Entrevista idah Pswarayi-riddihough, a Nova Directora do BM em Moçambique Finscope 2019 os avanços (e Recuos) dos serviços financeiros no País desde 2014 Novo Normal? em que medida a utilização massiva da tecnologia ameaça a Democracia
De quem é a terra, afinal?
Constitucionalmente, pertence a todos os moçambicanos, mas em 45 anos de independência poucas vezes foi possível promover um sistema que alavanque a iniciativa privada AGOSTO 2020 • ano 03 no 28 • 15/08 - 15/09 Versão ePaper
moçambique
OIL & GAS A antevisão do Africa Oil & Power 2021 que terá lugar em maputo
Sumário 6
Observação
Cabo Delgado A imagem da insegurança que perdura há três anos devido aos ataques que fizeram milhares de vítimas
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Radar
Panorama Economia, Banca, Finanças, Infra-estruturas, Investimento, País
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65 ócio
66 Escape Uma viagem até à Ilha de Moçambique 68 Gourmet À descoberta dos sabores do Jacarandá 69 Adega Um brinde aos novos Bourbons 71 Arte “O Resgate”, o primeiro filme moçambicano na Netflix 72 Ao volante Conheça o Cadillac Lyriq, o primeiro carro eléctrico da General Motors
oil & gas
Africa Oil & Power James Chester fala dos objectivos da realização, em 2021, da reunião de investidores em Maputo
22 nação O que tem de mudar na política de Terra 22 Reforma Legal Estudiosos apresentam visões divergentes quanto ao caminho que se deve seguir 30 Exploração da terra Alda Salomão defende a manutenção da Política de Terras e clarificação da Lei 34 Gestão de Conflitos Banco Mundial entende que a Lei deve reconhecer a existência do mercado da terra 38 A terra lá fora Um overview sobre como é conduzida a política de terras em alguns países africanos
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mercado e FinanÇas
Serviços Financeiros Carteira móvel foi determinante na expansão do acesso perante um crescimento modesto da banca
48 eMPRESAS Pro-lar 3D Uma iniciativa impulsionada pelo talento na pintura faz “milagres” na decoração de interiores
www.economiaemercado.co.mz | Julho 2020
50 Megafone Marketing O que está a acontecer no mundo das marcas em Moçambique e lá por fora
52 SOCIEDADE Tecnologia Uma análise sobre como a adopção massiva das tecnologias é uma ameaça global à democracia
60 lÁ fora Etiópia Adiamento das eleções gerais alegadamente por causa do Covid-19 gera crise constitucional
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Editorial
Política de Terras — Antecipando os resultados da auscultação pública
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Celso Chambisso •Editor da Economia & Mercado lei de terras de moçambique é internacionalmente conhecida por ter sido bem concebida, principalmente pela forma vincada como procura assegurar a equidade na distribuição e a posse segura pelas comunidades. Ainda assim, ao longo dos 23 anos de vigência, e apesar das revisões pontuais que foram tendo lugar no sentido de ajustá-la em nome da promoção das boas práticas de administração e gestão de terras, a legislação não foi capaz de evitar conflitos nas relações sociais e de poder aos diferentes níveis. Conflitos esses, em grande medida, inspirados pela confusão que se cria em torno da interpretação do poder do Estado sobre a terra. Por várias ocasiões, durante muitos anos, o tema alimentou diversas pesquisas e debates de ideias, na sua maioria, divergentes sobre como a administração da terra deve ser conduzida, não só para evitar disputas como para maximizar a sua utilidade enquanto recurso mais importante de que o País dispõe. Hoje, com o lançamento no passado mês de Julho da auscultação pública para a revisão da Política Nacional de Terras e da respectiva Lei, o País prepara-se para inaugurar uma nova etapa neste capítulo. Mas antes mesmo que este processo se efective e traga resultados que inspirem as transformações que se vão assistir, a E&M antecipou-se e partiu para uma auscultação que deixará o leitor a par dos problemas e dos possíveis cenários futuros. A diferença, porém, é que enquanto a auscultação lançada pelo Presidente Nyusi é mais abrangente, podendo incluir as comunidades, a realizada pela E&M foi buscar a visão de estudiosos, representantes de Organizações Não Governamentais, da Sociedade Civil, do sector privado, bem como a recém-nomeada directora-geral do Banco Mundial para Moçambique, Idah Pswarayi-Riddihough, que nesta edição dá a sua primeira entrevista, um mês após assumir o cargo. Importa destacar, de forma particular, que apesar da comunhão de ideias quanto aos méritos da legislação vigente, prevalecem, entre os intervenientes, opiniões muito divergentes no que diz respeito aos aspectos a serem levados em conta na revisão cujo processo acaba de dar o primeiro passo. Isto faz prever que os consensos serão difíceis de alcançar. No fundo, são três questões em torno das quais se vai desenrolar todo este movimento, nomeadamente: se a Lei é boa, por que mudá-la ao invés de apertar com a fiscalização do seu cumprimento? O que será feito ao nível do fortalecimento das instituições para garantir o cumprimento da Lei? O que há por mudar se o Governo já avisou que a terra não deixará de ser proprieassinatura dade do Estado e que continuará a proteger a sua posse pelas comunidadigitalizada des? Se a auscultação antecipada não conseguiu trazer consensos, vamos torcer para que a que o Governo acaba de lançar o faça!
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AGOSTO • Nº 28 MÊS ano2020 • Nº 01 propriedade Executive Mocambique Liquatis nienis doluptae velit etCativelos magnis DIRECTOR EXECUTIVO Pedro enis necatin nam fuga. Henet exceatem pedro.cativelos@media4development.com seque cus, sum nis nam iu Qui te nullant EDITOR EXECUTIVO Celso Chambisso adis destiosse iusci re inMassacola, prae volesCristina JORNALISTAS Emídio sant laborendae nihilibRogério uscius Macambize, sinusam Freire, Elmano Madaíl, rehentius eos resti dolumqui dolorep Rui Trindade reprem vendipid que ea et eumque non PAGINAÇÃO José Mundundo nonsent qui officiasi FOTOGRAFIA Mariano Silva lorem ipsum Executive Mocambique REVISÃO Manuela Rodrigues dos Santos Liquatis nienis doluptae velit magnis Direcção Comercial AnaetEsteves enis necatin nam fuga. Henet exceatem ana.esteves@media4development.com seque cus, sum nis nam iu Qui te nullant conselho CONSULTIVO adis destiosse iusci re in prae voles Alda Salomão, Andreia Narigão, António sant laborendae nihilib uscius sinusam Souto; Bernardo Aparício, Denise Branco, rehentiusdeeos resti dolumqui dolorep Fabrícia Almeida Henriques, Frederico reprem vendipid que ea et eumque non Silva, Hermano Juvane, Iacumba Ali Aiuba, nonsent qui officiasi João Gomes, Narciso Matos, Rogério Samo lorem Salim ipsumCripton LiquatisValá, nienis doluptae Gudo, Sérgio Nicolini velit et magnis enis necatin nam fuga. ADMINISTRAÇÃO, REDACÇÃO Henet exceatem seque cus, sum nis nam E PUBLICIDADE Media4Development iu Qui te nullant adis destiosse Rua Ângelo Azarias Chichava nº iusci 311 A re —in prae voles sant laborendae nihilib uscius Sommerschield, Maputo – Moçambique; sinusam rehentius eos resti dolumqui marketing@media4development.com dolorep reprem vendipid que ea et IMPRESSÃO E ACABAMENTO eumquePrint non nonsent officiasi Minerva - Maputoqui - Moçambique lorem ipsum nienis doluptae Tiragem 4 500Liquatis exemplares velit et magnis enis nam fuga. Propriedade dOnecatin Registo Henet exceatem seque cus, sum nis nam Executive Moçambique iu Qui te nullantEditorial adis destiosse Exploração e iusci re in prae voles sant nihilib uscius Comercial emlaborendae Moçambique sinusam rehentius eos resti dolumqui Media4Development dolorep reprem vendipid que ea et Número de Registo eumque non nonsent qui officiasi 01/GABINFO-DEPC/2018 lorem ipsum Liquatis nienis doluptae velit et magnis enis necatin nam fuga. Henet exceatem seque cus, sum nis nam iu Qui te nullant adis destiosse iusci re in prae voles sant laborendae nihilib uscius sinusam rehentius eos resti dolumqui dolorep reprem vendipid que ea et eumque non nonsent qui officiasi
www.economiaemercado.co.mz | Abril 2019
observação Cabo Delgado, 2020
Quando e de onde virá a solução para Cabo Delgado? Já lá vão três anos desde o primeiro dos ataques insurgentes no norte da província de Cabo Delgado. Até hoje, não há luz sobre as razões do que aconteceu, só escuridão. Ao contrário disso, cresce o número de vítimas estimado em mais de 1000 mortos e mais de 200 mil deslocados, e não há clareza sobre a estratégia que o Governo pensa em pôr em prática para acabar com a instabilidade. Perante a dificuldade das Forças de Defesa e Segurança (FDS) em combater os insurgentes, já se fala na possibilidade de envolver, no conflito, o exército sul-africano e a Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC). Do exterior vão chegando sinais a ter em consideração. Num artigo de opinião veiculado no “O Jornal Económico” de Portugal, o Major-General e pesquisador do Instituto Português de Relações Internacionais, Carlos Branco, refere que “independentemente da ajuda externa que possa vir a ser prestada, é bom que as autoridades moçambicanas tenham presente que o problema terá de ser resolvido por elas, e não por outrem”. Mas, enquanto a solução efectiva não chega, a destruição vai tomando conta de Cabo Delgado. Até quando? fotografia D.R
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RADAR PwC discorda das demonstrações financeiras do Banco de Moçambique
O auditor independente das contas do Banco de Moçambique discorda das demonstrações financeiras de 2018 publicadas sexta-feira na Internet, mas o Banco Central considera que estão correctas. “O Banco de Moçambique não consolidou as demonstrações financeiras da subsidiária Kuhanha – Sociedade Gestora do Fundo de Pensões” do Banco de Moçambique, como mandam as normas internacionais, refere a firma auditora PwC. Segundo o relatório de auditoria independente, “as demonstrações financeiras individuais e consolidadas não apresentam de forma apropriada a posição financeira do banco e das subsidiárias”. “A consolidação da Kuhanha originaria impactos materiais em muitos dos elementos destas demonstrações financeiras”, aponta, acrescentando que “não foram determinados os efeitos desta não consolidação”. No documento, a administração do BM considera que “não existe um sentido económico relevante que justifique a consolidação” da Kuhanha. “No perímetro da consolidação foi considerada apenas a subsidiária Sociedade Interbancária de Moçambique (SIMO), uma vez que o seu objecto de actividade (a rede de caixas automáticas do País) está enquadrado nas funções do banco central”, refere. A Kuhanha é classificada “como uma entidade de interesse público”, “enquadrada num sector de actividade regulado pelo Instituto de Supervisão de Seguros de Moçambique e, como tal, sujeita a auditorias independentes regulares”, acrescenta.
ECONOMIA Cabo Delgado. Numa reunião recente com o Presidente da República, Filipe Nyusi, o Banco Mundial manifestou-se disponível para apoiar a reconstrução de infra-estruturas e a criação de empregos na província de Cabo
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Delgado, afectada pela violência desde 2017. “O Banco Mundial encorajou e mostrou-se favorável a apoiar a promoção da reconstrução de infra-estruturas e de actividades de desenvolvimento económico e criação de emprego para os jovens”, refere um comunicado de imprensa da Presidência da República, que cita o
presidente do Banco Mundial, David Malpass. O responsável falava durante uma reunião virtual de trabalho com o Chefe do Estado moçambicano. Além de manifestar a disponibilidade em apoiar aquela província, o dirigente do Banco Mundial felicitou o Governo pelas medidas que tem tomado para fazer face aos ataques, defendendo a definição de “projectos concretos” na região para garantir a inclusão dos jovens.
Aviação. Em comunicação à Nação, recentemente, o Presidente da República (PR), Filipe Jacinto Nyusi, falou da necessidade de se agilizar a retoma de voos internacionais, mas sem precisar a data, embora a 28 de Junho passado tenha anunciado a retoma de ligações aéreas com países seleccionados (não mencionados) em regime de reciprocidade. Na comunicação de Junho, lembre-se, o Chefe de Estado justificou a pertinência da retoma de voos internacionais para permitir a deslocação de “especialistas, gestores e investidores para dinamizar o turismo e negócios” no País. Nos dias subsequentes, o Instituto de Aviação Civil de Moçambique (IACM) avançou à imprensa que, até ao dia 10 de Julho passado, ter-se-ia País ia fazer ligações aéreas (embora a sua aprovação devesse ter o aval do Governo), mas até ao fecho desta edição não havia informação nova a este respeito.
Receitas do Estado. O Estado moçambicano arrecadou receitas de pouco mais de 110 mil milhões de meticais no primeiro semestre do presente ano, um aumento de 5,4% em relação ao período homólogo, refere o balanço do Governo. O resumo do balanço, analisado recentemente pelo Conselho de Ministros, assinala que, de Janeiro a Junho, a despesa total do Estado cresceu 2%. A inflação média situou-se em 2,81% no primeiro trimestre deste ano contra 3,83% de igual período do ano passado e o Estado constituiu reservas internacionais líquidas capazes de cobrir seis meses de importação de bens e serviços face aos 5,8 meses inicialmente projectados. De um modo geral, os indicadores de desempenho estiveram melhores que no primeiro semestre do ano passado, não obstante os efeitos negativos da pandemia do novo Coronavírus.
Inflação. Depois de Maio e Junho, os preços de diferentes produtos e serviços continuaram a baixar em Julho último. Dados recolhidos pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), nas cidades de Maputo, Beira e Nampula, ao longo do mês passado, concluíram que o País registou, face ao mês anterior, uma desaceleração da inflação na ordem de 0,20%. “A divisão de alimentação e bebidas não alcoólicas foi a de maior impacto, ao contribuir no total da variação mensal com www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
cerca de 0,22 pontos percentuais (pp) negativos”, refere o comunicado.
em 2018. Em termos de vendas por produto, as exportações agrícolas situaram-se nos 427,6 milhões de dólares, mais do dobro que em 2018 (cerca de 203,4 milhões de dólares), indica o INE.
EXTRACTIVAS
Pescas. Mais de 3 500 toneladas de pescado diverso foram capturadas no primeiro semestre do ano em curso nas águas marítimas e interiores da província de Maputo, representando uma produção avaliada em 314 milhões de meticais. Entretanto, o Conselho Executivo Provincial manifesta preocupação em relação ao fraco nível de licenciamento dos pescadores, segundo afirmou o governador Júlio Parruque, na cerimónia de lançamento da campanha de produção pesqueira. O governante indicou que a proliferação de pescadores artesanais, que actuam de forma ilegal, lesa o Estado e atrasa o desenvolvimento do País e da província, em particular. Salientou que um dos benefícios do licenciamento é o direito de uso e aproveitamento do recurso pesqueiro e de acesso ao financiamento para o apetrechamento das embarcações. Exportações. O Instituto Nacional de Estatística (INE) indica que Moçambique exportou mais do dobro de produtos agrícolas no ano passado, ao atingir cerca de 427,6 milhões de dólares. O volume das exportações moçambicanas foi no valor total de 4 668,9 milhões de dólares em 2019, equivalentes a uma queda de 6,9%, face aos cerca de cinco mil milhões de dólares registados www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
Gás natural. O financiamento em cerca de 15,8 mil milhões de dólares norte-americanos ao projecto de gás natural liquefeito da área 1 (GNL) em Moçambique assegura o futuro do país como fornecedor de energia globalmente significativo, de acordo com a Economist Intelligence Unit (EIU), a propósito da divulgação, pelo Banco Africano de Desenvolvimento (BAD), de um comunicado a confirmar que foi assinado um financiamento naquele montante para o projecto de GNL da Área 1, com um consórcio de 20 bancos e instituições financeiras. O projecto é liderado pela Total, principal petrolífera francesa, que segue em frente apesar dos ventos negativos que surgem no horizonte, designadamente a “fraca procura global de GNL, a crescente insurgência na província de Cabo Delgado, no Norte, o surto do novo Coronavírus na Área 1 e a crise da dívida de longo prazo do País”, lê-se no documento. Financiamento. O Absa vai
apoiar, com 300 milhões de dólares, o projecto de Gás Natural Liquefeito (GNL), na Bacia do Rovuma, em Cabo Delgado. O projecto, implementado pela gigante francesa Total, vai explorar cerca de 65 triliões de pés cúbicos de reservas de gás em Moçambique, num investimento avaliado em 24 mil milhões de dólares. O projecto vai apresentar oportunidades para os fornecedores nacionais.
OPINIÃO
Ruralidade Versus Urbanidade: Dois Pólos Antagónicos ou Complementares? (I)
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Salim Cripton Valá • PCA da Bolsa de Valores de Moçambique rofundas e rápidas mudanças estão a ocorrer no mundo, nos países e dentro dos países. A partir da segunda metade da década de 1990, os estudos a respeito da questão rural-urbana destacaram-se especialmente na Sociologia, Economia e Geografia, para compreender melhor as novas características do campo, as relações entre o campo e a cidade, a intensificação da pluriactividade, o aumento de actividades não agrícolas em áreas rurais, a mecanização crescente da actividade agro-pecuária, o dinamismo do agro-negócio, as cidades como pólos de crescimento regional, os movimentos socioterritoriais, entre outras temáticas. A tendência global de crescente industrialização, modernização e urbanização não faz perder de vista que nas áreas rurais ainda prevalecem situações de fome, pobreza, falta de acesso aos serviços básicos, desigualdades sociais e reduzidas oportunidades económicas e de empregos, e que a problemática da segurança alimentar e nutricional está na “agenda do dia”. É muito provável que o mundo em 2050 seja mais rico, mais saudável, mais interconectado, mais produtivo e inovador, com melhor educação, menos desigual entre ricos e pobres e entre homens e mulheres, mais solidário, mais sustentável, com mais estabilidade e com mais oportunidades para milhares de milhões de pessoas. Mas não tenhamos ilusões: o mundo não será a “Comunidade Imaginada” (pedindo emprestada a expressão de Benedict Anderson, 1911) global idílica e harmónica, desprovida de tensões, disrupções, contradições e de velhas e novas conflitualidades. O mundo está a assistir a uma mudança em grande escala e em distintos domínios, que ocorre a uma velocidade impressionante e nunca antes vista. A tecnologia expande-se incrivelmente depressa, a economia global está a pender para o lado da Ásia, a demografia está a sofrer alterações de grande amplitude, as mudanças climáticas são uma problemática omnipresente nos vários quadrantes do mundo, o desafio energético está visível e foi relativamente contido com o advento da COVID-19 e novas crises económicas e
financeiras estão à espreita e ameaçam derramar os seus efeitos nos países, empresas e famílias. Os espaços, rurais e urbanos vão ressentir-se certamente das crises globais, nacionais e dentro dos países. Por volta de 2050, o mundo será mais urbano, será consideravelmente mais velho (a idade média aumentará de 29 para 38 anos) e será mais africano (cerca de metade dos 2,3 milhares de milhões de pessoas que ainda estão para nascer serão habitantes de África). Mudanças sociais disruptivas surgirão como consequência do rápido desenvolvimento dos países emergentes, reformas vão tornar os Estados mais eficazes e transparentes, e a ciência vai continuar a expandir incessantemente os seu horizontes, em decorrência de uma economia global baseada no conhecimento e assente nas novas tecnologias de informação e comunicação. Temos pela frente enormes desafios como lidar com as alterações climáticas e as crises epidemiológicas, controlar conflitos por recursos escassos como a água, alimentar os 9 mil milhões de pessoas que existirão em 2050 e gerir a multiplicidade de novas ameaças à nossa segurança e estabilidade. O mundo vai testemunhar, como afiança Nassim Taleb (2007), a passagem de bandos sucessivos de “Cisnes Negros”, sobretudo pela natureza aleatória, contexto de incertezas e marcada por desenvolvimentos imprevisíveis. As áreas rurais e a agricultura vão ter de estar preparadas para alimentar uma população em rápido crescimento e o agro-negócio vai assumir-se como uma actividade que gera riqueza e prosperidade. Nos países ainda pobres, registam-se melhorias significativas na gestão macroeconómica, na implantação de infra-estruturas, na diversificação das estratégias comerciais e na provisão de alguns serviços essenciais. Persistem, porém, nos países e dentro dos países, desafios relacionados com a erradicação da fome, elevada taxa de pobreza e desnutrição crónica, baixo índice de desenvolvimento humano e de competitividade económica, elevado peso da economia informal, deficiente ambiente de
A tendência global de crescente industrialização, modernização e urbanização, não faz perder de vista que nas áreas rurais ainda prevalecem situações de falta de acesso aos serviços básicos
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Países pobres estão a registar melhorias significativas na implantação de infra-estruturas, mas persistem desafios relacionados com a fraca competitividade económica
negócios, elevada taxa de desemprego, fardo pesado do endividamento e ainda significativas desigualdades sociais, espaciais e de género (BAD, 2018; Lopes, 2019; Valá, 2019). Novas doenças vão surgindo, as demandas do sector produtivo nem sempre se ajustam ao perfil de saída dos graduados, surgem novas profissões e novas modalidades de trabalho, a mendicidade e a pobreza urbana têm-se mostrado mais duras e ásperas, o acesso à água potável e à energia para todos é ainda um desafio, como o é a disponibilidade de habitação condigna e mais empregos, particularmente para os jovens. Os assuntos antes aflorados, embora tenham manifestações, dimensões e consequências distintas em cada espaço, estão presentes nas áreas rurais e nas áreas urbanas. Este artigo procura explorar a dicotomia “rural-urbano”, a dialéctica existente entre os dois espaços e as suas possibilidades de desenvolvimento, tendo em conta que não é possível compreender as relações “campo-cidade” separadamente. Ele argumenta que o rural e o urbano correspondem a representações sociais sujeitas a reelaborações e ressemantizações que vão variar conforme o universo simbólico a que se refere, e que a ruralidade se caracteriza por ser um conceito cuja natureza é territorial e não sectorial, como o é igualmente a noção do urbano. Assim, o campo não é definido apenas pela ligação com a terra, a natureza e a agricultura, assim como a cultura material da cidade não está exclusivamente vinculada à indústria e serviços. Compreender melhor essas problemáticas e endereçar políticas públicas compreensivas, focalizadas e sustentáveis vai ser necessário e urgente, sobretudo porque há uma agenda da globalização a ter em conta, e porque aqueles que tomam as grandes decisões vivem em cidades. www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
