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Serie Il, n. 0 4/5 (2007)
Direito Universidade Lusiada • Lisboa
Universidade Lusfada Editora Lisboa • 2007
Mediateca da Universidade Lusiada- Cataloga~ao na Publica~ao
LUSfADA. Direito. Lisboa, 2003 Lusiada. Direito I propr. Funda~ao Minerva - Cultura - Ensino e lnvestigac;:ao Cientifica ; dir. Jose Duarte Nogueira. - S. 2, n. 1 (2003)· . - Lisboa : Universidade Lusiada, 2003. - 24 cm. Anual Continuac;:ao de: Lusiada: revista de ciencia e cultura. Serie de direito ISSN 0872-2498 1. Direito - Peri6dicos
CBC CDU ECLAS
K12.U7 340(05) 04.01.00
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Ficha Tecnica Titulo Proprietario
Lusiada. Direito Fundac;:ao Mmerva - Cultura- Ensino
Serie
11
N. o
4-5
e lnvestigac;:ao Cientifica
Director Jose Artur Anes Duarte Nogueira Subdirector Jose Alberta Rodriguez Lorenzo Gonzalez Dep6sito Legal
162249101
ISSN
0872-2498
Local Ano
Lisboa 2007
Periodicidade Anual Editora
Distribuidora
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SUMARIO
I- DOUTRINA ยง1 - COLOQVIOS E CONFERENCIAS
A -
Justifica~ao
e limite da utiliza~ao de meios penais na luta contra a criminalidade organizada, nos tempos da globaliza~ao (21 de Outubro de 2004)
De que Direito Penal precisamos n6s europeus? Urn olhar sobre algumas propostas recentes de constitui<;ao de urn Direito Penal comunitario
Augusto Silva Dias ... ... .. .. .. ... .... ..... .. ... ............. ....... .. ... .. .. .. .... ... .. .. .. ... .... .. ...
13
Prueba prohibida y valoraci6n de las grabaciones audiovisuales en el proceso penal
Francisco Muiioz Conde ..... ... ........ ... .. .... ... .. ... .. ....... .. ......... ...... ... .... .. .. ... .. .. .
29
0 inimigo em Direito Penal
Jose Climaco de Sousa Brito ............................... ................................. .......
77
El crimen organizado. En el marco de la corrupci6n publica y privada
Juan Carlos Ferre Olive ............ ...................................................... ............
87
La intervencion penal contra la violencia de genero
Luis Arroyo Zapatero .................................................................................
103
Delincuencia organizada y organizaciones. Problemas de autoria y participaci6n
Miguel Dfaz y Garda Conlledo .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. ... .. .. .. .. .. ... .
119
Visao critica do sistema penal nos crimes econ6micos no Brasil
Ricardo Breier ............................... .......... ... .. ........ .... ...... ............ ................. .
145
Sistema democratico y concepciones del bien juridico
Tonuis Vives Ant6n ......................................................... .............................
157
Limites da interven<;ao penal em tempos de terrorismo
Winfried Hassemer ......... ...................................................... .......... ............ .
189
Sumat1o
B -
Media~ao
e Justi~a (15 de Dezembro de 2006)
A caminho da abertura
Jaime Cardona Ferreira .......................................................................... .. .. .
203
Justi<;;a e media<;ao
Albertina Pereira
209
Valores, direito e media<;ao
Ant6nio Jose Moreira ........................................ ..........................................
217
A experiencia da media<;ao em Fran<;a
Beatrice Blohern-Brenneur ..........................................................................
227
A media<;ao e a concilia<;ao. Na Belgica: em evolu<;ao, mas lenta
Henri Funch .................................................................................................
235
Meios alternativos de resolu<;ao de conflitos: a experiencia italiana
Maria Giuliana Civinini .... ..... ....... .. ... .. .. .. .. ........ .. .. ... .. .... ..... ......... ....... ......
245
Media<;ao penal
Maria Joao Machado ............................. .. ................................. ...................
253
Media<;ao familiar - perspectiva de futuro
Maria Saldanha Pinto Ribeiro .................................... .. .............................
259
Media<;ao nos tribunais da Escandinavia
Oyvind Smukkestad ....................................... .. .. .............. ................... .. ......
267
Media<;ao nos julgados de paz portugueses
Paulo Brito ............................................................... ....................................
273
A caminho do encerramento
Jaime Cardona Ferreira ...............................................................................
281
ยง2 - OUTROS ARTIGOS
Comercio electr6nico. Uma visao abrangente
Fernando Duarte Naves ..............................................................................
289
Mfdia, Poder e Constitui<;ao
Fernando Luiz Ximenes Rocha ........................................................ ...........
327
Sumaxio
Subsidios para o estudo do direito processual recurs6rio na area judicial corn especial enfase no processo civil
Jailne Cardona Ferreira ...............................................................................
343
A lei n. 0 52-A/2005 e os direitos dos titulares dos "orgaos de governo proprio" da Regiao Aut6noma da Madeira
Jorge de Bacelar Gouveia ............................................................................
3 61
Direito europeu e identidade europeia
Jose Duarte Nogueira ..................................................................................
385
Arrendamento habitacional na perspectiva da sua dura<;:ao
Pedro Pitta e Cunha Nunes de Carvalho ... ......... ..... .. ....... .... ......... .. .. ......
421
Republica de Raz6es
Ricardo Leite Pinto ......................................................................................
435
Crimes de pessoas colectivas? A prop6sito da lei austriaca sobre a responsabilidade dos agrupamentos pela pratica de crimes
Ricardo Robles Planas .................................................................................
457
ยง3 - ORA<;OES DE SAPIENCIA
La relaci6n entre dogmatica juridicopenal y politica criminal, en el contexto politico aleman tras la segunda guerra mundial. Hist6ria de una relaci6n atormentada
Francisco Muiioz Conde ...... ... ...... ..... .. .. .. ... .. ..... .. .. ..... .. ..... .. .. .. .. ... .. .... .. ..... ..
48 7
Direito Penal, Defesa Penal e Constitui<;:ao
Winfried Hasse1ner.. ... .. .. .. .. ... .. .. .. .. ... .. .. ... .. .. ... .. .. ... .. .. .. ... .. .. ... .. .. .. .. .. .. .. ... .. .. ..
517
11 - TRABALHOS ACADEMICOS 0 regime legal da ac<;:ao de anula<;ao da decisao arbitral
Jose Carlos Garcia dos Santos ...................................................................
529
A jurisprudencia do Tribunal de Justi<;a das Comunidades relativa ao efeito directo da directiva comunitaria
Teresa Leal Coelho .......................................................................................
549
Sumario
III- VIDA INTERNA A - DOUTORAMENTOS E MESTRADOS ................................................
603
B - DOUTORAMENTOS HONORIS CAUSA ..........................................
607
I - (21 de Outubro de 2004) Francisco Mufioz Conde .............................
607
II - (21 de Outubro de 2004) Winfried Hassemer ...................................
607
Elogio do Doutor Winfried Hassemer
Jose Lan1ego ..................................................................................................
607
HI - (6 de Julho de 2005) Cardeal Dom Jose Saraiva Martins ............
610
C - CONFERENCIAS E COLOQUIOS
611
D - LICENCIADOS EM DIREITO Alunos licenciados no ano de 2005/2006 .....................................................
613
I- DOUTRINA ยง1 - COLOQUIOS E CONFERENCIAS
A)
JUSTIFICA<;;:AO E LIMITE DA UTILIZA<;;:AO DE MEIOS PENAIS NA LUTA CONTRA A CRIMINALIDADE ORGANIZADA, NOS TEMPOS DA GLOBALIZA<;;:AO (21 DE OUTUBRO DE 2004)
DE QUE DIREITO PENAL PRECISAMOS NOS EUROPEUS? UM OLHAR SOBRE ALGUMAS PROPOSTAS RECENTES DE CONSTITUic;AO DE UM DIREITO PENAL COMUNITARIO
Augusto Silva Dias
DE QUE DIREITO PENAL PRECISAMOS NOS EUROPEUS? UM OLHAR SOBRE ALGUMAS PROPOSTAS RECENTES DE CONSTITUIC::AO DE UM DIREITO PENAL COMUNIT ARIO* Augusto Silva Dias 1
SUMARIO: 0 presente estudo parte da constata<,;ao de que as instancias comunitarias europeias criam normas penais avulsas destituidas de qualquer enquadramento politico-constitucional e nele se defende a necessidade de urn tal enquadramento como modo de suprir o defice de validade ou legitimidade de que padecem. Nesta perspectiva, aprecia-se criticamente o modelo politico-criminal proposto por alguns projectos de legisla<,;ao penal comunitaria e pelo Projecto de Tratado Constitucional Europeu e exp6em-se as suas insuficiencias. Palavras-chave: Direto Penal comunitario - Corpus Juris - Eurodelictos - Projecto de Tratado Constitucional Europeu Projecto alternativo de justi<,;a penal europeia.
1. 0 titulo que escolhi para esta conferencia sugere que n6s europeus precisamos de urn Direito Penal comunitc'irio. Nao me refiro a urn Direito Penal harmonizado, construido por meio de conven<;oes, directivas ou decisoesquadro, como actualmente sucede, mas a uma realidade normativa distinta embora nao incompativel: a urn Direito Penal unificado, criado por certas institui<;oes comunitarias e aplicado, pelo menos em parte, por instancias judiciarias europeias. Esta posi<;ao esta longe de ser pacifica, como comprova a discussao que hoje em dia em torno dela se trava, mas, em meu entender, faz cada vez mais sentido por tres ordens de razoes. Por urn lado, e uma constata<;ao hist6rica que os processos de unifica<;ao politica se fazem acompanhar do surgimento e do refor<;o do poder punitivo. 路 Este estudo corresponde, corn ligeiras modifica<;6es, a conferencia proferida no dia 21 de Outubro de 2004, no col6quio internacional organizado pela Universidade Lusfada de Lisboa, par ocasiao do doutoramento <<honoris causa>>, naquela Universidade, dos Professores Doutores Winfried Hassemer e Francisco Muf\oz Conde. Foi posteriormente publicado na Revista Portuguesa de Ciencia Criminal, ano 14 (2004) n. 0 3, ps. 305 e ss. e em FARIA CoSTA/MARQUES DA SILVA (coords.), Direito Penal especial, processo penal e direitos fundamentais: visao luso-brasileira, ed. Quartier Latin, S. Paulo, 2006, p. 335 e ss. 1 Professor Auxiliar da Faculdade de Direito de Lisboa. Professor da Universidade Lusfada de Lisboa
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Essa estreita liga<;ao pode ser comprovada ao longo da constru<;ao do poder politico do Estado-na<;ao e, nao querendo nem devendo fazer extrapola<;6es apressadas ou analogias infundadas, creio poder afirmar que se verifica pelo menos uma tendencia similar na edifica<;ao do poder politico supranacional. Essa tendencia e documentada, no que diz respeito a constru<;ao de urn Direito Penal europeu, pela interven<;ao cada vez maiar das institui<;6es comunitarias em materia penal, respaldada numa pressao crescente do Direito Comunitario sobre a cria<;ao e aplica<;ao dos Direitos Penais nacionais 2 , e pelo aparecimento de projectos que, embora sectoriais, contem autentico Direito Penal comunitario. Para usar uma imagem de HASSEMER, o comboio europeu ja partiu3 e transporta numa das suas carruagens urn arsenal de solu<;6es e medidas penais cuja utiliza<;ao acompanhara pari passu o processo de unifica<;ao politica. Por outro lado, a institui<;ao de urn espa<;o econ6mico, social e politico comum, corn a elimina<;ao de fronteiras internas, o reconhecimento da livre circula<;ao de pessoas e bens e a cria<;ao de instancias comunitarias, conduz a emergencia de bens juridicos supranacionais e a pratica de ac<;6es deles lesivas, ou, se se preferir, ao surgimento de urn ilicito supranacional, transfronteiri<;o 4, cuja preven<;ao e repressao nao sao asseguradas de modo eficaz apenas e s6 pelo Direito sancionat6rio e em especial pelo Direito Penal dos Estados nacionais, nem muitas vezes par medidas de harmoniza<;ao comunitaria que, remetendo a escolha da especie e dos limites das penas para os Estados-membros, acabam por favorecer a existencia de praticas sancionat6rias diferenciadas ou desiguais 5 . Tal consequencia e indesejavel parque compromete a integra<;ao juridica 6 num dominio em que esta em causa precisamente a protec<;ao de bens juridicos supranacionais. Par ultimo, o desenvolvimento que ja adquiriu a coopera<;ao judiciaria e policial em materia penal atraves de conven<;6es, directivas e decis6es-quadro, que vem promovendo a harmoniza<;ao legislativa e processual entre os Estados-membros, torna necessaria a defini<;ao de uma politica criminal comum e a forma<;ao de urn quadro penal substantivo de referenda. Par urn lado, sem uma politica criminal consistente e fundada as iniciativas comunitarias, sejam 2 Sobre a evolu~ao de urn Direito Penal de climensao europeia e a erosao progressiva do caracter meramente estaclual dos sistemas penais do velho continente v. ALESSANDRO BERNARm, L'europeizznzione del Diritto e della scienza penale, in Quaderni Fiorentini, 31, t. II (2002), p. 467 e ss. 3 v. Strafrecht in einem europaischen Verfnssungsvertrag, in ZStW, Bel. 116' (2004) n. 0 2, p. 304 e s. 4 Neste sentido v. MAmo MONTE, Da autonomia constitucional do Direito Penal nacional ii necessidade de um Direito Pmal europeu, in CANDIDO DE OLNEIRA (org.), Estuclos em comemora~ao do decimo aniversario cla licenciatura em Direito na Universiclade do Minho, eel. Almedina, Coimbra, 2004, p. 713. 5 Deste modo, ALESSANDRO BERNARDI, L'europeizzazione, p. 505 e s. 6 Isto mesmo e reconheciclo por TIEDEMANN no estudo de apresenta~ao do Projecto dos <<eurodelitos>>, de que falarei adiante -v. Introducci6n, p. 18.; no mesmo sentido, v. a exposi~ao de motivos cla versao originaria do <<Corpus Juris>>, em DELMAS-MARTY (clir.), Corpus juris, eel. Economica, Paris, 1997, p. 13 e ss., em especial, p. 41.
