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ProvÍncIa
Febre imobiliária toma conta da ilha de moçambique
Uma azáfama inusitada tem perturbado a dolência contemplativa da Ilha de Moçambique, em Nampula. Os insulares da província dos Macua preparam, com afinco, a celebração dos 200 anos de elevação a cidade da primeira capital do país que lhe tomou o nome. E querem-na, em Setembro, com o esplendor de outrora
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ilha de moçambique. Situada a nor-
deste, prenhe de ruínas majestosas sinalizando tempos de fulgor mercantil – quando se trocava ouro, marfim, tecidos, especiarias e homens feitos escravos –, é nesse burgo que decorrem bastos trabalhos, embora de pequena escala, visando a recuperação dos grossos edifícios. Não se trata apenas da vaidade natural dos ilhéus, ilustrada pela máscara alva de mussiro – creme natural que nutre e suaviza a pele – recobrindo o rosto das mulheres da Ilha, mas da urgência em manter o título de Património da Humanidade (atribuído pela UNESCO em 1991) e receber condignamente os convidados para a festa do aniversário. Com a efeméride, também se procura relançar o turismo, que tanta falta faz à economia local, demasiado dependente dos humores do mar e do peixe que ele decide parir. E, como resultado imediato desse esforço há agora um novo mercado instalado na Ilha – o do imobiliário. Nada barato e que poderá revelar-se perverso, levando à gentrificação daquela língua de coral onde vivem pouco mais de 65 mil pessoas. província NaMpula
Lugar Ilha de MoçaMbIque área 184 km2 popuLação 65 700 região NoRTe
O processo de restauro do edificado na chamada Cidade de Pedra e Cal, e principalmente no Bairro do Museu, onde se encontram os grandes prédios cuja construção remonta ao século XVII, embora já viesse ocorrendo desde o alvor deste milénio, conheceu novo fulgor quando arrancou a organização das comemorações do bicentenário da cidade. “Segundo o levantamento feito em 2016, identificámos 421 ruínas de risco”, diz Agostinho Mabote, da Protecção Arquitectónica, Histórica e Arqueológica do Gabinete de Conservação da Ilha de Moçambique (GACIM). Excepto por alguns edifícios institucionais e meia dúzia nas mãos de particulares, tudo o resto indiciava o colapso iminente. Face ao diagnóstico alarmante, o Conselho Municipal tentou evitar a catástrofe com pedagogia impositiva. “O Município consciencializou as pessoas para a necessidade de reabilitação. Se não fosse a casa toda, pelo menos as fachadas. E, em 2016, avisou que, quem não reabilitasse as casas, corria o risco de perdê-las”, recorda Mabote. A ameaça surtiu efeito, mas talvez não o esperado: “Provocou um fenómeno – os titulares dos imóveis acabavam por cedê-los a estrangeiros e mudarem-se para a zona de Macuti”, na outra metade da Ilha, divida entre a Cidade de Pedra e Cal e a Cidade de Macuti, com a fronteira virtual riscada pela Igreja Nossa Senhora da Saúde, construída pelos Padres Capuchinhos no século XVII.
estratificação social na cidade dividida A Cidade de Macuti encontra-se no lado Sudoeste da Ilha de Moçambique e foi, desde sempre, o aglomerado mais pobre, de construção precária e algo desordenada. As casas dos bairros anárquicos de Litine, Macaripe e Esteu nasceram na depressão legada pela pedreira que, nos séculos XVIII e XIX, serviu para fornecer o material que levantou as opulentas casas setecentistas do Bairro do Museu. É por isso que, conforme se vê hoje, aquele casario de vielas estreitas e arenosas, cheias de lixo e crianças à solta, tem as coberturas ao nível da estrada, o que redunda em alagamentos inevitáveis na época das chuvas. É para lá, para a Macuti – assim chamada devido à cobertura do casario, feita de folhas de coqueiro, entretanto rendidas pela chapa zincada – que, agora como dantes, rumam os menos abonados. Gerando um outro mercado, dedicado ao aluguer de casas para gente de baixa Fumo há 31 anos, quando nasceu na Cidade de Pedra e Cal, é um veterano no negócio e, por conhecer tão bem o mercado, traz nele uma mágoa antiga: “Uma coisa que me põe doente é alguém ser natural da Ilha e vender a casa por 150 mil meticais, quando hoje podia vendê-la por 150 mil dólares”, rumina, em velada censura aos próprios pais, hoje residentes em Macuti. Segundo Fifty, a diferença de preços entre a Macuti e a Pedra e Cal é abissal: “Uma casa T2 ou T3 pode custar entre 600 a 700 mil eticais na Macuti; no Bairro do Museu (núcleo da Pedra e Cal), é sempre a partir dos 2,5 milhões de meticais. E em mau estado”, garante. Dos clientes que lhe solicitam os serviços, “a maioria é gente de fora, que tem condições de comprar uma ruína e vir de férias. Há mesmo muito estrangeiro!”, realça Fifty.
