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socIedade
NETFLIX vaI INvEsTIr ForTE Em ÁFrIca
Em Dezembro de 2018, a maior plataforma mundial de streaming cujo valor de mercado ultrapassa os 100 mil milhões de dólares, anunciou um investimento na produção de “Queen Sono”, uma série televisiva sul-africana, que marca assim uma mudança de rumo estratégica da Netflix com vista a expandir-se para fora dos Estados Unidos
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depois de ter recentemente
anunciado a aquisição dos direitos de distribuição internacional do filme nigeriano “Lionheart” – uma produção dos estúdios de Nollywood interpretada por Genevieve Nnaji, Nkem Owoh, Pete Edochie e Onyeka Onwenu –, a Netflix mostra agora, com este investimento na produção de “Queen Sono”, que está interessada em utilizar uma parte do seu orçamento de 8 mil milhões de dólares para este ano (2019) no desenvolvimento de projectos com “conteúdo local”, seja em África ou em outras regiões do mundo (recorde-se que em 2018 a Netflix já tinha investido numa série indiana intitulada “Sacred Games” e anunciou ter outras seis em carteira). Numa conferência realizada em Londres, Erik Barmack, responsável da Netflix para a área internacional, confirmou que a empresa está “empenhada em diversificar o seu portefólio”, tendo em atenção o carácter cada vez mais global da sua operação e que o continente africano é um dos seus principais alvos. Recorde-se que, já em 2017 a Netflix divulgou estar presente em 190 países sendo que 73 milhões dos seus 130 milhões de assinantes não são originários dos EUA. A excepção mais notória a este domínio global é a China onde a Netflix ainda não está presente. Na conferência, Erik Barmack afirmou que, de acordo com as previsões da empresa, dentro de alguns anos “metade dos dez conteúdos mais vistos na Netflix serão certamente provenientes de outros países que não os EUA”. Ao saber que a Netflix iria investir em “Queen Sono”, a actriz Pearl Thusi escreveu no seu Twitter que esta aposta “vai mudar muita coisa para os artistas africanos”, pois o “músculo financeiro” da Netflix vai permitir desenvolver projectos que, pelo volume de investimento necessário, nunca foram possíveis. Pearl Thusi tem razão ao antecipar o impacto positivo que este investimento da Netflix vai ter na indústria local ligada à produção de conteúdos televisivos e cinematográficos, mas há quem
130
milhões de assinantes A netflix é hoje A mAior plAtAformA de streAming do mundo, e Assume umA importânciA globAl, já que 73 milhões dos seus AssinAntes - mAis de 50% - não estão nos estAdos unidos
veja esta entrada em força da Netflix em África como uma ameaça. Por exemplo, a Multichoice, a maior empresa de televisão no continente, detentora da DStv, realizou em 2018 um estudo para analisar as consequências da entrada da Netflix no mercado. E torna-se claro que a Multichoice vê a norte-americana como um competidor problemático, considerando a Netflix responsável pela perda de 100 mil assinantes do seu serviço no ano anterior à realização do estudo e de mais 40 mil em 2018. Para além do facto de que aderir à Netflix não representa qualquer custo para o consumidor, acresce que a assinatura do serviço não chega aos 12 dólares, enquanto que para obter o serviço Premium da DStv o consumidor tem de desembolsar 60 dólares (para além dos custos de instalação do serviço). É verdade que aderir ao serviço da Netflix pressupõe ter uma boa ligação à internet (coisa que em África está longe de ser um dado adquirido para grande parte da população e tem ainda
sociedade
um custo muito significativo). Mas várias sondagens recentes indicam que, sobretudo entre os consumidores urbanos de muitas cidades africanas, existe uma crescente insatisfação com os preços praticados pela DStv e, em particular, com a programação baseada em frequentes repetições (re-runs).
a guerra dos conteúdos No entanto, considerar que o problema da Multichoice se resume ao facto de ter um portefólio de programas insuficiente e a uma política de preços inflacionada é não perceber que o que está em jogo são dois modelos de negócio distintos. Aliás, a “angústia” da Multichoice é semelhante à de muitos operadores no segmento da TV por cabo a nível global. Um estudo publicado nos Estados Unidos no início de 2018 indicava que a expectativa era que, durante esse ano, mais de 5 milhões de consumidores norte-americanos iriam desisitir das suas assinaturas das televisões por cabo. Mas, de forma mais significativa ainda, esse estudo assinalava que estas “desistências” representavam um aumento de 685% desde 2016, altura em que a tendência dos consumidores migrarem da televisão por cabo para a internet começou a evidenciar-se como mais do que um mero epifenómeno conjuntural. De acordo com este estudo, as perdas estimadas para as televisões por cabo situar-se-iam, em 2018, na ordem dos 5,5 mil milhões de dólares. Ao analisarem as razões para a deserção em massa destes consumidores, os quais têm vindo a ser designados por “cord-cutters”, o estudo indicava, entre outras, duas razões principais: frustração e insatisfação com os preços praticados e a obrigatoriedade de aderirem a “pacotes” que incluem canais que não lhes interessam de todo.
