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Falamos com

José Eduardo Ribeiro técnico de prótese dentária e presidente da Assembleia Geral da Associação Portuguesa de Técnicos de Prótese Dentária

Um elevado número de profissionais continua a exercer ilegalmente a atividade em Portugal

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José Eduardo Ribeiro, que tem a seu cargo desde 2017 a presidência da Assembleia Geral da Associação Portuguesa de Técnicos de Prótese Dentária (APTPD), alerta para a falta de operacionalidade dos órgãos fiscalizadores desta atividade e denuncia a facilidade com que se ingressa na profissão sem qualquer formação ou entrave. O também diretor técnico do laboratório LABDEPRO e docente da Escola Superior de Saúde Egas Moniz (especialista na área científica de Ciências Dentárias) revela que uma parte substancial dos técnicos de prótese dentária - em conjunto com outras 14 associações profissionais da área das tecnologias da saúde - reclama a criação de uma entidade de inscrição obrigatória, com o perfil de uma Ordem. O desejável reforço do ensino nesta vertente da saúde oral e a concorrência desleal na produção de dispositivos médicos feitos por medida, são outros temas em destaque na entrevista que publicamos com o experiente e veterano técnico de prótese dentária.

Tanto quanto sei, a regulação da profissão e as competências legais dos técnicos de prótese dentária continua a ser uma preocupação para o setor. Qual é o ponto da situação neste domínio

Deixe-me, em primeiro lugar, fazer o enquadramento da profissão de técnico de prótese dentária (TPD) em Portugal nas últimas décadas, para podermos compreender melhor a situação atual. A profissão de TPD é, desde há muito, “regulamentada” o que quer dizer que, por decreto-lei, esta é uma atividade cujo exercício se processa a coberto de um título, no caso uma cédula profissional, que está reservada a quem satisfaça certas condições de qualificação. A partir do ano 2000, com a entrada em vigor do decreto-lei 320/99 de 11 de Agosto e com o ensino da prótese dentária a ser ministrado ao nível superior, foi decretado que o acesso à profissão seria exclusivamente feito por via académica. Com a publicação deste decreto-lei foi também extinta a carreira de técnico de prótese dentária, carreira esta constituída por níveis, onde os profissionais ingressavam após alguns anos de prática em laboratório, no nível básico de “ajudante de prótese dentária”, podendo evoluir na carreira, sujeitando-se a avaliações de nível conjuntamente com anos de serviço e atingir o nível de “técnico de prótese dentária”, sendo este o topo da carreira.

As instituições de ensino da prótese dentária têm o dever de melhorar o seu corpo docente, criando condições para formar mais doutores, mestres e especialistas neste domínio

Ao ser criada uma nova profissão de “técnico de prótese dentária” e extinta a anterior carreira, a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), entidade responsável pela regulação, das profissões na área da saúde, atribuiu a cédula profissional de “técnico de prótese dentária”, a todos os portadores de carteira profissional de “técnico de prótese dentária”, que a esta se candidataram.

Quais foram as consequências dessa alteração?

Todos os profissionais que na altura da entrada em vigor do decreto lei 320/99 exercessem a atividade a coberto de carteira profissional de nível inferior a técnico de prótese dentária, viram impossibilitada a manutenção da sua atividade, ficando sujeitos a obtenção de novas competências, por via de formação profissional, que os equiparasse a TPD para obtenção da cédula profissional. Cerca de 700 profissionais, nas condições anteriormente descritas, registaram-se na então Direção Geral de Recursos Humanos do Ministério da Saúde, com o propósito de poderem obter a qualificação profissional suficiente para a obtenção da cédula profissional, mas esta possibilidade nunca foi disponibilizada, apesar da Associação Portuguesa de Técnicos de Próteses Dentária (APTPD) ter apresentado à ACSS em 2006 uma proposta de plano de formação. Com esta iniciativa pretendia-se resolver o problema dos 700 candidatos inscritos (e de muitos outros que, por desconhecimento, não se inscreveram), criando assim um verdadeiro ano zero para a profissão. Dito isto, posso afirmar que o panorama da prótese dentária em Portugal em termos legislativos em relação à sua regulação é bastante positivo, no entanto a incapacidade do regulador impor as regras e medidas instituídas legalmente, e a falta de operacionalidade dos órgãos fiscalizadores, permite que um elevado número de profissionais continue a exercer ilegalmente a atividade em Portugal, uns pela falta de vontade da ACSS em resolver a situação criada em 1999, outros pela facilidade com que se ingressa na profissão sem qualquer formação ou entrave.

