer poder contar com pessoas que resolvam o que precisa ser resolvido e, devido ao risco e à concorrência acirrada que imperam nesse mercado paralelo, a lista de prestadores de serviços com alto padrão de excelência em cada momento e contexto será bastante limitada. Tanto as organizações terroristas internacionais quanto os traficantes de drogas dependem fortemente desses “facilitadores escusos”18 para operar de maneira eficaz – na forma de traficantes de armas, especialistas em lavagem de dinheiro, em tráfico de pessoas, em falsificação de documentos etc. Recorrer à mão de obra especializada em sua área de atuação gera maior economia e eficácia, além de reduzir os riscos de os contratantes acabarem sendo pegos pelas autoridades por terem se associado a amadores. Esses prestadores e facilitadores pegam o ramo de atuação regional dos criminosos e o globalizam, infiltrados nas cadeias de distribuição do comércio mundial legalizado. É graças aos falsificadores de documentos e aos funcionários corruptos das alfândegas que a mercadoria ilegal acaba a bordo de cargueiros devidamente registrados e pertencentes a grandes transportadoras; é graças aos banqueiros e advogados que os lucros das atividades criminosas são depositados em instituições bancárias conhecidas e usados para comprar apartamentos em prédios da Park Avenue ou da 5th Avenue, vizinhos às moradas da tradicional elite americana, ou villas em ilhas do Caribe protegidas por leis de sigilo bancário. Esses facilitadores escusos também funcionam como elos entre as diversas redes: de maneira intencional ou involuntária, muitas vezes são eles que quebram o gelo entre grupos terroristas internacionais e organizações do tráfico de drogas que estejam operando nos mesmos ambientes permissivos, em qualquer parte do planeta. Agentes do

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governo, banqueiros e outros facilitadores podem ser recrutados por meio da corrupção ou da intimidação. A sua escolha se resume a plata o plomo – prata ou chumbo (ou seja, dinheiro ou bala). Os corpos sem vida dos que ficam com a segunda opção são exibidos em praça pública nos territórios dominados pelos cartéis mexicanos. Em lugares onde a presença governamental é frágil (seja por falta de recursos, de vontade política, seja por causa da corrupção), os facilitadores escusos podem transitar livremente dentro dos círculos da criminalidade e do terrorismo e entre eles, muitas vezes acabando por promover encontros, formação de alianças e compartilhamento de lições aprendidas. Como todo prestador de serviços eficiente, eles são mestres na arte de criar demanda para o que fornecem, lucrando concomitantemente à custa das necessidades e exigências de terroristas, traficantes de drogas e outros personagens do mundo do crime organizado. Com isso, esses especialistas da ilegalidade aceleram o comportamento adaptativo de criminosos e terroristas, ajudando-os a ter reações mais rápidas e aprendizado mais eficaz e a desenvolverem mais rapidamente novas estratégias para sobreviver e aumentar sua produtividade. Entre as lições aprendidas por criminosos e terroristas está conhecer as estratégias que melhor funcionam para tipos diferentes de redes. Se quiserem reagir de maneira eficaz a tudo isso, os serviços de inteligência e agentes da lei precisam potencializar a sua capacidade de confrontar essa evolução acelerada de estratégias, táticas e comportamentos nas redes ilícitas – muito mais acelerada do que se viu em qualquer outro momento até aqui, agora que criminosos e terroristas têm aprendido uns com os outros e copiado práticas eficazes. Hoje, os contrabandistas mexicanos escavam túneis nos moldes dos vistos na Faixa de Gaza, por baixo da fronteira entre México e Estados Unidos, e os cartéis adotaram o hábito de decapitar oponentes e postar vídeos na Internet mostrando o ato. Isso sem falar em outras táticas clássicas da criminalidade que vêm sendo modificadas para insuflar terror e manter o controle sobre os territórios dominados. Na base mais fundamental dessa aliança, entretanto, temos uma explicação muito mais direta: enquanto os criminosos desempenharem com muita eficácia tarefas que são necessárias para o terrorismo, as organizações terroristas continuarão sendo clientes pagantes das organizações criminais. A conexão entre elas – ou, dito de forma mais