1. Pode-se entender o rural como sinónimo de vulnerabilidade e pobreza? Conceptualmente, o espaço rural é habitado por pequenas comunidades humanas, com valores mútuos e história comum, que giram ainda em torno da fidelidade e da pertença a um meio e a um território, em que se reencontra uma dinâmica distinta e práticas sociais, culturais e económicas fundadas sobre a proximidade, a convivialidade, a ajuda e a cooperação, associado ao território, às relações e à coesão social. Porém, esta definição sofre ajustes constantes, em razão das mudanças e das diversificações do rural, em que as actividades socioeconómicas se alteram, as paisagens se transformam, a gestão dos territórios muda, bem como a distribuição do povoamento e as relações sociais e de vizinhança. A ruralidade é um modo de vida ligado intimamente ao campo e às práticas e hábitos rurais, ou seja, dedicação principalmente, às actividades socioprodutivas relacionadas com o trabalho da família na terra e, assim, garantir a sua reprodução biológica e social (Veiga, 2000; Graziano da Silva, 1999 e Abramovay, 2003). É fundamental superar a concepção negativista e a visão estigmatizada acerca do espaço rural e da agricultura como sinónimos de atraso, do arcaico e do subdesenvolvimento. Não se pode deixar de reconhecer que é a própria administração que gera essa perspectiva preconceituosa, ao denominar o rural como o espaço que não é urbano, sendo definido a partir das suas carências e não das suas próprias características. Os espaços rurais possuem múltiplas valências, entre elas o seu elevado potencial económico, o património cultural e natural, as amenidades rurais, ou seja, o ar puro, as belas paisagens, o contacto com os animais e as plantas, que permitem atrair investimentos
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OPINIÃO da indústria de lazer. Isso tem permitido deslocar a base da economia rural da exportação de produtos primários e manufacturados para a oferta, também, de serviços e importação de pessoas, dinheiro público e renda de origem urbana. O desenvolvimento do capitalismo e a industrialização da agricultura podem desencadear a urbanização do campo, pela proliferação de actividades não agrícolas no campo, como o turismo, comércio e prestação de serviços, transportes, construção, serviços financeiros, entre outros, bem como a paulatina ocupação do campo pelos “neo-rurais”, servindo como residência de fim-de-semana para os amantes da vida bucólica. Nos anos 1950, a teoria económica predominante sustentava que os pequenos produtores era atrasados, sem espírito empreendedor, e que por consequência deveriam ser incentivados a mudarem-se para as áreas urbanas, a fim de suprirem o sector industrial de mão-de-obra. As terras assim ocupadas pelos migrantes deveriam ser organizadas em grandes propriedades mecanizadas e administradas por gerentes como empresas industriais modernas. A História demonstrou que essa mecanização era inapropriada quando se tinha mão-de-obra abundante e de baixa remuneração, exigindo pesados subsídios para a operacionalização desses empreendimentos, provando inclusive ser insustentável. Ficou evidenciado que os pequenos agricultores aos quais são negados acesso à capacitação, ao crédito, aos mercados, as infra-estruturas e a tecnologias são também menos produtivos. Durante longo tempo acreditou-se que para incentivar o desenvolvimento rural bastaria simplesmente o desenvolvimento agrícola. A ideia dominante era que a transformação social e económica e a melhoria das condições de vida das populações rurais seria um resultado natural do processo de mudança produtiva decorrente da introdução da tecnologia agrícola. Essa visão teve a sua máxima expressão na chamada “Revolução Verde”, que apostando na modernização agrícola (introdução de máquinas agrícolas, fertilizantes inorgânicos, agro-químicos, sementes melhoradas, instrumentos de produção adequados à pequena escala, fomento da irrigação, etc.) pretendia aumentar a produção e a produtividade permitindo, desse modo, o aumento da renda familiar e, portanto, o desenvolvimento rural. Os resultados dessas estratégias nas áreas rurais foram globalmente decepcionantes pois, apesar de as novas tecnologias terem permitido o aumento da produção agrícola em diversas regiões do mundo, provocaram simultaneamente o agravamento das condições de vida das populações que aí habitavam. Uma grande parcela da população não pôde ter acesso ao capital necessário para a modernização agrícola, registou-se uma descapitalização daqueles que contraíram dívidas para lograr essa modernização, registaram-se graves problemas de poluição da água, uma redução das áreas florestais, redução do potencial hídrico, empobrecimento dos solos devido ao uso de agro-tóxicos, graves problemas de distribuição da terra, etc., e em geral não se conseguiu reduzir a pobreza. A adopção dos programas de ajustamento estrutural e de medidas de austeridade, em muitos países, foi marcado pelo desinvestimento do Estado na agricultura, por massivos e apressados programas de privatização, redução dos subsídios à produção e comercialização, remoção das barreiras para a entrada de produtos estrangeiros, bem
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Há estudos que mostram que as famílias que mais diversificam as suas actividades económicas nas áreas rurais contam-se entre as que fugiram da “armadilha da pobreza” como foram favorecidos os produtos para exportação em detrimento da produção de alimentos. Paralelamente, registou-se uma maior dependência dos pequenos produtores às grandes empresas (de grande capital, através de empresas de fomento de certas culturas de rendimento), níveis muito baixos de poupança dos pequenos produtores (vulnerabilidades essas agravadas pelas calamidades naturais cíclicas), o que fez com que o êxodo rural ganhasse novos ritmos e contornos mais complexos. Quando se refere erroneamente que o rural é sinónimo do agrícola está a fazer-se confusão entre um espaço geográfico e um sector de actividade. Um número significativo de pessoas que residem em áreas rurais desenvolvem actividades extra-agrícolas, bem como existem famílias rurais ligadas à agricultura que desenvolvem também outras actividades económicas, como produção e venda de carvão, pequenos negócios, mineração artesanal, pesca, trabalho assalariado, etc., como estratégia de sobrevivência, aversão ao risco ou de acumulação. Há estudos que mostram que as famílias que mais diversificam as suas actividades económicas nas áreas www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
rurais contam-se entre as que fugiram da “armadilha da pobreza”. Embora se reconheça que a actividade agrícola continue a ser vital para a economia rural, o seu peso tem vindo a reduzir-se gradualmente e ela já não determina, isoladamente, os rumos da demografia no campo (Valá, 2012; Valá, 2017; MEF, 2016; MPD, 2012). José Negrão (2005 & 2008) dá uma importante contribuição ao questionar alguns pressupostos relacionados com o comportamento económico da família rural, que influenciam e condicionam as decisões dos pequenos agricultores moçambicanos, como: a) a substituição do conceito de economia de subsistência pelo de economia familiar, pois as famílias rurais estão integradas no mercado e têm como objectivo reforçar as redes sociais minimizadoras de riscos e multiplicar a produtividade marginal de cada factor; b) para os habitantes rurais, a agricultura representa uma indispensável, mas não exclusiva, fonte de rendimento e a especificidade do comportamento de cada unidade singular é parte de um todo no qual reside a garantia da reprodução social e de seguro contra riscos; c) a adjudicação do tempo de trabalho disponível da família na agricultura para o consumo não é substituível pelo trabalho fora do sector agrário e para o mercado, gerando padrões de divisão de trabalho no seio da família que muitas vezes revelam relações de género não equilibradas; d) a terra para a produção de rendimento em espécie não é arrendada, hipotecada ou alienada, sob o risco de comprometer a reprodução física da família, daí a necessidade de garantir o acesso e poswww.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
se da terra para todas as famílias rurais moçambicanas) a adjudicação dos recursos pela família nuclear tem em consideração a sua pertença às redes de segurança social, tornadas praticáveis através de meios de coacção das linhagens do marido e da mulher. Assim sendo, Negrão chama a atenção para a relação entre a utilização do tempo na agricultura e noutras actividades económicas, a adjudicação de tempo para a produção para o mercado e para fora do mercado, a relação entre o uso da terra para a produção em espécie e o uso para a obtenção de dinheiro e a adjudicação de recursos pela família nuclear e pela linhagem, que são elementos vitais para compreender os processos de tomada de decisões das famílias rurais africanas em relação à adjudicação de recursos. Essa visão toma em conta as mudanças que ocorrem no campo, a relação entre a cidade e o campo e como as estratégias económicas das famílias rurais levam em conta a dinâmica de mudança em curso. Importa, pois, clarificar os termos de desenvolvimento agrícola, agrário e rural, que muitas vezes são usados de forma ambígua, confusa e difusa. O desenvolvimento agrícola refere-se as condições da produção agrícola e às suas características, no sentido estritamente produtivo, identificando as suas tendências num dado período de tempo. O desenvolvimento agrário diz respeito às interpretações acerca do “mundo rural” nas suas relações com a sociedade maior, em todas as suas dimensões, e não apenas à estrutura agrícola. Refere-se às condições de produção (o desenvolvimento agrícola, pecuário e florestal) não apenas numa faceta, mas centrando-se a análise também nas instituições, nas políticas adoptadas, nas disputas entre classes, nas condições de acesso e uso da terra, nas relações de trabalho e suas mudanças, nos conflitos sociais e nos mercados. A expressão “desenvolvimento rural” diferencia-se das duas anteriores por se tratar de uma acção previamente articulada que induz mudanças num determinado ambiente rural. Em consequência, o Estado sempre esteve presente à frente de qualquer proposta de desenvolvimento rural como seu agente principal. A determinação do que seja exactamente desenvolvimento rural tem variado ao longo do tempo, embora normalmente nenhuma das propostas deixe de destacar a melhoria do bem-estar das populações rurais como o objectivo final. As diferenças surgem nas estratégias seleccionadas, na hierarquização das prioridades e nas ênfases metodológicas (Navarro, 2001; MPD, 2007; Valá, 2006; Valá, 2009). Em muitos casos, o lento desenvolvimento rural se deve à combinação da falta de desenvolvimento agrícola e também do não agrícola. Na verdade, se uma determinada região possui cidades com dinâmicas geradoras de emprego e renda, essas mesmas dinâmicas tendem a reflectir-se no seu entorno rural, daí a necessidade de superar-se a dicotomia “rural-urbano“ e agrícola-não agrícola, e pensarmos no desenvolvimento do local, do território, da região. E as cidades têm de fazer parte desse movimento, pois o desenvolvimento não pode ser encarado como apenas rural e, muito menos, como exclusivamente agrícola. O rural, longe de ser um espaço diferenciado pelas relações exclusivamente com a terra, natureza e ambiente, está profundamente relacionado com o urbano que lhe é contíguo.
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oil & Gas “Consolidar o lugar de Moçambique na elite mundial da Energia” Sandra Jeque International Conference Director na Africa Oil & Power
Com a contagem já em modo decrescente para o início da exploração de gás, Maputo recebe alguns dos principais players do sector no próximo mês de Março
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Texto Rogerio Macambize • Fotografia Mariano Silva
africa oil & power é um evento do sector energético que, de 8 a 11 de Março de 2021, reunirá em Maputo um conjunto de investidores e decisores políticos mundiais nas áreas do petróleo, gás e energia. Na sua primeira edição em Moçambique — sob o tema ‘Leveraging LNG: Building a Prosperous Mozambique’ — irá perspectivar-se o futuro do LNG numa era de pandemia, o impacto ambiental, as caceias de valor ou o tão necessário conteúdo local. O evento será desenvolvido em parceria com a Câmara Africana de Energia, a Atitude HR, a revista Economia & Mercado e o portal de economia e finanças Diário Económico,
Falemos sobre esta summit que se vai realizar, em Março de 2021, num contexto muito específico. Será um evento inteiramente online? O evento vai combinar as funcionalidades online e presencial, tendo em mente as novas condições impostas pela pandemia e a necessidade de desenvolvimento contínuo dos negócios. O evento principal será realizado em Moçambique, de 8 a 11 de Março de 2021, e vai contar com a presença de dignitários e líderes da indústria. Será transmitido em live stream para todo o mundo através do website da organização, e através da plataforma dos nossos parceiros regionais e internacionais.
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Ao nível dos convidados e oradores, da concepção do próprio programa, o que se pode esperar deste evento enquanto factor diferenciador de outros do mesmo género que se têm realizado no País? Uma vez que estamos entre os mais significativos fóruns do mundo nesta área, esperamos contar com um consórcio de líderes políticos — chefes de Estado e líderes regionais, figuras-chave da indústria, gestores empresariais de topo, especialistas técnicos, fornecedores, fabricantes, investidores e traders de commodities. A Africa Oil & Power abrange toda a cadeia de valor do GNL e o programa reflecte isso mesmo, e contará com apresentações de dignitários de alto nível, painéis de discussão, as mais recentes novidades sobre actualizações de projectos e assinatura de acordos de investimento. Depois, haverá tópicos específicos que merecerão destaque, que vão desde o conteúdo local, da temática das mulheres na energia às aplicações desta indústria na agricultura sustentável. Uma oferta complementada com cursos de formação, soluções inovadoras de segurança e mitigação de riscos, uma especial atenção sobre a conservação da biodiversidade e a restauração dos ecossistemas. O objectivo da conferência passa por criar uma voz moçambicana na área da energia? Procuramos olhar e posicionar o lugar de Moçambique como estando entre
os pólos energéticos de elite ao nível mundial. E todos os tópicos alinhados estão orientados precisamente nesse sentido, do desenvolvimento de ideias concretas que vão moldar o futuro das indústrias do petróleo, GNL, energia e renováveis. Não estamos apenas à procura de realizar um evento essencial ou marcante, mas também de criar um impacto duradouro na comunidade de Oil & Gas dentro e fora do País. E daremos uma atenção especial aos programas de desenvolvimento para a região de Palma, envolvendo os jovens e as mulheres no sector da energia para garantir que os cidadãos de Moçambique desfrutem de todo o crescimento que se espera para o País. www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
ENERGIA
“Não estamos apenas à procura de realizar um evento essencial ou marcante, mas também de criar um impacto duradouro na comunidade de Oil & Gas dentro e fora do País” Qual é a sua visão relativamente ao potencial de Moçambique nesta área específica? As oportunidades são inúmeras. No Norte, na bacia do Rovuma, há 180 biliões de pés cúbicos de gás. Na Bacia Moçambique-Pande e Temane há 6 tcf. Moçambique está actualmente sentado numa verdadeira mina de ouro e a sua localização geográfica proporciona vantagens estratégicas para a exploração comercial. Os compradores www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
estabelecidos do Extremo Oriente, da costa atlântica da Europa e dos mercados asiáticos estão ao seu alcance directo, assim como os mercados potencialmente emergentes do Médio Oriente e também da Índia. Moçambique está prestes a tornar-se uma potência global de comércio de energia. No geral, a área do Oil & Gas alterou-se substancialmente nos últimos meses. Ainda assim, grandes investi-
mentos, como aconteceram com o financiamento do projecto da Área 1, não deixaram de avançar. Gostaria de ter um overview da sua parte sobre tudo isto. A pandemia teve um impacto devastador sobre a indústria como teve com tantas outras. A procura de produtos petrolíferos caiu, como seria de esperar. A redução da actividade económica ao nível mundial conduziu a um excesso de oferta que impactou no preço do petróleo como no do gás. Com a pandemia ainda a ser combatida, permanecem as incertezas. No entanto, o potencial é tremendo e a indústria está a reinventar-se. Moçambique é um exemplo disso.
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OPINIÃO
Indústria do petróleo e do gás — Será o fim da era do ouro negro?
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Sergio Nicolini • EY Mediterranean Energy Lead emorei algum tempo a tentar explicar à minha filha de 18 anos, em Abril, como o preço do petróleo poderia estar negativo quando o WTI caiu para -37 dólares por barril, e nem sei se consegui responder à sua questão! Esse dia marcou o início de uma nova Era para a indústria petrolífera e do gás, ou, pelo menos, o fim da era que conhecíamos até àquele dia. Estávamos habituados a um mercado baseado num equilíbrio entre a oferta e a procura, onde o fosso mais anormal seria na gama de 1 mln barris por dia. Mas a procura entre o 1º e 2º trimestre deste ano diminuiu mais de 10 vezes. Estávamos habituados a lidar com a volatilidade dos preços, mas em Março a OPEP+ reuniu-se para chegar a acordo sobre as reduções de produção e saiu com um aumento da produção de 1,5 milhões de barris. Estávamos acostumados, desde a última crise, a ter uma rápida recuperação dos preços do petróleo após uma queda, com a tendência crescente até o pico do petróleo. Mas ninguém, neste momento, espera, tão cedo, uma recuperação total nem dessa tendência nem dos preços. Para ser honesto, a indústria petrolífera já havia recebido sinais de mudança muito antes do COVID-19, quando a jovem Greta Thunberg deu o pontapé de saída nas campanhas e protestos sobre as alterações climáticas. A questão que se colocava nessa altura era se estávamos prestes a atingir o pico da procura de petróleo. Agora parece que o pico do petróleo já veio e se foi. Embora os fundamentos da economia baseada em combustíveis fósseis não tenham mudado nos últimos dois trimestres (os aviões ainda voam utilizando querosene e os navios porta-contentores navegam utilizando petróleo de bunker), é provável que as fontes de procura futura de hidrocarbonetos se desloquem para uma menor demanda de combustíveis de transporte e que qualquer aumento venha da procura de produtos plásticos em países emergentes, assumindo que o PIB global não será afectado por no-
vos bloqueios. Os actuais preços baixos do petróleo podem retardar o “empate” entre o custo dos veículos eléctricos e o desempenho igual aos dos motores de combustão interna que prolongam a vida útil dos combustíveis fósseis como a fonte de energia mais eficiente e barata para o transporte. Perante este cenário, vimos todas as companhias petrolíferas anunciarem uma espécie de Estratégia de Transição Energética e de Descarbonização que aponta para 2050 como destino. No mundo pós-COVID-19, essas estratégias requerem uma remodelação difícil. Após os resultados do Q2, os analistas de mercado e os accionistas esperam ouvir a história da Transição Energética no EBITDA e nos termos de dividendos, ao invés da história da capacidade instalada renovável ou adopção de soluções de sequestro de carbono e do número de árvores plantadas na floresta tropical. Possivelmente a história terá um impacto positivo neste ou no próximo ano, em vez de 2050, seguindo um plano de execução claro e um compromisso de liderança comprovado. Os elementos que caracterizam a jornada de execução para a Transição Energética girarão em torno de uma série de tópicos. Organizações mais novas, mais ágeis, capazes de se adaptarem a uma multiplicidade de modelos de negócio, desde hidrocarbonetos a hidrogénio, desde as renováveis até ao nuclear. Uma nova mentalidade e um novo modelo de gestão de desempenho para conduzir a mudança da lógica do “volume” para a lógica de “valor”, e longe do equivalente ao barril de petróleo. Uma nova e renovada liderança, apaixonada pela inovação, baseada em dados e adversa a estruturas estáticas. Ao fazê-lo, as companhias petrolíferas deixarão de ser referidas como Empresas Petrolíferas Internacionais ou Nacionais – IOCs ou NOCs –, mas sim como Empresas de Energia e, portanto, têm a oportunidade de se tornarem um empregador atraente para a geração da minha filha e para as futuras. As companhias petrolíferas enfrentam o desafio mais dramático da sua história e a única que lhes permitirá sobreviver.
Os elementos que caracterizam a jornada para a Transição Energética girarão em torno de uma série de tópicos. Organizações mais ágeis, capazes de se adaptarem a uma multiplicidade de modelos de negócio, desde hidrocarbonetos a hidrogénio, desde as renováveis até ao nuclear
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Números em conta As grandes Explosões de Nitrato de Amónio desde o início do século no início de Agosto, uma enorme explosão provocada por nitrato de amónio abalou a cidade de Beirute, capital do Líbano, propagando ondas de choque através dos meios de comunicação de todo o mundo. Ficámos todos a saber o que é e qual a perigosidade do nitrato de amónio que, no caso, até era, ao que se sabe, destinado a Moçambique, em 2013. Nunca chegou ao País, tendo ficado depositado no Líbano. A confirmação surgiu da própria Fábrica de Explosivos de Moçambique (FEM) que já afirmou que as 2,7 toneladas de nitrato
de amónio que estiveram na origem das explosões em Beirute foram adquiridas à empresa Savaro, da Geórgia, e o local de descarga previsto era o Porto da Beira, em Moçambique. No entanto, aquela carga “nunca foi entregue”, uma vez que o navio ficou retido na capital Libanesa por ordem das autoridades locais, tendo repousado à espera de, um dia, explodir, e causar 158 mortos e mais de 6 000 feridos. Apesar de devastadora, não é a primeira vez que este perigoso composto químico causa danos generalizados.
Toneladas de nitrato de amónio
As maiores explosões convencionais Embora tenha havido vários acidentes com nitrato de amónio ao longo da História, a recente tragédia em Beirute é uma das maiores explosões acidentais jamais registadas, com mais de 170 mortos e 5.000 feridos (até à data de fecho desta edição). Em termos do equivalente TNT, uma medida utilizada para medir o impacto de uma explosão, ocupa o top 10 das maiores explosões acidentais da história: A laranja estão os incidentes em que o nitrato de amónio é a causa primária da explosão
Porto de Beirute Líbano
Cidade do Texas EUA
Halifax Canadá
Raf Fauld Reino Unido
Porto de Oppau Chicago Alemanha EUA
Pepcon EUA
Dupont EUA
Base Naval Evangelos Florakis Chipre
Lançamento Porto de Tianjin N1 China Rússia
Q&A O que é o nitrato de amónio? Forma-se quando o gás amoníaco é combinado com ácido nítrico líquido. O composto químico é amplamente utilizado na agricultura como fertilizante, mas também em explosivos mineiros. É altamente inflamável quando combinado com óleos e outros combustíveis, mas não é inflamável por si só, a menos que seja exposto a temperaturas extremamente elevadas. Na verdade, é relativamente difícil um incêndio provocar uma explosão a partir do nitrato de amónio. Todavia, isso não foi impedimento para algumas grandes explosões que abalaram o mundo nas últimas décadas.
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Em 2004, uma mega explosão ocorreu na cidade de Ryongchon, vitimando 160 pessoas e destruindo 2 000 edifícios. As autoridades norte-coreanas não divulgaram, como é hábito, muitos detalhes, mas sabe-se que a explosãoo foi causada por nitrato de amónio cuja ignição adveio de um acidente entre dois comboios de carga.
Nitrocelulose — um químico utilizado no polimento de unhas — incendiou-se e espalhou-se para um conjunto de armazéns de nitrato de amónio nas redondezas.
Uma infra-estrutura de armazenamento e distribuição de nitrato de amónio explodiu arrasando 500 habitações na comunidade mais próxima. O impacto e os destroços devastaram quatro quilómetros ao redor do local da explosão.