No plano do associativismo, e tendo em consideração que a APTPD é a única associação que defende os interesses dos profissionais desta área, acha que existe suficiente representatividade para “levar a bom porto” os diversos desígnios que estão em jogo?

A APTPD representa cerca de 600 associados, e reconheço um grande esforço por parte da direção que tem na sua atividade permanente a preocupação de atrair mais profissionais, identificando as mais valias, para a profissão, da participação de todos na atividade associativa. Não só é importante que uma associação represente um grande número de profissionais, como também é importante a existência de outras associações, permitindo uma mais ampla intervenção. A APTPD está, essencialmente, vocacionada para a área da regulação da profissão, se houvesse associações que se dedicassem a áreas como a laboral e ou a industrial, que não têm neste momento representação associativa específica, seria uma mais-valia significativa.

O técnico de prótese dentária e também docente da Escola Superior Egas Moniz considera que se surgissem novas associações do setor, mais vocacionadas para as áreas laboral e industrial, “seria uma mais-valia significativa”.

É conhecido o número de técnicos de prótese dentária a exercer em Portugal?

Neste momento, não sei quantos profissionais exercem em Portugal, no entanto, se considerar o número de laboratórios de prótese registados na autoridade tributária, posso afirmar com grande probabilidade que existem mais de 3.000 profissionais. Tendo sido apenas emitidas cerca de 1.200 cédulas profissionais pela ACSS, isso pressupõe que mais de metade dos profissionais, que exercem nos laboratórios de prótese, fazem-no sem serem portadores do documento que os habilita ao exercício da mesma. Esta é uma preocupação para os profissionais, que apontam a incapacidade do estado para a regulação da profissão, e uma parte substancial considera como alternativa a criação de uma entidade de inscrição obrigatória, com o perfil de uma Ordem, à imagem do que aconteceu com várias outras profissões da área da saúde, aliás as profissões da área das tecnologias da saúde são as únicas que de entre as que exercem na saúde, não dispõem de auto-regulação.

Que passos foram (ou estão a ser) dados no sentido de criar essa entidade com perfil de uma Ordem?

Tendo em consideração esta situação de desregulação, a APTPD desde 2009, em conjunto com as outras 14 associações profissionais da área das tecnologias da saúde iniciaram um processo, baseando-se num estudo realizado por uma entidade imparcial, que mostrava o estado da regulação destas profissões em Portugal e indicava a criação da uma Ordem como forma de resolução. As 15 associações elaboraram um documento que deu origem à proposta de lei n.º 636/XIII/3.ª, que foi apresentada, discutida, votada e rejeitada na Assembleia da República, em Outubro de 2017. Apesar de ter sido chumbada a proposta da criação da Ordem, as associações que representam as profissões das tecnologias da saúde, considerando que este é um caminho que não tem retorno, têm manifestado uma grande coesão e determinação em levar por diante este objetivo.

Que estratégia(s) defende para se alcançar uma maior convergência no seio da classe?

Uma regulação eficaz é determinante para unir os profissionais, contudo, esta convergência terá de começar muito antes. A formação é uma fase determinante na consolidação de uma profissão que se quer de qualidade, e se o papel das universidades e politécnicos na criação de profissionais altamente qualificados é de grande relevância, não é menos importante a sua influência sobre os indivíduos para a cidadania. É fundamental o contacto das associações com os alunos, mostrando a importância das instituições para a profissão e proporcionando, desde logo, a interação dos estudantes com a atividade associativa dando a conhecer um pouco da realidade da profissão e evidenciando a necessidade da participação na atividade e comunitária. Se a qualidade da formação dos técnicos tem grande relevância para o futuro da profissão, motivar os docentes das instituições para a obtenção de mais graus académicos melhorando e aumentando a massa crítica, dentro e fora da classe, garantindo a seu desenvolvimento e auto-defesa, é indispensável.

José Eduardo Ribeiro considera que Portugal ainda é um país a várias velocidades em inúmeras áreas, e a prótese dentária não foge a esta regra.

As instituições de ensino da prótese dentária têm o dever de melhorar o seu corpo docente, criando condições para formar mais doutores, mestres e especialistas neste domínio. Apoiar e incentivar atividades que tenham como base a partilha de informação, onde todos beneficiam e contribuem para mais e melhor conhecimento, deve ser também uma das prioridades, não só das instituições de ensino como também das associações.