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harmonizadoras ou unificadoras, adquirem urn caracter desgarrado e avulso, como hoje, em boa medida, acontece. Por outro lado, se se aceita, como julgo que deve aceitar-se, que o Direito Penal substantive, independentemente do conteudo e da extensao que lhe couber, constitui o objecto de referencia do processo penaF, tera de concluir-se que nao faz sentido criar regras, entidades e competencias processuais penais europeias sem urn Direito Penal europeu e sem uma polftica criminal europeia que lhe sirva de suporte. As realidades e tendencias jurfdico-pollticas que acabo de referir colocam na ordem do dia o problema da constrw;ao de urn Direito Penal europeu. De nada serve nega-lo persistindo arreigado a urn nacionalismo penal que se apoia na ideia de que o Direito Penal faz parte da identidade de uma na~ao e da sua cultura, de sorte que a soberania penal e perten~a exclusiva do patrim6nio polltico de comunidades nacionais 8 . Essa posi~ao e criticavel por uma dupla ordem de raz6es. A uma, louva-se no pressuposto nao demonstrado de que o poder punitivo esta ontologicamente vinculado ao conceito de na~ao, por isso que enquanto nao existir uma na~ao ou povo europeus nao e legftimo pensar em Constitui~ao e em Direito Penal comunitarios. Alem de incorrer numa especie de falacia historicista (uma variante da famosa falacia naturalista) ao pretender extrair sem mais do ser hist6rico urn dever-ser futuro, esta tese esquece que a nossa identidade de europeus nao tern - e talvez nunca venha a ter - por base uma consciencia nacional. Trata-se de uma identidade p6s-nacional que se vai forjando em torno de prindpios universais de urn patriotismo constitucional ou, se se preferir, de uma cultura polftica multissecular partilhada em comum9 â&#x20AC;˘ A outra, aquela posi<;:ao desconsidera totalmente o dado, sublinhado por varios crimin6logos e penalistas, de que uma criminalidade globalizada, transfronteiri~a, nao pode ser adequada e eficazmente combatida ao nfvel local. E hoje convic<;:ao generalizada de que combater o illcito global corn solu~6es locais e uma estrategia votada ao insucesso 10 â&#x20AC;˘
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Neste sentido, v. HEFENDEHL, Zur Frage der Legitimitiit europarechtlicher Stmftatbestiinde, in ScHDNEMANN (Hrsg.), Alternativentwurf Europalsche Strafverfolgung, ed. Car! Heymanns, 2004, p. 100. 8 Sobre o nacionalismo penal e as posi~6es em que se sustenta v. MAmo MoNTE, Da autonomia constitucional, p. 693. 9 Sobre o tema v. HABERMAS, Der gespaltene Westen (kleine politische Schriften, X), ed. Suhrkamp, 2004, p. 78 e ss.; JusTINE LACROIX, Patriotisme constitutionnel et identite postnationale chez Jiirgen Habermas, in RAINER RocHLITZ (coord.), Habermas: L'usage public de la raison, ed. PUF, 2002, p. 133 e ss.; JEAN-MARC FERRY, La question de l'Etat europeen, ed. Gallimard, 200, p. 166 e ss.; relaciona internamente a edifica~ao de urn Direito Penal supranacional corn urn estatuto de cidadania supranacional, parlamentarmente representada e constitucionalmente garantida, SnvA SANCI-IEZ, Los principios inspiradores de las propuestas de um Derecho Penal europeo: una aproximaci6n critica, in Revista Penal, n. 0 13 (2004), p. 148. 10 Neste sentido, v. por todos ZIESCHANG, Chancen und Risiken der Europai'sienmg des Strafrechts, in ZStW 113 (2001), p. 262 e s., considerando este o argumento principal em abono da europaiza~ao do Direito Penal.
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Nao pretendo corn esta crftica alinhar corn o vanguardismo penal que e celebrado em certos drculos academicos e pollticos europeus e que preconiza a cria<;ao de urn Direito Penal supranacional a todo o pano. A discussao dos fundamentos e limites de urn Direito Penal comunit<irio, do modelo pollticocriminal em que assenta alicerces e a sua explicita<;ao nos textos fundamentais da Uniao sao assuntos de somenos importancia, sem relevancia bastante para deter ou atrasar a marcha veloz e inexon1vel do comboio europeu. Nao importa em que direc<;ao vai o trem desde que avance sem cessar. Coma se compreendeni melhor ao longo da exposi<;ao nao me filio num tal ideario. Perante as realidades e tendencias juridico-pollticas que acalentam a forma<;ao de urn Direito Penal supranacionat mais sensata e correcta se me afigura a posi<;ao que procura discutir as condi<;6es de legitimidade e o modelo polltico-criminal de urn futuro Direito Penal comunitario. As questoes que nesta perspectiva se devem colocar sao: que Direito Penal e esse que transparece de projectos recentes que tern sido objecto de debate nos are6pagos pollticos e academicos do velho continente? Que modelo polltico-criminal lhes subjaz? Em que direc<;ao apontam? E esse modelo valido a luz de prindpios da tradi<;ao europeia, isto e, de prindpios que integram a constitui<;ao polltica e juridica profunda da Europa moderna? 11 Esta tradi<;ao, herdada do iluminismo, forma o paradigma polltico-juridico a sombra do qual forjamos a nossa identidade p6s-nacional de europeus e se edificaram os ordenamentos pollticos e juridicos dos Estados da Europa, e que, longe de se encontrar esgotado ou plenamente realizado no espa<;o europeu, possui ainda vigor programatico quer no plana nacionat quer no plana supranacional. Nao surpreendera por isso se disser que urn Direito Penal comunitario construido a revelia deste paradigma pratico padecera de urn defice de legitimidade e sera estranho as nossas convic<;6es basicas de europeus. Em consequencia, o poder punitivo que corn base nele for exercido tera de contar corn niveis baixos de aceita<;ao e corn niveis elevados de ineficacia. 2. A presente conferencia pretende ser, nesta ordem de ideias, uma reflexao sabre esse paradigma ou quadro de validade de urn Direito Penal Europeu, elegendo coma metodo a analise critica de algumas propostas de cria<;ao de urn Direito Penal europeu, sem ignorar naturalmente a profusa discussao que penalistas de varios paises tern mantido sabre as mesmas e que representa sem duvida urn louvavel avan<;o no sentido da consolida<;ao de uma ciencia penal europeia.
11 A expressao e tirada a JEAN-MARC FERRY, La question de l'Etat europeen, ed. Gallimard, 2000, p. 106 e ss. Referencias a este patrim6nio normativo herdado do iluminismo ea sua relevancia, na doutrina penal, podem encontrar-se em HASSEMER, Strafrecht in einem europaischen Verfassungsvertrag, ps. 308 e 317; ScuONEMANN, Mindestnormen oder sektora/es Europastraji"eclzt?, in Alternativentwurf, p. 78 e s.
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As propostas a que me refiro sao, em primeiro lugar, o Projecto de Tratado que estabelece uma Constitui<;ao Europeia (doravante PCE) que encerra urn modelo de politica criminal, em minha opiniao nao recomendavel, expresso em diversas disposi<;6es que apontam para a cria<;ao, ao nivel do 1. pilar, mais precisamente pelo Parlamento e o Conselho de Ministros, em processo de co-decisao, de varias especies de crimes e, coma e normal, de regras de parte geral que disciplinam a sua aplica<;ao, e de preceitos de processo penal que lhes sao complementares. Em segundo luga1~ o «Corpus Juris de disposi<;6es penais para a protec<;ao dos interesses financeiros da UE» que e urn projecto oficial da Comissao Europeia e do Parlamento Europeu, elaborado por urn grupo de penalistas de varios paises, cuja versao originaria e de 1997, existindo no entanto uma segunda versao de 2000, tambem chamada versao de Floren<;a 12, a qual, culminando urn periodo de debates por quase toda a Europa, introduziu algumas novidades pontuais. Outra proposta importante para a discussao actual e o Projecto dos «eurodelitos», urn projecto particular apresentado em 2002 por urn grupo de penalistas alemaes, italianos, espanh6is e franceses 13, mais abrangente do que o anterior e pretendendo ser o embriao de urn futuro C6digo Penal europeu. 0 ultimo documento que tomarei coma base das minhas reflex6es e o autodenominado <<Projecto alternativo de justi<;a penal europeia», da iniciativa de urn grupo maioritariamente constituido por penalistas de lingua alema, de que destaco LDDERSSEN, LAMPE e SnrDNEMANN, cujo programa foi recentemente debatido 14 e publicado 15, e que apresenta urn modela politico-criminal alternativo aos constantes do PCE e do «Corpus Juris>>. Infelizmente nenhum destes documentos esta traduzido em lingua portuguesa ou foi debatido entre n6s corn profundidade, nem sera possivel no quadro da presente conferencia dar a conhecer integralmente o conteudo das 0
I
12 0 texto foi publicado primeiro em versoes francesa e inglesa- v. DELMAS-MARTY /JOHN VERVAELE (orgs.), La mise en oeuvre du Corpus Juris dans les I'.tats membres: dispositions pennies pour In protection des finances de /'Europe, vol.I, ed. Intersentia, 2000. Surgiram mais recentemente tradu~oes italiana e castelhana. Esta ultima, que consultei, e da responsabilidade de BACIGALUPo/SrLVA CASTANO, e foi editada pela Dykinson em 2004. Esta edi~ao inclui tambem o «Livro verde sobre a protec~ao penal dos interesses financeiros comunit<irios ea cria~ao do Minist<§rio Publico Europew>, urn documento da Comissao Europeia. 13 v. TrEDEMANN (Hrsg.), Wirtschaftsstrafrecht in der Europaischen Union, ed. Car! Heymanns, Koln, 2002. Ha uma versao incompleta, em ligua castelhana, com o titulo Eurodelitos: e/ Derecho Penal Econ6mico en la Union Europea, ed. Univ. de Castilla-la-Mancha, 2003. Uma compara~ao entre os projectos do «Corpus Juris>> e dos «eurodelitos>>, quanta a origem, aos conteudos e metodos de reforma, pode ver-se em ALESSANDRO BERNARDI, L'europeizzazione, p. 510 e ss. Uma identifica~ao e analise critica dos principios em que assentam tais projectos e efectuada par Sn.vA SANCHEZ, Los principios inspiradores de /as propuestas, p. 142 e ss. 14 As propostas do Projecto Alternativo foram debatidas num col6quio de Direito Penal Europeu, realizado em Dresden, cujas interven~oes se encontram publicadas na ZStW, Bd.l16 (2004) n." 2. 15 v. Alternativentwwf europaische Strafuelfolgung atras citado.