A recente explosão na capital do Líbano é já considerada um dos maiores acidentes alguma vez registados. A onda de choque resultante que se propagou por uma cidade densamente povoada com dois milhões de habitantes arrasou as casas de 300 000 pessoas e destruiu 85% dos silos de armazenamento de grãos que alimentam o País. FONTE Visual Capitalist, Han, Zhe (2016), The Guardian
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OPINIÃO
Transformação Económica através da Implementação de Políticas de Conteúdo Local
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Hermano Juvane • Head of Oil & Gas Coverage do Absa Bank sector petrolífero em moçambique tem um imenso potencial para contribuir para a transformação económica da Nação, uma vez que se prevê que o PIB aumente em mais $15.4 mil milhões nas próximas duas décadas. Na última década, vislumbrámos a posição geopolítica de Moçambique mudar após a descoberta de mais de 180 trilhões de pés cúbicos (TCF) de gás natural na Bacia do Rovuma. Esta descoberta elevou o país da 61ª para a 8ª posição no ranking mundial das reservas de gás natural. Para se ter uma ideia, 180 TCF de gás natural é suficiente para satisfazer toda a procura mundial de energia durante dois anos consecutivos. No entanto, existem preocupações quanto ao saber se o valor económico destas reservas será suficiente para transformar a paisagem económica de um país do terceiro mundo. A questão pertinente é se a implementação de políticas de conteúdo local de facto catapultariam Moçambique para uma economia de classe média. Moçambique ocupa o 3º lugar na lista dos 12 maiores países africanos no que tange a reservas comerciais de Petróleo e Gás, com mais de 8 mil milhões de barris equivalentes de petróleo (BOE), seguindo a Nigéria e Angola com 55 e 19 BOE, respectivamente. Em Junho de 2017, vimos a decisão de investimento estrangeiro (FID) sancionar o projecto de Gás Natural Flutuante (FLNG) Coral South da ENI, no valor de $8 mil milhões, seguido do projecto de gás natural liquefeito (LNG) da Total E&P, no valor de $25 mil milhões, em Junho de 2019. O valor de investimento da ExxonMobil está estimado em cerca de $30 mil milhões. Este último projecto sofreu o adiamento da sanção do FID devido ao actual ambiente desfavorável dos preços do petróleo e do gás. No total, trata-se da potencial sanção de projectos no valor de $63 biilhões no espaço de cinco anos, excluindo as expansões das plantas de LNG. Tendo em conta o valor total de investimento de uma economia de $15 mil milhões, o que
poderia fazer com que Moçambique não experimentasse uma transformação económica? A resposta está na aptidão para implementação da política de conteúdo local. O nosso Governo tem uma oportunidade extraordinária de aprender com os êxitos e os fracassos de outras economias africanas com imensas reservas de petróleo e gás. É importante reconhecer que a economia está em risco de uma elevada dependência do gás natural. Vejamos alguns indicadores económicos como exemplos. Em 2018 e 2019 a Autoridade Tributária Moçambicana recolheu MT 191 mil milhões ($3,1 mil milhões) e MT 288 mil milhões ($4,8 mil milhões), respectivamente. Em 2029, os projectos Coral FLNG, Mozambique LNG, e Rovuma LNG deverão contribuir com mais de $3 mil milhões em receitas adicionais para o Governo, sob a forma de imposto sobre as sociedades, participação nos lucros e royalties. Este valor exclui o efeito multiplicador. Em 2018 e 2019, Moçambique registou um total de $5.19 mil milhões e $4.7 mil milhões, respectivamente, em exportações. Os projectos Mozambique LNG, Rovuma LNG e Coral FLNG deverão gerar cerca de $4,2 mil milhões, $5,3 mil milhões e $1,2 mil milhões, respectivamente, em receitas de exportação em 2029, o que totaliza $10,7 mil milhões, que representa pelo menos o dobro do actual nível de receitas de exportação. O Gana é um grande exemplo a ser seguido pelo Governo moçambicano. Em 2009, o PIB do País era de cerca de $34.3 mil milhões. Os sectores de Serviços, Agrícola e Industrial contribuíam respectivamente 32%, 19% e 49% para o PIB da economia. Em 2010, o campo petrolífero Tullow Oil-led Jubilee, de 3 mil milhões de barris, iniciou a produção três anos após a descoberta da reserva. Em 2018, o PIB do Gana quase duplicou para $65,2 mil milhões, com os sectores de Serviços, Agrícola e Industrial a contribuírem com 46%, 20% e 34% da composição do PIB, respectivamente. O valor da sanção do FID da Tullow Oil era de $8 mil milhões de
O Governo tem uma oportunidade extraordinária de aprender com os êxitos e os fracassos de outras economias africanas que têm imensas reservas de petróleo e de gás natural
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Não se sabe se o valor económico destas reservas será suficiente para transformar a paisagem económica do País
dólares (um terço do valor do projecto Mozambique LNG). No entanto, a economia duplicou num espaço de oito anos. É possível observar também que a composição do PIB por sector permaneceu sustentável e proporcional. Portanto, quais são alguns dos passos que o Governo moçambicano pode seguir? Aqui está uma lista resumida: i) Estabelecimento de um memorando de entendimento com a Noruega para rever as políticas e a legislação - O Governo do Gana colaborou com a Agência Norueguesa de Cooperação para o Desenvolvimento (NORAD) e a Fundação de Construção do Sector Petrolífero (Petrad), para revisões de políticas, leis, legislação subsidiária e quadro institucional. ii) Apoio do Banco Mundial - O Banco Mundial apoiou a gestão pública e a capacidade reguladora e forneceu $57 milhões para programas de formação e capacidades técnicas. Os fundos foram utilizados para a criação do centro de dados na Comissão Petrolífera do Gana (PCG, o regulador do petróleo) e o Laboratório de equipamento para a Agência de Protecção Ambiental (EPA). iii) Inclusão dos Cidadãos na Gestão das Receitas Petrolíferas - Em 2011, foi estabelecida a Lei de Gestão das Receitas Petrolíferas (PRMA), que fornece um quadro para a recolha, distribuição e alocação de ganhos petrolíferos. As Organizações da Sociedade Civil do Petróleo e Gás (OSC) debatem exaustivamente e fazem recomendações ao Governo sobre a afectação das receitas petrolíferas. iv) Metas Assertivas e Inclusivas de Conteúdo Local - Em 2013, o Parlamento promulgou o Regulamento sobre Conteúdo Local Petrolífero e Participação Local, que entrou em vigor em 2014. Este regulamento foi concebido para dar às empresas locais um tratamento preferencial e exigia que pelo menos 5% do capital de todas as empresas fornecedoras fossem propriedade dos habitantes locais. www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
Em conclusão, e confiantes na inclusão e transparência do Governo moçambicano no processo de desenvolvimento de políticas, seguem algumas directrizes ideais a adoptar: Urgência na implementação de políticas - Moçambique deve evitar atrasar a implementação das políticas e leis de conteúdo local, com vista a maximizar o desenvolvimento económico. Uma vez implementadas as políticas de conteúdo local, é fundamental que sejam feitos esforços para educar a população sobre o mesmo para que o Governo beneficie do envolvimento dos cidadãos no sector. Seria ideal incluir a NORAD e Petrad no processo de revisão das políticas e da legislação; Investir em sectores que suprem o sector petrolífero - Para além de investir no desenvolvimento de competências no sector petrolífero, a mão-de-obra e as empresas locais devem também ser qualificadas e habilitadas para trabalhar em sectores que abastecem aquele sector. O efeito a longo prazo seria o de evitar que os sectores fornecedores contribuíssem negativamente para o equilíbrio do comércio do País. A centralização dos pagamentos de fornecimentos internos reforçaria a contribuição de outros sectores para o PIB; transparência e Envolvimento das Organizações da Sociedade Civil (OSC) - É fundamental que o Governo seja transparente em questões concernentes à declaração e a afectação das receitas petrolíferas. Informar as OSC para que o Governo beneficie dos seus contributos sobre a afectação ideal das receitas, com vista a maximizar o desenvolvimento económico. Isto também significaria o aumento da confiança no governo local por parte dos cidadãos e da comunidade internacional; introdução de uma Lei de Distribuição de Receitas Petrolíferas - Sob o conselho de parceiros internacionais, o Governo de Moçambique pode elaborar uma legislação transparente para a gestão dos recursos de hidrocarbonetos. Como nação democrática, é crucial que as preocupações e opiniões do público sejam consideradas durante o processo de gestão e tomada de decisão sobre a distribuição das receitas do petróleo.
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Nação
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lEI DE TERRAS
Lei de Terras. É de reformas que o país precisa? Ou do cumprimento? O Presidente da República lançou, recentemente, o processo de auscultação da revisão da Política Nacional de Terras, em que se persegue o “acesso equitativo, a posse segura e o uso sustentável ao serviço da sociedade e da economia moçambicana”. É o reacender de um debate antigo que dificilmente encontra consenso entre os vários actores e em todos domínios da vida da sociedade, mas que agora parece decidido a concretizar, na prática, a ideia inicial, fazendo jus ao título de uma das melhores leis de terra do mundo. Mas o que fazer para aí chegar?
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Texto Celso Chambisso • Fotografia D.R.
á duas questões sobre a terra em moçambique que todos conhecem, mas quase nunca são assumidas. A primeira é que pertence ao Estado e também àqueles que fazem parte e controlam este aparelho. A segunda é que, por Lei, a Terra não pode ser vendida. No entanto, é comprada, por vezes, com a cumplicidade de quem deveria garantir que isso não acontecesse”. Esta citação – publicada há quatro anos pelo Observatório do Meio Rural (OMR) numa obra de pesquisa com o título “Discursos à Volta do Regime de Propriedade da Terra em Moçambique” – é uma das várias formas de fazer uma contextualização que vá ao encontro das diversas vozes que, vezes sem conta, questionam a “perfeição” atribuída à Lei de Terras. Segundo a pesquisadora Uacitissa Mandamule, os fenómenos que se verificam em torno da gestão da terra espelham (aquilo a que chama de) “desordem política e social, na qual o País está mergulhado desde a independência. Essa desordem é caracterizada por uma gestão, em grande medida patrimonial e clientelista do Estado e dos seus recursos naturais, mas também pelo facto paradoxal de a terra constituir propriedade última do Estado que, por sua vez, não reconhece a propriedade privada sobre a mesma, muito menos a sua venda, ainda que, actualmente, de maneira (in)formal e generalizada, ela exista, envolvendo diferentes actores, a diferentes níveis (central e local) da hierarquia político-ad-
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ministrativa e social, e assumindo dimensões inquietantes”. No fundo, é difícil encontrar quem não tenha a mesma opinião a este respeito. A E&M ouviu o director-geral do Centro de Integridade Pública (CIP), Edson Cortez, que revelou que “levanta-se a suspeição de que se tenta ‘tapar o sol com a peneira’, porque a forma como foi desenhada a lógica do aproveitamento de terra beneficia os mais fortes. Porquê? Se a terra é do Estado, a qualquer altura este tem o poder de requisitar qualquer parcela que já esteja ocupada evocando que o seu interesse é maior do que o do usuário. O problema é que por detrás do conceito abstracto do Estado há pessoas que utilizam o próprio conceito para realizar interesses individuais, que podem ir em contramão com o interesse dos usuários da terra”, constatou. Para o pesquisador, este fenómeno acaba por legitimar uma situação de ambiguidade que invariavelmente vai favorecer a quem tem poder, e que geralmente se aproveita do fácil acesso a informação privilegiada sobre, por exemplo, o interesse de investidores estrangeiros para instalar determinado empreendimento. “Sem querer dizer que, a vinda de investidores para o País não seja benéfica, o que quero explicar é que há pessoas que têm de ser ressarcidas e a compensação deve ser justa”, esclareceu Edson Cortez referindo-se às comunidades. O Governo assume os problemas…
Legítimas ou não (até porque há muitas posições divergentes), as constatações daqueles pesquisadores indicam
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Nação As actualizações que Lei sofreu com o tempo De um modo geral, foram ligeiras as alterações que se foram realizando desde a sua aprovação, em 1997, para adequá-la ao contexto social e económico do País. A maior parte foi à procura de melhorar a salvaguarda da posse segura, sobretudo pelas comunidades. E porque esta meta ainda não foi alcançada, a busca pelo “ponto óptimo” ainda não cessou.
1997
1998
Lei n.o 19/1997 de 01 de Outubro
Decreto n.o 66/1998 Regulamento
Acesso à terra por investidores
Alteração dos artigos 20.o e 39.o do Regulamento
É criada a Lei de Terras que revoga a Lei n.° 6/79, de 03 de Julho, que procura garantir o acesso e a segurança de posse da terra pelos camponeses moçambicanos e pelos investidores nacionais e estrangeiros. O princípio geral é o de que “a terra é propriedade do Estado e não pode ser vendida ou, por qualquer outra forma, alienada, hipotecada ou penhorada”.
Enquanto a Lei de 1997 apenas estabelecia que pessoas singulares que, de boa-fé, estejam a utilizar a terra há, pelo menos, dez anos, adquirem o direito do seu uso e aproveitamento, o novo Decreto acrescentou que este privilégio não é aplicável a áreas reservadas legalmente para qualquer fim. Também passou a incluir estes terrenos no Cadastro Nacional de Terras.
Na Lei de 1997, o direito de uso e aproveitamento da terras para a actividade económica está sujeito a um prazo máximo de 50 anos renovável por igual período. O decreto n.º 66/1998 acrescentou a identificação prévia do terreno envolvendo os serviços de cadastro, as autoridades e as comunidades. Além disso, o terreno deve ser documentado no esboço e na memória descritiva.
Foram alterados os artigos 20 e 39 do Regulamento da Lei de Terras aprovado pelo Decreto nº 66/98. Quanto ao artigo 20, as alterações trouxeram maior rigor no registo dos serviços de cadastro de terras. Já em relação ao artigo 39, que diz respeito a infracções e penalidades, veio agravar as multas que incidem sobre diversos tipos de infracção à Lei de Terras.
que há muita coisa por arrumar neste contexto, e isso foi reconhecido pelo Presidente Nyusi no seu discurso de lançamento do Processo de Auscultação da Revisão da Política Nacional de Terras, a 16 de Julho passado, quando revela que “a nova política de terras em elaboração e a subsequente legislação devem preencher as actuais lacunas da ligação entre o uso e aproveitamento da terra e o acesso aos recursos naturais e a sua exploração sustentável”. … E sabe por onde atacar
Nessa ocasião, o Presidente da República também demonstrou conhecimento profundo das questões por corrigir: “Os arranjos institucionais de gestão e administração da terra devem adequar-se aos actuais processos de descentralização da administração do País. O processo deve fornecer respostas sobre como desburocratizar a administração da terra, tanto ao nível das entidades do Governo central como das entidades provinciais, distritais e municipais. Temos de enquadrar o processo de gestão e administração da terra no contexto do novo figurino da descentralização. Queremos conviver com um quadro legal e operacional que estanque o açambarcamento de terras, a especulação e a corrupção, que reduza o risco de conflitos, que combata a existência de terras ociosas e que reforce, em particular, a protecção dos direitos das comunidades locais, em especial da mulher nas zonas rurais e dos jovens”. Ficavam assim resumidas as questões que geram toda a confusão que se testemunha no que à gestão da terra diz respeito. Na fase de auscultação recentemente lançada, o Governo procura que haja equilíbrio das diferentes forças da sociedade para que se possa atacar de frente os problemas da terra. Daí que a Comissão encarregada de conduzir o processo Comissão de Revisão da Política Nacional de Terras – inclui
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2003
“Queremos conviver com um quadro legal e operacional que estanque o açambarcamento de terras, a especulação e a corrupção” representantes da Sociedade Civil, sector privado, académicos, as próprias comunidades, entre outras entidades à escala nacional, tudo para que cada um dos intervenientes aborde as questões sob o seu particular ângulo de vista. Mas como se vai operar a mudança?
Na comunicação do Presidente, ficou claro que a revisão será feita respeitando três princípios que devem permanecer intactos, nomeadamente: o Estado continuará a ser o proprietário da terra e dos outros recursos naturais; todos os moçambicanos têm direito de acesso à terra; e os direitos adquiridos pelas famílias e comunidades locais deverão sempre ser protegidos. Estes princípios, entre outros, são os que fazem da Lei de Terras uma das mais elogiadas do mundo. Então, porque é que, mesmo assim, tem de ser revista? E em que aspectos se deve mexer? Não uniformizar as regras sobre a terra
É o caminho proposto pelo economista António Francisco cujo percurso profissional já o colocou no centro destas questões. O académico recorda que quando esteve a coordenar a Estratégia de Desenvolvimento Rural, a ideia era não dar o mesmo tratamento a toda a terra, como se faz actualmente, mas discriminar as zonas comunitárias das zonas públicas, por isso entende que não faz sentido abordar a questão sem esta divisão, como se tem feito nos dias que correm. Esta ideia vai um pouco ao encontro do que foi www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
LEI DE TERRAS
2006
2007
2010
2011
Aprovado o regulamento do solo urbano
Altera o artigo 35.o do Regulamento da Lei
Actualização das taxas de acesso
Consulta às comunidades
À luz do Decreto n.º 60/2006, as regras técnicas a observar na elaboração dos planos de ordenamento são objecto de regulamentação específica nas áreas de cidades e vilas. Os órgãos locais do Estado e os autárquicos ganharam poder de emissão de licenças especiais para diferentes tipos de actividade, incluindo nas chamadas zonas de protecção parcial.
O Decreto n.º 50/2007 altera o artigo 35.o da Lei de Terras. Impunha-se a necessidade de alterar os requisitos relativos ao processo de titulação do DUAT adquirido por ocupação pelas comunidades locais. Assim, os requisitos passavam a ser decididos pela entidade competente em função da área. No ordenamento anterior, eram exigidos vários requisitos neste processo.
O Diploma Ministerial n.º 144/2010 actualizou os valores das taxas a pagar pelos requerentes ou titulares do DUAT. A nova tabela estabeleceu que a autorização provisória passava a custar 1 500 meticais, a autorização definitiva 750 Mt, a taxa anual por hectare para 75 Mt, e o Turismo, habitação de veraneio (lazer) e comércio com extensão de três quilómetros para 500 Mt por hectare.
Através do Diploma Ministerial n.º 158/2011, os ministros da Agricultura e da Administração Estatal determinaram que a consulta à comunidade deve compreender duas fases: a primeira, que consiste numa reunião pública para informar a comunidade local sobre o pedido de aquisição; e a segunda, até 30 dias após a primeira, para o pronunciamento da comunidade.
feito em Angola, onde a reforma permitiu que haja, actualmente, parcelas de terra não vendável geridas pelo Estado, e parcelas que o Estado pode vender para a utilização de privados, ficando assim salvaguardados os interesses soberanos da Nação e a independência dos privados. Para o economista, “é tudo muito difícil de entender porque, muitas vezes, ouvem-se grupos a reclamar que lhes foi retirada a terra, e a questão é: quem é que tem terra afinal? Temos um sistema legal que não reconhece o direito legítimo à terra. Até do ponto de vista da dignidade, como é que um camponês se pode sentir com auto-estima quando o Estado diz que a terra não é dele? Somos todos inquilinos do Estado”, critica o economista. Também defende que “o não reconhecimento do direito privado sobre a terra desvaloriza tudo, daí que o conflito está institucionalizado e não há volta a dar”. Na opinião do académico, “o sistema colonial de gestão da terra era muito melhor do que o actual porque respeitava as comunidades, mesmo reconhecendo a discriminação das chamadas melhores terras. Em Chókwè, por exemplo, havia negros que detinham terra produtiva. O Estado tinha um grande intervencionismo, mas havia a preocupação de garantir um certo respeito pelas comunidades”, concluiu. A resposta está na fiscalização da Lei...
O director-geral do CIP, Edson Cortez, considera que a chave está no fortalecimento das instituições, já que não é só em relação à terra que se tem uma legislação impecável, mas também uma fraca capacidade de a fazer cumprir. Em relação à Lei de Terras, Cortez defende que, primeiro, deve reflectir os problemas que forem apurados no processo de auscultação pública. Depois, será necessário que haja uma fiscalização rigorosa do seu cumprimento para garantir que, efectivamente, mesmo depois de aprovada, www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
haja quem penalize as violações independentemente da posição política, social ou qualquer tipo de privilégio de que a pessoa goze. “Aquilo a que assistimos, hoje, é que não há força suficiente para sancionar os ‘poderosos’. As próprias instituições públicas têm desapropriado pessoas sem que tenham o DUAT. Não cumprem com os trâmites previstos na Lei evocando que pretendem construir algo que é de interesse público. A situação é pior quando em causa está o Investimento Directo Estrangeiro. Assim, a fiscalização deve desempenhar um papel que faça a diferença neste processo que acaba de iniciar”, repisou. A Lei é mal interpretada ou será mesmo preciso mexer-lhe?
Alda Salomão, assessora jurídica do Centro Terra Viva, também com domínio da Lei e das discussões que há em torno do tema, faz uma abordagem contrária à de Edson Cortez e de António Francisco sobre a protecção dos direitos das comunidades relativos à terra. Para a jurista e ambientalista, o verdadeiro sentido da reforma está na interpretação da Lei. Explica que o princípio de que a terra e outros recursos naturais são propriedade do Estado tem, na própria Lei, a clarificação de que a titularidade da propriedade de recursos sobre a terra pelo Estado é feita em nome e a favor dos cidadãos. “Portanto, clarifica também que o Estado é uma entidade subordinada aos cidadãos. Aliás, o conceito de Estado integra cidadãos e instituições no território nacional. Ou seja, a propriedade pública da terra e dos recursos naturais pelo Estado, no nosso contexto, significa, necessariamente, a propriedade colectiva dos cidadãos sobre a terra e os seus recursos. Isto está claro na Constituição da República, Política e Lei de Terras, mas muitas vezes há uma confusão conceitual. Pensa-se que o facto de a terra ser do Estado, este faz o que quiser sem precisar de
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Nação
“Enquanto o Estado assumir a posição de que a governação é participativa, temos de reconhecer como um aspecto positivo” consultar ninguém porque, por um lado, confunde-se o conceito de Estado e confunde-se o princípio que ditou o estabelecimento da propriedade do Estado sobre a terra”, esclarece a responsável, defendendo, também, maior fiscalização do cumprimento deste princípio legal. Outros méritos da Lei de Terras
Mesmo a reforçar a ideia de que a Lei é segura, Alda Salomão faz menção a outros aspectos que carecem de melhor interpretação para resolverem as ineficiências de gestão e dos conflitos. Refere-se, por exemplo, ao poder e peso que se atribui aos cidadãos no processo de tomada de decisões respeitantes ao acesso e o uso da terra. “Temos um princípio de que o processo de tomada de decisões é participativo. Isto é, os cidadãos e as comunidades têm um papel, um lugar a ocupar e alguma coisa a dizer, contribuindo para as decisões que são tomadas sobre como é que a terra é usada, por quem, quando e como”, elogiou. E acrescenta que “enquanto o Estado assumir a posição e a opção de que a governação será feita de forma participativa e faz todo o esforço nesse sentido, então isso é um aspecto a notar, a destacar e a reconhecer como positivo”. Além do mais, o quadro político-legal estabelece que os recursos devem ser usados para a promoção do desenvolvimento nacional e o papel de destaque é atribuído ao
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sector privado, que também tem de aceder à terra e aos seus recursos para a geração de rendimentos e de lucros. Mas... se a Lei for de facto alterada?
A E&M não traz a voz do sector privado a propósito do que quer ver mudado ao seu favor no novo figurino da Lei de Terras, porque o presidente do Pelouro da Terra e Ambiente na CTA (entidade que representa, oficialmente, o sector privado nacional), Bruno Vedor, integrado na missão da auscultação pública, não tinha reagido à solicitação da E&M para se pronunciar até ao fecho desta edição. Mas, recorrendo ao já conhecido anseio do empresariado, basta avançar que a maior queixa reside na dificuldade de acesso à terra, daí a necessidade de definir regras que ajudem a equilibrar as disputas entre o sector privado e as comunidades. O director-geral do CIP, Edson Cortez, lança uma crítica importante em relação ao timing em que todo este movimento acontece: “É contraditório ter de começar um processo de auscultação de pessoas numa altura em que não as podemos reunir e aqui prevemos que possamos entrar em choque, porque as pessoas geralmente lesadas em casos de conflito de terra são, na sua maioria, camponeses, nativos que detêm parcelas de terra durante vários anos e cuja posse vai transitando de geração em geração, e que têm conhecimento profundo sobre a maneira como o processo de desapropriação se desencadeia. São pessoas que deviam ser ouvidas sem quaisquer limitações, neste caso impostas pela pandemia do Covid-19, para que se possa fazer uma reforma da Lei que resolva os reais problemas das comunidades”, alertou o pesquisador. www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
OPINIÃO
A revisão da política da Terra em Moçambique — desafios e oportunidades
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Paula Duarte Rocha & Ana Berta Mazuzes • HRA Advogados m julho do corrente ano, o Presidente da República de Moçambique, Filipe Jacinto Nyusi, lançou a auscultação pública para a revisão da política da terra em Moçambique, que culminará com a revisão da Lei n.º 19/97 de 1 de outubro, Lei de Terras e demais legislações que regulam o processo de gestão de terra no país. Moçambique é um país marcado por uma forte herança do regime socialista que vigorou entre 1975 e 1990, e a aprovação da actual política nacional de terras, em 1996, constituiu uma consagração dos princípios já em vigor desde essa era, que se desdobram nas seguintes linhas mestras: A propriedade do Estado sobre a terra, já consagrada na Constituição de 1975 e 1990; A protecção do direito das comunidades locais sobre a terra; e O Direito de acesso à terra a todos os moçambicanos. A Lei de Terras, aprovada pela Lei n.º 19/97 de 1 de outubro Lei de Terras, consagrou o regime de acesso e transmissão da terra, respeitando os limites já estabelecidos pela Constituição da República e política nacional de terras, tendo sido igualmente aprovado o seu Regulamento, através do Decreto n.º 66/98 de 8 de Dezembro, que estabelece de forma minuciosa os procedimentos para o acesso a terra e a sua transmissão. No entanto, o Regulamento da Lei de Terras aplica-se apenas as zonas não abrangidas pelas áreas sob jurisdição dos Municípios. Para estas áreas, é aplicado o Regulamento do Solo Urbano, aprovado através do Decreto n.º 60/2006 de 26 de dezembro. Nos termos da Lei de Terras e do seu Regulamento, tanto as pessoas singulares e colectivas nacionais e estrangeiras, podem ser titulares Direito de Uso e Aproveitamento da Terra “DUAT”. As pessoas singulares nacionais podem adquirir o DUAT por ocupação de boa-fé ou ocupação pelas comunidades locais, e por via da autorização do pedido pelas autoridades competentes. Já as pessoas colectivas e pessoas singulares estrangeiras, podem adquirir o
DUAT por via da autorização do pedido pelas autoridades competentes. Para além das formas de acesso previstas nos instrumentos referidos anteriormente, o Regulamento do Solo Urbano prevê outras formas de aquisição do DUAT dentro dos espaços urbanos, nomeadamente: o sorteio, a hasta pública e a negociação particular. Quanto as formas de transmissão do DUAT, a Lei e os respectivos regulamentos estabelecem duas principais formas: (i) por via de herança ou (ii), por via da transmissão de prédios urbanos que resulta na transmissão automática do DUAT. A propriedade exclusiva do Estado sobre a terra, assim como as formas de aquisição e transmissão, sempre foram apontadas como factores que influenciam de forma negativa o ambiente de negócios em Moçambique, dada a elevada insegurança por parte dos agentes económicos, principalmente os investidores estrangeiros, pois resulta numa elevada burocracia no processo de aquisição do DUAT, na intervenção de diferentes entidades, numa elevada discricionariedade da administração pública e, em limitações quanto à transmissão do direito. A título de exemplo, a aquisição do DUAT para implementação de projectos de investimento carece de uma autorização pela entidade competente, que deve ser antecedida por uma consulta das comunidades locais, para o caso de espaços que se situam fora das áreas municipais. A obrigatoriedade de consulta pelas comunidades locais visa evitar que sejam concedidos DUATs em espaços já ocupados pelas comunidades locais; no entanto, os investidores por vezes enfrentam resistência por parte destas comunidades, o que vem a constituir um entrave para o processo de aquisição. Por outro lado, há uma dualidade de critérios entre o regime aplicado para as zonas urbanas e para as zonas que não são abrangidas pelas áreas municipais. Enquanto a Lei de Terras e o seu Regulamento prevêem duas formas de
A Lei de Terras prevê apenas duas formas de aquisição do DUAT: a ocupação e a autorização do pedido. No entanto, o seu Regulamento acaba por prever outras formas que não estão previstas na Lei, o que não deveria acontecer
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A propriedade exclusiva do Estado sobre a terra, assim como as formas de aquisição e transmissão são, muitas vezes, um entrave ao ambiente de negócios em Moçambique
aquisição, a ocupação ou autorização do pedido, o Regulamento do Solo urbano vai mais além, ao prever outras formas, designadamente: sorteio, hasta pública e negociação particular. A Lei de Terras prevê apenas duas formas de aquisição do DUAT, a ocupação e a autorização do pedido; no entanto, o seu Regulamento vem a prever outras formas que não estão previstas na Lei, o que não deveria acontecer. As condições impostas às pessoas colectivas quanto à existência de um projecto e prazos para implementação dos projectos concedem à administração pública maior discricionariedade tanto na atribuição do DUAT como na revogação do mesmo. Por outro lado, Moçambique é um país caracterizado por um elevado número de conflitos de terra devido à falta de um sistema que permita às entidades terem controlo sobre as atribuições ou aquisições de DUAT, o que leva à existência de múltiplas atribuições do DUAT sobre as mesmas parcelas. A sociedade civil, assim como o sector empresarial, tem vindo a lançar apelos para uma revisão da Lei de Terras, do modo a eliminar barreiras no acesso à terra tanto pelas populações assim como pelos agentes económicos. Na comemoração dos 20 anos da Lei de Terras, foi lançado oficialmente o processo de revisão da Lei de Terras, e recentemente o Presidente da República lançou oficialmente o processo da auscultação pública da revisão dessa Lei. Nessa ocasião, reiterou que a revisão “não deixará cair os princípios da propriedade do Estado sobre a Terra e www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
da protecção as comunidades locais”, eliminando assim as expectativas em torno do debate sobre a possibilidade de privatização da terra com vista à melhoria do ambiente de negócios. Não obstante este facto, durante os mais de 20 anos em que a Lei de Terras está em vigor, vários outros problemas foram identificados que carecem de cobertura legal nesta revisão. Para alem dos já mencionados, questões como a possibilidade e procedimentos para desanexação da terra e a possibilidade de transmissão de DUAT por via da cessão de exploração são alguns pontos-chave que não poderão ser negligenciados nesta revisão. Embora o Estado tenha optado por manter o regime actualmente em vigor – o que se entende, tendo em conta os problemas que a privatização da terra poderia trazer uma vez que a maior parte da população é pobre e teria dificuldades de ter acesso à terra se esta fosse comercializada — esta revisão é uma oportunidade para melhorar todos os aspectos que constituem uma barreira ao acesso e aproveitamento da terra por parte das pessoas singulares e colectivas. Por outro lado, é uma revisão desafiante, uma vez que as linhas mestras até aqui lancadas não vão ao encontro das expectativas do sector empresarial, que vinha defendendo a tese da privatização da terra. Nisto, o governo deverá encontrar um balanço entre os princípios que pretende manter e a eliminação dos procedimentos e as limitações, tanto no acesso como na transmissão do DUAT.