Preços dispararam: stock imobiliário cada vez mais dividido entre ricos e remodelados, e pobres e abandonados
A diferença de preços entre a Macuti, em que um T2 custa 600 mil meticais, e a Pedra e Cal, em que a mesma tipologia pode pode valer 2,5 milhões de meticais é brutal. E tende a aumentar
renda e impulsionado pela instalação da Universidade Lúrio em 2017. A academia trouxe à Ilha, entre professores e alunos, cerca de 240 novos residentes no tempo lectivo, e uma benesse para muitos, como confessa Anrane Omar Anrane. O guia turístico de 29 anos encontrou, na massa estudantil, complemento para a escassa verba que a actividade principal lhe proporciona: “Há muita procura de quartos pelos estudantes. Como não têm dinheiro para viver na Cidade de Pedra e Cal, vão para a Macuti. E lá alugo-lhes quartos por mil meticais ao mês, que já conseguem pagar”, afirma Anrane. Porém, mais do que estudantes ou funcionários públicos, os novos inquilinos da Macuti são, afinal, os velhos residentes da Ilha. A troca de residência engendrou nova profissão local, exercida na informalidade habitual – o mediador imobiliário. Encontramo-lo no terraço do bar Flor de Rosa, fruindo da brisa vespertina temperada pelo Índico: “O meu contacto já está nas mãos das pessoas e, se aparece um cooperante ou alguém a precisar de casa, a primeira sugestão é o Fifty!”, apresenta-se. Fifty, baptizado Braimo regras apertadas oneram recuperação Uma fartura de forasteiros na inversa proporção dos locais, empurrados para fora da Cidade de Pedra e Cal pela miragem do dinheiro fácil ofertado pelos investidores, expatriados quase todos, com capacidade para res-
província
ponder às imposições regulamentares. Em 2007, eram 11 mil as casas da Ilha. Hoje, serão cerca de 15,5 mil habitações, de acordo com os dados do último censo do INE, de 2017. “Pelo custo de reabilitação, percebeu-se que são os estrangeiros que estão por detrás dos pedidos de licenciamento de obras”, refere Mabote. E o custo não é pequeno, bem pelo contrário. Desde logo, devido às condicionantes do Decreto 27/ 2006, de 13 de Julho, o qual determina, no Art. 6.º do Capítulo II, que “a conservação, restauro, reabilitação e manutenção do património edificado da Ilha de Moçambique devem ser feitos com estrito respeito às características (terraços e fachadas) e ao material original utilizado nas construções (pedra, cal e macuti)”.
mudança à vista Esse é um dos problemas quotidianos de Ricardo Otero enquanto director da obra do balcão do BCI na Ilha, a cargo da construtora Mozago. “O custo directo do material que se encontra cá – calcário coralino, a cal e as madeiras –, até é relativamente barato”, calcula, “mas a quantidade necessária aumenta muito o custo global das obras”. Por um lado, o fabrico da cal, para argamassa do reboco e caiamento, é moroso; e, por outro, há materiais que rareiam. “O acesso à madeira mecrusse, espécie local de uso tradicional, é cada vez mais difícil, porque, embora ainda se possa usar, está protegida devido à exploração ilícita”. Acresce o custo da insularidade. “Muitos dos materiais incorporam ainda os custos de transporte mais as margens dos intermediários. No fundo, a logística é o que pesa mais. As distâncias e os tempos encarecem tudo”, contabiliza o jovem engenheiro civil, português de Braga. No que ao tempo respeita, avulta o peso da mão-de-obra. Os homens da Mozago que labutam na esquina fronteira à Igreja da Misericórdia destacam-se dos pequenos estaleiros espalhados pela cidade de Pedra e Cal pelo laranja do fardamento rigoroso, conforme às normas da higiene e segurança no trabalho, e disciplina exemplar. Mas, sendo humanos, há factores impossíveis de controlar: “Os operários locais sabem que, concluída a obra, acaba a fonte de rendimento. Assim, para cumprir prazos, em vez de se contratar ao mês, que seria mais barato, tem de ser por empreitada”, indica Otero. “Outra dificuldade é o facto de a maioria da população (95%) ser muçulmana, pelo que, no Ramadão, a produti-