Ao nível da regulamentação e/ou correta utilização de dispositivos médicos, qual é o atual panorama nos laboratórios?

Em termos legais, existem duas grandes vertentes no garante da qualidade do produto em prótese dentária. Por um lado, a regulação da profissão que está a cargo da ACSS, como já referimos, por outro, a regulação dos Dispositivos Médicos Feitos por Medida (DMFM), que está a cargo do INFARMED e neste aspeto posso afirmar que estamos exatamente como na regulação da profissão, a legislação que existe é bastante completa mas a sua implementação é muito deficiente. Com a aprovação do Regulamento 2017/745 do Parlamento Europeu, com carácter vinculativo, este veio alterar significativamente a regulação dos Dispositivos Médicos (DM), no entanto, não acrescentou grandes alterações à regulação dos DMFM, aplicando-se a estes legislação idêntica desde 2009. No que diz respeito ao fabrico dos DMFM, estes têm que, por obrigação da lei, ser feitos em local licenciado para a atividade industrial.

A legislação atual obriga os fabricantes de DMFM a inscreverem-se no portal do INFARMED e fazerem o seu registo como fabricantes, processo onde se identificam e informam o INFARMED de que preenchem todos os critérios que garantem as devidas competências para o fabrico dos DMFM, entre elas a existência do licenciamento para a atividade e a formação académica do diretor técnico. Para conclusão do processo os fabricantes identificam os DMFM que fabricam, ficando estes disponíveis numa base de dados, que é de consulta pública. Finalizado este processo, o proponente fica autorizado a fabricar os DMFM que são acompanhados na sua comercialização, obrigatoriamente, por uma declaração de conformidade emitida pelo fabricante onde declara, entre outras coisas, que estes cumprem com todos os requisitos gerais de segurança e desempenho. A declaração de conformidade dos DMFM, é um documento que é obrigatório e deve ser exigido, pelos médicos dentistas, pois é a única garantia de estarem a adquirir um produto que cumpre com todos os requisitos legais. Esta declaração constitui também, uma ferramenta importante na defesa do seu fabricante, pois identifica a existência de um sistema de qualidade montado no processo de fabrico do DMFM e a sua rastreabilidade.

Deduzo que este procedimento não se cumpre com a devida regularidade...

A ausência deste procedimento é uma constante, mas se, por um lado, é necessário que se exija que as autoridades competentes fiscalizem com mais eficácia a atividade dos laboratórios, por outro, é preciso que os reguladores trabalhem em conjunto com os técnicos de prótese dentária num plano que motive e incentive os fabricantes a cumprir com os requisitos legais. Não vale a pena ter uma boa legislação se esta não proteger os fabricantes legais inscritos no INFARMED, contra uma concorrência desleal dos fabricantes ilegais, não sujeitos a fiscalização.

Partilha da opinião de que, hoje em dia, uma estreita interligação entre técnicos de prótese dentária e médicos dentistas é determinante para garantir os melhores resultados nos tratamentos em Medicina Dentária?

Sem dúvida, a dependência mútua na atividade de cada um é inquestionável, esta é uma área cada vez mais trabalhada por ambos. Com a evolução da prótese dentária, quer ao nível das técnicas e materiais usados quer ao nível da transição digital, também a relação entre os profissionais tem ganho em termos de qualidade. A criação de equipas multidisciplinares com grande sucesso nos seus resultados, tem mostrado a vantagem de quem trabalha desta forma e tem consolidado a importância da participação dos TPD nas equipas de saúde oral.

Acha que esse conceito de multidisciplinaridade já é uma realidade em Portugal ou ainda há (muito) caminho a percorrer neste campo?

Em Portugal ainda temos um país a várias velocidades em inúmeras áreas, e a prótese dentária não foge a esta regra. Apesar de haver ainda muito trabalho por fazer, o conceito de interdisciplinaridade está cada vez mais enraizado e não só é importante a criação de equipas inter-

O presidente da Assembleia Geral da APTPD revela que a associação prepara um conjunto de atividades que possam prosseguir com o seu objetivo sem colocar em causa as novas regras de higiene e segurança.

A criação de equipas multidisciplinares com grande sucesso nos seus resultados tem consolidado a importância da participação dos técnicos de prótese dentária nas equipas de saúde oral

disciplinares como também é importante a relação entre as associações profissionais, criando condições para que cada profissional contribua de forma harmoniosa com as suas competências para o trabalho comum.

Há técnicos de prótese dentária, devidamente credenciados, suficientes para dar resposta às necessidades do setor em Portugal?