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Nação
“Não precisamos de mexer na Política de Terras, temos é de clarificar a Lei” Alda Salomão Assessora jurídica do Centro Terra Viva
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Texto Celso Chambisso • Fotografia Mariano Silva & D:R:
jurista, ambientalista e fundadora do Centro Terra Viva – uma Organização Não Governamental criada em 2002 para colmatar lacunas de educação, informação, preservação e aplicação de legislação ambiental – já vem acompanhando a discussão sobre a exploração da terra há vários anos. Alda Salomão integrou, inclusive, um grupo de peritos que produziu o Relatório de Avaliação da Governação de Terras em Moçambique 2015-2016, encomendado pelo Banco Mundial e pela FAO com o objectivo de avaliar o desempenho interno sobre a matéria. Mesmo reconhecendo os problemas que há, Alda Salomão não vê razões para se alterar a legislação, mas apon-
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ta uma série de outros campos de intervenção a serem considerados para assegurar uma melhor exploração da terra. A preparação dos Recursos Humanos das instituições públicas em termos de capacidade jurídica é um deles. Quando falamos na legislação em Moçambique ouvimos sempre dizer: “Fizemos um bom trabalho no alinhamento dos nossos princípios e valores às disposições legais, políticas, etc., mas a implementação deixa muito a desejar”. Com a Lei de Terras não é diferente. Afinal, o que é que falhou no processo da sua formulação? Há duas dimensões de análise. Uma tem que ver com os aspectos intra-le-
gais, isto é, relacionados com o conteúdo dos instrumentos político-legais. Ou seja, quais são as deficiências que encontramos no texto da política ou no texto da Lei ou dos regulamentos sobre a terra, e que impedem a sua implementação. A outra dimensão de análise tem que ver com questões extra-legais. Dizem respeito aos problemas que estamos a enfrentar no quadro da implementação da Lei mas que não têm que ver com o seu conteúdo. Como tal, é importante esmiuçarmos estes aspectos todos para evitar que embarquemos num processo de revisão de uma política que não tem quaisquer problemas. Ou seja, os problemas que constatamos no âmbito da implementação da legislação não decorrem de fragilidades ao nível da powww.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
Lei de Terras nição fosse incluída ao nível da Lei de Terras, mas na verdade há uma série de problemas decorrentes da má interpretação e confusão sobre o conceito de Estado. Os representantes do Estado, por exemplo, confundem Governo com Estado, por um lado e, por outro, não percebem os objectivos para os quais a propriedade pública foi instituída. Também há a questão do conceito de comunidade local. Nós dizemos que as comunidades locais têm o direito à Terra com base em normas e práticas costumeiras, mas há muito debate e controvérsia à volta da entidade a que chamamos comunidade local que é uma entidade jurídica titular de direitos reconhecidos pelo Estado. É por aqui que se deve explicar a origem da ineficácia na gestão da terra enquanto fonte de riqueza e a dificuldade de arbitrar e conter os crescentes conflitos? Veja: questiona-se o que é comunidade local, quem é membro ou não desta comunidade. A relação entre comunidade local enquanto entidade jurídica e outros actores é muito pouco clara. Isto é, enquanto actor no processo de gestão e administração de terras, a comunidade local não está muito bem posicionada apesar de a constituição
poderes e responsabilidades institucionais sobre os limites de poder do Governo central, das autoridades tradicionais, dos governos distritais, etc., e a relação entre todos estes actores bem como a destes com o sector privado nacional e/ou estrangeiro. E quando se diz que é obrigação do Estado e das empresas consultar os cidadãos e as comunidades locais sobre os processos relativos à exploração da terra, o que significa? Qual é o valor da consulta? Isso também não está claro. Uma leitura integrada de todas as disposições da constituição da Política e da Lei permitem facilmente chegar à conclusão de que o consultado tem o direito de dizer “não”. Mas não está claro na Lei, e muitas vezes não se dá ao consultado a prerrogativa de dizer “não”. Geralmente, o Governo leva às comunidades, por exemplo, investidores com projectos de investimento e impõe que estas cedam parcelas de terra, sem mesmo explicar-lhes sobre os seus direitos e obrigações nem informá-las sobre as opções de posicionamento, previstas na Lei, que podem tomar. Assim, há uma percepção generalizada, sobretudo no meio rural, de que a terra é do Estado e que se o Governo a
É preciso clarificar conceitos, poderes e responsabilidades institucionais sobre os limites de poder do Governo central, das autoridades tradicionais, dos governos distritais, etc. e a relação entre todos estes actores, e destes com o sector privado nacional e estrangeiro lítica (entenda-se política como a base operacionalizada pela Lei). E esta é a situação em que nos encontramos. Em concreto, o que é que deve mudar? O que há por melhorar e de que maneira? Tenho defendido que é importante que a fundamentação da revisão da Lei seja muito clara. Há problemas de interpretação do seu conteúdo e dificuldades extra-legais. Por isso é que me parece que a prioridade, neste momento, é rever a Lei de terras e não a política. Por exemplo, o conceito do Estado e a sua propriedade sobre a terra e os recursos naturais precisa de estar muito claro. A legislação não contém este conceito porque penso que se concluiu que não era necessário que essa defiwww.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
lhe atribuir direitos e poderes de intervenção na administração de terras e no acesso e uso de recursos. Quando se chega à questão da tomada de decisões sobre processos ou intervenções que acontecem em terras comunitárias nunca fica claro quem é que deve tomar as decisões. Afinal, até onde é queasas as entidades que gerem a terra com base em práticas costumeiras têm poder decisório? Se uma entidade externa pretender ocupar terras comunitárias, quem é que determina se a sua terra é ocupada ou não? Qual é o peso da decisão da autoridade comunitária perante o Governo? Pode o líder comunitário dizer que não precisa de um determinado investimento em razão de existirem outras prioridades? É preciso clarificar conceitos,
requerer para quaisquer fins, não há o que fazer senão ceder. Ao adoptar instrumentos legais desta natureza, que têm impacto muito profundo na vida das pessoas e das comunidades, uma das principais obrigações do Estado deveria ser assegurar que todos os cidadãos e famílias deste país conheçam pelo menos as disposições legais da Lei de Terras que é a base da vida social, cultural e económica da Nação. Os cidadãos têm de saber onde se posicionam de ponto de vista legal no que diz respeito à terra, o seu principal meio de subsistência. Têm de saber como agir perante as instituições do Estado e do sector privado, conhecerem as suas responsabilidades e direitos. Por muito boa que a legislação seja, se os cidadãos não a conhecem e
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Nação cos ou privados com as comunidades. E teremos os agentes do Estado a essa imposição. Isto para dizer que o nível de consciência, de integridade pública e de internalização da importância do conceito do Estado de Direito é fundamental. Neste momento, ainda não atingimos o ponto em que todos os agentes do Estado conhecem e dominam a legislação e actuam nos termos prescritos pela mesma. Temos ministros, governadores, directores provinciais, administradores distritais, etc., que não conhecem o quadro legal sobre terras. É preciso preparar os Recursos Humanos das instituições públicas em termos de capacidade jurídica.
Mesmo que a Lei seja revista, se os agentes do Estado não prestarem atenção à obrigatoriedade de actuarem permanentemente nos termos da Lei, continuaremos a ter problemas de a Lei impor que haja negociações entre investidores públicos ou privados com as comunidades não sabem usá-la, não chegaremos onde queremos chegar. Então coloca-se, também, a necessidade de adoptar mecanismos de controlo do cumprimento da Lei, medida que tem sido defendida por várias entidades. Entende ser este o caminho a seguir na revisão que se está a preparar? A capacidade de resposta do Governo está muito aquém de atender às solicitações dos cidadãos, daí resultarem os conflitos entre as comunidades, entre estas e os investidores, etc., por falta de fiscalização cuidada. É importante que as instituições e o Governo, a todos os níveis, tenham esta preocupação como prioridade. Por exemplo, em 2015 o Presidente tinha anunciado cinco milhões de títulos e o resultado, no fim do quinquénio, está muito aquém disso. A pergunta que se impõe é: porque é que estamos a falhar em relação a uma prioridade tão grande quanto a protecção de direitos? Porque é que não conseguimos delimitar terras para todas as comunidades do País? Qual é a dificuldade, desde 1997, de termos o território dos distritos organizados do
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ponto de vista sociojurídico se todas as comunidades estão sob alguma legislação administrativa que pode fazê-lo? A questão da clarificação da ocupação territorial e do seu mapeamento para prevenir conflitos não está a ser prioridade. A administração pública deve ter a capacidade de emitir títulos de uso e aproveitamento de terras sempre que for solicitado ou requerido, porque está escrito na Política e na Lei. Mas não é o que está a acontecer. Sente que estes pontos todos estão a ser tomados em conta pelo Governo no processo de reforma agora na fase de auscultação pública? Existe ou não a consciência dos reais problemas? É fundamental avaliar a maneira como os agentes do Estado se conformam com a legislação na sua actuação diária. Mesmo que a Lei seja revista, se os agentes não prestarem atenção à obrigatoriedade de actuarem permanentemente nos termos da mesma, continuaremos a ter problemas na imposição, prevista legalmente, de negociações entre investidores públi-
É esta a lacuna que explica os problemas ao nível do ordenamento territorial que se têm testemunhado a todos os níveis? Em parte, sim. Não estamos a organizar o território e as populações para termos uma gestão pacífica de terras e recursos naturais. Não estamos a adoptar instrumentos que foram criados pela Política e pela Lei que deveriam ajudar a orientar não só a tomada de decisões ao nível político, mas também ao nível económico como, por exemplo, os planos de ordenamento territorial e os planos de uso de terras. Até hoje, com 45 anos de independência, os distritos não têm planos de ordenamento de terra para assegurar a prevenção de conflitos. E este, mais uma vez, não é um problema relacionado com a própria Lei. Há quem fale em fragilidades ao nível da responsabilização como caminho para reorientar as boas práticas de gestão da terra… De acordo! A ligeireza com que se trata a questão da violação de direitos tem de ser resolvida e a responsabilização é aqui chamada. Neste momento, quando os direitos dos cidadãos são violados, os espaços de recursos para requerer protecção são complicadíssimos. A maior parte da população não sabe sequer por onde começar para resolver um problema de violação dos seus direitos. Os que podem até vão queixar-se às televisões, mas não é assim que devia ser. Há, igualmente, que considerar a logística de implementação deste quadro político-legal. É preciso ter recursos materiais e financeiros. Se isto não acontece como é que faremos a fiscalização dos processos? www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
Nação “É necessário fortalecer os mecanismos que garantem a função social e económica da terra” Idah Pswarayi-Riddihough Directora do Banco Mundial para Moçambique
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Texto de Celso Chambisso• Fotografia de Mariano Silva
uma das primeiras entrevistas que concede à comunicação social desde que assumiu a pasta de directora do Banco Mundial para Moçambique, há pouco mais de um mês, Idah Pswarayi-Riddihough junta-se aos que elogiam a Lei moçambicana de Terras, mas admite que há muito espaço ainda para ajustar a estrutura legal e institucional. O Banco Mundial é uma das organizações multilaterais mais presentes em assuntos ligados à gestão de terras em diversos países. Em Moçambique, a instituição também tem um grande envolvimento estando ligado a diversos projectos e estudos que visam aperfeiçoar a legislação nacional de terras e a maximização do seu aproveitamento enquanto recurso capaz de promover o desenvolvimento económico, com destaque para a realização da “Avaliação da Governação de Terras em Moçambique Relatório 2016”, que envolveu uma equipa de peritos nacionais de várias instituições na avaliação dos desafios internos. Uma pesquisa do Observatório do Meio Rural, intitulada “Discursos à volta do regime de propriedade da Terra em Moçambique”, e que foi publicado há cinco anos, recorda que uma tendência recorrente em muitos países é que ainda que a compra e venda da terra não sejam formalmente permitidas, estas existem e constituem preocupação para muitas Organizações da Sociedade Civil, populações e administrações
de Estados como o Burquina Fasso, Mali, Ruanda, Costa do Marfim e Moçambique, por exemplo. Em relação a este último, ainda de acordo com a publicação, o valor da terra é influenciado pela presença ou não de um título de cadastro e pelos custos de acesso, sendo os preços nos mercados de terras rurais os mais baixos. O Relatório desta mesma pesquisa diz ainda que “para o Banco Mundial, a existência dos mercados de terra é desejável visto que estes podem melhorar a eficácia das transferências de terras e facilitar o acesso ao crédito para realizar investimentos. Reduzindo a assimetria de informação sobre a terra, as transacções tornam-se menos custosas de implementar, aumentando assim a liquidez do mercado de terras e permitindo a transferência das terras dos agricultores menos produtivos para os mais produtivos”. Ao contrário deste posicionamento, a directora do Banco Mundial apresenta uma visão neutra e pró-desenvolvimento, isto é, não atribui relevância ao tipo de regime de gestão da terra, mas sim ao alcance que pode ter no bem-estar geral. Em que medida o Banco Mundial está envolvido nas iniciativas, para a nova reforma legal, já iniciadas, nomeadamente a auscultação agora lançada pelo Presidente Nyusi? O Banco Mundial está a apoiar o processo de revisão da Política Nacional de Terras e de reforma legal como
A Lei atribui poderes significativos de gerenciamento de terras às comunidades, mas não fornece uma orientação para o estabelecimento de uma entidade local que não seja a própria comunidade conforme a Lei
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parte do Projecto de Administração de Terras financiado pelo Banco através do Projecto MozLand. O apoio é direccionado especificamente para garantir um processo de consulta amplo, inclusivo e transparente, que inclua todas as partes interessadas dos sectores público e privado, e líderes da Sociedade Civil e da comunidade, nos níveis nacional, local e comunitário, e utilizando plataformas de consultas formais e informais. Esse esforço inclui o apoio ao Fórum Consultivo da Terra à Conferência Nacional da Terra e à Reunião Nacional de Autoridades Tradicionais e Outros Líderes Comunitários em Terra, a serem organizados no processo de consulta pública. O Banco Mundial, por meio do Projecto MozLand, fornece ainda assistência técnica especializada no contexto da revisão da política nacional e da legislação de terra por meio da elaboração de estudos técnicos, conforme solicitado e acordado com a Comissão para a Revisão da Política Agrária Nacional, que é a entidade responsável por coordenar, preparar e conduzir o processo de consulta. Uma breve avaliação dos aspectos relevantes, negativos e positivos da Lei de Terras em Moçambique, a que conclusões leva? É importante ressaltar que a Lei de Terras é bastante progressista em termos de reconhecimento dos direitos costumeiros da terra. Acreditamos que o País é amplamente considerado como tendo uma das políticas de terra e estruturas legislativas mais progressistas para uma governança da terra sustentável e equitativa em África. De acordo com a Lei de Terras de 1997 www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
Lei de terras
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Nação e a Constituição de 2004, os cidadãos e as comunidades locais têm reconhecimento estatutário dos seus direitos de usar e se beneficiar da terra que ocupam (DUAT), com base na ocupação costumeira e de boa fé. Os DUAT obtidos por meio da ocupação costumeira e de boa fé são reconhecidos e protegidos por Lei. Essas formas costumeiras e de boa fé de ocupação ainda são as principais maneiras pelas quais os pobres rurais obtêm direitos relativamentes à terra. No entanto, a Lei e os regulamentos ainda apresentam lacunas significativas, particularmente no que diz respeito à representação legal das comunidades e ao gerenciamento de terras comuns e recursos naturais. Não obstante os progressos alcançados até agora, Moçambique ainda tem espaço para ajustar a estrutura legal e institucional. A Lei de Terras atribui poderes e responsabilidades significativos de gerenciamento de terras e recursos naturais às comunidades, mas não fornece uma estrutura ou orientação para o estabelecimento de uma entidade local, além da “comunidade local”, conforme definido vagamente na Lei. Que implicações tem a herança socialista na eficácia da actual política e legislação de terras no País. Ou seja, de que forma impacta no seu uso sustentável, quer para a actividade económica, quer na salvaguarda da posse segura? Um dos legados do passado de Moçambique é a sua legislação progressista e actual em relação à terra. O Banco Mundial apoia esse processo consultivo que visa rever a eficácia da política e legislação actual, com vista a abordar questões relacionadas com a sustentabilidade e segurança da posse, e aguarda com expectativa o resultado desse processo. Que conjunto de mais-valias o País poderia colher se a terra fosse privatizada, o que garantidamente não vai acontecer, segundo avisou o Presidente da República no acto do lançamento da auscultação pública para a sua revisão? O Banco Mundial considera que o importante é que a revisão da Lei de Terras aperfeiçoe mecanismos para, de um lado, garantirem o interesse público da terra e, de outro, assegurarem que o uso e aproveitamen-
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to da terra pelo sector privado (indivíduo, empresas, etc.) seja feito de forma transparente, eficiente e justa. Não podendo ser privatizada, e estando garantido que haverá a protecção da posse pelas comunidades, que outros factores devem fazer parte do novo figurino da Lei para garantir uma exploração mais sustentável? Moçambique, à semelhança de muitos países, pode continuar com o quadro actual onde a terra é um bem público, mas reconhecer na Lei que existe esse mercado da terra sem assim estar a privatizá-la. É, portanto, necessário fortalecer os mecanismos para garantir a função social e económica da terra, seja ela sob direito público ou privado. O Banco considera que o importante é proteger os direitos de
diferentes titulares de posse, incluindo usos alternativos da terra, com regulamentação clara sobre direitos e responsabilidades, uso, acesso fácil a informações e mecanismos transparentes para a resolução de disputas para todos os detentores de posse e para todos usuários da terra. Uma das preocupações do Banco Mundial, expressas no Relatório de “Avaliação da Governação de Terras em Moçambique 2016”, tem que ver com a resolução dos conflitos de terra. Um trecho do documento revela que, em 2006, o Banco Mundial fazia um diagnóstico sobre a questão do acesso à terra em Moçambique que concluiu que a Lei de Terras não promoveu investimentos de longo prazo na agricultura, nem há evidências de que tenha www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
Lei de terras empoderamento e desenvolvimento da comunidade local, pelo que o projeto MozLand precisa de ser complementado por outros programas para estimular ainda mais o investimento e o desenvolvimento económico. E quanto à possibilidade de tanto os pequenos como os grandes agricultores usarem a terra como garantia para empréstimos, que posicionamento o Banco Mundial defende? A experiência internacional mostra que a formalização da posse da terra através da emissão de títulos é um elemento importante das políticas de desenvolvimento rural, pois pode trazer segurança fundiária e incentivar investimentos. A experiência internacional mostra, igualmente, que o uso da terra como garantia para empréstimos depende de uma série de factores que são específicos a cada circunstância, como sejam a oferta de linhas de crédito adequadas, uma demanda efectiva para tais serviços financeiros e a capacidade das famílias de pagar as suas dívidas. Como tal, pode beneficiar alguns agricultores, mas eventualmente não será bom para todos, pelo que carece de mais análises para um posicionamento mais preciso.
mercado da terra urbana. Feito isso, o estudo comparou a fórmula actual de cálculo do IPRA, que não incorpora o valor da terra, com modelos praticados na maioria dos cidades no mundo onde o cálculo do imposto da propriedade urbana é feito sobre o valor de mercado. Isso levou a concluir que cidades como Maputo e Matola poderiam aumentar a arrecadação do IPRA em até dez vezes se seu cálculo levasse em conta o valor já praticado nessas cidades. Outra conclusão do estudo foi que por não levar em conta a terra na cobrança do IPRA, as cidades ficam sem um instrumento muito importante para incentivar um uso mais produtivo do solo urbano. Muitas cidades no mundo não apenas cobram um imposto sobre propriedade de terrenos subaproveitados, como também têm mecanismos de progressividade que aumentam em até dez vezes a alíquota da cobrança sobre essas terras improdutivas. Se essas reformas fossem implementadas, os municípios fortaleceriam muito a sua base de receitas, e assim teriam mais capacidade para investir em infra-estruturas urbanas e habitação que hoje é insuficiente para a maioria da população. Isso também daria mais incentivo ao sector privado para construir, ao in-
O importante é proteger os direitos de diferentes titulares de posse, incluindo usos alternativos da terra, com regulamentação clara sobre direitos e responsabilidades, uso, acesso fácil a informações... proporcionado uma distribuição equitativa da terra… O Banco acredita que o Governo detém, agora, instrumentos para resolver os conflitos recorrentes? A adopção de um programa sistemático e bem direccionado de delimitação de terras comunitárias pode gerar investimentos mais eficientes, tanto na esfera pública quanto na privada, com impactos positivos associados. Os processos de delimitação da comunidade e formalização dos direitos relativos à terra (actualmente apoiados por vários projectos financiados pelo Banco Mundial) fornecem bases sólidas para investimentos privados inclusivos nos sectores agrícola e florestal para o benefício de várias partes interessadas. A delimitação e certificação de terras pela comunidade devem ser vistas como um aspecto integrante do www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
Um estudo do Banco Mundial, publicado em Agosto de 2017, dava conta de que a terra urbana não está a ser bem aproveitada para a construção de habitações e de infra-estruturas. Por isso, os municípios estão a perder dinheiro. Da autoria de um especialista urbano do Banco Mundial, André Herzog, o estudo sugeriu que, se distribuída de forma equitativa, a terra urbana poderia aumentar oito vezes as receitas dos municípios. Que instrumentos suportam esta conclusão? Qual é o aspecto particular do mau aproveitamento da terra que ocasiona este subaproveitamento do potencial? O estudo do Banco Mundial levantou o valor real praticado nas transacções imobiliárias em Maputo e Matola para entender melhor o valor do
vés de especular com a terra urbana, aumentando em muito a produção habitacional, comercial e industrial na cidade. Sendo o Quadro de Avaliação da Governação de Terras (LGAF) um instrumento de diagnóstico participativo, sente que as recomendações da equipa de peritos envolvida na sua elaboração estão a ser tomadas em consideração? O Quadro de Avaliação da Governança da Terra, concluído em 2016, foi um esforço participativo liderado por vários stakeholders e especialistas nacionais e resultou em várias recomendações que devem ser consideradas e actualizadas conforme apropriado, como uma contribuição importante para o processo de consulta recentemente lançado.