vidade baixa drasticamente”, lamenta. E, face a tais custos, nem todos respeitam com o escrúpulo da Mozago as regras construtivas. Gabriele Mellazi, milanês radicado na Ilha há 18 anos, já assinou ali mais de 40 intervenções desde que projectou a recuperação do Escondidinho, na Praça das Amoreiras. Assistiu ao devir mercantil e admite, pesaroso, a elusão do normativo por alguns empreiteiros visando mitigar custos. “Sou um dos quatro arquitectos ‘oficiais’ da Ilha e, até pelos princípios éticos que recebemos na faculdade, tentamos fazer respeitar as recomendações da UNESCO. Infelizmente, nem sempre com êxito”, admite. O emprego de cimento, por exemplo, é visível a olho nú em muitas das obras em curso na Ilha de Moçambique. Os técnicos do GACIM, a quem cabe zelar pelo respeito regulamentar e licenciar obras, têm noção das prevaricações. E actuam, não raro de forma preventiva, embora a estatística possa transparecer outra realidade: “Em 2016, o GACIM deu cerca de 22 pareceres favoráveis a obras de reabilitação, no ano seguinte, em 2017, passou 27 e, este ano, vamos já em 14 – estamos mesmo a andar!”, exulta Agostinho Mabote. Para logo referir que, ainda assim, os pedidos vão muito para além destes números. “O problema é que as pessoas, ao perceberem que as ruínas valiam dinheiro, começaram a reivindicá-las. Temos mais pedidos de viabilidade mas, como se não consegue saber quem são os legítimos proprietários, fica difícil”, assinala.
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mil habitações Em apEnas uma década, o númEro dE habitaçõEs da ilha, crEscEu cErca dE 30%. dEpois, a crEscEntE procura turística fEz com quE o património imobiliário dEtido por naturais da ilha, mudassE dE mãos, dando lugar a novos nEgócios
Garimpo nas ruínas de ninguém É usual viverem, dentro das ruínas cujas paredes alcançam um metro de espessura, famílias prolíferas e transgeracionais, sem documentação que ateste a propriedade excepto a longevidade da ocupação. Negociar nessas circunstâncias, de múltiplas reivindicações àvidas de dinheiro instantâneo, é um tormento. Que o diga Jorge Ferraz. A gerir o restaurante Karibu, um dos melhores da cidade, chegou à Ilha disposto a recuperar o vasto edifício onde agora fica o Feitoria Boutique Hotel, na Rua Amílcar Cabral, e dar continuidade à experiência hoteleira contraída em Joanesburgo, na África do Sul. “Viviam na ruína cerca de 14 famílias. Foi preciso muito tempo para chegar a acordo com elas, e tivémos de contar com a ajuda das autoridades religiosas locais ao longo de todo este processo. Foi oneroso e muito, mas mesmo muito desgastante”, afirma. De tal modo que, surgida a oportunidade, desfez-se do imóvel. Outros, porém, levam a termo os objectivos – converter o velho burgo colonial num vasto parque hoteleiro. Mabote não tem dúvidas: “Fora os edifícios institucionais, todas as reabilitações são para exploração comercial”. A verdade, torna-se incontestada. E a estatística confirma a natureza da compra, venda e troca de imóveis na Ilha – em 2005, havia 89 camas para visitantes; hoje, segundo o GACIM, são já 428 para receber os 11 000 forasteiros (7 000 deles estrangeiros) que demandam à Ilha todos os anos. No futuro que se avizinha, a Cidade de Pedra e Cal, com a desejável inflação do afluxo turístico e correlativa conversão de imóveis, ficará repleta de residentes ocasionais e vazia dos seus habitantes... habituais. E assim tornar-se-á na colónia, de férias, de um grupo de estrangeiros afortunados. Mabote, sempre optimista, vê nesse horizonte o desenvolvimento económico que sempre tardou em chegar por estas bandas: “No fundo, isto acaba por ser bom porque cria emprego durante a reabilitação e, depois, emprego permanente – a hospedagem garante logo, no mínimo, três ou quatro postos de trabalho”. Entre consequências imediatas, e a mais longo prazo, a verdade é que há mudanças que se tornarão incomportáveis para os próprios ilhéus. Senão o serão já – segundo Mabote, “uma ruína Tipo 3, sem tecto nem janelas, custa aqui (Cidade de Pedra e Cal) 1,5 milhões de meticais, tranquilamente; em Nampula, uma casa igual, novinha, pronta a habitar, andará peos 1,2 milhões – já com muro e gradeamentos...”. A troca até poderia compensar – se Nampula não ficasse a 200 quilómetros deste paraíso tropical, e acima de tudo, se a Ilha, não fosse de facto a casa que todos querem comprar, arrendar, e tornar sua.