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A Netflix está a apostar no mercado de produção nigeriano, conhecido como Nollywood
Ao contrário de Hollywood, a Netflix não está no negócio de vender um filme a muitos consumidores. Pelo contrário, o seu modelo assenta na ideia de vender muitos filmes a consumidores do mundo inteiro
Mas a conclusão mais preocupante para as televisões por cabo era de que não apenas há uma tendência crescente no número de consumidores que pretendem “cortar com o cabo” mas, sobretudo, há sinais de um outro fenómeno a emergir: o dos “cord-nevers” (“cabo-nunca”), isto é, há um número expressivo de consumidores que nunca tiveram uma assinatura de televisão por cabo e não tencionam vir a fazê-la. O sucesso da Netflix está ainda associado a um outro factor determinante: o investimento feito na produção de séries e filmes de excepcional qualidade. Muitos observadores imaginaram que séries como “House of Cards” ou “Orange is the New Black” – que atraíram milhões de espectadores e que a crítica saudou não apenas pela sua qualidade mas pelo facto de trazerem para o universo televisivo temas arrojados – seriam um fenómeno irrepetível. Como é hoje evidente, enganaram-se. Séries como “Luke Cage”, “Stranger Thing”s e “The OA”, entre outras, confirmaram que os primeiros sucessos não tinham acontecido por acaso. Na verdade, a Netflix “leu” bem o mercado actual e compreendeu que os consumidores estão cansados de “formatos” que reproduzem à exaustão temas e modelos de entretenimento que já pouco dizem às novas gerações e às elites urbanas mais sofisticadas. Mais: a Netflix percebeu também que, dado que Hollywood, devido ao seu novo modelo de operar (que privilegia sobretudo grandes “blockbusters”) praticamente desinvestiu na produção de filmes “independentes” ou com forte componente “artística”, tinha deixado muitos actores de primeiro plano “disponíveis” para projectos de qualidade. Isso permitiu-lhe aliciar grandes figuras, como Kevin Spacey em “House of Cards”, a integrar as suas séries e capitalizar, em termos reputacionais, com a sua participação. Em 2016, a Netflix investiu 5 mil milhões de dólares em conteúdos originais. No ano seguinte, cinco das dez séries mais procuradas nas pesquisas no Google tinham sido produzidas pela Netflix. Em 2017, a empresa subiu a parada e investiu 6 mil milhões de dólares na produção de mais de 1 000 horas de conteúdos originais, duplicando assim a sua oferta. E em 2019, esse investimento subiu para os 8 mil milhões. Para Tony Gunnarsson, da consultora Ovum, “a Netflix tornou-se, simplesmente, sinónimo de televisão”, destacando ainda que o que a
Netflix percebeu “foi que hoje os consumidores querem (para além de “qualidade” e temas que reflictam a realidade do mundo contemporâneo) é ter controlo sobre o que vêem ou deixam de ver, ou seja, uma total e irrestrita liberdade de escolha.”
Impacto em cascata Também a indústria cinematográfica tem sentido o efeito “disruptor” do seu modelo de operar. Durante décadas, Hollywood baseou o seu negócio num modelo de distribuição faseado. Os filmes começavam por ser lançados nas salas de cinema e só posteriormente eram colocados no circuito das lojas de retalho (primeiro através da vendas dos DVD’s e depois sob a forma de aluguer) e, muito mais tarde, ficavam acessíveis nas televisões. Este esquema baseava-se numa análise do comportamento dos diversos segmentos de público existentes e no valor que cada um deles atribuía ao visionamento de um filme. Assim, por exemplo, os estúdios consideravam haver um segmento (os “impacientes”) que estava disposto a pagar um valor mais alto assim que um filme era distribuído numa sala de cinema, pois sabiam que teriam de esperar alguns meses para o ver em DVD. Outros não sentiam essa urgência e aceitavam esperar pela saída do filme em DVD. Deste modo, o faseamento no lançamento de um filme (que a indústria designava como “janelas” de distribuição) era crítico, pois permitia extrair o máximo valor dos diversos segmentos impedindo uma “canibalização” precoce do seu produto pelos diversos segmentos. Mas os tempos mudaram, sobretudo com a internet, a sua ubiquidade e permanente acessíbilidade. Os primeiros filmes da Netflix foram lançados em streaming e nunca chegaram sequer a passar numa sala de cinema. Mais recentemente, e em casos esporádicos, a Netflix lançou, em simultâneo, alguns filmes na sua plataforma e em algumas salas de cinema. Como entender então esta opção? A razão é simples: ao contrário de Hollywood, a Netflix não está no negócio de “vender um filme a uma grande variedade de consumidores” mas, pelo contrário, o seu modelo de negócio assenta na ideia de “vender muitos filmes a consumidores individuais”. O sucesso deste modelo, que Hollywood e a indústria cinematográfica perceberam tarde e a más horas, levou recentemente a uma série de fusões (Disney/Fox e ATT/Warner Brothers) cujo objectivo é adoptar, em parte, um modelo semelhante ao da Netflix por forma a competir com o que pressentem ser a mudança de paradigma do mercado. O que não significa que alguns dos actores do “velho sistema” não continuem a tentar bloquear a ascendência da Netflix. Como aconteceu, em 2018, no Festival de Cannes quando os organizadores impediram os filmes produzidos pela Netflix de participarem “por não terem sido projectados em salas de cinema”. Já este ano, filmes como “The Irishman”, de Martin Scorsese, com Robert de Niro e Joe Pesci, e “The Laundromat”, de Steven Soderbergh e protagonizado por Meryl Streep, tiveram sorte semelhante. Apesar de, após muitas disputas e controvérsias, a Netflix ter sido finalmente aceite como membro da Academia de Hollywood e os seus filmes terem ganho este ano quatro Óscares, ninguém tem dúvidas de que, nos próximos anos, esta é uma “guerra” que irá continuar pois o que está em causa é o confronto entre dois modelos de negócio. Neste caso, quem beneficia somos nós.