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Nação
Políticas de terra lá fora. Como é que o assunto é tratado? Em África, muitas preocupações em torno da exploração de terra são semelhantes, sobretudo a necessidade de evitar conflitos assegurando a posse segura pelas comunidades. O Ruanda é um dos exemplos a seguir, mas há outras experiências, boas e más, sobre as quais vale a pena reflectir
a
Texto Celso Chambisso • Fotografia D.R.
ngola tem uma história semelhante à de Moçambique, até mesmo no que diz respeito a questões relativas à gestão de terras. Mas o percurso nas reformas tem estado a ditar um rumo diferente. Um artigo publicado no portal Angola Press, a 14 de Junho passado, faz uma resenha do percurso do País e dá a entender que os angolanos estão, de certa forma, confortáveis com os resultados das reformas que foram realizando nos últimos anos na sua legislação que data de 1992. De acordo com o artigo, “o Estado angolano continua a dar particular atenção à questão do acesso à terra, com actualizações periódicas da legislação, com vista a permitir um melhor aproveitamento dos terrenos, fundamentalmente para efeitos agrícolas e habitacionais”. Embora a base da construção da Política e Lei de Terras tenha sido semelhante, ao contrário do que acontece em Moçambique, em Angola, um olhar atento, baseado num estudo compara-
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do, demonstra que enquanto a Lei de 1992 era reduzida apenas a fins agrários, a actual Lei de Terras (Lei n.º 9/04, 9 de Novembro) trouxe uma visão integradora e multidisciplinar e passou a abarcar funções agrárias, económicas, sociais e urbanísticas, que permitem aos particulares e às sociedades serem titulares de diversos direitos sobre terrenos. Assim, hoje, com a mudança de paradigma suportada em fundamentos da Lei Magna (2010), a terra passou a ser propriedade originária do Estado, que tem uma parte considerada de domínio público, isto é, que não se pode vender a pessoas singulares e colectivas, e outra de domínio privado, ou seja, vendável. Para os angolanos, “a Lei em vigor está mais enriquecida, tratando a problemática da terra na perspectiva da habitação, do uso e do aproveitamento das riquezas naturais, relevando, inclusive, o direito mineiro, agrário, florestal e de ordenamento do território. Também dá suporte ao exercício de
actividades económicas, agrárias, industriais e de prestação de serviços”. Com as mudanças na legislação, a aquisição de direitos é por contrato. Os interessados podem requerer uma parcela, para fins diversos, aos governos provinciais, ministérios de tutela e Conselho de Ministros, desde que tenham capacidade de aquisição dos direitos sobre bens imóveis. Mas este conforto não é de todo generalizado. Há quem defenda uma nova revisão da Lei, com o argumento de que, apesar dos avanços, a maioria dos terrenos em posse dos cidadãos é desprovida de título ou documento legal. Além disso, muitos cidadãos não se preocupam em legalizar os espaços. Continuam a erguer residências em terrenos pertencentes ao Estado, sem falar na ociosidade de grandes porções de terra nas mãos dos cidadãos. Mesmo com o reconhecimento dos avanços, estes factores vão adiando o alcance do ponto óptimo na gestão da terra em Angola, o que vai suscitando a necessidade de reformas adicionais. www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
lei de terras lá fora Aprender com o Ruanda e o Leste Europeu O Banco Mundial apoiou os esforços de muitos governos na transição das economias centralmente planificadas para economias de mercado, que envolveram acções como o registo de direitos de terra, modernização de registos e cadastros fundiários, a criação/modernização de sistemas de informação fundiária, entre outros. Segundo a instituição, Moçambique pode, certamente, aprender com essas experiências e o Banco está pronto para apoiar consultas e intercâmbios sobre as lições aprendidas. Um exemplo notável em África é a experiência do Ruanda, que levou à emissão massiva de títulos de propriedade sobre a terra e o registo de direitos fundiários, bem como a incorporação destes num sistema moderno de administração fundiária. De notar ainda que muitos países do Leste Europeu foram dos primeiros a reformarem as suas economias, o que levou a mudanças profundas no quadro legal e institucional. Essas mudanças ajudaram estes países a se desenvolverem economicamente e a melhorarem as condições de acesso à habitação e investimento para aumentar a produtividade da terra. Alguns não fizeram essa transição de forma transparente, eficiente e justa, e acabaram por piorar ainda mais o uso e aproveitamento da terra. “Por isso é muito importante para Moçambique esse debate público, informado por estudos profundos, e que envolva todos os sectores da sociedade para garantir que essas reformas, tragam os benefícios esperados para o desenvolvimento do país”, sugere o Banco Mundial. A dura batalha da África do Sul e do Zimbabué O rumo traçado por estes países divide opiniões. Há quem o considere correcto e quem o critique. A E&M não assume qualquer posição a respeito, mas pretende recordar ao leitor as consequências de uma lógica de política de expropriação de terras que ambos seguem ao tentarem estabelecer o que chamaram de justiça social, podendo contribuir, eventualmente, para tirar ilações do que se pode ou não fazer no contexto interno. O economista António Francisco recorda que o Zimbabué imitou Moçambique e fez ao fim de 20 anos o que aqui foi feito em um ano ou dois, quando o www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
O que se faz lá fora? Dois exemplos de reformas na Lei de Terras, o de Angola e o do Ruanda, apresentam resultados positivos. Já o Zimbabué trouxe resultados nefastos à economia e a África do Sul vai seguir o mesmo, mas tentará “inovar” para evitar o abismo.
Ruanda Mobilizou uma campanha que levou à emissão massiva de títulos de propriedade sobre a terra e o registo de direitos fundiários e a incorporação dos mesmos num sistema moderno de administração fundiária.
Angola A terra passou a ser propriedade originária do Estado, que tem parte da terra considerada de domínio público, isto é, que não se pode vender a pessoas singulares e colectivas, e outra de domínio privado, ou seja, vendável.
Zimbabué Há quase 20 anos, o já falecido Presidente Robert Mugabe retirou dos experientes farmeiros brancos grandes extensões de terra produtiva para as atribuir aos produtores negros, alegando restabelecer a justiça na posse e mergulhou o país na crise.
África do Sul Desde o princípio de 2018, o Governo vem manifestando interesse em expropriar terras da minoria branca para a maioria negra sem indemnizá-la. No Zimbabué a experiência não resultou, a ver vamos como será na África do Sul.
País expulsou os colonos. Para o economista, ao fazer isso, o Presidente Robert Mugabe tinha motivações meramente políticas, nomeadamente a de tentar salvar o seu Governo colocando os rurais contra os urbanos, perante os quais já estava a perder poder. Mas os resultados disso sobre a economia foram avassaladores: o País precipitou-se para uma crise económica sem precedentes, porque na mão dos farmeiros negros, a terra ficou praticamente improdutiva face ao fraco domínio das técnicas de produção em comparação com os agricultores brancos. Por isso, “o actual Presidente do Zimbabué anda à procura dos farmeiros brancos para os indemnizar”, recorda o economista, dando a entender que se trata de um assumir de erros por parte do Governo zimbabueano. Enquanto isso, a África do Sul vem ensaiando o mesmo caminho do Zimbabué e, desde princípios de 2018, fala na alteração da legislação, no sentido de expropriar a terra dos farmeiros brancos sem os indemnizar. Ciente das consequências que esta medida trouxe ao Zimbabué, o Presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, diz ser “uma questão que vamos continuar a tratar com cuidado e com responsabilidade”. O certo é que a Lei de Terras Nativas da África do Sul, aprovada em 1913 deu direito de posse de 90% das terras aos brancos, que constituíam à época menos de um terço da população. Uma fórmula única para a África Um relatório do Banco Mundial intitulado “Como África pode Transformar a Posse da Terra, Revolucionar a Agricultura e Acabar com a Pobreza”, publicado há sete anos, já referia que mais de 90% dos terrenos rurais de África estão indocumentados, o que os torna extremamente vulneráveis a usurpações e expropriações com compensação muito baixa. No entanto, e com base em experiências piloto encorajadoras em alguns países, incluindo Moçambique, o relatório sugere um plano de acção que aponta que o continente poderia, finalmente, concretizar a grande promessa de desenvolvimento das suas terras, no decorrer da próxima década, se adoptasse medidas que incluíssem, entre várias outras, a realização de investimento para cadastrar todas as terras comunitárias e as mais férteis.
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OPINIÃO
Necessidade ou Rigor? Denise Branco • Investigadora e Consultora em Comunicação Intercultural e Tradução para Fins Empresariais, Técnicos e Científicos
“P
reciso” é uma palavra intrigante e provocadora pelas opções interpretativas que nos proporciona pois dá vida a duas atitudes de dinâmicas opostas: (1) a da necessidade e da carência e (2) a da exactidão e do rigor. Para quem (re)conhece a informação que a abordagem da Programação Neurolinguística (PNL) faculta sobre o processo de tomada de decisão e de comunicação do indivíduo, – e na verdade das colectividades -, muito estará a aprender no actual clima mundial de necessidade versus precisão. Num momento de incertezas que comprometem e questionam veementemente o rigor e a exactidão de previsões – porque implicam responsabilização –, a análise do discurso demonstra uma fuga para a “necessidade”. Os discursos alternam entre acção e passividade: responsabilidade e dependência. Pelo meio, a inflexibilidade e intolerância de quem receia o desconhecido. O campo da educação – no que esta noção encerra enquanto forma de estar na vida e não apenas a limitação ao espaço físico que representa a visão de um país – tem sido o lugar onde “necessidade” e “rigor” se têm digladiado internacionalmente pelas mais diversas razões: económicas, políticas, de saúde pública, entre outras, infelizmente, nem sempre educacionais, nem sempre honrando o ser humano no seu todo. Neste terreno, aparentemente mais neutro, colhem-se dados fundamentais sobre a resiliência e agilidade do Agora e do Amanhã de cada indivíduo e de cada colectividade. Neste reflexo encontram-se ampliadas as vulnerabilidades e as mais-valias que ilustram claramente as escolhas de cada Estado. É nesse reflexo que, em
tempos de incerteza, se pode encontrar certezas sobre a sustentabilidade de qualquer decisão, em qualquer área da vida: pessoal ou profissional. Porquê deter-nos neste aspecto? Porque é por via da educação – e da prioridade que lhe é dada – que se constroem narrativas. Narrativas cuja repetição diária reforça a programação de comportamentos. Esgotada da sua essência mais nobre por se ter tornado numa buzzword que serviu – e serve – variados propósitos, é a educação que determina o lado para o qual o pêndulo cai. É na linguagem da educação – pessoal ou organizacional – que reside a programação para a acção ou a passividade. As escolhas feitas na área da educação são hoje bem visíveis num mundo que vive refém de uma incerteza pandémica. A abordagem PNL visa equipar o indivíduo com as competências e ferramentas necessárias para atingir o seu potencial máximo. Assim, convido o leitor a realizar um eficaz exercício que, num convite passado, tinha como objectivo conhecer-se melhor para comunicar melhor. Hoje, o exercício consiste em conhecer-se melhor para poder agir com um propósito mais claro e mais eficaz na construção da sua narrativa pessoal ou organizacional. Detenha-se sobre as seguintes questões: ouve ou escuta? Vê ou observa? Pensa ou reflecte? Reage ou age? Tem “necessidade” de ou “quer fazer”? Num momento de incerteza, as respostas a estas questões irão trazer-lhe maior clareza sobre o que pode escolher fazer por si/pela sua organização ou, por outro lado, compreender melhor as opções que outros lhe oferecem. Ou não. Aí encontrará a motivação e energia para a narrativa que pretende continuar a escrever, ou a oportunidade para transformá-la.
Convido o leitor a realizar um eficaz exercício que, num convite passado, tinha como objectivo conhecer-se melhor para comunicar melhor. Hoje, o exercício consiste em conhecer-se melhor para poder agir com um propósito mais claro e mais eficaz na construção da sua narrativa...
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Mercado e finanças
Em que medida é inclusiva... ... a inclusão financeira? Até 2022, 60% da população deverá estar inserida no sistema financeiro e, nessa medida, as carteiras móveis têm sido decisivas, a avaliar pelo seu contributo nos resultados do Finscope 2019. Mas a banca só cresceu 1% desde 2014
o
Texto Celso Chambisso • Fotografia D.R.
acesso aos serviços financeiros melhorou sig-
nificativamente nos últimos cinco anos, com os níveis de exclusão a reduzirem de 60% em 2014 para 46% em 2019, lembrando que em 2009 estava nos 18%, graças ao papel relevante que a carteira móvel vem desempenhando na melhoria do acesso, tendo registado um aumento impressionante de 3% para 29% da população adulta no mesmo período, embora o número de contas bancárias tenha aumentado apenas um ponto percentual, de 20% para 21%. Os resultados estão no Relatório do Inquérito aos Consumidores Finscope 2019, divulgado em intervalos de cinco anos pela Financial Sector Deepening Mozambique (FSD Moç.). A E&M ouviu o CEO do Gapi-SI, António Souto, para quem “a inclusão financei-
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ra está distorcida e jamais vai possibilitar o alcance da meta que as autoridades perseguem desde 2016, de expandir a cobertura para 60% da população economicamente activa até 2022”. Souto apresenta um conjunto de argumentos que conduzem a este posicionamento, e que se resumem, basicamente, na situação económica e social do País. Primeiro, sugere que se visite o discurso que a administradora do Banco de Moçambique, Gertrudes Tovela, proferiu por ocasião da divulgação do Relatório de Inquérito aos Consumidores Finscope 2019, no qual revelou que “todos os intervenientes no sistema são chamados a implementar acções que melhorem o actual estado de inclusão financeira no País. A título ilustrativo, os resultados indicam que o acesso aos serviços bancários cresceu
apenas um ponto percentual em cinco anos, passando a percentagem da população adulta com conta bancária de 20%, em 2014, para 21%, em 2019” (dos 14,2 milhões de pessoas com idade superior a 16 anos). Para António Souto, este é o assumir de que “o actual estado não é bom”. Indo aos pontos concretos De acordo com o gestor, os próprios documentos apresentados sobre a evolução da inclusão financeira de 2014 a 2019 apresentam pontos que provam que o País não está no caminho da inclusão financeira, a justificar pelo fraco poder económico das pessoas. O primeiro aspecto é que o uso dos telemóveis cresceu de 48% para 53% o que não pode ser considerado relevante para o intervalo de cinco anos a que se refere a pesquisa; em termos de comunicação, a rádio diminuiu de 47% www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
Serviços financeiros “Estes dados todos são ilustrativos de que não chegaremos à inclusão”, justificou o gestor. Fraca qualidade da bancarização? Outra questão que o gestor coloca é o facto de o crescimento da bancarização ter sido de apenas um ponto percentual, o que é muito pouco para o volume do investimento feito nestes últimos cinco anos. António Souto questiona também a razão para se “aplaudir” o crescimento da população servida pelos serviços financeiros formais de 23% para 43% com o argumento de que estes serviços, grosso modo, referem-se ao mobile money através de transacções que se resumem a transferências que, sem deixarem de ser importantes, deixam de fora transacções fundamentais no mercado como o acesso aos depósitos e ao crédito. Já o informal, que cresceu de 27% para 32%, significa que as pessoas “fugiram” do sistema financeiro formal, aumentando o número de pessoas que opta por outras vias. E isso é também confirmado pelos dados da poupança formal que, no geral, caiu de 8% para 7% entre 2014 e 2019, e a população banca-
de o País insistir estrategicamente na disponibilização de pontos de acesso aos serviços financeiros, é tempo de voltar as atenções para o facto de as pessoas usarem ou não estes pontos de acesso. Ou seja, é preciso que haja uma verificação atenta que apure se não serão as mesmas pessoas que já tinham acesso ao banco a usufruírem dos novos pontos de acesso por razões diversas, levando a que tal expansão tenha impacto reduzido ou nulo na promoção da inclusão. “É necessário questionarmos como poderemos ter mais pessoas abrangidas. Portanto, não falemos apenas do acesso, que já nos levou a um estágio relativamente avançado. É muito importante começarmos a falar do uso, sob pena de, até 2022, haver uma regressão por haver pessoas que não estão a usar os diferentes pontos de acesso expandidos. Temos de passar do acesso para o uso”, sugere. A directora da FSD Moç. defende que uma expansão dos serviços financeiros que seja mais abrangente só será possível se o mercado for capaz de trazer produtos e serviços que respondam às necessidades específicas das pessoas. Isto é, “os provedores dos diferentes serviços devem estar aptos
“A distorção da inclusão financeira não vai poder ser resolvida só com políticas monetárias. Este é o meu argumento central, porque há aqui reflexos de políticas económicas e sociais” para 41%; a televisão só aumentou nas regiões urbanas (de 21% para 25%); o uso do computador aumentou só de 4% para 5%; o acesso à internet é de apenas 9%; a leitura de jornais e de revistas é baixíssima. Ou seja, estes indicadores de acesso à informação mostram que há dificuldades no poder económico das pessoas. Para agravar, os dados mostram que 52% da população tem rendimentos que variam entre mil e 5 mil meticais, representando uma deterioração em comparação com 2014, se a condição das pessoas tiver de ser “dolarizada” (lembrando que houve uma acentuada depreciação do metical ao longo deste período). Além disso, houve muitas pessoas que perderam rendimentos: em 2014 eram só 2% e no ano passado subiram para 18% e só 9% da população adulta tem emprego formal, antes do Covid-19. www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
rizada caiu de 7% para 3% no mesmo período. Além disso, ao nível da região, Moçambique é o terceiro país com maior nível de exclusão financeira. E as perspectivas com esta perda de capacidade e poder de compra das pessoas vai pôr em sérias dúvidas o objectivo da cobertura de 60% dos adultos financeiramente incluídos até 2022. Todos estes pormenores levam António Souto à conclusão de que “a distorção da inclusão financeira não vai poder ser resolvida só com políticas monetárias. Este é o meu argumento central, porque há aqui reflexos de políticas económicas e sociais”. Disponibilidade vs utilização dos serviços A E&M também ouviu a directora-executiva da FSD Moç., Esselina Macome, que lançou, igualmente, um debate interessante sobre a matéria. De acordo com a economista, em lugar
a entenderem estas necessidades utilizando as técnicas apropriadas, sendo requisito fundamental que se aproximem das pessoas e conheçam a fundo a realidade do seu dia-a-dia, para daí desenharem soluções mais ajustadas”, sublinhou. O papel da literacia financeira Para a economista, a literacia será fundamental no processo de expansão da utilização dos serviços financeiros. Esselina Macome entende que o mais importante, neste contexto, não é o domínio dos termos da área, mas a capacidade de usar os diferentes produtos e serviços de que o mercado dispõe. Ou seja, há aspectos que as pessoas já conhecem no mundo das finanças, e muitos outros que não conhecem. Por exemplo, desta vez o estudo considerou indicadores indirectamente ligados ao sector financeiro
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Inclusão financeira deu grande salto...
... e É mais fácil aceder ao dinheiro móvel
Nos últimos cinco anos, a inclusão cresceu graças ao aumento acentuado da utilização das soluções móveis
Este fenómeno pode explicar a razão por que a carteira móvel está a crescer acentuadamente
Em % da *população adulta
Acesso em minutos, a maioria a pé e a minoria de táxi ou de “chapa”
inclusão financeira
agente de dinheiro móvel
40 54
15 10 mercearia
carteira móvel
15 22
3 29 agência bancária
bancarização
45 45
20 21 *O estudo considera como população adulta a indivíduos acima dos 16 anos de idade, portanto, em idade activa.
atm
45 45
Fraca cobertura no meio rural e mulheres excluídas
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Dados indicam que há muito por fazer para criar serviços específicos para o meio rural e para as mulheres.
empréstimo informal
Serviços formais cresceram abaixo do esperado
Moçambique entre os piores
Mais uma vez, este resultado é impulsionado pelo crescimento da carteira móvel
Em % da população adulta
De um conjunto de países recentemente avaliados no continente, Moçambique ainda apresenta um dos mais elevados índices de exclusão financeira
Em % da população adulta serviços formais
23 43
60 43
Em % da população adulta exclusão feminina
20 21
48
seichelles
3 áfrica do sul
outros serviços formais
10 41
7 ruanda
7
excluídos
60 46
quénia
11 eswathini
13
2019 uganda
13
Opções estão mais diversificadas
namíbia
13
Maior parte usa em simultâneo as soluções móveis e a banca, mas há mais pessoas a preferirem só a carteira móvel
tanzânia
13 nigéria
13 moçambique
Em % da população adulta
13
só conta bancária
6 dinheiro móvel e conta bancária
15 Só dinheiro móvel 14 excluídos
65
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21 exclusão rural exclusão masculina
bancarizado
2014
exclusão urbana
FONTE Relatório do Inquérito aos Consumidores Finscope 2019 Nota: inclusão financeira considera todos os que possuem e/ ou usam serviços financeiros formais ou informais; exclusão considera pessoas que não usam qualquer destes serviços; serviço formal é o que é prestado por uma instituição financeira, seja bancária ou não; serviço informal são os não regulados; bancarizados são os serviços regulados pelo Banco Central; e os serviços de outras instituições financeiras são os prestados por instituições financeiras não-bancárias reguladas pelo Banco Central.
como a capacidade de planificar as suas necessidades financeiras e concluiu que a maioria não tem esta prática, incluindo as pessoas que utilizam os serviços financeiros formais e conhecem os termos da área. Esselina Macome suspeita que este fenómeno pode ser reflexo da redução dos níveis de poupança que, entre 2014 e 2019 caiu de 35% para 16%. Mas para reforçar a literacia, felizmente, há já iniciativas em curso. O sector da Educação já assumiu programas específicos a serem leccionados a partir da 4ª classe. Trata-se de um trabalho que foi desenvolvido pelo Banco de Moçambique e pela Bolsa de Valores de Moçambique (BVM). Além disso, a própria FSD Moç. está a preparar um jogo digital para as crianças aprenderem, enquanto brincam, a lidar com instrumentos da área financeira e deixa a promessa de disponibilizar esses meios em breve. www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
Serviços financeiros
Indo ao estudo: peso da carteira móvel é o destaque Em 2014, só 3% da população adulta utilizava os serviços financeiros por telemóvel, uma proporção que passou para 29%, em 2019. “Procurámos saber qual terá sido o maior factor impulsionador do salto que se verificou e concluímos que foi o aumento da utilização dos meios digitais, com peso substancial das carteiras móveis, contribuindo, em grande medida, para que tivéssemos um aumento dos 40% que tínhamos em 2014 para 54% em 2019 da cobertura de acesso aos serviços financeiros por pessoas economicamente activas (a partir dos 16 anos de idade)”, explicou a directora-executica da FSD Moç. De acordo com Esselina Macome, a outra área que evoluiu bastante foi a dos seguros. A economista explicou também que se verificou um crescimento tangencial da banca tradicional, do ponto de vista de utiliwww.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
zadores. “Se olharmos apenas para a banca, a evolução foi de apenas um ponto percentual para 21%. Em termos percentuais parece pouco, mas em termos de número absoluto é significativo. Porquê? Se tentarmos ver quantas pessoas tinham conta bancária dentro do grupo economicamente activo de 2014 até 2019, concluímos que há um grande aumento, já que ultrapassa 190 mil pessoas. Também verificamos que as pessoas fazem muitos serviços utilizando mais do que uma plataforma financeira. São poucas as pessoas que utilizam apenas a banca. Geralmente utiliza-se, em simultâneo, a banca, as carteiras móveis e até os serviços financeiros informais. Portanto, há uma intercepção”, esclareceu. O que explica esta mistura de opções pelos usuários dos serviços financeiros é a acessibilidade e o tempo necessário para alcançar cada um dos provedores. Por exemplo, o tem-
po para chegar a uma agência bancária (ver gráfico) é muito superior ao necessário para chegar a um agente de carteira móvel, mesmo porque, em cinco anos, não houve qualquer evolução na média dos 45 minutos necessários para chegar a um banco ou a uma caixa ATM, enquanto que o tempo para chegar ao dinheiro móvel reduziu de 15 para dez minutos. Ao contrário da ideia de António Souto a este respeito, e a avaliar pela evolução dos indicadores da pesquisa, Esselina Macome acredita que “se o ritmo com que se conseguiu avançar nos últimos cinco anos se mantiver, seguramente, o País não falhará a meta dos 60% de cobertura da população activa em termos de acesso aos serviços financeiros físicos ou electrónicos formais”. Verdade ou não, o importante é que as ferramentas de análise estão lançadas e o tempo encarregar-se-á por confirmar.