Estou em crer que o número de TPD portadores de cédula profissional que estão registados na base de dados ACSS estará muito aquém do número total de técnicos que reúnem, em Portugal, condições para obter a habilitação para o exercício da profissão. A habilitação profissional é, como já referimos, obrigatória para o exercício da profissão. Esta não só dá o direito ao seu portador de poder exercer a atividade, como também lhe confere regalias profissionais exclusivas. Este documento permite definir as competências de cada profissional, bem como estabelecer uma relação laboral, com os devidos direitos e deveres. A quantidade prevista de técnicos formados nas instituições de ensino é suficiente para as necessidades do país, no entanto, quando foi extinta a carreira de TPD em 1999, algumas lacunas foram criadas com a ausência de auxiliares nos laboratórios. Hoje em dia, existe um curso de auxiliares de protésico (AP) que, sendo formação profissional, pode vir a colmatar tal lacuna. Contudo, este curso padece de dois graves problemas: em primeiro lugar, a inexistência desta profissão, sem a qual não existe enquadramento profissional para os alunos formados; em segundo, os conteúdos programáticos do curso apresentam frequentemente matérias que são da exclusiva competência dos TPD, criando nos alunos a ilusão de estarem a ser formados para determinadas funções que não correspondem à realidade.

Em que medida este problema influencia a atividade profissional?

Os laboratórios de prótese dentária, frequentemente, estão a contratar profissionais que vêm destes cursos de formação e os colocam a exercer atividades que são da competência exclusiva dos TPD, porque estes indivíduos têm alguma formação, mas fundamentalmente porque são mão de obra barata. Mais uma vez, a atividade fiscalizadora é importante para que estes trabalhadores não exerçam uma atividade para a qual não têm competência e que o empregador não possa tirar vantagem económica, remunerando o trabalhador de forma injusta. Uma vez que os laboratórios têm necessidade de ter auxiliares de protésico nos seus quadros, para realizarem as tarefas intermédias na prótese dentária, é necessário o seu enquadramento criando essa profissão, bem como corrigir o plano curricular deste curso para que seja claro nas suas competências e saídas profissionais, definindo, sem dúvida, as competências específicas e não criando expectativas falsas aos seus participantes.

A uma escala global, ou pelo menos europeia, como classificaria a qualidade das técnicas que se praticam nos laboratórios nacionais de prótese dentária?

Hoje em dia, não tenho qualquer tipo de dúvida sobre o nível de qualidade da prótese dentária que se consegue praticar em Portugal. No entanto, relativamente ao resto da Europa e do mundo, estamos ainda aquém de poder oferecer um bom serviço a todos, quer pela dificuldade que a população em geral tem em aceder a serviços de qualidade na área da saúde oral, quer pelo custo das reabilitações, que obriga muitas vezes a recorrer a tratamentos alternativos e de baixa qualidade.

Para quando está previsto o próximo congresso da APTPD e que mudanças se anteveem no figurino do encontro, tendo em vista a atual conjuntura de pandemia?

Este ano estava prevista a realização de mais um congresso da APTPD no mês de maio, no entanto, devido às circunstâncias este foi adiado para o mesmo mês do próximo ano. O seu figurino e a forma como vai decorrer ainda não foi definido pela comissão organizadora. Porém, a direção da APTPD tem estado a planear um conjunto de atividades que possam prosseguir com o seu objetivo sem colocar em causa as novas regras de higiene e segurança.

Na sua qualidade de profissional da área da saúde oral, como encara o presente e o futuro da classe, em geral, face à inédita crise de saúde pública que estamos a atravessar?

A atual crise sanitária veio, como para muitas outras atividades, evidenciar as dificuldades e lacunas na nossa profissão. Estando incluída na área da saúde e sujeita às novas regras de higiene e segurança, estas trouxeram uma adicional necessidade de organização e rastreabilidade. O futuro será aquilo que nós, profissionais, conseguirmos implementar em conjunto de forma consistente e organizada, deixando de lado o oportunismo egoísta do “desenrascanço” que tantas vezes nos carateriza. Acredito que é possível, aproveitando a situação atual, que nos obriga a alterar os nossos comportamentos e nos ajuda a recriar a sustentabilidade, criarmos uma sociedade melhor e como tal uma profissão mais digna se tivermos uma participação ativa na vida profissional, melhorando o conhecimento e a formação, exigindo mais fiscalização e cumprimento legal, criando mais trabalho em equipa e partilha de informação.

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