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suas propostas. Terei de me referir a elas de modo fragmentario e transversal, na medida do necessaria para uma apreciac;ao critica do modelo de politica criminal que lhes subjaz. Espero, no entanto, que do meu esforc;o de concisao e clareza expositiva da vossa atenc;ao paciente e critica possa resultar urn conjunto de ideias que sirva para animar o debate em Portugal das questoes da construc;ao de urn Direito Penal ao nivel europeu. Dais pantos quero desde ja realc;ar. A normatividade que tomarei em conta e, como disse, a que consta dos projectos a que fiz alusao, pelo que nao irei cuidar das soluc;oes de Direito constituido representadas por convenc;oes, directivas e decis6es-quadro muitas das quais ja estao convertidas no Direito interno portugues. Interessa-me mais discutir o que ai vem do que o que ai esta. Aqueles projectos nao s6 pretendem unificar o Direito Penal comunitario ao nivel do 1. pilar, mas, complementarmente, apresentam urn modelo politico-criminal mais consistente e menos avulso. Por outro lado, a perspectiva em que me coloco e a da discussao de urn modelo politico-criminal para a Europa, pelo que terei em considerac;ao sobretudo os prindpios que consubstanciam e identificam esse modelo e a especie de incriminac;oes singulares que dele devem fazer parte. Deste modo, nao me preocuparei corn as regras de parte geral plasmadas nos projectos em causa. Nao pretendo deste modo desvalorizar a importancia dessas regras na aplicac;ao do Direito Penal, mas apenas afirmar que nao e corn base nelas que se articula urn discurso de fundamentac;ao como aquele que tern de presidir a discussao de modelos de politica criminal. As regras de imputac;ao da parte geral, por urn lado, sao o produto ao nivel da aplicac;ao do quadro de validade que emana da experiencia normativa de urn determinado mundo da vida, e, por outro lado, sao relativamente instrumentais das incriminac;oes da parte especiaF 6â&#x20AC;˘ Por isso, a sua constituic;ao dependera sempre, numa certa medida, da especie de incriminac;oes que se considere ser da competencia material das instancias comunitarias. 0
3. Urn modelo politico-criminal fundado nos prindpios da tradic;ao europeia e no ideario do Estado de Direito democratico situa-se na confluencia de duas linhas principais: a legitimac;ao democratica da legalidade juridico-penal, por urn lado, e a proporcionalidade entre a restric;ao e a protecc;ao de direitos, liberdades e garantias, ou, se preferirem, entre o que se protege e o que se restringe para assegurar essa protecc;ao, por outro lado. A legitima:c;ao democratica de urn Direito Penal europeu nao pode deixar de fundar-se no prindpio democratico-representativo. 0 legado do contratua16 Neste sentido, TIEDEMANN, Introducci6n, p. 12, relativizando embora o can\cter instrumental da parte geral dos ÂŤEurodelitos>> ao ponto de a apresentar como ÂŤmodelo de parte geral para o Direito Penal Econ6mico>>.
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lismo liberal de VoLTAIRE e BECCARIA17 integra a constitui<:;ao politico-juridica da tradi<:;ao europeia, que estrutura e condiciona tambem o discurso juridico-penal. No que ao Direito Penal diz respeito, aquele contratualismo expressa-se, em termos breves, do seguinte modo. Os cidadaos abdicam de uma pequena parcela da sua liberdade para que possam desfrutar da restante parte em seguran<:;a. A legitimidade para dispor do conjunto das parcelas depositadas no espa<:;o publico cabe aos pr6prios cidadaos atraves dos seus representantes eleitos. S6 estes, mandatados para o efeito, tern competencia para estabelecer e impor legalmente o quantum de restri<:;ao necessaria para salvaguarda da ordem de liberdades. Posto que em sociedades complexas e altamente diferenciadas a unanimidade e uma meta irrealizavel, a representatividade para a defini<:;ao de crimes e a prescri<:;ao de penas e pragmaticamente fixada em maiorias. Que problemas se levantam neste plano a constru<:;ao de urn Direito Penal comunitario? 0 PCE preve que a materia penal sera objecto de leis e leis-quadro que conterao ÂŤregras minimas relativas a defini<:;ao de infrac<:;6es penais e das san<:;6es em dominios de criminalidade particularmente grave e corn uma dimensao transfronteiri<:;aÂť (v. art. 0 III-172, 1,1) e serao criadas atraves de urn processo de co-decisao entre o Parlamento eo Conselho de Ministros (doravante, CM) (v. arts. I-33. 0 , 1 e art. 0 III-302). Nos termos deste processo, recebida uma proposta de lei, o Parlamento toma posi<:;ao em primeira leitura e transmitea ao CM (v. art. 0 III-302, 3). Este, por sua vez, pode adoptar uma de duas atitudes: ou aceita a posi<:;ao do Parlamento e a lei e aprovada; ou rejeita a posi<:;ao do Parlamento e remete para este a proposta de lei juntamente corn as raz6es da rejei<:;ao (v. art. III-302, 4 e 5). No prazo de tres meses a contar da data dessa remissao o Parlamento pode tomar uma de quatro decis6es: concordar corn a posi<:;ao do CM ou simplesmente nao se pronunciar sobre ela, casos em que o acto legislativo sera aprovado; rejeitar a posi<:;ao do CM por maioria absoluta dos membros que o comp6em, caso em que a proposta de lei e recusada; propor emendas a posi<:;ao do CM aprovadas por maioria absoluta dos seus membros, sendo o texto alterado enviado ao CM e a Comissao (v. art. III-302, 7). Nas duas ultimas hip6teses o processo co-decis6rio prossegue por via de concilia<:;ao. Em todo o processo descrito, o CM delibera umas vezes por maioria (art. 0 III-302, 4, 5) outras por maioria qualificada (art. 0 III-302, 8, 10, 13) e uma por unanimidade (art. 0 III-302, 9), enquanto o Parlamento, o 6rgao que assegura por excelencia a representa<:;ao dos cidadaos europeus, funcionando, por isso, como epicentro da representatividade e da legitimidade politica, delibera sempre por maioria, simples ou absoluta (art. 0 III-302, 3, 7, 10, 13). Nao quero por em causa o processo de co-decisao, que exprime bem, em meu entender, a dupla representatividade - a estatal e a cidada - em que assenta o edificio da UE, nem tao pouco quero contestar as regras de delibera<:;ao 0
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17 v. sobre o tema SousA BRITO, A lei penal na Constituiflio, in Estudos sobre a Constitui<;ao, vol. 2, ed. Petrony, Lisboa, 1977, p. 222 e ss.
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descritas. Mas quando se trata da cria<;ao de leis penais, penso corn os autores do Projecto Alternativo, que essas regras nao bastam para assegurar a legitima<;ao democratica de tais leis e que urn novo equilibrio no processo de co-decisao tern de ser encontrado. Diz ScHONEMANN que por for<;a da divergencia entre o numero de deputados e a popula<;ao dos varios Estados-membros nas elei<;6es para o PE, podem ser criadas leis penais comunitarias que nao colhem a concordancia da maioria da popula<;ao europeia 18 • Para contornar esse 6bice e nao sobrar duvida de que as leis penais sao aprovadas por uma maioria de deputados que representam a maioria dos cidadaos europeus, o Projecto Alternativo acrescenta ao disposto no art. III-302, 3, que, logo em primeira leitura, s6 haveni envio da proposta de lei penal para o CM quando ela contar corn a aprova<;ao de dois ter<;os dos membros do PE 19 • Deste modo, nao s6 sai refor<;ado o papel do Parlamento em materia penal, como aumenta a base democnitica de legitima<;ao da lei penaF0-21 • Nao se contraponha a esta solu<;ao o argumento de que, desse modo, se torna mais pesado e diflcil o processo de co-decisao e se cria urn bloqueio a aprova<;ao de leis penais comunitarias. Tratando-se, como se trata, de leis fortemente restritivas de direitos, liberdades e garantias, e fundamental que elas traduzam urn exercicio de autonomia publica dos cidadaos europeus atraves dos seus representantes eleitos, e isso s6 se consegue de modo claro atraves da interven<;ao de uma maioria qualificada de deputados na sua aprova<;ao. A op<;ao por uma 16gica de facilidade processual neste dominio nao s6 inviabiliza a supera<;ao do propalado «defice democratico» da legisla<;ao mas significa ainda urn incentivo ao expansionismo em materia penal, corn o rol de conse0
18 v. Grundziige eines Alternativ-Entwurfs zur europaischen Strafverfolgung, in ZStW, Bd.l16 (2004) n." 2, ps.393 e 398; v. tambem o proprio Alternativentwurf p. 4 e ainda LUDERSSEN, Wer will das bessere Europa?, in Alternativentwurf, p. 48, onde afirma que as maiorias qualificadas exigidas para as decis6es do CM pelos arts.I-22 n." 3 e 24 n-" 2 do PCE nao compensam o defice de participa~ao do Parlamento no processo legislativo, significando isso uma renuncia ao prindpio «nullum crimen sine lege parlamentaria». Como nota FAusro m QuADROS, Direito da Uniiio Europein, ed. Almedina, 2004, p. 233, os lugares actualmente atribuidos aos varios Estados no PE sao proporcionais a respectiva popula~ao. Todavia, o criteria e aplicado de modo degressivo. Assim, segundo o autor, apesar de popula~ao alema ser 7,7 vezes maior do que a popula~ao portuguesa nao e essa nessa propor~ao que os lugares sao repartidos pela Alemanha (99) e por Portugal (24). 19 v. Alternativentwurf, p. 22 e a fundamentac:;ao na p. 23. 20 Opiniao diferente tern DuARTE D' ALMEIDA, Direito Penal e Direito Comunitdrio: o ordenamento comunitiirio e os sistemas juscriminais dos Estndos-membros, ed. Almedina, Coimbra, 2001, p. 26 e ss., que desvaloriza a importancia do refor~o do papel do Parlamento na legitima~ao da lei penal comunitaria, considerando que se trata de urn dogma fundado numa 16gica nacional que apenas corresponde «a uma certa democracia>>. Op6e-se-lhe, corn razao a meu ver, MARIO MONTE, Da autonomia constitucional, p. 714 e nota 62. 21 Considera tambem que as maiorias qualificadas realizam urn aprofundamento do controlo democratico quanto a cria~ao de novas incrimina~6es, FERNANDA PALMA, Constitui~iio e Direito Penal: as questoes inevitdveis, in Casos e materiais de Direito Penal, ed. Almedina, 2000, p. 24.