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OPINIÃO
YES, Boss.
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João Gomes • Partner @ JASON Moçambique ambiente de trabalho na sua organização é psicologicamente seguro? Se fizer esta pergunta a um dos seus Colaboradores e a resposta chegar pronta, e com um “YES, Boss”… bem, talvez o seu ambiente de trabalho não seja psicologicamente seguro. E vejamos porquê. A produtividade do trabalho é uma medida que resulta da interacção, numa dada unidade de tempo, do seguinte conjunto de variáveis: Produtividade do Trabalho = (Esforço +Competência+Motivação+Ambiente de Trabalho)/(Unidade de Tempo). Nesta crónica pretendo analisar a variável “Ambiente de Trabalho”, e aquele que é um dos seus principais condicionadores — a “segurança psicológica do trabalhador”. Por segurança psicológica, entenda-se a crença na qual, numa dada organização, a equipa é um espaço seguro para que o colaborador possa, no exercício da sua actividade, assumir riscos de interacção interpessoal sem medo de ser julgado, embaraçado ou punido. E vem este tema a propósito de uma expressão comum em Moçambique, e que pode muito bem ser considerada como um “teste rápido” do nível de segurança psicológica de uma organização: “YES, Boss”. Proponho analisar o verdadeiro significado desta sub-cultura organizacional, o “YesBossismo” (expressão acabada de inventar!), considerando três perspectivas: 1) Submissão: associada à perspectiva do Colaborador. 2) Autoridade: tipicamente associada à perspectiva dos Gestores & Dirigentes. 3) Remediação: soluções possíveis para combater o “YesBossismo”. 1) Analisando a expressão “YES, Boss”, na perspectiva da submissão, e em face do excessivo nível de autoridade exercido pelos Gestores & Dirigentes, o Colaborador reflecte um nível de medo que se manifesta através de: não pergunta, com medo de ser visto como ignorante; não critica construtivamente a acção ou omissão dos seus colegas e/ou da equipa, com medo de ser considerado mau colega; não admite e esconde os seus erros, com medo de ser considerado incompetente; não se socorre dos colegas, com medo de ser considerado não autosuficiente. Tudo sintomas de um ambiente de trabalho psicologicamente inseguro e demonstrativo de baixa produtividade.
2) Analisando a expressão “YES, Boss”, na perspectiva da autoridade, e em face da baixa produtividade manifestada pela força de trabalho dos Yes Man que gerem (e que são produto da sua fraca liderança, diga-se em abono da verdade), os Gestores & Dirigentes reflectem uma atitude de desconfiança, muitas vezes traduzida em linguagem e atitudes abusivas e ofensivas, e que se manifesta através dos seguintes sinais: consideram que as suas equipas são preguiçosas e sem vontade de trabalhar; valorizam o Presencismo; têm a certeza de que são capaz de responder com maior rapidez e qualidade do que as suas equipas seriam capazes (Cultura do super-herói); tendem a considerar que as suas equipas, por aquilo que são pagos, deveriam trabalhar mais arduamente; deixam-se cair na armadilha da gestão por impressão e não por factos. Todos sintomas de um ambiente de trabalho psicologicamente inseguro e de baixa produtividade. 3) Na perspectiva da remediação e combate ao “YesBossismo” proponho que os Gestores & Dirigentes em Moçambique iniciem uma caminhada em direcção à Liderança Ágil. Sendo esta uma caminhada longa, sugiro que se comece por um pequeno passo: que as reuniões que se vão realizar doravante sejam “psicologicamente seguras”. Nestas, os Líderes Ágeis combatem o medo através: do encorajamento de TODOS a contribuir na reunião; da escuta activa, perguntando e mostrando-se curiosos; de evitar não dominar, ou interromper, ou “falar por cima”; da repetição, pela sua própria voz, dos pontos de vista dos Colaboradores, dando importância à diversidade de opiniões e valorizando pontos de vista diferentes dos seus; da assunção dos seus erros e fragilidades, e contando histórias de insucessos; não julgamento; valorização do trabalho em equipa. Tudo sintomas de um ambiente de trabalho psicologicamente seguro e, consequentemente, de alta produtividade. Em conclusão, o YesBossismo reflecte um ambiente de trabalho psicologicamente inseguro, onde prolifera o medo, o presencismo, os ‘Yes Man’, a gestão por impressão, conduzindo à infelicidade pessoal e à redução da produtividade. A Liderança Ágil é um caminho longo, mas eficaz, de combate ao ambiente de trabalho psicologicamente inseguro. As reuniões psicologicamente seguras são o primeiro passo da Liderança Ágil e do fim da cultura do “YES, Boss”.
Analisando a expressão “YES, Boss”, na perspectiva da submissão, e em face do excessivo nível de autoridade exercido pelos Gestores & Dirigentes, o Colaborador reflecte um nível de medo
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empresas
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Dar dimensão ilusória mas luxuosa à realidade Uma ilusão tangível em espaços reais parece que ganha uma nova dimensão em habitações e instituições, por via da criatividade de um grupo de jovens que descobriu na arte do design tridimensional uma solução para o desemprego
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Texto Emídio Massacola • Fotografia Mariano Silva
pro-lar 3d é uma empresa singular. Gerida por um grupo de jovens moçambicanos, dedica-se à decoração de interiores (casas, escritórios, restaurantes ou hotéis constam do seu portefólio de clientes), através da pintura em três dimensões. Fundada em 2018, por Nelson Massingue, a ideia é simples, se bem que de execução complexa: tornar real ao olho humano um ambiente gravado numa parede. “O nosso propósito inicial era dar uma ideia de espaço, profundidade e luxo em habitações de pessoas sem grandes posses”, conta o fundador da empresa. Os desenhos são baseados em técnicas de ilusão de óptica, feitos com tinta lavável e aplicados nas mais diversas superfícies, explica Massingue. “Apesar de as aplicações serem feitas, na maioria das vezes, em paredes, também decoramos outras superfícies de gesso, carros e até sanitas, imagina. Podemos fazer isto em qualquer objecto que o cliente pretenda”, diz. Com apenas o nível médio de ensino concluído, Nelson Massingue considera que a arte de desenhar é uma habilidade inata que lhe foi dada “por Deus”, exclama, enquanto recorda a descoberta do prazer do desenho, feita ainda em tenra idade. Foi, por isso mesmo, desde bem cedo, solicitado para decorar fachadas de pequenos bares e barracas de venda de diversos produtos. Com a evolução das plataformas digitais, Nelson, o caso provado de alguém que aprendeu à custa da sua própria vontade, pôde aprimorar as técnicas e tornar-se, segundo ele mesmo, no primeiro a implementar tal ideia em Moçambique. “Este tipo de pintura resiste por muito mais tempo do que o papel-parede que muitas vezes as pes-
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soas utilizam para revestir as suas casas. E é, como se pode ver, inovador”, revela, sem esconder o orgulho. No espaço entre o talento natural e a prática concreta de uma actividade profissional, foi a demanda que lhe mostrou o seu lugar no mercado há pouco mais de um ano. Já com esse propósito optou por “recrutar” jovens desempregados. “Dei-lhes a mão. E agora somos 11, mas ainda preciso de mais. Requisitos? (sorri) Basta a vontade de trabalhar, aprender e dedicação porque na vida só se aprende fazendo”. Apesar de a Pro-lar 3D actuar num nicho bastante específico onde os serviços muitas vezes são solicitados quando existe uma “folga financeira”, há já um crescimento assinalável. “A facturação é algo difícil de dizer porque não funcionamos de forma linear, depende dos trabalhos que apareçam, mas temos estado a crescer regularmente e a nossa média mensal é dez encomendas de trabalhos por mês”, revela. Hoje, os trabalhos da Pro-lar 3D podem ser encontrados em oito províncias do País, sendo que, maioritariamente, as solicitações surgem das grandes cidades, como Maputo, Matola, Beira ou Nampula. Fora do País, já houve trabalhos realizados na África do Sul, Zimbabué e Maláui. E não pára por aí. Recentemente, conta, houve duas solicitações – ainda pendentes – para Portugal e outra para o Brasil, havendo, entretanto, uma confirmada para as Honduras, que ficou suspensa e adiada para uma fase pós Covid-19. No imediato, um dos planos estratégicos para levar a Pro-lar 3D a outras dimensões de negócio passa por organizar o seu portefólio de trabalhos em plataformas digitais de modo a que chegue a vários cantos do mundo, com aquele detalhe de Moçambique.
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megafone STANDARD BANK CAPACITA PEQUENAS E MÉDIAS EMPRESAS O foco do programa é dotar as Pequenas e Médias Empresas de ferramentas que as possam apoiar na validação dos seus modelos de negócio
MULTICHOICE ADICIONA CANAIS DESPORTIVOS DA ESPN À DSTV E GOTV A MultiChoice Group e a The Walt Disney Company Africa assinaram um memorando para a inclusão de canais desportivos da ESPN – 1 e 2, respectivamente – nas plataformas da MultiChoice, DSTV e GOtv. Desde 29 de Julho que estas plataformas exibem, 24 horas por dia, o melhor do desporto dos EUA e do futebol europeu. “Esforçamo-nos por fornecer conteúdo internacional de classe mundial oferecendo aos nossos clientes fiéis uma selecção interminável de entretenimento excepcional”, afirmou Calvo Mawela, CEO da MultiChoice Group.
BRITAM SEGUROS REGISTA LUCRO NEGATIVO EM 2019 A Britam Companhia de Seguros de Moçambique, S.A. registou, no ano passado, prejuízos de 16 milhões de meticais, depois do lucro de 1,1 milhão de meticais no ano anterior. As causas da queda, de acordo com a seguradora, foram as indemnizações que teve de pagar advindas do impacto dos ciclones Idai e Kenneth sobre os bens assegurados, bem como da aplicação de IFRS 16 (a regra mais recente das Normas Internacionais de Relato Financeiro, implementado desde Janeiro de 2019), que obrigou a companhia a reconhecer activos e passivos de Leasing de Direito de Uso Adicionais no montante de 18,9 milhões de meticais.
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a incubadora do standard bank, em parceria com a Eni Rovuma Basin, promoveu um programa de capacitação para 50 PME no âmbito da promoção de ligações comerciais e de oportunidades para aquelas. Realizado virtualmente, o programa teve por objectivo apoiar as PME na validação dos seus modelos de negócio de modo a que possam garantir a sua sustentabilidade. Na visão do administrador-delegado da instituição bancária, um crescimento económico sustentável e inclusivo só será possível se se trabalhar em conjunto no mesmo ecossistema com as PME e os empregadores. “Moçambique oferece inúmeras oportunidades, particularmente no sector de Petróleo e Gás, onde estas empresas podem dar o seu contributo, devendo, para tal, estar preparadas, qualificadas e capacitadas”. Por sua vez, o director da Eni Rovuma Basin, Roberto Dall’Omo, disse que, a longo prazo, as PME podem alavancar a economia. “Por isso, decidimos investir na sua promoção, capacitação e desenvolvimento”, descrevendo-as como “um pilar importante na nossa Estratégia de Desenvolvimento e Conteúdo Local”. Tatiana Pereira, que representa a IdeaLab, a parceira implementadora da iniciativa, disse que o programa foi uma oportunidade para conectar as diferentes PME do País, dando oportunidade àquelas que não estão em Maputo.
O Grupo Standard Bank é uma instituição financeira que oferece serviços bancários e financeiros a indivíduos, empresas, instituições e corporações na África e no exterior. É a maior instituição bancária e financeira em África no sector dos serviços financeiros. A rede do Standard Bank é uma das maiores do País. Cobre todas as principais cidades e aglomerações urbanas de Moçambique, tendo 44 agências.
NIKE DESTRONA MARCAS DE LUXO GRAÇAS À PANDEMIA A Nike, gigante norte-americana do calçado e vestuário e equipamentos desportivos, lançou uma linha de máscaras de protecção individual que já se tornou no principal produto da marca durante a pandemia do novo Coronavírus, segundo apurou o ‘Lyst Index’, plataforma que analisa os hábitos de compra de mais de nove milhões de utilizadores, por mês, em mais de 12 mil marcas e lojas online. A marca registou um crescimento de 75% nas vendas digitais, responsáveis por 30% da receita total da empresa. O pódio deste ranking, divulgado recentemente, é ainda dividido com a Off-White em segundo lugar, seguindo-se a Gucci.
BCI INAUGURA AGÊNCIA BANCÁRIA EM METUGE O Presidente da República, Filipe Nyusi, inaugurou, recentemente, a agência do Banco Comercial e de Investimentos (BCI), no distrito de Metuge, província de Cabo Delgado, o primeiro balcão naquela região do norte do País. Segundo o administrador do BCI, Mukhtar Abdulcarimo, a obra, cuja construção durou cerca de dois meses, custou 29,6 milhões de meticais, e prevê-se que venha a beneficiar 89 192 habitantes, incluindo os 758 funcionários públicos que vão passar a levantar os seus salários naquele balcão. www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
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digital
Silicon Valley Face à Democracia O digital new deal — por analogia à política de Roosevelt após a Grande Depressão — concebido pelos gigantes de Silicon Valley foi amplamente experimentado durante a pandemia e pode estar para ficar. Até que ponto dele resultam ameaças à democracia?
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Texto Naomi Klein , jornalista, escritora e activista canadiana, correspondente sénior do The Intercept e autora de best-sellers como “A batalha pelo paraíso”. • Fotografia D.R.
sta é a questão posta pela ensaísta canadiana Naomi Klein. Não enjeitando a utilidade destes instrumentos digitais, a autora encoraja-nos a olhar, de uma forma crítica, para a distopia de alta tecnologia que lhes pode estar subjacente. Ou seja: não é prudente deixarmos o campo completamente livre para os gafam [Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft]. Em vez disso, temos de repensar a internet como um serviço público ao serviço dos cidadãos. Num instante fugaz, durante o briefing diário de Andrew Cuomo, governador de Nova Iorque, sobre a situação do coronavírus, no dia 6 de Maio, os rostos sérios que há semanas enchem os ecrãs deram lugar ao que parecia um sorriso. “Estamos prontos, entramos com tudo”, proclamou. “Somos nova-iorquinos, por isso somos dinâmicos e ambiciosos (...). Compreendemos que a mudança não só é iminente como também pode ser nossa aliada, se for feita da maneira certa.” A inspiração para este tom atipicamente positivo estava na aparição em vídeo do antigo CEO da Google, Eric Schmidt, que se juntou ao briefing de Imprensa do governador para anunciar que acabara de receber a missão de liderar um grupo de especialistas encarregado de inventar o futuro pós-covid, no estado de Nova Iorque [o primeiro epicentro da epidemia covid-19 nos EUA], pondo ênfase na integração
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sistemática da tecnologia em todas as áreas da vida local. “A prioridade”, disse Eric Schmidt, “é a telemedicina, o ensino à distância e a banda larga de alta velocidade... Temos de procurar soluções que possam ser propostas agora, implementá-las o mais depressa possível e utilizar esta tecnologia para melhorar a situação”. Para aqueles que ainda tinham dúvidas sobre as intenções do antigo chefe da Google, podiam ver-se, no vídeo, atrás dele, duas asas de anjos dourados numa moldura. No dia anterior, Andrew Cuomo havia anunciado uma parceria semelhante com a Fundação Bill e Melinda Gates, com vista a criar um “sistema educativo conectado”. Andrew Cuomo explicou que a pandemia tinha aberto “uma janela histórica de oportunidade para a integração e promoção das ideias” [de Bill Gates], apelidando-o de visionário. “Todos estes edifícios, todas estas salas de aula, para que servem face a toda a tecnologia que temos à nossa disposição?”, perguntava. Uma questão aparentemente retórica. Levou algum tempo, mas algo que se assemelha a uma “doutrina de choque” em versão pandémica começa a ganhar forma (de acordo com a “doutrina de choque” teorizada por Naomi Klein, os defensores do capitalismo aproveitam as grandes catástrofes para fazerem passar reformas ultraliberais). Chamemos-lhe o Screen New Deal, segundo o modelo do New Deal, a
política intervencionista do Presidente Roosevelt, lançada em 1933, após a crise de 1929, e o Green New Deal ecológico, defendido por uma parte dos democratas norte-americanos. Muito mais tecnológico do que tudo aquilo que já vimos depois de catástrofes anteriores, o modelo para o qual estamos a avançar a um ritmo acelerado, enquanto a hecatombe contínua, considera estes meses de isolamento físico não como um mal necessário (salvar vidas) mas como uma experiência em tamanho real, a qual nos permite encarar um futuro sem contacto físico e altamente lucrativo. Máquinas sem risco biológico
Anuja Sonalker, CEO da Steer Tech, uma empresa sediada em Maryland que desenvolve software de estacionamento automático, resumia recentemente a nova argumentação, revista e adaptada à luz do covid-19: “Constata- se um forte entusiasmo por tecnologias sem contacto que não passam pelo humano”, disse. “Os seres humanos representam um risco biológico. A máquina não.” É um futuro em que as nossas casas nunca mais serão locais totalmente privados e que também servirão, graças a tudo o que é digital, de escolas, de consultórios médicos, de ginásio e, se o Estado o decretar, até de prisão. Claro que, para muitos de nós, a casa já era uma extensão do escritório e o nosso primeiro lugar de entretenimento, mesmo antes da pandemia,
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sociedade e a monitorização dos prisioneiros em ambiente aberto [graças particularmente à pulseira electrónica] já estava em vias de se generalizar. No entanto, com o frenesim da pandemia, todas estas tendências deverão conhecer uma aceleração fulgurante. Trata-se de um futuro em que, para os privilegiados, quase tudo é entregue em casa, quer virtualmente, através da cloud e do streaming, quer fisicamente, através de veículos autónomos e drones, em acções que serão depois “partilhadas” através de um ecrã numa rede social. É um futuro que emprega muito menos professores, médicos e motoristas, que não inclui nem dinheiro nem cartões de crédito (a pretexto de evitar a propagação de vírus), onde os transportes públicos e as artes do espectáculo são reduzidos à sua expressão mais simples. Ameaça à democracia
É um futuro que pretende funcionar graças à Inteligência Artificial, mas que, na realidade, se mantém graças a dezenas de milhões de empregados anónimos que trabalham à porta fechada em armazéns, em centros de tratamento de dados, em plataformas de moderação de conteúdos, em fábricas de electrónica, em minas de lítio, em explorações agrícolas gigantes, em fábricas de processamento de carne e em prisões, vulneráveis à doença e à sobre-exploração. É um futuro em que cada gesto nosso, cada palavra nossa, cada interação nossa com os outros é geolocalizável, rastreável e analisável devido à colaboração, sem precedentes, entre o Estado e os gigantes do digital. Se esta imagem lhe parece familiar é porque este mesmo futuro, em que tudo é conduzido por aplicações e assenta em empregos precários, já nos era vendido antes do covid-19, em nome da fluidez, do conforto e da personalização. Mas muitos de nós já estávamos preocupados com os problemas de segurança, de qualidade e de desigualdade, levantados pela telemedicina ou pelo ensino à distância. Preocupados com os veículos de condução autónoma, que corriam o risco de ceifar os peões, ou com os drones, que ameaçavam danificar as encomendas (ou ferir pessoas). Preocupados com a geolocalização e a desmaterialização dos meios de pagamento, que nos iriam tirar a nossa priva-
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cidade e reforçar a discriminação étnica e sexual. Preocupados com as redes sociais sem escrúpulos, que poluem a nossa ecologia de informação e a saúde mental das nossas crianças. Preocupados com as “cidades inteligentes” cheias de sensores, que substituem as autoridades locais. Preocupados com os “bons empregos”, que estas tecnologias iriam fazer desaparecer. Preocupados com os “maus” empregos, que elas iriam produzir em série. Mas, acima de tudo, estávamos preocupados com a ameaça à democracia que a acumulação de poder e de riqueza por alguns gigantes digitais representa. Futuro arrepiante
Mas isto era num passado distante: estávamos em Fevereiro. Actualmente, a maioria destas preocupações legítimas está a ser varrida por uma onda de pânico [causada pela pandemia], e esta distopia está a sofrer uma rápida transformação. Hoje, num cenário de grande destruição, ela é-nos vendida acompanhada da promessa suspeita de que estas tecnologias seriam a única forma de nos protegermos de pan-
demias – a condição sine qua non de segurança para os nossos entes queridos e para nós próprios. Graças a Andrew Cuomo e às suas várias parcerias com bilionários (incluindo uma com o antigo presidente da câmara de Nova Iorque e bilionário Michael Bloomberg sobre o rastreio e a localização), o estado de Nova Iorque é a montra deste futuro arrepiante – mas as ambições estendem-se muito para além das fronteiras de qualquer estado norte-americano ou de qualquer país. Tudo gira à volta de Eric Schmidt. Muito antes de os norte-americanos abrirem os olhos para a ameaça do covid-19, já Schmidt conduzia uma agressiva campanha de lobby e de comunicação para promover esta visão da sociedade “à Black Mirror” que Andrew Cuomo acaba de autorizar. No centro desta visão está uma estreita associação entre o Estado e alguns gigantes de Silicon Valley, em que escolas públicas, hospitais, consultórios médicos, Polícia e Exército subcontratarão (com custos elevados) uma boa parte das suas funções a empresas tecnológicas privadas. É uma visão que Eric Schmidt está a promover www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
digital
Andrew Cuomo, mayor de Nova Iorque e Eric Schmidt, ex-Ceo da Google, no momento do anúncio de que acabara de receber a missão de “inventar” o futuro pós-covid’ em Nova Iorque na presidência do Defense Innovation Board [Conselho de Inovação para a Defesa], que aconselha o Pentágono sobre o crescimento da Inteligência Artificial no sector militar, mas também na presidência da poderosa National Security Commission on Artificial Intelligence, NSCAI [Comissão de Segurança Nacional sobre Inteligência Artificial], que aconselha o Congresso sobre “os avanços da Inteligência Artificial, da aprendizagem automática e das tecnologias relacionadas”, com vista a responder “às exigências de segurança nacional e económica dos Estados Unidos, nomeadamente ao risco económico”. Ambos os organismos incluem nas suas fileiras um grande número de capitães da indústria de Silicon Valley e quadros superiores de empresas como Oracle, Amazon, Microsoft, Facebook e, claro, os antigos colegas de Eric Schmidt na Google.
