Funk Instrumetalizado

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setembro | outubro | 2015

O funk é realidade. Popular e socializante, fundado pela cultura da batida e da rima que nasce das periferias. A música instrumental é subversiva. Vanguardista e (re)construtora de melodias. Letras e sons improvisados provocam inovação e combate ao preconceito neste projeto do Sesc Vila Mariana. Afinal, tudo pode ser música universal.



A fusão de sonoridades distintas e de estilos musicais dá a letra para novas possibilidades de experiência com a música. Este projeto quer provocar o encontro entre os diferentes, abrir espaço para as manifestações artísticas populares, valorizar a diversidade cultural e se afirmar contra o preconceito. Todos estes são papéis sociais adotados pelo Sesc. A junção do funk carioca, das letras provocativas de MC Garden e da descontração da música instrumental do QN Quarteto permitem atingir esses objetivos. Este caderno de provocações procura desconstruir fronteiras de territórios musicais. A parceria mistura as harmonias e melodias da música instrumental ao potencial rítmico, poético e gritante do funk em uma

performance colaborativa, sempre ecoada com muito improviso. Muitos aspectos podem ser desenvolvidos nesta via de duas mãos. Esta concepção baseou o espetáculo Funk Instrumentalizado, realizados no dias 29 e 30 de setembro e 27 de outubro, no Sesc Vila Mariana. A cultura do funk também foi tratada dentro do projeto Ensino de Música para Educadores com a presença do MC Garden, conversando sobre a evolução do ritmo e exercitando a batida e as rimas como instrumentos educativos na sala de aula. A seguir, conheça um pouco mais sobre o funk, sobre a música instrumental e sobre criação colaborativa. Siga a trilha da mistura e da experimentação. Boa leitura!

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FUNK CARIOC e suas o


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O funk, que escutamos atualmente nos bailes funk, nas rádios, nos canais de internet, é uma mistura de muita improvisação, influências musicais diversas e recursos eletrônicos. Nossa história começa nos anos 1970, quando os bailes blacks eram os principais lugares de lazer da juventude que vivia nas periferias das metrópoles do sudeste brasileiro. Esses bailes eram comandados pelas equipes de som, responsáveis por toda a estrutura física e por caçar vinis recém-lançados 8


nos Estados Unidos, dependendo deste disputado esquema para fazer o diferencial nas festas. Foi no meio disso que chegou no Brasil o Miami Bass: uma vertente do hip-hop, estilo dance americano, cujo conteúdo das letras era predominantemente de palavrões e sexo, e seu principal representante era Afrika Bambaataa. No Rio de Janeiro, os bailes black dos anos 70, movidos a soul e funk norte-americanos passam a ser gradativamente substituídos pelos bailes funks nos anos 1980, com o predomínio do Miami Bass e do electro.

Funk é mistura de influências. Essa história começa com Miami Bass, passa pelo electro, pela Era das Melôs e pelo maculelê.


Durante os anos 90, as gravadoras passaram a dar mais valor ao ritmo do maculelĂŞ, criando a caracterĂ­stica sonora do funk brasileiro que conhecemos atualmente.


Apesar de a grande maioria das pessoas saberem do que se tratavam as letras das músicas do gênero Miami Bass, este conteúdo era dificilmente assimilado, pois poucos falavam inglês, e não demorou para que os brasileiros criassem suas próprias versões em português com palavras que soassem similarmente ao original: era o início do que ficou conhecido como a Era das Melôs. Outra influência musical essencial para a origem do funk carioca é o ritmo de matriz africana conhecido como maculelê. Inicialmente, a influência sonora do Miami Bass era predominante no funk. Uma tumbadora aguda gritava no ritmo. Só ao longe, o ritmo do maculelê. Durante a década de 1990, as gravadoras passaram a dar mais valor ao ritmo do maculelê, criando a característica sonora do funk brasileiro que conhecemos atualmente.