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quencias perversas que isso comporta22 • Mas deste ponto cuidarei mais detalhadamente em seguida. 4. A outra linha fundamental de filia<;ao do modelo polltico-criminal europeu no patrim6nio normativo herdado do iluminismo, prende-se corn a concep<;ao do Direito Penal simultaneamente como ordem de proteq:ao de bens jurfdicos perante o crime e como ordem de protec<;ao de interesses humanos perante o poder punitivo23 • E decisivo para a validade do Direito Penal europeu que ele exprima urn justo equilfurio entre a repressao do illcito transfronteiri<;o gravemente atentat6rio de valores comunitarios fundamentais e a protec<;ao dos direitos, liberdades e garantias do delinquente. Concretiza<;ao fundamental deste equilfurio e a salvaguarda de proporcionalidade entre os valores que se restringem e os valores que se protegem. Uns e outros devem ter a mesma ordem de grandeza. Consequencia imediata da aplica<;ao deste prindpio e que, a partir do momento em que o Direito Penal comunitario deite mao a penas privativas da liberdade, como ja sucede em varias decis5es-quadro24 e tudo indica que continuara a suceder, sera interdito comina-las para tutela de interesses meramente funcionais, de controlo administrativo de actividades econ6micas e sociais pelas instancias comunitarias, que nenhuma rela<;ao perceptfvel mantem corn os direitos e bens jurfdicos dos cidadaos europeus. Esta exigencia nao e correctamente observada por parte do «Corpus juris» e do Projecto dos «eurodelitos», tanto no que diz respeito a escolha dos bens jurfdicos comunitarios a tutelar penalmente, como no que toca a selec<;ao das tecnicas de tutela a utilizar. Cada urn dos referidos projectos aceita a comina<;ao de penas, que podem ser de priva<;ao da liberdade 25, para a protec<;ao de interesses meramente funcionais. Assim, o crime de fraude aos interesses financeiros da UE previsto no art. 0 1 do «Corpus juris>>, que abrange, entre outros comportamentos, o emprego de processos fraudulentos para a obten<;ao de subven<;5es, serve a protec<;ao da confian<;a no funcionamento de certos subsistemas
22 v. sobre essas consequencias, em geral, v. SILVA SANCHEZ, La expansion del Derecho Penal, 2" ed., ed. Civitas, Madrid, 2001, p. 121 e ss. 23 Neste sentido, tambem HASSEMER, Nomos Kommentar zum Strafgesetzbuch, vor§1, n." 310 e o
Alternativentwwf, p. 4. v.g. Decisao-quadro do Conselho de 13/6/2002 relativa a !uta contra o terrorismo (art. 0 5); Decisao-quadro do Conselho de 19/7/2002 relativa a !uta contra o trafico de seres humanos (art." 3 ); Decisao-quadro 2003/80/JAI do Conselho de 27/1/2003 relativa a protec~ao do ambiente atraves do Direito Penal (art." 5). 25 v., em especial, o art." 14 n." 1 aLa) en." 3 do <<Corpus Juris>>. Apesar da omissao da referencia as penas aplicaveis no Projecto dos «eurodelitos>>, isso nao significa, todavia, nenhum prop6sito de excluir a previsao de penas de prisao, como sugere TIEDEMANN, Introducci6n, p. 18. 21 '
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econ6micos 26, mais exactamente, o interesse geral numa eficaz promot;ao da economia. Tambem o Projecto dos <<eurodelitos» enferma do mesmo vicio. Encontram-se af urn conjunto de incriminat;6es de que fazem parte, por exemplo, o «insider trading» (art. 0 53), a instigat;ao a realizat;ao de neg6cios bolsistas especulativos (art. 0 52), as falsas informat;oes as autoridades de controlo no exerdcio de actividades econ6micas (art.o 56) e a violat;ao de urn embargo comunitario (art. 0 58), que asseguram a tutela de funt;oes sistemicas. Nao quero dizer corn isto que essas funt;oes nao sao merecedoras de protect;ao e mesmo de protect;ao atraves da imposit;ao de sant;oes, mas apenas e tao s6 que nao e legftimo, p01·que e desproporcional, assegurar essa protect;ao atraves do Direito Penal, maxime, atraves da pena de privat;ao da liberdade. Ha urn Direito Administrativo sancionador comunihirio que deve funcionar como meio alternativo ao Direito Penal, nomeadamente nestes casos. Se nao se adverte e acautela este aspecto (juntamente corn outros que referirei adiante) corre-se urn risco serio de o futuro Direito Penal comunitario se transformar em instrumento do furor regulador das instituit;oes europeias e a pena de prisao num fen6meno banal 27 • 0 PCE, por sua vez, nao esconjura este risco. Pelo contrario incrementa-a. 0 Projecto inclui a materia penal no capitula IV do Titulo III dedicado a «liberdade, segurant;a e justit;a». Mas o modo como dirime a tensao entre estes valores fundamentais, leva-me a dar inteira razao a HASSEMER quando afirma que e clara a prevalencia dada a segurant;a e a eficacia 28 • Corn efeito, o art.o III-158 acentua que a Uniao envidara esfort;os «para garantir um elevado nfvel de segurant;a>>, recorrendo principalmente a medidas penais, mas nada estabelece sobre o significado de tal segurant;a, nem como se articula ela corn a liberdade. Mais adiante, o art. 0 III-172, 1, preve a criat;ao pela UE de regras mfnimas relativas a definit;ao de infract;oes penais e de penas em domfnios de criminalidade especialmente grave e corn uma dimensao transfronteirit;a em razao da natureza ou das consequencias dessas infract;oes ou da especial necessidade de as combater. 0 preceito fornece um elenco da criminalidade em causa, que compreende o terrorismo, trafico de seres humanos e explorat;ao
Nao acompanho nesta materia HEFENDEHL, Zur Frage der Legitimitiit, p. 84., que defende abertamente a criac;;ao de tipos de confianc;;a no Direito Penal econ6mico. SILVA SANCHEZ, Los prindpios inspiradores de las propuestas, p. 144 caricatura o paradigma delitivo subjacente a estes projectos como «conduta imprudentemente 'fraudulenta', cometida por uma pessoa colectiva, que redunda num perigo abstracto para as financ;;as comunitarias>>. 27 Dao conta deste risco na situac;;ao actual, AussANDRO BERNARDI, L'europeizzazione, p. 489 e, de urn modo muito especial, SILVA SANCHEZ, Los princfpios inspiradores de las propuestas, p. 144 e s. 28 v. Strafrec/zt in einem europnischen Vetjassungsvertrag, ps.307 e 311 e s.; no mesmo sentido se pronuncia WEIGEND, Der Entwurf einer europaischen Ve1jassung, ps.276 e s., 282 e 302. 26
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sexual de mulheres e crian<;:as, trafico de droga e de armas, branqueamento de capitais, corrup<;:ao, contrafac<;:ao de meios de pagamento, criminalidade informatica e criminalidade organizada. Tal cataloga<;:ao tern urn caracter meramente exemplificativo e e, consequentemente, insusceptivel de cumprir qualquer fun<;:ao de limita<;:ao do jus puniendi comunitario. Para isso contribui nao s6 a indetermina<;:ao de conceitos como «criminalidade organizada» 29 , mas tambem a faculdade concedida ao CM de identificat~ deliberando por unanimidade, outros dominios da criminalidade grave e transfronteiri<;:a, consoante a evolu<;:ao desta (v. art. 0 III-172, 1, 3) e sobretudo a possibilidade de serem criadas leis penais europeias «sempre que a aproxima<;:ao de normas juridico-penais se afigure indispensavel para assegurar a aplica<;:ao eficaz de uma politica da Uniao num dominio que tenha sido objecto de medidas de harmoniza<;:ao» (v. art. III-172, 2). De acordo corn esta clausula de acessoriedade aberta, como lhe chama WEIGEND 30 , nao ha praticamente nenhum ambito do Direito Penal secundario que nao possa ser «europeizado». A competencia material das institui<;:oes comunitarias deixa de estar limitada ao conceito, ja de si pouco preciso, de criminalidade particularmente grave e transfronteiri<;:a. Tudo medido, podemos concluir que o Direito Penal e concebido no PCE como urn instrumento da politica de seguran<;:a, sem que a liberdade cidada seja tida como urn contrapeso ou travao a sua expansad 1• 0
5. De urn modo mais afirmativo e concretizador, penso que o PCE necessita de uma profunda altera<;:ao que de acolhimento ao prindpio da interven<;:ao minima ou da subsidariedade do Direito Penal comunitario, materializado desde logo na ideia de que a legitimidade dos bens juridicos merecedores de tutela penal unificada depende em larga medida da sua titularidade por parte dos cidadaos europeus e das institui<;:oes comunitarias 32 • Cabem nos primeiros
Sabre este panto v. WETGEND, ob.cit., p. 285 e s. v. ob.cit., p. 284. 31 Deste modo, muito especialmente, WEIGEND, ob.cit., p. 302. Considero preferivel pelas raz6es apontadas a proposta de altera~ao ao art. 0 III-158, 3 do PCE, pelo Projecto Alternativo, que reza do seguinte modo: «A Uniao envidara esfor~os para garantir um elevado nivel de liberdade, de seguran~a e de protec~ao dos direitos perante outros e perante o poder do Estado, atraves de medidas de protec~ao da liberdade e dos bens juridicos dos cidadaos, de preven~ao e combate a sua viola~ao, de coordena~ao e coopera~ao dos 6rgaos policiais, dos 6rgaos de administra~ao da justi~a e de outras autoridades especialmente competentes em processos transfronteiri~os e, caso seja necessaria, atraves da harmoniza~ao de disposi~6es penais que sejam demasiado restritas ou demasiado amplas>>. 32 Opiniao diferente parece ter HEFENDEHL, Zur Frage der Legitimitiit, p. 84 e s., quando refere somente como titulares de bens juridicos europeus a EU e os seus 6rgaos. Sabre a natureza dos bens juridico-penais comunitarios v. ainda MARIO MONTE, Da autonomia constitucional, p. 725 e s.; ScHDNEMANN, Mindestnonnen oder sektorales Europastrafreclzt, p. 80 e s.; SrLVA SANCHEZ, Los principios inspiradores de /as 29
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os crimes de terrorismo, de trafico de seres e de 6rgaos humanos, de explorat;:ao sexual de mulheres e criant;:as, de pornografia infantil, de triifico de droga e de armas, mas tambem crimes contra os trabalhadores, contra os consumidores e contra o ambiente, que encontramos previstos no Projecto dos «eurodelitos» (v. arts. 23 e ss.; 29 e ss.; 38 e ss.) 33 que podem adquirir tambem dimensao transfronteirit;:a e tern igualmente como referente bens ou valores indispensaveis a realizat;:ao da cidadania europeia. Comprova-o a Carta dos Direitos Fundamentais da UE que no capitula IV, dedicado a solidariedade, consagra o direito dos trabalhadores «a condit;:6es de trabalho saudaveis, seguras e dignas>> (art. 31 n. 1), e as garantias de «um elevado nfvel de protect;:ao do ambiente>> (art. 0 37) e de defesa dos consumidores (art. 0 38). Exemplo da segunda especie de bens sao os interesses financeiros da UE tanto no capitula das receitas como no das subvent;:6es. 0 «Corpus juris>> e, como referi, especialmente dedicado a protect;:ao de tais interesses. Como notam, porem, os autores do Projecto Alternativo, aquele diploma tern um alcance muito limitado no que diz respeito ao combate a corrupt;:ao. Nao s6 porque o seu ambito de incidencia se cinge a protect;:ao de interesses financeiros da Uniao, mas tambem porque sao apenas quatro os tipos incriminadores nesta area. Merece inteiramente o meu acordo a ideia expressa no Projecto Alternativo 34 e sublinhada por ScHONEMANN 35 de que uma previsao tao completa quanto possivel de crimes de funcionarios constitui o reverso do refort;:o das competencias policiais e penais ao nfvel europeu e aprofunda a sua liga<;:ao ao Estado de Direito, pois, como salienta este autor, um controlo eficaz do exerdcio do poder e condit;:ao irrenunciavel da sua propria legitimidade. Dois aspectos complementam estas considerat;:oes sobre a identificat;:ao dos bens jurfdicos e do illcito penal comunitarios e refort;:am a legitimidade da intervent;:ao penal unificadora ao nfvel europeu. Primeiro, nao devem integrar a materia penal comunitaria comportamentos illcitos que, pese embora mantenham alguma relat;:ao corn os bens jurfdicos assinalados, nao provocam dano, isto e, nao produzem uma diminuit;:ao do seu valor ou utilidade para os 0
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propuestas, p. 148 e s., que parece propor que a legitimidade de um Direito Penal europeu unificado depende da inclusao de crimes contra bens juridicos individuais (integridade fisica, liberdade, patrim6nio, etc.) posi~ao que nao sufragamos, nao s6 porque a competencia penal da Uniao se pretende subsidiaria (e nao total), como veremos, mas tambem porque muitos dos crimes contra aqueles bens juridicos nao revelam tipicamente dimensao transfronteiri~a. 33 Sobre as razoes desta op~ao, a meu ver deficientemente cumpridas em alguns tipos incriminadores, v. TIEDEMANN, Introducci6n, p. 17. 34 v. logo na apresenta~ao das ideias fundamentais na p. 4. 35 v. Grundziige eines Altemativ-Entwurf, p. 378 e s.; Mindestnormen oder se!ctorales Europastrafrecht?, p. 80; HEPENDEHL, Zur Frage der Legitimitiit, p. 85, considerando os crimes de corrup~ao e de falsas declara~6es em rela~ao as institui~6es comunitarias <<o paradigma de tipos juridico-penais europeus legitimos>>.
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respectivos titulares, e sao, por isso, destitufdos de uma ofensividade perceptfvel. Eo que se passa corn as chamadas infrac<;6es artificiais, ou de perigo presumido, que fazem parte do campo previo a real afecta<;ao do bem juridico. Exemplos desta especie de infrac<;6es sao o crime de fraude ao or<;amento comunWirio do art. 0 1 do «Corpus Juris», cuja punibilidade, em consequencia do caracter sistemico do interesse que tutela, e independente da verifica<;ao de qualquer prejuizo patrimonial causado ao or<;amento comunitario36, e ainda os crimes de publicidade enganosa e de actividades proibidas corn florae fauna protegidas previstos nos arts. 35 e 43 dos «eurodelitos», que nao atingem de urn modo juridico-socialmente perceptfvel quer interesses econ6micos dos consumidores, quer o direito a urn ambiente sadio. Os exemplos de extrema antecipa<;ao da tutela penal podiam multiplicar-se, mesmo em outras direc<;6es, como acontece corn a tipifica<;ao da fraude ao or<;amento comunitario cometida corn negligencia grave no art. 0 9 do «Corpus Juris» 37 . 0 outro aspecto a que fiz referenda prende-se corn a reparti<;ao de competencias em materia penal entre a Uniao e os Estados-membros. 0 PCE nao segue tambem aqui, em meu entender, o melhor caminho. Depois de no n. 1 do art. 1-9 prever os prindpios da subsidariedade e da proporcionalidade da interven<;ao comunitaria e de no n. 0 3 do mesmo preceito sujeitar esta interven<;ao aos testes de suficiencia e de eficacia38, o PCE vem determinar no art. 0 1-13 n. 0 2 que o <<espa<;o de liberdade, seguran<;a e justi<;a», onde precisamente o Direito Penal se inscreve, e area de competencia partilhada entre a Uniao e os Estados-membros. Os dois criterios nao sao incompatfveis prima facie, como demonstra a circunstancia de no Direito Europeu vigente o prindpio da subsidariedade reger precisamente o ambito das atribui<;6es concorrentes39 , mas, como nota HASSEMER40 , nao conduzem necessariamente aos mesmos resultados. 0 prindpio da subsidariedade preserva e garante uma ampla margem de soberania penal aos Estados-membros, pois, sempre que a tutela penal de urn certo bem juridico seja assegurada suficiente e eficazmente pelas ordens juri0
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36 Uma analise critica deste tipo incriminador e feita por HEFENDEHL, Zur Fmge der Legitimitat, p. 86 e ss. 37 Para uma critica a este aspecto v. Alternativkonzept zum sag. Corpus Juris (Besonderer Teil), in Alternativentwurf, p. 38; HEFENDEHL, Zur Frage der Legitimitat, p. 95 e s. 38 v. sobre o prindpio da subsidariedade e as condi~6es da sua realiza~ao, DuARTE D' Au,1EJDA, Direito Penal e Direito Comunitario, p. 17 e s. e nota 22; FAUSTO QuADROS, Direito da llniiio Europein, ps.102 e ss. e 202 e ss. 39 v. sobre o tema FAUSTO QuADROS, Direito da llniiio Europeia, em especial, p. 102 e s. 40 v. Strafrecht in einem europai'schen Verfassungsvertrag, p. 315 e s., que compara a competencia partilhada corn a competencia concorrente da experiencia politico-constitucional alema, segundo o autor, pouco recomendavel; em sentido identico, v. WEIGEND, Der Entwwf einer europai'schen Ve1jassung, p. 280, acusando o PCE de nao conter quaisquer indica~oes ou limita~6es materiais da competencia da Uniao e de enviar sinais contradit6rios acerca da reparti~ao de competencias entre esta e os Estados-membros.