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Estratégia de Eric Schmidt
Na sua qualidade de presidente, Schmidt, que ainda detém mais de 5,3 mil milhões de dólares em acções da Alphabet (a empresa-mãe da Google), bem como participações substanciais noutras empresas do sector, está a fazer o que parece ser uma campanha de extorsão de fundos em Washington em nome da Silicon Valley. O objectivo número uma das duas organizações [o Defense Innovation Board e a NSCAI] é um aumento em flecha da despesa pública em Inteligência Artificial e nas infraestruturas necessárias para implementar tecnologias como o 5G – investimentos que beneficiariam directamente as empresas em que Eric Schmidt e outros membros destes organismos têm grandes participações. Exposta inicialmente em apresentações à porta fechada, frente aos parlamentares, e depois em artigos e entrevistas destinados ao grande público,
a ideia principal dos argumentos de Schmidt é a de que a posição dominante dos EUA na economia global está directamente ameaçada pela política da China, que gasta sem limites para se doptar de infraestruturas de vigilância de alta tecnologia – permitindo que empresas chinesas, como Alibaba, Baidu e Huawei, embolsem os benefícios das suas aplicações comerciais. O Electronic Privacy Information Center (Epic) [Centro de Informação sobre Informática e Liberdades] acedeu recentemente, através de um pedido ao abrigo da lei de acesso à informação, a uma apresentação feita pela NSCAI de Eric Schmidt, em Maio de 2019. Descobre-se aí uma série de afirmações alarmistas, nomeadamente a referência a que o quadro regulamentar mais permissivo da China e a que o seu gosto desmesurado pela vigilância permitirão que a China ultrapasse os EUA em várias áreas, incluindo “a Inteligência Artificial ao serviço do diagnóstico médico”, os veículos autónomos, as infraestruturas digitais, as “cidades inteligentes”, a partilha de carros e o pagamento sem papel. As razões citadas [pela NSCAI] para explicar esta vantagem competitiva da China são múltiplas, a começar pelo número considerável de consumidores que faz compras online, a “falta de um sistema bancário tradicional na China”, que permitiu a Pequim contornar o dinheiro e os cartões de crédito para “criar um mercado gigantesco de comércio electrónico e de serviços digitais”, através do “pagamento sem papel”, mas também a grave escassez de médicos, o que levou o Estado a trabalhar em estreita colaboração com empresas como a Tencent, para utilizar a Inteligência Artificial em benefício da medicina “predictiva”. A apresentação destacava também que as empresas chinesas “têm a possibilidade de ultrapassar rapidamente as barreiras regulamentares, enquanto as iniciativas norte-americanas encalham nos procedimentos de conformidade à lei HIPAA [sobre a confidencialidade dos dossiers médicos] e nos de homologação da Food and Drug Administration [a agência de segurança sanitária e alimentar]. Mas a NSCAI explicava esta vantagem competitiva principalmente em termos das parcerias público-privadas, que a China não se faz rogada de assinar, nas áreas de vigilância em
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massa e de recolha de dados. A apresentação sublinhava o “forte envolvimento do Estado chinês, por exemplo, na implementação do reconhecimento facial”, precisando que “a vigilância é um cliente óbvio da Inteligência Artificial” e, mais à frente, que “a vigilância em massa é uma das aplicações emblemáticas do deep learning” [aprendizagem profunda, assente em algoritmos e na qual se baseia o reconhecimento facial]. Concorrência estratégica com a China
Numa das páginas da apresentação, intitulada Recolha de Dados: Vigilância = Cidades Inteligentes, salientava-se que a China, graças ao Alibaba – o principal concorrente chinês do Google – estava a liderar a corrida. O que é interessante, porque a Alphabet, a empresa-mãe da Google, está a vender-nos exactamente o mesmo através da sua filial [dedicada à inovação urbana] Sidewalk Labs, escolhendo o centro de Toronto para estabelecer o seu protótipo de “cidade inteligente”. Só que o projecto de Toronto acaba de ser abandonado, após dois anos de controvérsia
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reiterada sobre a enorme quantidade de dados pessoais que a Alphabet iria recolher, além da falta de salvaguardas na protecção da privacidade dos residentes e dos benefícios questionáveis para a cidade como um todo. Cinco meses após esta apresentação, em Novembro de 2019, a NSCAI apresentou ao Congresso um relatório preliminar no qual alertava: os Estados Unidos da América precisavam de alcançar a China nestas tecnologias controversas. “Encontramo-nos numa situação de concorrência estratégica”, repetia-se no relatório, obtido pelo Epic ao abrigo da lei de acesso à informação. “A Inteligência Artificial é uma questão central. O futuro da nossa segurança e o da nossa economia dependem disso.” No final de Fevereiro, Eric Schmidt decidira concentrar a sua campanha no grande público, talvez percebendo que os investimentos em massa, que a sua comissão estava a pedir, não seriam aprovados sem um forte apoio. Num artigo publicado pelo New York Times [a 27 de Fevereiro] e intitulado I was the boss of Google: China could pass Silicon Valley, Eric Sch-
midt apelava “a parcerias inéditas entre o Estado e o sector privado” e, mais uma vez, alertava para a ameaça do perigo: “A Inteligência Artificial irá empurrar as fronteiras em todos os domínios, da biotecnologia à banca, e já constitui também uma prioridade no domínio da Defesa... Se a tendência actual se confirmar, o investimento total da China em investigação e desenvolvimento poderá ultrapassar o dos Estados Unidos da América dentro de dez anos, mais ou menos ao mesmo tempo que se espera que a sua economia ultrapasse a nossa. A menos que esta tendência se inverta, encontrar-nos-emos, nos anos 2030, em concorrência com um país que tem uma economia mais forte, que investe mais em investigação e desenvolvimento, que tem, portanto, uma melhor investigação, que implementa mais tecnologias novas e que tem uma infraestrutura informática mais forte. Em suma: os chineses pretendem tornar-se a principal força inovadora do planeta, e os Estados Unidos da América não estão equipados com os meios necessários para os vencer.” www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
digital nologia tinha como objectivo proteger a saúde dos norte-americanos. Apenas nos foi dito que era necessário não sermos esmagados pela China. Mas, claro, o discurso iria mudar em breve. Nos dois meses seguintes, Schmidt trabalhou para ripostar as exigências formuladas anteriormente – aumento massivo da despesa pública em infraestruturas tecnológicas, multiplicação de parcerias público-privadas na área da Inteligência Artificial, flexibilização de muitas das salvaguardas que visam garantir a nossa segurança e proteger a nossa privacidade. Hoje, todas estas medidas (e muitas mais) estão a ser-nos vendidas como a única esperança para nos protegermos de um vírus que se espera que continue a atormentar-nos durante os próximos anos. Os gigantes digitais com os quais Eric Schmidt tem laços estreitos e que povoam os influentes conselhos consultivos a que ele preside reposicionaram-se para aparecer como anjos da guarda da saúde pública e gene-
um verdadeiro know-how no fornecimento e na distribuição. No futuro, terão de fornecer serviços e aconselhamento aos decisores políticos que não possuam os sistemas de informação e a experiência necessários. Será igualmente conveniente desenvolver o ensino à distância, que nunca antes foi experimentado a tal escala. A internet elimina a exigência de proximidade física, o que permite aos estudantes frequentar os cursos dos melhores professores, independentemente da área geográfica em que vivem. A necessidade de uma experimentação rápida em larga escala irá também acelerar a revolução biotecnológica... Em suma, a necessidade de uma infraestrutura digital digna desse nome há muito tempo que se faz sentir no nosso país... Se quisermos construir uma economia e um sistema educativo baseados na desmaterialização, precisamos de uma população totalmente conectada e de infraestruturas de elevado desempenho. Para tal, o Estado
O fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, disse que a empresa, “orgulhosamente americana”, não teria tido sucesso sem “leis que encorajam a concorrência e a inovação” Novos anjos da guarda
A única solução, para Eric Schmidt, seria uma campanha em massa de investimentos públicos. Aplaudindo a Casa Branca por ter pedido a duplicação do financiamento para a Inteligência Artificial e a investigação em computação quântica, escrevia: “Seria conveniente duplicar uma vez mais os financiamentos atribuídos a estes domínios, reforçando-se as capacidades institucionais dos laboratórios e dos centros de investigação... Ao mesmo tempo, o Congresso deveria satisfazer o pedido do Presidente para rever em alta o financiamento da investigação e desenvolvimento da Defesa (para proporções inéditas em 70 anos), e o Departamento de Defesa deveria utilizar estes recursos para se doptar de capacidades de ponta nos domínios da Inteligência Artificial, da computação quântica, da tecnologia hipersónica e de outras áreas tecnológicas prioritárias.” Isto foi exactamente duas semanas antes de a epidemia do covid-19 ter sido elevada à categoria de pandemia, e em parte alguma Eric Schmidt mencionou que este desenvolvimento de alta tecwww.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
rosos defensores dos “heróis quotidianos”, sem os quais a economia não funcionará (muitos deles, como os motoristas de entregas, perderiam os seus empregos, se estas empresas forem bem-sucedidas). Uma visão de futuro
Menos de 15 dias após o início do confinamento do estado de Nova Iorque, Eric Schmidt publicou [a 27 de Março] outro artigo no Wall Street Journal, em que anunciava esta mudança de base e transmitia claramente a intenção de Silicon Valley aproveitar a crise para provocar mudanças duradouras. “Tal como outros norte-americanos, os actores do sector das novas tecnologias estão a trabalhar para desempenhar o seu papel no apoio aos que estão na linha da frente da pandemia... Mas a pergunta que todos devem fazer é: como queremos que seja este país quando a pandemia desaparecer? Como podem as tecnologias emergentes, que actualmente estão a ser utilizadas para enfrentar a crise, fazer com que o futuro seja melhor? Empresas como a Amazon possuem
deve fazer investimentos consideráveis – talvez como parte de um plano de recuperação – para transformar as infraestruturas digitais nacionais em plataformas desmaterializadas (nuvem) e associá-las à rede 5G.” Durante esta mesma vídeo-conferência, o seu comentário mais eloquente foi, porém, o seguinte: “Estas empresas que temos prazer em denegrir trazem benefícios notáveis nas áreas da comunicação, da saúde pública e da difusão de informação. Imagine como seria a sua vida nos EUA sem a Amazon.” Acrescentava que as pessoas deviam “demonstrar um pouco mais de gratidão para com as empresas que dispunham dos capitais necessários, que investiram, que conceberam as ferramentas que usamos hoje e que foram uma ajuda preciosa”. Um discurso que nos lembra que, até há muito pouco tempo, a desconfiança da opinião pública em relação a estas empresas aumentava dia para dia. Os candidatos presidenciais debatiam abertamente a ideia de desmantelar os gigantes digitais. A Amazon foi forçada a abandonar o seu projecto de
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sociedade instalar a sua sede em Nova Iorque, devido à forte oposição local. O projecto Sidewalk Labs da Google estava em crise crónica, e os próprios funcionários da Google recusavam- se a apoiar ferramentas de vigilância com aplicações militares. Por outras palavras, a democracia – ou seja, a participação inoportuna do grande público na organização das grandes instituições e do espaço público – estava a revelar-se o principal obstáculo à visão que Schmidt pretendia impor. O “travão” do poder público
Hoje, em plena hecatombe, e no clima de medo e de incerteza que a acompanha, estas empresas veem nesta pandemia uma clara oportunidade de porem fim a este compromisso democrático, de forma a beneficiarem do mesmo tipo de poder que os seus concorrentes chineses, que se dão ao luxo de fazer o que querem sem serem impedidos pelos recursos intempestivos ao direito do trabalho ou do cidadão. O Governo australiano assinou um contrato com a Amazon que lhe permite registar dados da sua controversa aplicação de rastreio do vírus, e o seu homólogo canadiano fez o mesmo para a entrega de equipamento médico, contornando (perguntamo-nos porquê) o serviço postal público. E, no espaço de apenas alguns dias, no início de Maio, a Alphabet lançou uma nova iniciativa do Sidewalk Labs para repensar a infra-estrutura urbana, com a atribuição de 400 milhões de dólares [365 milhões de euros]. Josh Marcuse, administrador do Defense Innovation Board presidido por Eric Schmidt, anunciou que vai deixar o seu cargo para trabalhar a tempo inteiro na Google, como chefe de estratégia e inovação para o sector público mundial – por outras palavras, vai ajudar a Google a explorar algumas das muitas oportunidades que ele e Schmidt trabalharam para criar através de campanhas de lobby. Sejamos claros: a tecnologia irá certamente desempenhar um papel importante na protecção da saúde pública nos futuros meses e anos. A questão é se esta tecnologia estará sujeita ao controlo da democracia e dos cidadãos, ou se será imposta no frenesim de um estado de excepção, sem que sejam levantadas as questões de fundo que determinarão a forma das nossas vidas nas décadas vindouras.
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Perguntas como estas, por exemplo: uma vez que estamos a constatar que a tecnologia digital é indispensável em tempos de crise, estas redes – e os nossos dados – deverão permanecer nas mãos de actores privados, como a Google, a Amazon ou a Apple? Se eles são largamente financiados por fundos públicos, então não deveriam os cidadãos ser também seus proprietários e controlá-los? Se a internet tem um lugar assim tão grande nas nossas vidas como claramente tem, não deveria ser considerada um serviço público sem fins lucrativos? E embora não haja dúvida de que a vídeo-conferência proporciona uma ligação vital ao mundo exterior em tempos de contenção, a questão reside em se saber se investir nas pessoas não será a forma mais sustentável de nos protegermos, e é esta questão que merece um verdadeiro debate. Vejamos o caso da educação. Eric Schmidt tem razão em dizer que as salas de aula superlotadas são um risco para a
saúde, pelo menos até encontrarmos uma vacina. Mas, nesse caso, porque não duplicar o número de professores e diminuir o tamanho das turmas para metade? Porque não assegurar que todas as escolas tenham uma enfermeira? Isto permitiria criar empregos num contexto económico digno da Grande Depressão [a pior crise económica do século XX] e daria um pouco mais de espaço ao pessoal e aos utilizadores de ensino. E se os edifícios são demasiado pequenos, porque não dividir o dia em turnos e dar mais espaço às actividades educativas ao ar livre, apoiando-se nos muitos estudos que demonstram que o tempo passado na Natureza melhora a capacidade de aprendizagem das crianças? Como melhorar a Educação
A implementação de tais medidas levaria tempo, obviamente, mas não são tão arriscadas como fazer tábua rasa de métodos testados: humanos adultos, qualificados, que ensinam os jovens www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
digital Além da discriminação étnica e social óbvia que este ensino cria em relação a crianças que não têm internet ou computadores em casa (problemas que os gigantes digitais sonham em resolver através da compra em massa de equipamento com financiamento público), levantam-se sérias questões sobre a capacidade de o ensino à distância satisfazer as necessidades dos estudantes com deficiências, tal como exigido por lei. E não há solução tecnológica para o problema da aprendizagem num ambiente doméstico sobrelotado e/ou violento. Falta de debate público
A questão não é se as instituições devem evoluir para se adaptar a este vírus altamente contagioso para o qual não existe cura ou vacina. Como todas as outras instalações de acolhimento, elas irão mudar. O problema, como sempre nestes tempos de trauma colectivo, é a falta de debate público relativamente às formas que estas mudanças devem assumir e quem deve beneficiar delas. Empresas privadas
tir que todos terão os recursos materiais e a assistência necessários para passar a quarentena em segurança. Em qualquer caso, estamos perante uma escolha concreta e difícil entre, por um lado, investir nas pessoas e, por outro lado, investir na tecnologia, porque a verdade cruel é que, na situação actual, é pouco provável que invistamos em ambos. A recusa de Washington em transferir os recursos necessários para os estados e cidades significa que a crise sanitária dará muito rapidamente lugar a uma austeridade orçamental. Escolas públicas, universidades, hospitais e operadores de redes de transportes enfrentam questões existenciais quanto ao seu futuro. Se a implacável campanha de lobby dos gigantes digitais sobre ensino à distância, tele-medicina, 5G e veículos autónomos (o seu Screen New Deal) der frutos, simplesmente não haverá mais dinheiro nos cofres para lidar com outras emergências, incluindo o tão necessário Green New Deal. Pelo contrário: o preço a pagar por todas estas engenhocas vistosas será uma
“Porque não duplicar o número de professores e diminuir o tamanho das turmas para metade, ao invés de se mudar todo o paradigma do ensino?” humanos que estão à sua frente, em locais onde aprendem a socializar. Ao tomar conhecimento da nova parceria do estado de Nova Iorque com a Fundação Gates, Andy Pallotta, presidente do sindicato estatal dos professores, respondeu inequivocamente: “Se quisermos reinventar a educação, comecemos por satisfazer as necessidades dos assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros escolares, por propor actividades artísticas enriquecedoras, cursos de aperfeiçoamento e por reduzir o tamanho das turmas em toda a academia.” Uma federação de associações de encarregados de educação também fez questão de salientar que, embora os pais tivessem, de facto, tido uma “experiência de aprendizagem à distância” (para usar a expressão de Eric Schmidt), as conclusões foram alarmantes: “Desde o encerramento das escolas, em meados de Março, a nossa preocupação com as deficiências óbvias do ensino baseado no ecrã não cessa de aumentar.” www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
de tecnologia ou estudantes? A mesma questão aplica-se à saúde. Evitar os consultórios médicos e os hospitais durante uma pandemia é uma questão de bom senso. Mas a tele-medicina tem sérias lacunas. Seria conveniente lançar um debate informado sobre os prós e contras da atribuição de recursos públicos preciosos à tele-medicina – e não ao recrutamento de enfermeiros mais bem formados, munidos com todo o equipamento de protecção necessário, que podem deslocar-se a casa dos doentes para fazerem um diagnóstico e tratá-los. Talvez o mais urgente seja a necessidade de se encontrar o equilíbrio justo entre as aplicações de rastreio do vírus, que podem desempenhar um papel importante se acompanhadas por protecções apropriadas da privacidade, e os apelos à criação de um “corpo de saúde de proximidade”, que empregaria milhões de norte-americanos, não só para rastrear a cadeia de infecção mas também para garan-
onda de despedimentos na educação e de encerramentos de hospitais. Oportunidade perfeita
A tecnologia fornece-nos ferramentas poderosas, mas nem todas as soluções são tecnológicas. E o maior inconveniente de se confiar a homens como Bill Gates e Eric Schmidt decisões cruciais sobre como “reinventar” as nossas cidades e estados é que eles passaram as suas vidas a demonstrar que não há nem um problema que a tecnologia não consiga resolver. Para eles, e para muitos outros em Silicon Valley, a pandemia é a oportunidade perfeita para receber não só gratidão, mas também a consideração e o poder de que eles sentem ter sido injustamente privados. Ao escolher o antigo chefe do Google para ficar frente da comissão que irá determinar os termos de desconfinamento no estado de Nova Iorque, Andrew Cuomo deu-lhe algo que se parece muito com um cheque em branco.
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lá Fora
A HORA DA DESILUSÃO Oficialmente, foi devido à pandemia que as eleições foram adiadas na Etiópia, mas a verdade é que Abiy Ahmed, o primeiro-ministro e Nobel da Paz, que tem vindo a prometer o início de uma nova era para o País, começa a dar sinais preocupantes, segundo um antigo membro do partido no poder
a
decisão do primeiro-ministro Abiy Ahmed em adiar as eleições na Etiópia causou uma crise constitucional. A Covid-19 serve-lhe de pretexto, mas não é a causa. Evocando a pandemia, o Governo de Addis Abeba decidiu adiar indefinidamente as eleições agendadas. No entanto, esse adiamento está na origem de um problema excepcional que as autoridades definem, hoje, como uma crise constitucional. O mandato de cinco anos das legislaturas federais e regionais, bem como o das suas administrações, termina a 30 de Setembro,
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Texto Mulugeta G. Berhe • Fotografia D.R. o que pressupõe uma dificuldade específica. Depois dessa data, quem estará, afinal, autorizado a governar até à realização de novas eleições? O partido no poder apresenta quatro cenários possíveis para contornar esta crise constitucional: dissolver o Parlamento; declarar o Estado de Emergência; alterar a Constituição; ou concordar numa interpretação desta última. Das quatro opções, a última é a preferida do Governo. E foi a que o Parlamento aprovou a 5 de Maio de 2020. O partido no poder solicitou ao Conselho da Federação [a Câmara Alta do Parlamento da Etiópia] uma inter-
pretação no espaço de um mês. Uma decisão rejeitada pelos partidos da oposição que detêm, na sua maioria, o poder em circunscrições importantes. O Congresso Federalista Oromo, uma coligação de seis partidos, denunciou-a e apelou a um diálogo no sentido de se alcançar uma solução política. A Frente de Libertação do Povo do Tigré alegou que a medida era inconstitucional e que iria preparar eleições regionais para impedir que o regime permanecesse em funções de maneira ilegítima. Dadas as tensões que atravessam o cenário étnico e político da Etiópia, estas eleições só podiam ser complicadas. www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
Etiópia A comissão eleitoral e o seu novo presidente garantiram que tinham iniciado os preparativos para o escrutínio. Mas foi só em Fevereiro deste ano que o calendário eleitoral foi tornado público. Tal vai contra o processo habitual que prevê que a comissão anuncie o calendário nove meses antes do dia da votação. Segundo as informações comunicadas em Fevereiro, as eleições teriam lugar a 29 de Agosto de 2020. Várias organizações e grupos políticos manifestaram preocupação relativamente a esta data. Devido à estação das chuvas, trata-se de uma época do ano em que grande parte das áreas rurais é de difícil acesso. Isso limitaria a participação da maioria dos etíopes. A comissão eleitoral, no entanto, permaneceu determinada nesta data de Agosto, alegando que qualquer adiamento causaria uma crise constitucional, porque seria um governo não eleito que passaria a estar em funções. A julgar por esta sucessão de aconte-
te. Quando se substitui a Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope (FDRPE) pelo Partido da Prosperidade, pode dizer-se que se perde toda a legalidade. O Partido da Prosperidade só tem uma legalidade de fachada, porque os representantes eleitos sob a bandeira do FDRPE ingressaram ilegalmente no Partido da Prosperidade. Adiar eleições sem um acordo político apropriado pode ser a última gota que fará transbordar o copo. O País corre o risco de vir a ser balcanizado em função de linhas de fractura étnicas. A região do Tigré declarou que planeia realizar as suas eleições regionais. Nem a comissão eleitoral nem o Governo de Ahmed estão legalmente em posição de impedir que a população do Tigré organize essa eleição. Qualquer tentativa de impedimento pela força poderá dividir os etíopes conforme a sua etnia. Esse facto poderia levar a população do Tigré a invocar o Artigo 39 da Constituição
O International Crisis Group observou que as tácticas usadas por Ahmed eram uma reminiscência dos métodos autoritários do passado. Aqueles a que ele tinha jurado renunciar A Comissão Nacional de Eleições foi reorganizada em 2018. Birtukan Mideksa, uma ex-líder da oposição, ficou como responsável. Apesar destes desenvolvimentos, o Governo sempre mostrou relutância em cumprir o prazo previsto para as eleições. O primeiro-ministro Ahmed disse que o seu Governo tinha de consultar todos os grupos políticos do País antes de determinar se convinha ou não manter o prazo. Métodos do passado No seu relatório mais recente, o International Crisis Group observou que as tácticas de Ahmed eram uma reminiscência dos métodos autoritários do passado, a que ele tinha jurado renunciar, e que incluíam a prisão e a perseguição de activistas e de opositores. Somente em Outubro de 2019 (quando o Comité Nobel havia acabado de anunciar que Ahmed era o laureado com o prémio Nobel da Paz) é que o primeiro-ministro declarou explicitamente que qualquer adiamento das eleições podia afectar a legalidade e a legitimidade do seu Governo. www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
cimentos, é óbvio que a crise constitucional já se estava a formar antes dos problemas adicionais causados pelo Covid-19. Os preparativos tardios e a escolha de uma data irrealista já ameaçavam, na prática, a realização dessas eleições, bem como a sua legitimidade. A pandemia ofereceu às autoridades o pretexto ideal para novos adiamentos. Especialistas na Etiópia, como René Lefort, jornalista e autor de Éthiopie, La Révolution Hérétique [Maspéro, 1981], realçam o facto de Ahmed estar a personalizar cada vez mais o poder. Na opinião deste escritor, Ahmed mostrou que aspirava, a todo custo, tornar-se o “grande homem” do País – se necessário, saindo do quadro da legalidade. Negociações políticas O Governo reverteu o progresso feito no domínio da liberalização do espaço político. A intimidação e o encarceramento em massa dos opositores regressaram, prova de um retorno aos antigos métodos autoritários. O regime de Ahmed falha no cumprimento das suas promessas e a sua legitimidade está a desmoronar-se rapidamen-
e a proclamar a independência. Vários dos grandes grupos da oposição, incluindo a maior coligação de partidos oromos (grupo étnico da Etiópia), disseram igualmente que planeiam seguir o próprio caminho após 30 de Setembro. Recusam-se a reconhecer um governo ilegítimo. A solução passa, portanto, mais por negociações políticas do que por uma “interpretação” da Constituição. Independentemente das contorções a que sejam submetidas para interpretá-las num sentido favorável, nenhuma das cláusulas da Constituição prevê a extensão do mandato do primeiro-ministro cessante para lá de 30 de Setembro [o que acaba de ser feito, já que o seu mandato foi prorrogado “até ao final da pandemia”]. Um acordo quanto à data das próximas eleições, bem como quanto à forma que tomaria um governo provisório, entre o mês de Setembro e as próximas eleições, só pode resultar de um diálogo entre todos os partidos políticos e os principais agentes da sociedade civil. Caso contrário, a Etiópia corre o risco de sofrer a pior crise da sua História moderna.