O maculelê é um folguedo popular nascido em fins do século 18, na Bahia. Não há indícios oficiais de sua criação, apenas lendas da época do Brasil Colônia que contam a história de Maculelê (um índio ou um negro), que lutou bravamente com apenas dois pedaços de pau para resistir à invasão de um ataque rival durante a ausência dos guerreiros da sua tribo. O principal responsável por manter sua tradição viva foi Mestre Popó, que, em 1943, reuniu parentes e amigos para ensinar a dança baseado em suas antigas lembranças, formando o Conjunto de Maculelê de Santo Amaro. As apresentações de maculelê são constituídas por componentes que representam a tribo rival, fazendo um círculo em volta de uma pessoa, que representa o herói. Todos sustentam um par de bastões nas mãos que são batidos no ritmo do atabaque, e a história é contada por meio de cânticos que são respondidos em coro. 11


Descendente do Miami Bass e do maculelê, como o próprio nome diz, o funk carioca é uma relação entre a cultura afrodescendente musical do Rio de Janeiro e a música negra norte-americana. O primeiro lançamento comercial de funk carioca é atribuído ao DJ Marlboro em 1989, com o LP D.J. Marlboro apresenta funk Brasil. Esse LP é resultado de uma viagem que Marlboro fez a Londres no mesmo ano e que possibilitou o seu contato com as produções mais recentes de dance, electro e black. Ao regressar ao Brasil, ele deu início à produção da música eletrônica brasileira, utilizando-se das batidas Volt Mix e Hassan, acrescidas de letras irreverentes em português. Foram criadas músicas como Melô do Bêbado, Feira de Acari, Rap do Arrastão, dentre outras.

O funk carioca precisa ser pensado, criticado e discutido, nunca censurado ou rejeitado do processo cultural.


Nos anos 90 temos a ascensão do funk melody, que é caracterizado por temas sobre amor, romantismo e amizade, tendo como principais representantes a dupla Claudinho e Buchecha, sendo a linha atual do Naldo, MC Marcinho, MC Koringa, Anita e Taty Kiss. Além do funk melody, desde a sua criação o funk tem se desenvolvido em diversos outros subgêneros: funk consciente, funk proibido, funk sensual, gospel funk, funk de raiz e montagem (explorando a repetição rítmica de fragmentos vocais), entre outros. Os bailes também são múltiplos: bailes de comunidade (dentro da favela), bailes de asfalto (fora dela), bailes de rua, bailes do bicho, e os hoje em dia extintos bailes de briga, bailes de corredor, lado A e lado B e quinze minutos de alegria.

Assim como o samba, o pagode, a capoeira e outras manifestações originadas nas periferias das cidades, o funk carioca encontrou resistência da opinião pública (e até da polícia) quando começou a ganhar notoriedade. Esse estilo de música tem sido resistente aos diversos fatores de intolerância cultural que tentam reduzir o seu valor artístico e cultural. O funk carioca precisa ser pensado, criticado e discutido, nunca censurado ou rejeitado do processo cultural.

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Quando que a música vai começar? Cadê a música? Não tem ninguém cantando? Não está faltando alguma coisa? Essas perguntas normalmente são formuladas por pessoas que não estão acostumadas a ouvir música sem a presença da voz junto a um conteúdo poético. Estamos muito habituados a ouvir músicas com letras e quando ouvimos algo que muitas vezes não possui nem mesmo a voz, estranhamos. Esse estranhamento acontece porque a canção (música e letra) foi muito mais difundida no mundo do que a música instrumental. Até mesmo canções que não conseguimos compreender o texto, como, por exemplo, em línguas estrangeiras, causa em nós, certo estranhamento.


A música instrumental brasileira é uma forma de se fazer música que procura chamar a atenção do ouvinte para as particularidades sonoras dos instrumentos utilizados, uma vez que esta música não possui letra e, quando possui, normalmente ela é colocada em segundo plano. Se ressaltam os improvisos, as melodias, os ritmos, enfim, elementos estritamente musicais.

A música instrumental brasileira chama a atenção para as particularidades sonoras dos instrumentos. Ressaltam-se os improvisos, as melodias, os ritmos.


A exposição da melodia, a improvisação sobre a forma da composição e a reexposição da melodia é uma estrutura recorrente neste cenário.