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dicas nacionais, mesmo relativamente a comportamentos corn dimensao transfronteirit;a, nao devem ser criados tipos penais europeus 41 • Ja o criterio da compeh~ncia partilhada, tal como esta desenhado no Projecto, funciona como obstaculo a realizat;ao da subsidariedade, na medida em que favorece urn refort;o da competencia penal da Uniao a custa dos Estados-membros. Corn efeito, o art. 0 I-11, 2, estipula que os Estados-membros exercerao as suas competencias «na medida em que a Uniao nao tenha exercido a sua ou tenha decidido deixar de a exercer>>. 0 criterio da competencia partilhada coloca, assim, a Uniao na linha da frente, quando o prindpio da subsidariedade, consagrada no Direito Europeu vigente e no Projecto constitucional e tido como «urn pilar fundamental da unificat;ao europeia» 42, exige que ela se mantenha na retaguarda da constituit;ao do Direito Penal comunitario. A solut;ao do PCE nao acautela, tambem por este lado, a tentat;ao expansionista que o modelo politico-criminal comunitario presente e futuro revela. Tambem neste ponto e necessaria arrepiar caminho devolvendo, sem tergiversat;6es, a materia penal ao prindpio da subsidariedade da intervent;ao das instituit;6es comunitarias. 5. Aqui deixo urn conjunto de reflex6es criticas sobre algumas propostas elaboradas por insignes penalistas europeus, duas das quais contam mesmo corn apoio oficial, e que visam a criat;ao de urn Direito Penal comunitario ao nivel do 1. pilar. Mais nao fiz do que testar o modelo politico-criminal daquelas propostas a luz daquilo que identifiquei como sendo a sede de validade: os prindpios da cultura juridico-penal profunda que n6s europeus partilhamos. 0 comboio do Direito Penal europeu ja partiu e esta num momento crucial da sua marcha. E necessaria trat;ar-lhe o rumo e estar atento a sua evolut;ao. Pode ser, como diz HASSEMER43 , que as instituit;6es europeias nao deem ouvidos as recomendat;6es de muitos penalistas e que estes pouco ou nada possam fazer para influenciar a polltica criminal da Europa. Mas a verdade e que nao nos podemos alhear deste problema, pm·que sabemos bem quanto a qualidade da cidadania depende do Direito Penal que nos rege. 0 proprio HASSEMER nao deixou de apelar a continuidade dos esfort;os no sentido da format;ao de uma ciencia juridico-penal europeia, terminando corn estas palavras, que fat;o minhas: «o 'Direito Penal de cima', corn o qual n6s agora estamos selectivamente confrontados, precisa de urn 'Direito Penal de baixo' vocacionado para completar, criticar e corrigir» 44 . 0
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Sera o caso, por exemplo, dos crimes de
falsifica~iio
-neste sentido HEFENDEHL, Zur Frage der posi~ao que, pelas razoes
Legitimitiit, P- 84, que junta, no entanto, a estes os crimes ambientais,
expostas, nao subscrevo. 42 Deste modo, HASSEMER, Strafrecht in einem europaischen Vetjassungsvertrag, p. 315; FAUSTo QuADRos, Direito da Uniiio Europeia, p. 102 e s. 43 v. ob. cit_, P- 317. 44 ob. cit., p. 319.
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PRUEBA PROHIBIDA Y VALORACION DE LAS GRABACIONES AUDIOVISUALES EN EL PROCESO PENAL
Francisco Mufioz Conde
PRUEBA PROHIBIDA Y VALORACION DE LAS GRABACIONES AUDIOVISUALES EN EL PROCESO PENAL* Francisco Mufioz Conde 1
I. Historia de la columna infame
Cuenta el gran escritor italiano Alessandro Manzoni (1785/1873), nieto por cierto de Cesare Beccaria, en una breve narraci6n destinada a formar parte de su inmortal novela "Los Novios", pero publicada luego como narraci6n aut6noma con el titulo de "Historia de la columna infame" (1842) que a principios del siglo XVII fueron ejecutados en Milan, tras serles amputada una mano, mutilados con tenazas candentes, quebrantados en la rueda y, por ultimo, degollados, al cabo de seis horas de agonia, un barbero y un comisario de sanidad, acusados de haber propagado la peste que en aquel momento asolaba a los habitantes de dicha ciudad, esparciendo venenos y untando las paredes de las casas con un unto amarillo. La condena fue precedida de un juicio en el que naturalmente, segun el modelo inquisitivo vigente en la epoca, los acusados fueron sometidos a crueles torturas, hasta que confesaron ser los autores de tales "maleficios" y, en consecuencia, de la propagaci6n de la peste2 â&#x20AC;˘ En conmemoraci6n de tales sucesos se erigi6 en 1630 en la ciudad de Milan una columna con inscripciones en latin, de no mala redacci6n, segun testimonio de un viajero ingles que lleg6 a verla en 17003, en la que se narraban estos hechos. La columna fue derribada poco despues por el pueblo enfurecido como protesta por un proceder tan inhumano de la justicia. Manzoni, que, si se confirmaran las sospechas de que en realidad no era hijo de Pietro Manzoni, sino de Giovanni Verri, debia, por tanto, estar emparentado con el amigo y ' Conferencia proferida em Lisboa, na Universidade Lusiada em Outubro de 2004. 1 Catedratico de Derecho Penal. Universidad Pablo de Olavide, Sevilla (Espanha). Doutor "honoris causa", pela Universidade Lusfada de Lisboa. 2 Titulo original: Storia della colonna infame. Aqui se maneja la traducci6n de Elcio di Fiori, publicada por la editorial Bruguera, Barcelona, 1984, con una excelente nota introductoria de Leonardo Sciascia. 3 En la citada nota introductoria (supra nota 1), Sciascia se refiere a un tal Addison citado por Foscolo en el Gazzetino del Bel mondo.
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contertulio de Beccaria, Pietro Verri autor de unas "Observaciones sobre la tortura" 4, utiliza este caso para demostrar no solo la ignorancia y la superstici6n en la que se movian los Tribunales de Justicia de aquella epoca, sino tambien la inhumanidad y la brutalidad de un sistema probatorio como la tortura, que hacia confesarse culpables de graves crimenes inexistentes a personas totalmente inocentes. Que, sin embargo, a este sistema ba.rbaro de obtenci6n de prueba y de castigo que muchas veces acompanaba a la pena de muerte le quedaba todavia mucho para desaparecer lo demuestra el espeluznante relata de la ejecuci6n del regicida Damiens que recoge Foucault en las primeras paginas de su archiconocida "Vigilar y Castigar" 5 : "Damiens fue condenado, el 2 de marzo de
1757, a publica retractaci6n ante la puerta principal de la Iglesia de Paris, adonde debia ser llevado y conducido en una carreta, desnudo, en camisa, con un hacha de cera encendida de dos libras de peso en la mano; despues, en dicha carreta, a la plaza de Greve, y sabre un cadalso que alli habra sido levantado (deberan serle) atenaceadas las tetillas, brazos, muslos y pantorrillas, y su mano derecha, asido en esta el cuchillo con que cometi6 dicho parricidio, quemada con fuego de azufre, y sabre las partes atenaceadas se le vertera plomo derretido, aceite hirviendo, pez resina ardiente, cera y azufre fundidos juntamente, y a continuaci6n, su cuerpo estirado y desmembrado par cuatro caballos y sus miembros y tronco consumidos en el fuego, reducidos a cenizas y sus cenizas arrojadas al viento". El relata de esta ejecuci6n es largo y no ahorra los detalles sobrecogedores del sufrimiento atroz a que fue sometido este pobre sujeto, pero puede obviarse aqui, por escabroso y por haberse reproducido ya en muchos lugares. Basta con senalar que todavia a finales del siglo XVIII, en plena epoca de la Revoluci6n Francesa y de las Declaraci6n de los Derechos del Hombre y el Ciudadano, hubo una polemica en Sevilla entre el can6nigo de la Catedral, D. Pedro de Castro, partidario acerrimo de la tortura, y el Fiscal de la Audiencia Juan Pablo Forner contrario a la misma, quien, sin embargo, prudentemente, como senala Tomas y Valiente 6, y para no levantar las sospechas de la Santa Inqui4 Hay version en espaf\ol, con un pro logo y notas de Manuel de Rivacoba y Rivacoba, publicada en Buenos Aires, 1977, por editorial Depalma. De !as relaciones entre Beccaria y Ios hermanos Verri, con Ios que formaba en Milan un grupo denominado la "Academia de Ios puf\os", informan casi todos Ios que han publicado alg(m trabajo sobre el autor del famoso escrito "De Ios delitos y de !as penas", que Beccaria publico gracias a la intervencion de Pietro Verri. Una edicion facsimil de la version original a! espaf\ol de Juan Antonio de !as Casas, aperecida en Madrid en 1774, ha sido publicada en 1993 en una edicion conjunta del Ministerio de Justicia y del de Cultura, con una introduccion de Tomas y Valiente. 5 Surveiller et punir. Aqui se maneja la version castellana publicada por Siglo Veintiuno, 3.a ed., Madrid 1982, pags. 11 y ss .. 6 Cfr. ToMAS Y VALIENTE. La tortura en Espaf\a, 2.a ed., Barcelona, 1994, p. 256 ss .. La obra de Forner, Discurso sobre la tortura, ha sido publicada en Chile, editorial Edeval, Valparaiso, 1990, con un prologo y notas de Manuel de Rivacoba y Rivacoba.