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simples, o uso que os terroristas fazem de serviços prestados por criminosos – cria ameaças graves no campo da segurança pública. Redes criminosas podem fornecer aos terroristas livre trânsito através de fronteiras e serviços de logística, além de cobertura para a movimentação clandestina de mercadorias e pessoas, incluindo agentes terroristas e as armas usadas por eles. Os lucros amealhados pelo comércio ilícito que constitui o ramo de negócios do crime organizado multinacional minam a eficácia das sanções financeiras impostas aos grupos terroristas pelos governos.

COMENDO O ESTADO O benefício mais óbvio que criminosos e terroristas ocupando os mesmos espaços criam uns para os outros é o esgotamento dos recursos estatais, tanto financeiros quanto judiciais. Mas as causas e efeitos dessa interação se mostram em um plano mais sutil e pernicioso. No que diz respeito ao poder estatal, a interação entre terroristas e redes internacionais do crime cria três pontos de atenção: (1) os dois lados se unem contra um inimigo comum (particularmente as forças estatais dedicadas à segurança e à defesa da lei); (2) eles exploram pontos fracos do Estado, porque ambos os grupos surgem em resposta a deficiências do poder estatal; e (3) eles desenvolvem uma relação parasitária, alimentando-se mutuamente das externalidades um do outro. A violência dos atos terroristas faz com que a opinião pública passe a duvidar da capacidade do governo de garantir proteção; os criminosos (apesar das relações que ocasionalmente mantêm com os governos), com a quebra que promovem das regras estabelecidas e violação da lei e da ordem, fazem com que os cidadãos percam a confiança nas instituições oficiais. Descrentes do governo, os cidadãos se submetem ao jugo de chefões do crime e grupos terroristas. Basta ver o caso clássico da organização criminosa mais famosa de todas: a máfia italiana. Infiltrando-se nas instituições policiais e legislativas do seu país, a organização minou a capacidade do Estado italiano de proteger seus cidadãos e garantir o cumprimento da Justiça – criando uma fraqueza cultivada e explorada pela própria máfia, que sinaliza para os seus apoiadores algo como “só nós somos capazes de proteger vocês, então tratem de ser fiéis a nós”. Em alguns lugares, a infiltração chegou a ponto

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de dobrar os governos à vontade dos criminosos, pondo o Estado a serviço da máfia. Qualquer Estado que tenha sua competência, integridade ou eficiência questionada pelos próprios cidadãos está vulnerável à tomada de um grupo terrorista, que tratará de explorar de maneira eficaz a insegurança da população e se beneficiar dela. Áreas cinzentas assim podem acabar alavancando a legitimidade tanto das organizações terroristas quanto das redes do crime, tornando as interdições mais difíceis de serem concretizadas à medida que os mercados “limpo” e “sujo” se entrelaçam. Criminosos de ação multinacional estabelecem parcerias com bancos, governos, companhias de mineração, empresas de segurança e até instituições de caridade. Eles lançam campanhas de relações públicas com estratégias criadas para angariar legitimidade, tecendo narrativas comoventes de espírito comunitário ao se posicionarem como heróis no resgate de vítimas de grandes desastres (como fez a Yakuza japonesa ao enviar donativos aos cidadãos atingidos pelo terremoto de Kobe, em 1995), ou como defensores da identidade nacional ou cultural da população (seja em Kosovo, na Chechênia ou no Curdistão)19 ou dos necessitados (como Pablo Escobar fez em Medellín, na Colômbia). Por meio dessas interações, agentes comerciais lícitos e ilícitos se misturam, e dinheiro e mercadorias sujas penetram os sistemas financeiro e de comércio mundial, envolvendo nessa trama também cada um de nós, consumidores.