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NOVOS ÂNGULOS
Saltar em frente ou back to basics
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Pedro Cativelos • Director-Executivo da Media4Development
izem-nos as notícias que a economia de Moçambique contraiu 3,25% no segundo trimestre do ano, face ao mesmo período do ano passado, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE). O desempenho negativo da actividade económica é atribuído, em larga medida, ao fraco desempenho do sector dos serviços, que regrediu em 4,06%, com maior destaque para o ramo de Hotelaria e Restauração com uma variação de menos 35,84%. Já a Indústria Extractiva, caiu 25,55%. Novidade é que a Agricultura teve um variação positiva de 3,53% sendo, na prática, dos poucos ramos de actividade a demonstrar crescimento. Não é difícil de perceber porquê. Ao contrário do que se chegou a temer, o País não entrou em lockdown, o que levou a que a actividade económica que sustenta a economia nacional, porque é, ainda hoje, a agricultura que mais contribui para o total da riqueza nacional, se mantivesse nos eixos. Num mundo que se fechou em casa nos primeiros meses do ano, com a circulação de pessoas limitada, estrangulando negócios, cadeias de distribuição e indústrias, Moçambique, por características específicas da economia nacional, acaba por apresentar alguns traços diferentes da tendência mundial mesmo que, na globalidade, os sectores mais afectados sejam essencialmente os mesmos. Turismo, Transporte Aéreo e Eerviços são os grandes afectados. No entanto, com as exportações a travarem e, até pelo peso que têm no dia-a-dia económico, a produção interna ganhou um (ainda que pequeno) novo fôlego numa altura em que o ar é potencialmente perigoso, um pouco por toda a parte. Não deixo de olhar para o modo como Moçambique tem lidado com a pandemia, como a evidência de uma bem estruturada decisão, tomada de forma equilibrada e ponderada de acordo com a realidade existente no País. E como só um processo conduzido dessa forma pode, mesmo numa época de confusão global, em que muito está ainda está por descobrir, trazer benefícios. E, neste caso, até revelador de uma sugestão para reflectir sobre algo que não tenho visto suficientemente debatido. Olhando ao panorama do mundo, não deixa de parecer
ilógico como uma das mais antigas actividades humanas acabe por emergir do tal novo normal figurando a par (bem menos visível, é certo) da ascensão da tecnologia. Afinal, o tal admirável novo mundo que nos traçam desde o final de 2019 não é assim tão novo. Ou tão admirável. Porque sugere caminhos distintos para problemas idênticos. O que fazer perante os constrangimentos que têm sido colocados ao modelo de sociedade que temos vindo a construir, de forma mais ou menos alinhada, em todo o mundo, assentes na exploração de recursos naturais, na sua transformação e comercialização, baseada na massificação dos canais de informação. Agir sobre eles, consciencializando? Ou optando pela solução que passa por deixar de sair de casa para ficar o resto da nossa existência a olhar para o computador ou para o telemóvel? Se perguntarmos a um agricultor ele sabe a resposta. Muito se tem escrito nos últimos meses sobre o papel da tecnologia e de como ela se constituiu rapidamente como a única solução para um problema que ainda não sabemos, na realidade, qual é verdadeiramente. Ao mesmo tempo que se noticiam tratamentos em fase de testes, e com sucesso, ou se anuncia a iminência da invenção de vacinas, somos constantemente inundados por uma torrente de certezas absolutas sobre como é que vai ser o mundo que sempre conhecemos. E vai ser digital, dizem-nos. O que é tão ridículo e exagerado como dizer que alguém que vê mal não pode ler nunca um livro. Ou que um outro alguém que teve uma indigestão nunca mais deveria comer. Sendo mais concreto, recordo que, sempre que se registaram ataques terroristas em países europeus, especialmente atentatórios de um modelo de liberdade social construído ao longo de séculos, uma das retóricas que prevaleceram foi a da resistência positiva, em nome de um modo de vida que levou gerações a ser alcançado. E em que Liberdade, mais do que uma palavra maiúscula, era a base para nos elevar e distanciar das acções minúsculas. Com a pandemia, nada disso se passou. Há uma ameaça mas, desta vez, foi diferente e em poucos meses abdicámos, todos no mundo, de coisas que demoraram séculos a conseguir. Haverá razões para tal e, mais do que debater porque assim
Aceitar as restrições impostas pelas entidades competentes é, tão só, uma questão de bom senso e de respeito. Já acatar, sem questionar, o novo normal digital, não parece ser um bom caminho
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Do crescimento na agricultura à quebra, em dois, de um navio. A pandemia e a nova sociedade fazem-nos pensar sobre o que nos move. Ilustração de Sebastien Thibault
foi, interessa-me perceber se ainda pode voltar a ser. Passados quase nove meses do primeiro caso chinês do coronavírus, já terá passado tempo suficiente para reflectirmos sobre algumas coisas do antigo normal. Do que era bom nele e do que que não estava, de facto, bem na forma como habitávamos o planeta e nos relacionávamos. Casos como o da brutal explosão de uma carga abandonada ao longo de anos no Porto de Beirute, ou o do navio japonês que se partiu em dois, pintando com 800 toneladas de óleo negro sujo os recifes do mar da Maurícia, parecem dar força à razão de que é urgente mudar algo na forma de fazer muitas das coisas que suportaram o que foi normal para nós nas últimas largas décadas. A forma de fazer negócios, de comerciar, de cultivar, de trabalhar. E de aprender. Mas que repensemos todos esses modelos, pelas razões certas. Não por medo. Porque ainda estamos a tempo de reciclar o antigo normal, antes de o enviarmos para o lixo e nos fecharmos em casa a fingir que, com esse novo mundo, tudo o que estava errado desaparece, só porque está mais longe. E assim possamos, no conforto do isolamento social permanente, fazer compras pela Amazon, twittar sabedorias inócuas, postar poses no Instagram, ou tentar ser pais, filhos ou irmãos, professores ou companheiros, ao mesmo tempo que www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
trabalhamos, imitando imagens que nos chegam de lugares arrumados, fingindo não estar confusos entre as reais vantagens de se tentar ser profissional no espaço em que se devia procurar ser indíviduo e família. Aceitar as restrições impostas por todas as entidades competentes é, tão só, uma questão de bom senso e de respeito pela Liberdade do próximo que todos devemos ao que chamamos de sociedade democrática. E zelar para que isso aconteça à nossa volta. Já acatar serenamente todas as mudanças sociais que, em todo o mundo, estão há meses a ser promovidas pelos grandes interessados no negócio do mundo tecnológico, da inteligência artificial ao retalho online, a quem, natural e legitimamente, interessa enquanto modelo de negócio que a sociedade deixe de ser pessoal e passe a ser unicamente digital, parece-me um salto virtual para um vazio bem real. Ser Humano pressupõe existir e para isso, tem de haver coexistência. Com distanciamento, claro, e cuidados com um vírus que ainda estamos a descobrir. O crescimento da agricultura mostra-nos, afinal, que ainda há um velhinho mundo, bastante simples, no qual, se semearmos, colhemos e até comemos. Nem que seja só para conseguir digitar mais depressa. Que não seja apenas isso o ser Humano daqui para a frente.
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ócio
(neg)ócio s.m. do latim negação do ócio
66 Nesta edição visitamos o Feitoria Boutique Hotel, na Ilha de Moçambique
g
e 68 O Jacarandá e o lugar onde Moçambique se junta, no prato, com a gastronomia portuguesa
69 A escolha da adega recai na nova vaga de Bourbons
Feitoria Boutique Hotel
a um ritmo
Feitoria Boutique Hotel Preço médio 7 500 MZN
+258 849696963o info@feitoria. com.mz
e
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doce as belas histórias têm be-
las atmosferas e belos protagonistas. Levam tempo. Esta história tem pelo menos sete anos, os que foram necessários para reestruturar uma antiga ruína e torná-la num boutique hotel. Foram anos de grande trabalho. Muitos contentores de materiais vindos de Portugal, da Índia, da África do Sul. Foram dezenas os trabalhadores envolvidos, muitos dos quais estão agora a trabalhar como funcionários da Feitoria, o boutique hotel que abriu as portas há alguns meses, na Ilha de Moçambique, fruto do sonho, do amor e da capacidade de entrega de Mário Gomes e de Ângela Freitas. Acolhe hóspedes nacionais e internacionais que
chegam à Ilha em lazer, em trabalho ou para assistir a conferências. Tem 20 quartos que oferecem uma linda vista sobre o rendilhado (como o belo logo do Feitoria) das ruelas da cidade, das estrelas no céu e das águas do canal da Ilha, onde levemente cruzam os dhows. Os quartos têm nome de especiarias que os feitores comercializavam antigamente naquele lugar. Os antigos armazéns são quartos que dão para a piscina, a antiga loja e a casa do feitor são outros quartos, uma sala de conferências e a recepção do hotel. Cores suaves, típicas da Ilha – branco, amarelo, cor-de-rosa e azul claro –, são iluminadas à noite pela luz ténue de candeeiros de latão vazado, acompanhando o ritmo doce das ondas do mar. Quando Ângela e Mário decidiram reestruturar a
antiga ruína não ficaram assustados com o grande trabalho que iriam ter. Procuraram manter a traça arquitectónica, usando as técnicas de construção e os materiais de há quatro séculos, quando esta feitoria foi construída, em 1780. Ao lado da pura (e árdua!) necessidade de reabilitação, a motivação era de natureza prática e ambiental: poupança energética com painéis solares, gerador, estação de tratamento da água (a água e a energia são as grandes dores de cabeça na Ilha) e materiais de primeira classe para enfrentar a corrosividade do sal e do mar. O hotel conta com um sistema fiável e eficiente, instalado num edifício em frente – a casa técnica –, com baixo impacto ambiental e com toda a vantagem para os hóspedes e para o ecossistema frágil da Ilha. texto Paola Rolletta fotografia Mauro Pinto
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Os quartos têm nome de especiarias que os feitores comercializavam antigamente naquele lugar ROTEIRO Como ir
A LAM voa de Maputo para Nampula e/ou Nacala (a partir de 16 000 MZN ida e volta). Em Nampula e/ou Nacala, aluga-se um carro e segue-se para a Ilha por estrada, cerca de 180 km de Nampula e 120 Km de Nacala (aluguer de carro custa cerca de 4 500 MZN. Um dos taxistas mais conhecidos é Fatahe). O que fazer
Roteiro de dhow até às ilhas de Goa, Sete Paus, Cobra e às praias da Carrusca e Cabaceira Pequena. Pode-se ainda fazer snorkeling e ver as baleias. Onde comer
O restaurante Karibu, no bairro do Museu, serve óptimo peixe, atum fresco com gengibre, deliciosas saladas de polvo. Tudo pelas mãos da cozinheira D. Maria Amélia que prepara uma óptima matapa de siri siri e um guloso pudim de abóbora. Preço médio por refeição é de 700 MZN. www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
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Todos reconhecemos, sem dificuldade, os elementos de base que constituem a essência de um bom restaurante. O menu do “Jacarandá” reflecte uma tradição culinária
todos reconhecemos, sem dificuldade, os elementos de base que constituem a essência de um bom restaurante: a qualidade da matéria-prima, isto é, a excelência dos produtos que são o fundamento da oferta gastronómica. Mas sem o saber, ou melhor, sem a arte capaz de os transformar numa iguaria cujo desfrute os torna memoráveis, é óbvio que só a qualidade não basta. Existem certamente outras componentes, ainda que num plano subsidiário, que ajudam a fazer a diferença: um serviço competente e atencioso e uma atmosfera acolhedora. É a combinação de tudo isto que distingue os bons restaurantes e transforma a degustação num ritual que convida à constante repetição da experiência. Mas se esta constelação de factores são os traços distintivos de todos os bons restaurantes, o que verdadeiramente traça uma linha divisória entre estes e aqueles que se encontram num patamar superior de excelência é o “suplemento de alma” que neles encontramos. Ou seja, é a
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Jacarandá
Preço médio 1 000 MZN Av. Armando Tivane nº 65 Maputo +258 82 323 5180
g Jacarandá, onde a comida percepção de que a qualidade da experiência vivida (em todas as suas dimensões) resulta de um investimento afectivo incondicional e reflecte, mais do que um “saber fazer”, uma entrega que faz do “acto culinário” um elemento existencial constitutivo da própria vida e não, tão só, uma “prática” meramente “profissional”. E é isto que encontramos no “Jacarandá”. Mas de onde vem este “suplemento de alma”? Porventura do facto de este ser, assumidamente, um projecto familiar e, enquanto tal, tecido pelas memórias profundas do que, para as três mulheres que são os pilares desta aventura (Florinda, Carla e Sandra Costa), marcaram a sua história “culinária”, e os gostos e os sabores que
alimentaram o seu percurso. É, sem dúvida, por isso que Carla Costa gosta de definir a oferta do “Jacarandá” como “aquilo que gostávamos de comer em casa: o medalhão com natas e cogumelos, o strognoff, o arroz de pato, o bacalhau com natas ou à braz....”. E, nesse sentido, o “Jacarandá” é, essencialmente, ‘comida de casa’. “Nós queremos que as pessoas que aqui vêm comer se sintam como se estivessem em sua casa ou na dos pais ou dos avós...”. O menu do “Jacarandá” reflecte, em larga medida, a tradição culinária portuguesa. Apesar de Carla e Sandra terem nascido na Zambézia, as suas raízes (e a longa estadia que tiveram em Portugal antes de regressar ao País), levaram-nas, compreensivelmente, a de-
tem alma senhar uma ementa mais “portuguesa”, mesmo que dela constem pratos como o arroz de garoupa à zambeziana, ou o caril de camarão. E ainda bem, pois a qualidade da oferta é insuperável. Experimentem, por exemplo, o pernil de porco com castanhas portuguesas, acompanhado de grelos salteados e batata frita, o arroz de garoupa e camarão, o arroz de pato ou o medalhão com natas e cogumelos e verão que esta é, genuinamente, a “comida da casa” que qualquer um desejaria poder desfrutar. texto rui Trindade fotografia Jay Garrido
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A história do bourbon quase se confunde com a própria história dos estados Unidos
Maker’s Mark
País EUA Região Kentucky Aroma Frutas vermelhas, calda de caramelo e baunilha Sabor Xarope de maple, caramelo, especiarias, baunilha, frutas vermelhas Teor Alcoólico 45%
Wild Turkey Rare Breed
Bourbon Woodford Reserve Distiller’s Select País
EUA Região
Kentucky Aroma
Laranja e caramelo. Ao contrário de outros bourbons, o aroma de baunilha é muito subtil, ainda que presente SABOr
País EUA Região Kentucky Aroma Baunilha, caramelo, laranja e notas florais Sabor Chocolate, baunilha, especiarias e notas de madeirao Teor Alcoólico 56,4%
FEW Bourbon
País EUA Região Illinois Aroma Caramelo, malte, especiarias, canela. Sabor Caramelo, pimenta do reino, cravo e canela; final longo e floral Teor Alcoólico 46,5% www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
Levemente picante, com bastante caramelo e açúcar mascavo. Baunilha e laranja subtis Teor alcoólico
43,2%
a nova vaga
dos whiskies americanos
o bourbon é considerado por muitos a bebida nacional dos EUA. Na verdade, a sua história quase se confunde com a do País, pois o início do seu fabrico está ligado à chegada, em finais do século XVIII, de imigrantes alemães, escoceses e do norte da Irlanda que trouxeram consigo não apenas a tradição do consumo do whisky mas também os conhecimentos de destilação que estão na sua base. Porém, enquanto os whiskies do Velho Continente são essencialmente feitos com centeio, os norte-americanos são feitos a partir do milho. Um bourbon, para se poder assim chamar, tem de ter no mínimo 51% de milho. Existem muitas marcas que são bem conhecidas dos apreciadores (Jim Beam, o Wild Turkey, o Elijah Craig, etc.), mas um facto interessante, em anos recentes, tem sido o destaque dado a bourbons com características particulares e distintivas. Um facto que atesta bem como os factores de diferenciação pesam cada vez mais no mercado. Um exemplo notório é o Maker’s Mark. Promovido como o “único bourbon artesanal do mundo”, é feito de trigo doce e vermelho, milho e cevada. O Maker’s Mark é, certamente, um pioneiro mas a verdade é que a tendência para a produção artesanal, enquanto garante de “autenticidade”, vem ganhando força e seria de admirar se, também no que diz respeito aos bourbons, ela não se verificasse. Daí que não possamos deixar de mencionar o Few, um bourbon relativamente seco e apimentado feito de 70% de milho, 20% de centeio e 10% de cevada. A nossa sugestão principal deste mês vai, no entanto, para o Woodford Reserve Distiller’s Select que tem sido incluído, de forma consistente, no lote dos melhores bourbons actualmente disponíveis no mercado. Feito de forma 100% artesanal, é produzido por uma das mais antigas destilarias dos Estados Unidos. Um dos aspectos que lhe confere uma personalidade muito particular é o facto de ser composto de 72% de milho, 18% de centeio e 10% de malte de cevada, com uma fermentação mais demorada. As barricas virgens de carvalho onde matura são produzidas na Brown Forman Cooperage, também responsável por fabricar as usadas pela Jack Daniel’s. Isso permite que a destilaria escolha apenas as melhores barricas para maturar o seu bourbon por sete anos, quase três anos a mais do que a sua maioria .
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Resgate
Já em exibição no Netflix
“RESGATE”. UM FILME MOÇAMBICANO “resgate” é um filme moçambicano, que já se estende para o mundo, cumprindo um objectivo preconizado pela produtora moçambicana “Mahla Filmes”. Para surpresa de todos, incluino os autores, o filme moçambicano tornou-se no primeiro dos PALOP com os direitos adquiridos pela gigante mundial do streaming, a Netflix. Mas este voo não é, de todo, obra do acaso. Afinal, durante vários anos, desde 2011, intercalados pela realização de vídeos, documentários e eventos, os resultados da produção iam deixando clara a possibilidade de realizar um dia o sonho de ir mais longe, uma ambição tomada a sério pelos produtores. De acordo com o cinematografista e realizador de “Resgate”, Pipas Forjaz, “houve vários desafios para levar o filme à Netflix no que diz respeito à adaptação da própria história, às técnicas de filmagem. Filmar um documen-
QUE ABRE UM NOVO MERCADO PARA OS PALOP tário não é o mesmo que filmar uma ficção, neste caso, as exigências de ficção são muito maiores”, diz. Apesar das carências do País e da particular falta de apoios ao cinema nacional, a produção moçambicana pode ser vista em mais de 190 países do mundo, entre os “10 Mais” da Netflix, particularmente nos ecrãs dos países falantes da língua portuguesa. “Esta nossa entrada na Netflix acarreta muita responsabilidade de encarar outros estilos e de fazer superar o que agora conseguimos com ‘Resgate’, melhorar a qualidade...”, complementa Mickey Fonseca, o realizador do filme. Mas como pega a Netflix num filme moçambicano, pensamos todos? “Creio que a ideia de eles começarem com ‘Resgate’, um produto novo no mercado, é para avaliarem o mercado PALOP e depois começarem a incluir outros filmes falados
“Resgate” é a realização de um sonho “o de produzir um filme independente, que conta ‘histórias’ locais www.economiaemercado.co.mz | Agosto 2020
em português”. O filme, que estreou a 29 de Julho passado sob o título “Redemption”, conta as vicissitudes do quotidiano moçambicano através de um personagem que faz de tudo para ter uma vida melhor que aquela que parece ter-lhe sido negada pelo destino. “Um dos segredos do ‘Resgate’ é o facto de não só se passar aqui dentro da cidade de Maputo, mas também de abordar esses vários pontos: o problema da banca, do acesso ao emprego, do crime… e por detrás de tudo isso há outras mensagens”, contou Mickey Fonseca. O “Resgate” é igualmente a realização de um sonho “o de produzir um filme independente, que conta ‘histórias’ locais, interpretada por actores moçambicanos, produzido por moçambicanos”, assinalou. Como que a resgatar os poucos incentivos que existem à indústria cinematográfica de Moçambique, o apelo surge natural, para que “as entidades competentes se alinhem junto do sector privado” e apoiem a sétima arte.
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CADILLAC LYRIQ
Marca: Cadillac Modelo: Lyriq Bateria: 100 kWh Velocidade: 500 km autónomos Preço estimado: 75 a 90 mil dólares
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CADILLAC LYRIQ a primeira aposta da Ge-
neral Motors (GM) para o segmento dos eléctricos é um luxuoso SUV, o Cadillac Lyriq, totalmente construído numa plataforma eléctrica modular e alimentado pelas novas baterias de longo alcance Ultium criadas na própria fabricante. Embora um pouco atrasado no rol de lançamentos de modelos eléctricos de luxo, o crossover da GM foi projectado para competir no mesmo patamar de modelos como o Tesla Model Y, o Ford Mustang Mach-E, o Volvo XC40 Recharge, o Audi Q4 E-Tron e o BMW iNext. O concept apresentado este mês representa já cerca de 80% a 85% do que vai ser a versão final para o mercado e, segundo o presidente da General Motors, Steve Carlisle, que falava na apresentação deste Cadillac, com o modelo Lyriq, dará início
O PRIMEIRO ELÉCTRICO DA GM a uma “redefinição do luxo americano”. Com cerca de 4,80 metros de comprimento, o interior espaçoso, que proporciona um ambiente mais arejado, tem apenas quatro assentos e uma consola central que divide os bancos dianteiros e traseiros, com um ecrã sensível ao toque para os passageiros de trás. Entretanto, os bancos dianteiros, dão acesso a um painel dinâmico com um ecrã OLED curvo de 33 polegadas, também sensível ao toque. Espera-se que o Apple CarPlay, Android Auto e um hotspot Wi-Fi sejam recursos padrão quando o Lyriq chegar aos showrooms da Cadillac. O Lyric será o primeiro Cadillac que terá como base a plataforma modular eléc-
A primeira aposta da GM no segmento dos eléctricos é um luxuoso SUV
trica do grupo GM, sendo que os clientes poderão optar por versões de tracção traseira ou integral. A tracção integral será opcional e adiciona um segundo motor na frente para conduzir essas rodas. O Lyriq será o primeiro de muitos modelos eléctricos da fabricante automóvel, destinados a transformar a mítica marca norte-americana, que sempre foi conhecida pelos elevados consumos que os seus carros ostentavam. Eram quase um símbolo do poder americano sobre os recursos naturais. Não deixa de ser interessante que seja este Lyriq a quebrar o lirismo, sendo o primeiro passo de uma estratégia que, até ao final desta década, tornará a GM numa marca totalmente eléctrica, aumentando a produção para, segundo anuncia, um milhão de veículos eléctricos por ano até 2025.
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