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s1c10n, se abstiene de citar en su libelo autores de aquella epoca tan notoriamente contrarios a la tortura como Voltaire, Becaria o Filangieri, lo que no es dificil de entender si se tiene en cuenta que en aquella epoca las "veleidades ilustradas" le habian costado el puesto al Asistente de la Ciudad de Sevilla, el ilustrado Dn. Pablo de Olavide 7, que estuvo por orden de la Inquisici6n algun tiempo preso. Pocos afios despues (el 24 de agosto de 1781, en pleno reinado de Carlos Ill) fue quemada en Auto de Fe en el Prado de San Sebastian, una beata de Sevilla, de 45 afios, ciega desde los doce afios, porque al parecer hacia afirmaciones (y las practicaba) como que si el cuerpo pecaba, pero el alma no consentia no habia en ello (es deci1~ en el acto sexual) pecado alguno, se dejaba azotar desnuda por sus confesores, a los que seducia, habiendo tambien alguna sospecha de lesbianismo con otras monjas compafieras del convento 8 . La desaparici6n legal de la tortura como pena y como medio de prueba, primero excepcionalmente y ya de forma generalizada desde bien entrado el siglo XIX, no supuso entonces, ni supone ahora, por supuesto, su desaparici6n real en la practica de la persecuci6n y averiguaci6n de los delitos, o simplemente en la eliminaci6n o intimidaci6n del adversario politico, como lo demuestran actualmente las continuas denuncias que diariamente hacen Organismos internacionales, tales como Amnistia Internacionat de su practica, bien de forma aislada en cualquier pais del mundo, bien de forma masiva todavia en muchos paises, como fue el caso en las todavia no muy lejas dictaduras militares de los paises del Cono Sur del continente americano; o mas recientemente las denuncias de torturas practicadas por tropas norteamericanas contra los presos afganos e iraquies en las carceles de Guantanamo y Abtl Craib. No es, por
7 Sabre la vida y la obra de tan importante personaje de la Ilustraci6n sevillana y de su caida en desgracia y subsiguiente proceso ante la Inquisici6n que lo conden6 a varios af\os de prisi6n, informa extensamente Marcelin DEFOURNEAUX, Pablo de Olavide, el afrancesado, traducci6n de Manuel Martinez Camar6, Sevilla, 1990. 8 Sabre este caso, vease AGUILAR PINAL, Historia de Sevilla, Siglo XVIII, Publicaciones de la Universidad de Sevilla, 2.' ed., 1982, p. 328. A este Auto de Fe alude, como testigo presencial, Blanco White, en su Obra inglesa, Buenos Aires, 1972, p. 122 (citado por Aguilar Pifial, lug. cit.): "Tenia yo entonces unos ocho afios y vi Ios haces de lefia, sabre barriles de brea y alquitran, en donde fue reducida a cenizas". De este Auto de Fe informa ToRfo L6PEZ, Beccaria y la Inquisici6n espaflola, en Anuario de Derecho penal y Ciencias penales, 1971, p. 401, nota 27, quien trascribe como apendice una cr6nica de la epoca, relatando como se llev6 a cabo el citado Auto y la ejecuci6n de la mujer (p. 414). El dato refleja hasta que punto la Inquisici6n espafiola todavia tenia fuerza en aquella epoca, incluso para condenar a muerte a personas por meras cuestiones de moral. Una de sus principales preocupaciones fue precisamente mantener el control sobre la sexualidad y el celibato de Ios clerigos, muchos de Ios cuales fueron condenados por "pecados sexuales" tales como el de "solicitud en el confesionario", precedente del actual "acoso sexual"; pero a! tratarse de hombres, !as penas fueron principalmente de prisi6n y en ning1m caso la de muerte, lo que demuestra una vez mas la misoginia que animaba a la Inquisici6n en materia de "desviaciones sexuales", en lo que podia llamarse "el miedo a !as brujas"; vease alrespecto: ALEJANDRE GARCfA, Osadias, vilezas y otros trajines, Madrid, 1995.
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tanto, casual que exista incluso una Convenci6n Internacional contra la tortura de 10 diciembre de 1984, a cuyo amparo, y par aplicaci6n del Principio de Justicia Universal, la Camara de los Lares inglesa concedi6 en 24 de marzo de 1999 la extradici6n a Espafia del dictador chileno General Pinochet, por mas que esta no tuviera lugar luego, alegando el Gobierno ingles "razones de salud"9 â&#x20AC;˘ 0 que en un caso mas particular un Tribunal de Frankfurt en el afio 2003 haya anulado coma prueba la confesi6n obtenida "mediante amenaza de tortura" de un joven jurista que habia secuestrado a un nifio y pedido el pago de una alta suma para su liberaci6n a los acaudalados padres del menor. El Jefe de la Policia aleg6 que autoriz6 que se le hicieran este tipo de amenazas al sospechoso, porque pensaba que aun podia salvar la vida del nifio, aunque despues se demostr6 que el nifio habia sido asesinado desde el primer momento. El sujeto fue finalmente condenado en base a otras pruebas, y no se tuvo en cuenta coma prueba la confesi6n que se habia obtenido de forma forzada 10 â&#x20AC;˘ Alga hemos avanzado, por tanto, desde los tiempos de la "columna infame".
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En contra de la extradicion de Pinochet a Espaf\a, RomdcuEz RAMOS, La extradicion de Pinochet, error juridico y (error politico?, La Ley 1999. 10 Sobre este caso y la sentencia del Tribunal de Frankfurt, vease RoxrN, (Puede admitirse o a! menos quedar impune la tortura estatal en casos excepcionales?, (version espaf\ola a(m inedita. El texto recoge la conferencia que su autor pronuncio en la Universidad Pablo de Olavide de Sevilla, el 4 de marzo del 2004). De un supuesto similar me ocupe en el Dictamen que hice a petici6n de la acusacion particular en el "caso Anabel Segura" (Dictamen sobre asesinato, secuestro y amenazas condicionales, Sevilla 1997, inedito). En este caso se planteaba, entre otros extremos, la posibilidad e aplicar el tipo cualificado de detenciones ilegales del art. 164 del C6digo penal (secuestro), cuando la petici6n de rescate para liberar a! secuestrado habia ido precedida de su asesinato. En contra de esta posibilidad se habia pronunciado la Audiencia provincial de Toledo en sentencia de 3 febrero 1998, alegando que la expresion utilizada en la redaccion de este tipo delictivo en el art. 164 del C6digo penal de 1995 "para ponerla en libertad", vedaba esta posibilidad por requerir que la victima a(m este con vida. En cambio, laSTS 5 marzo 1999 acogi6 plenamente el razonamiento desarrollado en mi dictamen, no solo porque de interpretar el art. 164 en el sentido propuesto por la Audiencia, este tendria un efecto crimin6geno, pues supondria tanto como decirle a! secuestrador que matara a! secuestrado antes de pedir el rescate, sino tambien porque la frase "para ponerla en libertad" debe interpretarse desde el punto de vista de Ios destinatarios de la peticion del rescate, que obviamente no saben en el momento en el que la reciben que el secuestrado ha sido ya asesinado y 16gicamente esperan que con el pago consigan salvarla y obtener su libertad. En el caso de mi dictamen, esta situaci6n angustiosa de espera e incertidumbre sobre si la secuestrada vivia ono, se mantuvo durante dos af\os; en el caso aleman, solo unos dias; pero en ambos la victima del secuestro habian sido asesinadas inmediatamente despues del secuestro. Tambien en el caso espai'tol habria sido anulada la prueba de confesion de Ios secuestradores si esta se hubiera obtenido mediante algun tipo de presion que pudiera calificarse de tortura, tanto si se hubiera conseguido salvar a la victima, como si esta hubiera ya fallecido. Cfr. tambien, MUNOZ CoNDE, Derecho penal, Parte Especial, 14." ed., Valencia, 2002, p. 175 y ss.; y LANDROVE DlAZ, Detenciones ilegales y secuestros, Valencia 1999, p. 131 ss: "La peticion de rescate por una liberacion imposible").
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II. Prueba prohibida y prueba ilicita
La prohibici6n de valorar de valorar en un proceso penal determinados medias de pruebas de los hechos que se juzgan, cuando estas pruebas se han obtenido mediante violaci6n de derechos humanos fundamentales, esta, pues, intima y paralelamente vinculada a la proscripci6n de la tortura, y es un principio juridico facilmente constatable tanto en las Constituciones y Leyes procesales penales de todos los paises civilizados, como en las Declaraciones universales de derechos humanos. Tambien los indices de Jurisprudencia estan repletos de decisiones de Tribunales, tanto nacionales como internacionales, en las que se anulan ono se valoran pruebas obtenidas mediante torturas o malos tratos de los acusados; lo que demuestra tambien que a pesar de la vigencia jurfdica universal de la proscripci6n de la tortura, esta sigue siendo una practica mas o menos habitual en la indagaci6n policial en muchos pafses. Es mas, todavfa el Tribunal Supremo israell consider6 en 1996 que un "cierto grado de violencia" era admisible contra los sospechosos de terrorismo; y aun esta por ver lo que decide la Corte Suprema de los Estados Unidos respecto a la situaci6n de los presos de guerra afganos en la base militar norteamericana de Guantanamo (Cuba), que, por las noticias que se tienen, se encuentran en situaciones muy parecidas a la tortura y sin los derechos mfnimos reconocidos en los Convenios internacionales a los presos. Y, desde luego, no son ya ningun secreta las torturas inflingidas a los presos iraqufes por las tropas estadounidenses en Irak (mayo 2004). En todo caso, es de esperar que estos ejemplos de un autentico "Derecho penal del enemigo" 11 , no se generalicen hasta el punto de volver a situaciones procesales caractedsticas del sistema inquisitivo y contrarias al Estado de Derecho.
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Esta expresi6n acufiada por Jakobs (Feindstrafrecht), describe un tipo de Derecho penal en el que, junto a penas draconianas, mas alia de la idea de proporcionalidad, y la anticipaci6n de la intervenci6n del Derecho penal a conductas alejadas de la puesta en peligro de bienes juridicos, se recortan garantias procesales del imputado que constituyen verdaderos derechos fundamentales (Cfr. JAKOBS, La Ciencia del Derecho penal ante Ios desafios del presente, en EsER/HASSEMER/BuRKHARDT, LA Ciencia del Derecho penal ante el nuevo milenio, version espaf\ola coordinada por Francisco Mufioz Conde, Valencia, 2004). Evidentemente, ello supone una regresi6n hist6rica a un "Derecho penal de sangre y de lagrimas" claramente incompatible con Ios principios del Estado de Derecho. Para mas detalles sobre ello, vease Mui\Joz CONDE, El derecho penal del enemigo, Instituto Nacional de Ciencias Penales, Mexico, 2003 (tambien recogido en LosANo/Mui\Joz CoNDE (comp. ), El derecho ante la globalizaci6n y el terrorismo, Valencia 2004. Un resumen del mismo especificamente dedicado a analizar este modelo de Derecho penal se encuentra en Homenaje a Roxin, La Ciencia penal alemana y su influencia en Latinoamerica, Instituto Nacional de Ciencias Penales, Mexico, 2003, tomo I, p. 117 ss.: "Consideraciones sobre el Derecho penal del enemigo". Algunas de estas reflexiones criticas se encuentran ya expuestas en mi articulo "Hacia un Derecho penal de enemigo", publicado en el diario El Pais, 15 enero 2003.
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Pero dejando ahora a un lado estas violaciones, no par puntuales menos significativas y preocupantes de principios juridicos universalmente admitidos, que ni siquiera coma parte de un programa de lo que se ha dado en llamar "Derecho penal del enemigo" aparecen recogidas en ningun Ordenamiento juridico de los pafses civilizados, la principal fuente de controversias doctrinales y decisiones judiciales sabre el caracter de prueba prohibida de las obtenidas con violaci6n de derechos fundamentales, la deparan hay las derivadas del empleo de medias audiovisuales. Con gran brillantez, pone de relieve esta evoluci6n en la materia de lo que constituye objeto de referenda de la prueba prohibida, el gran procesalista argentino Julio MAIER 12 , cuando dice en su Derecho procesal penal literalmente lo siguiente: "Las llamadas limitaciones o
prohibiciones probatorias ( ) sirvieron, en un principio, para designar la inadmisibilidad procesal de la incorporaci6n al procedimiento (prohibiciones de recolecci6n probaioria) y, coma consecuencia, a la fundamentaci6n del fallo (prohibiciones de valoraci6n probatoria), de ciertos conocimientos o informaci6n con vulneraci6n de reglas que vedan el objeto de conocimiento (limitaciones absolutas o referidas a la prohibici6n del tema probatorio) o el mecanismo de recolecci6n de la informaci6n (limitaciones relativas referidas a la prohibici6n de medias de prueba) (). Dentro de esta problematica, desarrollada hist6ricamente sabre la base de los metodos de investigaci6n tradicionales, aparece hoy agregado a ella un problema nuevo, perteneciente a la llamada "posmodernidad" y de la mayor gravedad, pues e/ alcance veloz y, al parecer, arrollador, de las ciencias naturales y de la tecnica - frente a los tiempos de las ciencias culturales (una de las cuales es la ciencia juridica), verdaderas tortugas en comparaci6n con aquellas- ha concebido medias de indagaci6n de la verdad y de informaci6n que superan geometricamente las posibilidades antiguas, desde escuchas a distancia con trasmisores supersensibles, trasmisiones audiovisuales o grabaciones ocultas, hasta el cruzamiento de informaciones almacenadas en bancos de datos, posible en tiempo uti! solo por ordenadores ...... Todo el tema es, sin duda, uno de !os mas complejos y polemicos de la dogmtitica procesal penal ( ) ". Parece, pues, que tambien en el ambito de la evoluci6n de los medias de prueba procesalmente admisibles, y no s6lo en el sistema del castigo, hemos pasado de la fase que caracterizaba Foucault coma "control del cuerpo" (la tortura), a la fase de "control del alma" (la captaci6n de la palabra, la imagen o el sonido, coma elementos mas caracteristicos del nucleo estricto de la intimidad y, par tanto, de la parte espiritual de la personalidad) 13 • Probablemente ello no es mas que, coma el mismo Foucault ensefi.a, el sintoma inevitable de la evoluci6n de los sistemas sancionatorios, en funci6n de la trasformaci6n de las relaciones de poder del cuerpo social entero hacia formas cada vez mas
12 Derecho procesal penal, Tomo II. Parte General Sujetos procesales, Buenos Aires, 2003, p. 134 s. (cursivas en el original). 13 Vease FoucAuu, Vigilar y castigar cit., p. 29 ss ..