Música instrumental brasileira é um rótulo assim como MPB, jazz e rock, mas mesmo assim é muito amplo e pode se apresentar em vários formatos. Vamos tentar compreender um pouco sobre a música instrumental brasileira e em que contexto este rótulo é utilizado. Segundo as pesquisas realizadas por alguns musicólogos, por meio de entrevistas com praticantes de música instrumental brasileira, esse estilo musical tem como base o chorinho. A cultura estadunidense começa a penetrar no Brasil com muito furor depois da Primeira Guerra Mundial fazendo com que muitos músicos chorões desistissem de seu exercício e outros a se adaptarem à situação. O grupo Oito Batutas, de Pixinguinha, em seu período foi muito criticado por apresentar em suas composições


influências da música norteamericana. O jazz cada vez mais passa a fazer parte das práticas musicais dos grandes centros urbanos do Brasil; um marco desta fusão de culturas e que melhor exemplifica foi o álbum Chega de Saudade, de João Gilberto, lançado em 1959, considerado também o que melhor representa a bossa nova. Apesar de Chega de Saudade não ser um álbum instrumental, mas sim de canção, ele enfatiza elementos musicais importantes e que passam a caracterizar bastante a música instrumental brasileira, principalmente nas formações instrumentais, nos arranjos e na improvisação.

No mesmo período de Chega de Saudade, muito trios instrumentais de piano, baixo e bateria foram formados e tocavam jazz, bossa nova, samba, baião. As músicas “estilo canção” eram executadas sem suas respectivas letras, delegando as funções das melodias feitas inicialmente por cantores para os instrumentos usados. Então, tocava-se a melodia, em seguida improvisavam sobre a forma da música e retornavam à melodia inicial. Essa estrutura musical que se organiza como exposição da melodia da música (tema principal), improvisação sobre a forma que esta melodia foi composta e reexposição da melodia é uma estrutura bastante tradicional utilizada no jazz e que começa a ser recorrente neste cenário musical.

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Alguns grupos são influenciados pelo jazz, outros mais brasileiros nos ritmos, melodias e harmonias, e outros pela música clássica.

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O Quarteto Novo, formado por Airto Moreira, Heraldo do Monte, Hermeto Pascoal e Theo de Barros, começa a fazer uma música instrumental utilizando-se, o máximo possível, de recursos da música brasileira procurando distanciar-se do jazz. Todos os ritmos presentes em suas composições são da cultura brasileira, em especial a do nordeste. Como a maioria dos músicos desse período estavam muito concentrados no aprendizado da cultura musical do jazz norte-americano, tudo que eles tocavam soava de certa forma parecido com o jazz, principalmente quando improvisavam. Já o Quarteto Novo procurava inserir na improvisação peculiaridades da música brasileira para que suas composições não soassem jazz. Era quase um movimento anti-jazz.

Muitos grupos de música instrumental brasileira foram surgindo, uns bastante influenciados pelo jazz, outros mais brasileiros nos detalhes rítmicos, melódicos e harmônicos, outros pela música clássica/erudita. Nomes como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Airto Moreira, Cesar Camargo Mariano, Hélio Delmiro, Paulo Moura, Hamilton de Holanda e muitos outros talvez representem e construam o cenário deste estilo musical, no qual a obra de vários desses compositores e instrumentistas apresentam características em comum, mas que ao mesmo tempo cada um deles segue uma linha. Ora muito influenciados pelos jazz, ora por gêneros musicais brasileiros ou até mesmo rock, o funk entre muitos estilos musicais.

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A realização de um trabalho colaborativo entre estilos e linguagens musicais diversos influencia muitas práticas sonoras que resultam em composições, performances, instalações, entre outros, possibilitando a aproximação e a troca de conhecimentos entre culturas que muitas vezes se encontram distantes.


O funk carioca é um gênero musical que tem facilidade de utilizar de características sonoras diversas. Por exemplo, em 1966, George Harrison, guitarrista dos Beatles, George Harrison, iniciou uma amizade com o indiano tocador de cítara Ravi Shankar. Este encontro trouxe para a música pop ocidental a filosofia e sonoridade musical da Índia, assim como as práticas musicais ocidentais influenciaram as músicas produzidas no oriente. Podemos citar exemplos de outras trocas de gêneros musicais que possuem características sonoras e socialmente distintas: a banda de heavy metal Metallica que gravou um disco com a Orquestra Sinfônica de São Francisco; ou o encontro do saxofonista Wayne Shorter com Milton Nascimento na década de 1970, uma fusão entre o jazz e os sons brasileiros. 25


A ênfase do material utilizado na composição [seja a melodia ou a letra] identifica as singularidades dos gêneros.