DINHEIRO SUJO As cifras são imensas: um total estimado de $ 1,6 trilhão passou por lavagem no sistema financeiro mundial só em 2008, um ano depois do início da crise financeira global20. Tudo isso na forma de dinheiro atrás de um paradeiro “legítimo” e impossível de rastrear onde quer que seja, enquanto os banqueiros descontam suas comissões e as quantias atravessam os meandros do sistema até chegarem de volta às mãos dos criminosos e agentes corruptos dos governos. A economia ilegal está cheia de cantos escuros, aonde se chega por meio das rotas emaranhadas das transações ilícitas. O dinheiro ilegal chega aos Estados Unidos por diversos condutores, numa lista que inclui facilitadores encarregados de abrir as portas do sistema financeiro e de instituições financeiras pouco dispostas a


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cumprirem sua obrigação de barrar a lavagem de dinheiro. Esses canais permitem que cleptocratas, criminosos e, em alguns casos, terroristas e seus simpatizantes injetem bilhões de dólares de riqueza ilícita no fluxo do comércio mundial legalizado, corrompendo mercados, instituições financeiras, autoridades e comunidades. Nesse processo, eles impedem que mercados justos e abertos alcancem o seu potencial econômico completo; e, nos países em desenvolvimento, não permitem que as comunidades construam os mercados e fronteiras do amanhã. Considerando que o comércio ilícito (venda de mercadorias falsificadas, tráfico de drogas, armas ou pessoas e lavagem de dinheiro) corresponde a um total estimado de 8% a 15% do PIB mundial, não é de admirar que as economias lícita e ilícita tenham conexões entre si e alimentem uma à outra de maneiras interessantes e dinâmicas. A isso se dá o nome de “economia cinzenta”, e não é um fenômeno observado em alguma terra distante – ela está em operação em Londres, Nova York, Dubai e no banco do seu bairro. Para alimentar ainda mais essa rede de complexidades, temos o fato mais mundano de que o comércio ilegal aparece escondido em meio a transações legítimas que acontecem através das fronteiras todos os dias, seja por meio de transportadoras e agências governamentais (como ocorre com as armas) ou pelas mãos de turistas e imigrantes (no caso de remédios e cigarros falsificados). Uma parte dessa movimentação resulta de uma boa prática do comércio: quando um caminhão retorna após ter feito uma entrega, faz mais sentido que ele volte com outra carga do que vazio. Diferenciar uma transação comercial suja de uma limpa não é fácil.

O PODER DA NARRATIVA A causa terrorista está longe de ter morrido. Por mais inapto que um grupo terrorista tenha sido para “se vender” para a sua fonte de lucro, a revolta sempre funciona para levantar recursos: esse tipo de sentimento recruta mais e mais rapazes e moças a cada hora que se passa. Um bom sentimento de injustiça social ainda é a melhor ferramenta que há para arrecadar doações, recrutar soldados e motivar a diáspora. Eu já tive chance de observar como tanto criminosos quanto terroristas se valem das manipulações clássicas da política identitária subversiva: para ser um de

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nós, você dará apoio à nossa causa; para ser um bom cidadão, você precisa ser um bom apoiador da nossa causa revolucionária – e terá que financiá-la, defendê-la e mobilizar outras pessoas para fazerem a mesma coisa. As lideranças manipulam emocionalmente possíveis apoiadores criando uma persona mítica que se torna um modelo para a pessoa comum que quer ser boa patriota ou cidadã. Afinal, todo mundo quer “fazer parte da turma”. Todo mundo quer respeito e admiração e quer andar com pessoas que também sejam respeitadas e admiradas. Ninguém deseja ser ridicularizado ou excluído. Essa tendência natural humana é a chave para as manipulações baseadas em identidade de grupo e para as dinâmicas que se estabelecem entre os indivíduos que fazem parte desse grupo. E é possível manipular os valores das pessoas, além de suas emoções. As nossas emoções influenciam aquilo a que damos valor e vemos como importante. Orgulho, vaidade e ressentimento exemplificam isso com perfeição: todas são emoções temporárias, mas também podem constituir o traço principal da personalidade de alguém – em pessoas com predisposição emocional para se sentirem orgulhosas, envaidecidas ou ressentidas. “Se eu sou orgulhoso, darei valor ao respeito ou à independência, ou às duas coisas. Se sou vaidoso, darei valor ao elogio e à atenção. Se sou ressentido, vou valorizar as histórias daqueles que vejo como rivais subjugados”21. É dessa maneira que as narrativas da vida são relatadas – ou manipuladas. Manipule a maneira como as pessoas veem a si próprias e suas histórias de vida, e você será capaz de manipular essas pessoas. Em última instância, é assim que os pais criam seus filhos para que tenham reações adequadas e proporcionais ao mundo que os cerca, ensinando coisas como “Isso angaria a simpatia das pessoas”, “Esse tipo de coisa deve deixar você orgulhoso”, e assim por diante. No contexto do terrorismo, o caminho mais curto para o orgulho é fazer as pessoas terem medo de você. Medo é poder. A situação que vemos no mundo de hoje tem menos a ver com religião e ideologia e mais a ver com poder. Se tirarmos a retórica dos grupos ligada à religião, o que sobra é sempre o mesmo cenário: bandidos espalhando o medo para consolidar seu poder. A religião é o pretexto que usam, e o seu método é o medo. Os terroristas e os cartéis mexicanos funcionam praticamente da mesma forma: eles controlam o seu território, matam seus inimigos e filmam