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sutiles y perfeccionadas de control social. Pero obviamente a diferencia de lo que sucede con la tortura, el empleo de los medias audiovisuales en la averiguacion y, en su caso, prueba de un delito no produce el mismo rechazo o repulsion moral, entre otras cosas porque no siempre lesiona un derecho fundamental y su utilizacion puede ser admitida, siempre, claro esta, que ello sea compatible con los derechos fundamentales del ciudadano que garantiza la Constitucion y los Pactos internacionales de Derecho civiles y se lleve a cabo con determinados procedimientos y garantias. La eterna tension entre la tarea de investigar y, en su caso, castigar el delito, y la de respetar los derechos fundamentales del acusado, se acentua cuando no hay, como en el caso de la tortura, una prohibicion absoluta, sino una relativa que depende del cumplimiento de determinados requisitos fijados legalmente, o de las diversas circunstancias concurrentes en cada caso que deben ser ponderadas por el juzgador. La pluralidad de situaciones en las que estas tecnicas pueden ser utilizadas, dificulta una valoracion unitaria de las mismas desde el punto de vista de su admisibilidad como pruebas en el proceso penal (y, por supuesto, tambien, aunque con distintos matices, en el proceso civil, laboral o administrativo); de ahi que sea dificil delimitar a priori y sin referencias a casos concretos, cuando, por ejemplo, las grabaciones audiovisuales, pueden considerarse como medias de prueba legitimos y cuando noH. La doctrina ha establecido varios criterios de distincion, pero ha sido sobre todo la Jurisprudencia constitucional, la que a traves de la delimitacion del ambito de proteccion de los derechos fundamentales, cuya violacion da lugar al recurso de amparo, ha establecido el principio general de que no pueden surtir efecto probatorio las pruebas obtenidas con violacion de los derechos fundamentales. El punto de partida en nuestra Jurisprudencia constitucional es la STC 114/1984, de 29 noviembre, especialmente interesante para el tema que nos ocupa, p01路que se trataba de un caso de grabaci6n fonografica de la conversaci6n por el interlocutor y su admisi6n como prueba, si bien en un proceso laboral por despido, y aunque finalmente el TC deneg6 el amparo, estimando que no hubo lesion de derecho fundamental (sobre ello volveremos mas adelante, infra IV), en esta sentencia se estableci6 por primera vez coma principio la imposibilidad de valorar procesalmente la prueba obtenida con violaci6n de derechos fundamentales, "como expresi6n de una garantia objetiva e implicita en el sistema de los derechos fundamentales". Esta es
Constituye, por tanto, una burda manipulaci6n de !as decisiones jurisprudenciales ponet~ en esta o en cualquier otra materia, una sentencia detras de otra, de entre !as que se pronuncian a favor o en contra de una determinada tesis, sin referirse a! caso de que se trata y a !as particularidades y circunstancias que concurren en cada caso. Un proceder de este tipo suele set~ sin embargo, habitual entre Ios que tienen pobre capacidad de argumentaci6n, o simplemente quieren apabullar cuantitativamente a! adversario con argumentos poco convincentes y ciertamente sesgados. 1 "
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tambien la tesis que luego fue acogida expresamente en el art. 11, 1 de la Ley Organica del Poder Judicial: "En todo tipo de procedimiento se respetaran las
reglas de la buena fe. No surtiran efecto las pruebas obtenidas, directa o indirectamente, violentando los derechos o libertades fundamentales" 15 â&#x20AC;˘ Esta prohibicion general no es aplicable, sin embargo, de forma tan contundente, cuando la obtencion de la prueba se derive de un hecho antijuridico que no lesiona un derecho fundamental. Pero incluso en algun caso de lesion de un derecho fundamental, algun sector doctrinal se inclina por la posibilidad de su valoracion 16 . A estos efectos se distingue doctrinalmente entre prueba prohibida, que no puede valorar en ningun caso, y prueba ilfcita, que si puede ser objeto de valoracion en determinadas circunstancias; de ahi que muchas veces la polemica sabre cuando puede valorarse como prueba una que se ha obtenido a traves de un media antijuridico que no lesiona, directa o indirectamente, un derecho fundamental, gire tambien en torno a otros criterios o principios, como el de proporcionalidad, buena fe, etc, que sin tener la misma fuerza que los que se basan en la lesion de un derecho fundamental, tambien pueden conducir a la nulidad de la prueba que se haya obtenido 17 â&#x20AC;˘ Pero incluso en el ambito de las pruebas que se obtienen a traves de una limitacion directa de algun derecho fundamental, se admite que algunas por su propia naturaleza implican siempre en su practica alg{m tipo de injerencia en derechos fundamentales como la integridad fisica, la libertad individual, la intimidad, etc, sin que ello implique su nulidad, siempre que se cumplan determinados requisitos determinados legalmente. Por lo tanto, tanto en el caso de que se limiten derechos fundamentales, pero cumpliendo determinados requisitos legales,
15 Sobre Ios origenes de este precepto y su ambito de aplicaci6n, vease DE LA OuvA SANTOS, Sob re la ineficacia de !as pruebas obtenidas ilicitamente, en Tribunales de Justicia, agosto-septiembre 2003, p. 1 ss .. 16 V ease DE LA OuvA, ob. cit., p. 5, pues segun este autor "de lo que se trata aqui noes de la validez o nulidad de !as actuaciones en si mismas, sino de que carezcan de todo efecto sus ulteriores derivaciones". 17 Una problematica distinta plantea la llamada prueba irregulm~ que es la obtenida sin cumplimentar algunos requisitos procesales no esenciales y cuya ausencia puede, por tanto, ser subsanada posteriormente (generalmente la firma o Ios datos de identidad del titular del inmueble registrado conforme a! art. 558 de la LECrim.). En general, se puede decir que toda prueba "obtenida contraviniendo la ley" es una prueba ilicita; pero obviamente no todas ellas tienen el mismo efecto. Para una exposici6n resumida de Ios distintos criterios doctrinales existentes a! respecto, vease PAz RuBIO, en La prueba en el proceso penal, en Cuadernos de Derecho judicial, CGPJ, Madrid, 1992, p. 227; CHOCLAN MoNTALVO, La prueba videografica en el proceso penal: validez y limites, Poder Judicial, n. 0 39, p. 49 ss. Respecto a! valor probatorio de la prueba prohibida, GoNzALEZ-CUELLAR SERRANO, Proporcionalidad y derechos fundamentales en el proceso penal, Madrid, 1990; MIRANDA EsTRAMPES, El concepto de prueba ilicita y su tratamiento en el proceso penal, Barcelona, 1999. Para una exposici6n de la bibliografia existente en espaftol sobre ilicitud probatoria, vease DE LA OuvA, ob. cit., p. 11 S., y Ios trabajos de MARTINEZ GARCIA, 5ANCI-IIS CRESPO, GUTilJRREZ BERINCHES Y PUJADAS TORTOSA, contenidos en el mismo numero 8-9, agosto-septiembre, 2003, de Tribunales de Justicia.
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coma en aquellos otros en los que se obtenga la prueba de modo ilicito, pero
sin infringir derechos fundamentales, puede que la prueba sea admisible y valorarse procesalmente, dependiendo ello de una ponderacion de intereses que unas veces viene ya fijada y formalizada en la ley, y otras de una valoracion judicial de las circunstancias concurrentes en el caso concreto. Una problematica particular plantea, sin embargo, la interpretacion de la expresion "indirectamente" empleada en el art. 11, 1 de la Ley Organica del Foder Judicial. For un lado, si se interpreta estrictamente, conforme a la teoria elaborada hace ya casi un siglo por la Corte Suprema norteamericana y seguida inicialmente par el TS espafiol, que impide utilizar "el fruto del arbol envenenado"18, es decir, no solo en la prueba obtenida directamente con violacion de derechos fundamentales, sino en otras que no los lesionan directamente, pero que se derivan de una prueba prohibida, no solo no puede valorarse el dato obtenido mediante la lesion directa de un derecho fundamental (a traves de, por ejemplo, un acto de tortura, o mediante una grabacion o escucha ilegal), sino tambien el que se obtenga indirectamente de dicha lesion (la droga aprehendida tras haber confesado el sospechoso donde se encuentra, o tras haberse conseguido la informacion a traves de una conversacion telefonica privada grabada ilegalmente). For el contrario, una interpretacion mas atemperada de lo tan contundentemente dispuesto en el art. 11, 1 de la LOFJ, considera que cuando la nueva prueba se pudo obtener tambien de forma independiente y observando las reglas prescritas legalmente (el juez autoriza el registro y esta presente en el momento en que se aprehende la droga o el video comprometedor), esta segunda prueba es plenamente valida. La Jurisprudencia de la Sala 2.a del TS ha oscilado entre ambas tesis, hasta que el Tribunal Constitucional en su sentencia 81/1998, introdujo la teorfa de la conexi6n de la antijuricidad, considerando que una prueba derivada de una prueba prohibida puede ser admitida, cuando se obtenga de un modo independiente o se hubiera podido obtener de todos modos, desconectada de la antijuricidad originaria de la prueba prohibida 19 . Esta es tambien la tesis que acoge ahora el art. 230 de la Ley de Enjuiciamiento civil, cuando sefiala
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Dicha tesis fue formulada por primera vez por la Carte Suprema norteamericana en el caso "Silversthorne Lumber Co. vs. US (1920)", en el que se establecio que la llamada "regla de exclusion" (exclusionary rule), segun la cual se prohibe la utilizaci6n de toda prueba que hubiese sido obtenida de forma ilicita por un agente de la autoridad federal (afirmada ya en el caso "Boyd vs. US, 1886), tambien era aplicable a cualquier otra prueba incriminatoria que se derivase de la obtenida ilicitamente. Tanto una, como otra tesis han sufrido despues algunas modificaciones de caracter restrictivo, sobre todo a partir de los af\os 60 del pasado siglo (vease: HA!RABEDIAN, La prueba obtenida ilicitamente por particulares, en Nueva Doctrina Penal (Buenos Aires), 2001/B; FIDALGO GALLARDO, La regla de exclusion de pruebas inconstitucionalmente obtenidas en los Estados Unidos de America, en La Ley, 2003). 19 Cfr. al respecto DE JuANES PECES, La prueba prohibida, analisis de la STC 81/1998. Un nuevo enfoque de la presuncion de inocencia, en Actualidad Juridica Aranzadi, n. 0 353, 1998.