O funk carioca é um gênero musical que tem facilidade de utilizar características sonoras diversas. Nele os músicos misturam um sample da Madonna, um berimbau e atabaque com a mais nova expressão popular e dão origem a um novo hit musical. Além disso, o funk também foi apropriado por músicos de outros gêneros musicais em suas composições. É o caso da música Bucky Done Gun, da cantora M.I.A., que sampleou a música Injeção, da MC 26

Deise Tigrona; na música Hollaback Girl, da cantora Gwen Stefani, sampleada de Feira de Acari do DJ Marlboro; ou na música PopoZão, encontrada no primeiro trabalho musical de Kevin Federline, modelo e marido da cantora Britney Spears, em uma experiência de cantar funk em português mesmo sem entender a língua.


Na música instrumental brasileira, podemos observar o mesmo movimento de colaborações. O compositor Egberto Gismonti gravou em 1985 o disco Trenzinho Caipira, reinterpretando a obra de Villa-Lobos a partir de várias experimentações com sintetizadores e com muita improvisação. Características musicais dos anos 1980 estão muito presentes neste álbum, como, por exemplo, a sonoridade provindas das novas tecnologias de elaboração de instrumentos. É um álbum que une a atmosfera sonora dos anos 80, com a criatividade do músico Egberto Gismonti e a obra composicional de Villa-Lobos.

E o que poderemos encontrar musicalmente através da colaboração entre o funk carioca e a música instrumental brasileira? Muitos aspectos podem ser desenvolvidos nesta via de duas mãos, na qual a música instrumental contribui para o funk tanto quanto este pode contribuir para a música instrumental. Na essência, podemos destacar que a música instrumental valoriza o seu sentido musical por meio da melodia, enquanto o funk valoriza o sentido poético por meio da letra. Porém, vale ressaltar que isso não quer dizer que a música instrumental não carregue conteúdo poético e nem que o funk não possua sentido musical, é apenas uma questão de ênfase do material utilizado na composição, e que identificam as singularidades de ambos os gêneros. 27


A música instrumental brasileira tem características como harmonias complexas, melodias que exploram a sonoridade de diversas escalas, ritmos não convencionais, utiliza diversos gêneros, como baião, frevo e samba, como matéria prima para ser experimentada e transformada, traz uma sonoridade acústica devido ao uso de instrumentos em vez de pickups do DJ, entre outros elementos que a diferem do material musical utilizado na grande maioria dos funks. O funk carioca construiu o seu repertório de ritmos, timbres e convenções originalmente brasileiros no vocabulário musical. Ele tem o potencial de agir sobre o corpo, vibrar o peito e o ventre, sendo que muito disso se deve ao seu DNA africano, que enfatiza as frequências graves (assim como o reggae, o soul e o samba). O funk tem a capacidade de criar um entendimento corporal da 28

música, não somente auditivo, graças à simplicidade e precisão de suas batidas. A construção de um projeto colaborativo entre o funk carioca e a música instrumental abre caminhos para novas experiências, uma sonoridade que mescla as harmonias e melodias ao potencial rítmico poético do funk, regados de muito improviso (literário e musical) criando uma atmosfera sonora complexa/sedutora tanto para os ouvidos quanto para o corpo, e que quando toca, ninguém fica parado.


A construção de um projeto colaborativo entre o funk carioca e a música instrumental abre caminhos para novas experiências.

Texto Caio Chiarini, guitarrista, educador musical e mestrando em Música pela Unesp. Rita Cruz, produtora e educadora musical, graduada em Educação Musical pela Unesp.

Apresentações dias 30/9 e 27/10 QN Quarteto André Saugiovanni: contrabaixo elétrico Caio Chiarini: guitarra Guto Andrade: guitarra Wagner Vasconcelos: bateria Mc Garden: voz 29




Sesc Vila Mariana Rua Pelotas, 141, CEP 04012-000 TEL.: +55 11 5080 3000

sescsp.org.br


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