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as decapitações para intimidar quem os ameaça. Os cartéis mexicanos também se valem das bandeiras religiosas para demarcar territórios e legitimar o seu poder. A violência que vemos na tela da televisão todas as noites vem da sanha de conquistar e manter o poder, tanto quanto de causas ligadas aos preceitos cristãos, judeus ou muçulmanos. As pessoas darão apoio a quem tiver o poder nas mãos; elas querem ser parte da estrutura de poder, e não se sentir excluídas ou isoladas dela. No Oriente Médio, isso é chamado de política do “Cavalo Forte”. (Osama bin Laden disse uma frase que ficou famosa: “Quando as pessoas veem um cavalo forte e um cavalo fraco, elas por natureza vão gostar mais do forte”22.) Há séculos que essa região é definida pelas disputas de poder violentas entre facções, e os Estados Unidos têm menos a ver com isso do que costumam afirmar os liberais ou as narrativas manipuladoras das próprias facções em guerra em busca de poder23. No Líbano, eu pude ver como tanto sunitas quanto xiitas, os governantes e os rebeldes, clamam “fora, EUA” – ao mesmo tempo que cada um pede dinheiro, armas e intervenção militar contra o oponente, alongando uma batalha que vem acontecendo desde o século VIII. Para além dessa hipocrisia, os Estados Unidos, sendo a maior potência militar do mundo, representam um alvo natural para qualquer grupo (sunita ou xiita) que queira credibilidade e publicidade e ser conhecido como aquele que realmente mostra a que veio – atraindo dessa maneira mais soldados e mais dinheiro, o que em última instância reverte em mais poder. Quando se posiciona como antiamericano e diz que vai expulsar os Estados Unidos da sua região, um grupo extremista angaria uma massa leal de seguidores – trata-se de um exercício de branding. O tamanho da necessidade que os extremistas têm de usar os Estados Unidos como bode expiatório foi realçado pelo episódio das decapitações de James Foley e Steven Sotloff pelo EI. Até esse ponto, os americanos não estavam prestando atenção ao grupo, vinham organizando uma retirada acelerada do Iraque e não demonstravam grande interesse na Síria além de fornecer armas. Como uma criança mimada que se frustra por não conseguir a atenção que deseja, eles trataram de decapitar dois americanos e postar os vídeos na Internet. A tática deu certo: os vídeos de dois cidadãos americanos sendo decapitados circulando nas redes sociais bastaram para fazer o exército americano dar meia-volta e tornar a ocupar o Iraque.

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O Oriente Médio (seja no norte da África, na região do Levante Mediterrâneo ou no Golfo Pérsico) não é uma região que tenha a cultura ou um histórico de democracia liberal. Um colega comentarista da CNN En Español (que é cidadão iraniano vivendo em Israel) teve a coragem de tocar nesse ponto, falando no ar: o problema do Oriente Médio está no próprio Oriente Médio. Um histórico de liderança opressora exercida por uma elite corrupta está no coração do ciclo de violência que assola a região – processo acompanhado em primeira mão por muitos que já trabalharam lá. O povo não confia nos políticos que tem; a sua confiança vai apenas para os revolucionários. O crescimento do islamismo militante é consequência histórica das experimentações feitas na região com o Islã secular na esfera política (como se viu na Turquia, no Egito e na Líbia), praticado por presidentes autocráticos ocupando os cargos em regime vitalício e banindo a existência de outros partidos políticos. À medida que esses ditadores corruptos foram banindo os rivais políticos e reprimindo a oposição, o único espaço que restou para reuniões em que se professavam visões dissidentes foi o da mesquita. À medida que crescia a revolta e a frustração nesses grupos, eles foram se entrincheirando cada vez mais na religião. E foi assim que a religião assumiu o papel de revolução e deu origem a uma velha persona emblemática: a do bom muçulmano revolucionário. Essa persona do guerreiro religioso e justo não é exclusiva entre os muçulmanos; os cristãos têm a sua própria versão, e ela não aparece somente na época das Cruzadas, no Oriente Médio, estando também presente no Novo Mundo, desde a descoberta da América. Em 1481, o papa Sisto IV emitiu uma bula papal intitulada Aeterni Regis (“Rei Eterno”), que determinava que o direito dos nativos pagãos a gerirem sua própria existência era anulado pela responsabilidade papal pelas almas deles. O que estabelecia, portanto, a conquista das terras não cristãs como um dever moral dos conquistadores para com os conquistados: os europeus ouviam que deviam conquistar os nativos para salvar as suas almas hereges. Mas ouviam também que isso ajudaria a salvar suas próprias almas. Com isso, os conquistadores se transformavam em “guerreiros santos”, purificando a si próprios e às suas comunidades enquanto lutavam. Essa semiótica religiosa era tão prevalente que, ao desembarcar na Venezuela, Cristóvão Colombo escreveu em seu diário que havia


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encontrado o Jardim do Éden. O mito do bom selvagem persistiu e com o tempo foi se transformando para compor uma persona modernizada24: a do salvador da cultura latino-americana, o bom revolucionário, o defensor anti-imperialista que protege os nativos da destruição trazida pela oligarquia branca ou estrangeira. Eu pude ver a eficácia desse discurso no país em que nasci, a Venezuela. Hugo Chávez, que tentou dar um golpe de Estado, mais tarde venceu as eleições surfando uma onda de descontentamento de classe (tingido por questões étnicas) e reformulou a constituição para centralizar todo o poder no país. Hoje, a Venezuela foi transformada em uma ditadura violenta e corrupta, mergulhada numa implosão econômica enquanto seu povo passa fome. Isso tudo é também um componente-chave num cenário mais amplo e poderoso do delitoduto crime-terror.

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APRENDENDO SOBRE CRIME, TERRORISMO E CORRUPÇÃO Foi na minha cidade natal, na Venezuela, que eu fiquei sabendo sobre os tentáculos vastos e sempre em expansão dos delitodutos crime-terror. A apreensão do laptop de Raúl Reyes, comandante da insurgência narcoterrorista colombiana das Farc, feita em 2008, numa batida a um acampamento rebelde perto da fronteira com a Colômbia, em território equatoriano, confirmou aquilo de que eu e outros analistas suspeitávamos havia tempos: que o governo venezuelano de Hugo Chávez estava fornecendo apoio material ao tráfico de drogas e operações terroristas comandadas pelas Farc na Colômbia. Ao serem examinados pelo laboratório de ideias em que eu havia trabalhado anos antes, o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, especializado em guerras e questões militares, os arquivos encontrados no laptop revelaram que partidários de Chávez ou chavistas vinham acumulando um bom dinheiro traficando drogas, dando guarida a terroristas ou facilitando o seu acesso a armas letais perigosas como os “MANPADs”, que podem ser carregados no ombro de um único homem para disparar mísseis capazes de derrubar


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