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que "la nulidad de un acto no implicara la de los sucesivos que fuesen independientes de aquel ni la de aquellos cuyo contenido no pudiere haber sido distinto en caso de no haberse cometido la infracci6n que dio lugar a la nulidad". Ello es consecuencia del "principio de la conservaci6n de los actos", segun el cualla nulidad radical de un acto no implica la nulidad de cuanto sea subsiguiente a dicho acto 20 • Tesis que igualmente recoge el art. 242 de la LOPJ: "1. La nulidad de un acto no implicara la de los sucesivos que fueren independientes de aquel ni la de aquellos cuyo contenido hubiese permanecido invariable a{m si haberse cometido la infracci6n que dio lugar a su nulidad. 2. La nulidad de parte del acto no implicara la de las demas del mismo que sean independientes de aquella". As£, por ejemplo, en el caso comentado por Roxin, el cadaver del nifio secuestrado se encontr6 por la confesi6n del secuestrador obtenida mediante amenazas, pero igualmente se hubiera podido encontrar por otros medios de investigaci6n legalmente admisibles. No obstante, no cabe duda de que con este tipo de interpretaciones se puede convertir la tajante declaraci6n contenida en el art. 11, 1 de la LOPJ en una declaraci6n de principios puramente simb6lica, sin ningun efecto practico, y mucho menos con un efecto practico "preventivo" de las actuaciones incorrectas de los agentes publicos encargados de la investigaci6n y, en su caso, condena de un hecho delictivo. La posibilidad de "saneamiento perverso" que puede conseguirse por esta via, convirtiendo una prueba prohibida en una conforme a Derecho, obliga a ser muy cauto con una tesis tan amplia que practicamente ignora la expresi6n "indirectamente" contenida en el art. 11, 1 de la LOPJ. Un caso de esta forma de "saneamiento perverso" de un dato obtenido a tt·aves de una prueba prohibida, se dio en USA en el "caso O.J.Simpson", al alegar la Polida que entr6 sin autorizaci6n judicial en el domicilio del famoso deportista Simpson, sospechoso de haber asesinado a su ex mujer y al amante de esta, porque pensaba que su vida podia cmTer peligro, y no para obtener ninguna prueba en su contra ("principio de la buena fe" o "good faith exception", tambien reconocido en el inciso primero del apartado 1 del art. 11 de la LOPJ, aunque de una forma que no excluye la validez del principio de exclusion de la prueba prohibida contenido en el inciso siguiente). De este modo el guante ensangrentado que alll se encontr6, fue admitido como prueba, aunque despues por defectos en la practica de la prueba pericial el analisis de la sangre no arroj6 ningun dato concluyente sobre la culpabilidad de Simpson, quien, como es sabido, por estas y otras razones (la falta de credibilidad del polida que encontr6 el guante), fue absuelto 21 • Pero lo que 20
DE LA OuvA, ob. cit., p. 5. Sobre este caso y !as irregularidades procesales que se dieron en el proceso, vease FLETCHER, Las victimas ante el Jura do, traducci6n de Medina Ariza y Mufioz Auni6n, Valencia, 1997, p. 349 ss.; DERSHOWITZ, Reasonable Doubts; The Criminal Justice System and O.J.Simpson Case, New York, 1997, p. 41 SS,, 197. 21
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aqui interesa destacar es que la prueba del guante, salvo que se crea la poco crefble version de la policia de Los Angeles, se derivaba indirectamente de una prueba prohibida obtenida mediante la lesion de un derecho fundamental: el de la inviolabilidad de domicilio, y, por tanto, no debio haber sido valorada. El tema de la valoracion de las pruebas directa o indirectamente obtenidas mediante vulneracion de derechos fundamentales admite, por tanto, muchas matizaciones, sobre todo si se tiene en cuenta que la casuistica de las situaciones que pueden presentarse es inabarcable; tanto mas, en un tema tan casuistico y actual como es el de la valoracion de las pruebas obtenidas a traves de grabaciones audiovisuales que violentan los derechos fundamentales al hon01~ la intimidad y la propia imagen reconocidos en el art. 18, 1 de la CE, en el que diffcilmente pueden hacerse declaraciones genericas, ni mucho menos aprioristas y desvinculadas de las particularidades del caso concreto, ni a favor, ni en contra de su admision. Pese a ello, en una primera aproximacion al tema, creo, sin embargo, que desde el primer momento debe hacerse una distincion que, a mi juicio, en esta materia es fundamental, y que muchas veces pasa desapercibida a la doctrina y a la propia jurisprudencia cuando se ocupa de este tema, pues evidentemente no es lo mismo que se trate de la valoracion como prueba de grabaciones audiovisuales realizadas, directa o indirectamente, por organos del Estado, en cumplimiento de su mision de averiguar y castigar el delito (cfr. infra III); que de la valoracion de esas mismas grabaciones realizadas entre o por particulares, incluso con finalidades delictivas (cfr. infra IV). Por razones faciles de comprender, la distincion tiene consecuencias importantes, tanto en lo que se refiere a la validez de la prueba misma y a la forma en que se practique, como a su valoracion como prueba, de ahi que procedamos a su anaJisis por separado.
III. El tratamiento de las grabaciones audiovisuales efeduadas por 6rganos estatales El principio del que se parte en esta materia es el de que las injerencias en el ambito privado por parte del Estado solo esta permitida excepcionalmente en los casos previstos legalmente. Ello parece obvio si se tiene en cuenta que en estos casos la ingerencia procede de un organo estatal, que por legitimo y explicable que sea su afan por conseguir pruebas que determinen la condena del autor de un delito, puede, con toda la prepotencia que le coloca en un nivel superior al del simple ciudadano, conculcar derechos tan fundamentales como, por ejemplo, el derecho a la intimidad o a la inviolabilidad de domicilio, que son los que mas directamente se pueden ver afectados por estas injerencias. Sin embargo, algunas de estas injerencias pueden ser imprescindibles para la averiguacion, persecucion y, en su dia, condena de los delitos. Renunciar a
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ellas en estos momentos supondria tanto como renunciar a una tarea tan fundamental para el Estado de Derecho como es el ejercicio eficaz de su poder punitivo en la lucha contra la delincuencia. Solo que una vez mas debe decirse que este derecho, legltimo desde el momento en que lo sea la existencia del propio Derecho penal, yen cuanto el proceso penal se centra en una "busqueda de la verdad" 22 relativa, no puede ejercerse a toda costa o a cualquier precio, con merma de los derechos fundamentales, o al margen de los requisitos y presupuestos legales que regulan la posible ingerencia en ellos. De ahi que en esta materia, se hayan promulgado desde el momento en que empezaron a utilizarse estos medias como medias de averiguacion y prueba del delito en el proceso penal una serie de normas que pretenden formalizar o protocolizar con todo lujo de detalles, precauciones y garantlas, los casos en que pueden emplearse y utilizarse legftimamente como medias de prueba, creandose asi una especie de "justificacion por el procedimiento", en la que lo que justifica y legitima la actuacion del organo estatal es el cumplimiento de determinados requisitos formales, tales como la autorizacion judicial, como por ejemplo en los supuestos previstos en el art. 550 de la Ley de Enjuiciamiento criminaF3 â&#x20AC;˘ Ello se deriva tambien de lo que dispone el art. 53, 1 de la Constitucion espanola que obliga a regular por ley el ejercicio de los derechos y libertades que se recogen en el Titulo I, capitula II de la misma 24 â&#x20AC;˘ Solo en la medida en que se cumplan esos requisitos formales, la actuacion, por ejemplo, de la Policia, en una entrada o registro, sera correcta, aunque materialmente no lo sea (por ejemplo, si hubo un error en la identidad del detenido, este tendra derecho a recurrir pero no a resistir o disparar contra el polida que lo detiene). Sin embargo, tampoco aqui pueden establecerse criterios generales, no ya solo por las particularidades de cada caso, sino porque, dependiendo de si 22
Vease Muf\!oz CoNDE, La btisqueda de la verdad en el proceso penal, Lecci6n Inaugural del Curso 1998/99 en la Universidad Pablo de Olavide de Sevilla, Sevilla, 1998 (hay una verswn publicada como articulo en la Revista de Derecho y Proceso Penal, num1, 2000). Una version ampliada ha sido publicada en la editorial Hammurabi, 2." edici6n, Buenos Aires, 2003. 23 Cfr. Muf\!oz CoNDE/GARCiA ARAN, Derecho penal, Parte General, 5." ed., Valencia, 2002, pp. 316, 340, 345 A veces el grado de formalizaci6n exigido va mas alla del que el propio legislador ha establecido. As!, por ejemplo, el art. 21, 2 de la Ley de Seguridad ciudadana, en su version originaria autorizaba la entrada en domicilio a Ios miembros de las Fuerzas de orden ptiblico en caso de "conocimiento fundado" por parte de estos de que se estaba cometiendo un delito de trafico de drogas, sin necesidad de permiso judicial; dicho precepto fue, sin embargo, declarado inconstitucional por STC 341/1993, de 18 noviembre. 24 En el mismo sentido el art. 8, 2, del Convenio europeo de Derechos humanos, despw2s de reconocer en el apartado 1 que "toda persona tiene derecho al respeto de su vida privada y familiar, de su domicilio y de su correspondencia", dice: "No podra haber injerencia de la autoridad p(!blica en el ejercicio de este derecho, sino en tanto en cuanto esta injerencia este prevista por ley y constituya una medida que, en una sociedad democratica, sea necesaria para la seguridad social, la seguridad publica, el bienestar econ6mico del pais, la defensa del orden y la prevenci6n del delito, la protecci6n de la salud o la moral, o la protecci6n de Ios derechos y libertades de Ios demas".
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trata de la esfera estricta de la intimidad en el seno del domicilio particular, o de una intimidad mas generica manifestada tambien en espacios publicos, el grado de formalizacion exigido y I o exigible puede ser mas o menos estricto. Ello impone, a mi juicio, una distincion segun se trate de injerencias estatales en el ambito de la intimidad domiciliaria (a), 0 de injerencias estatales en los actos privados, pero realizados en espacios publicos (b). Veamoslos, pues, por separado. a) En el ambito privado. Las primeras de esas normas surgieron en las Leyes procesales penales del siglo XIX para regular la entrada y registro en domicilios particulares, pero luego se extendieron o se crearon ex profeso otras para regular las escuchas telefonicas y la captacion por medios audiovisuales de las actividades que se llevan a cabo en el ambito privado o de la intimidad. La regulacion legal contenida en la Ley de Enjuiciamiento criminal es tan insuficiente (vease art. 579 LECrim), que ha obligado a la jurisprudencia, tanto del Constitucional, como del Supremo, a adoptar importantes decisiones que las particularidades del caso concreto hacen muchas veces que parezcan contradictorias. El requisito principal que se exige, tambien en el art. 579, 2 y 3, es la autorizacion judicial motivada. A partir de ahi se afiaden otros requisitos coma la existencia de un proceso penal abierto, la necesidad de revision de la autorizacion judicial cada cierto tiempo, limitacion temporal de la medida y ademas, aunque no viene exigido en la Ley, el principio de proporcionalidad, que de algun modo limita la injerencia en el derecho a la intimidad a la investigacion de delitos de cierta gravedad, aunque no se especifiquen exactamente cuales. Pero incluso cuando se trata de delitos relacionados con la actuacion de bandas armadas o elementos terroristas o rebeldes, la medida prevista en el numero 3 del art. 579 de la LECrim., podra ordenarla el Ministro del Interior o, en su defecto, el Director de la Seguridad del Estado, comunicandolo inmediatamente por escrito motivado al Juez competente, quien, tambien de forma motivada, revocara o confirmara tal resolucion en un plazo maximo de setenta y dos horas desde que fue ordenada la observacion. Una decision importante a este respecto, que delimito con mayor nitidez los requisitos exigidos en el art. 579, fue el Auto del TS de 19 junio 1992 ("caso Naseiro"; ponente: Ruiz Vadillo), en el que una escucha telefonica autorizada judicialmente se anulo como prueba, en base a que no hubo un control judicial permanente de su ejecucion, pero sabre todo a que el delito que se detecto a traves de la escucha podia ser todo lo mas "conspiracion a un cohecho" y no el de trafico de drogas que era el delito por el que se habia autorizado la escucha. Mas lejos a(m llega la sentencia del Pleno del TC 18/2003, de 23 octubre, (ponente: Casa Baamonde), en la que se anula la sentencia de la Audiencia
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Provincial de Sevilla de 29 diciembre 1999, que conden6 por cohecho y falsedad mercantil a unos funcionarios implicados en casos de cobro de "comisiones ilegales" en base a unas escuchas telef6nicas decretadas judicialmente a partir de una denuncia an6nima. La sentencia del Tribunal Constitucional considera, tras un analisis detenido de la jurisprudencia del Tribunal Europeo de Derechos humanos y tras denunciar las insuficiencias de la regulaci6n espanola sobre la materia, que "no puede sostenerse que en el momento en que se acordaron las primeras intervenciones telef6nicas existiera una base real exteriorizada en la resoluci6n judicial, la solicitud policial, o incluso en el escrito de denuncia an6nimo, a partir del cual se iniciaron las diligencias preliminares". Para el Tribunal Constitucional "El indicia de credibilidad no puede reputarse suficiente, en el caso analizado, a Ios efectos de sustentar la concurrencia del
presupuesto habilitante y, en consecuencia, la proporcionalidad de la intervenci6n telef6nica". En consecuencia, anula tambien las posteriores grabaciones telef6nicas, en las que si se obtienen indicios delictivos, por "existir una concatenaci6n temporal y l6gica" con las primeras, manifestando expresamente: "La declaraci6n
de vulneraci6n del secreta de las comunicaciones del primer Auto de autorizaci6n de la intervenci6n telef6nica tiene coma consecuencia la vulneraci6n del mismo dereclzo par las resoluciones posteriores que se adoptaron con fundamento en Ios datos conocidos directamente a traves de la primera intervenci6n telef6nica, cuya ilegitimidad constitucional acabamos de declarar (en e/ mismo sentido, STC 299/2000, de 11 diciembre, F.6). Y ello con independencia de que pueda entenderse que las posteriores autorizaciones se sustentaban en datos objetivos y no meras conjeturas, pues la fuente de conocimiento de Ios mismos es la primera intervenci6n telef6nica declarada inconstitucional". No cabe duda de que con ello el Tribunal Constitucional da un espaldarazo a la importancia del derecho a la intimidad que no puede ser vulnerado simplemente en base a simple conjeturas o sospechas de conducta delictiva, sin base objetiva alguna, o basandose en una denuncia an6nima. Si no fuera asi, bastaria que alguien que quiere molestar a su enemigo o incluso la propia policia provocaren con una denuncia an6nima, sin otro apoyo legal que el mero rumor ("se le imputa un rapido enriquecimiento a la sombra de Manuel D.M.", se decia en el caso fallado por el Constitucional), para que automaticamente el telefono de cualquier ciudadano pudiera ser intervenido. Esto parece olvidarse por los Magistrados que formularon voto particular (Garcia Calvo, Rodriguez Zapata y Conde), que, en todo caso, tras asumir tambien la insuficiencia de la regulaci6n legal espanola sobre la materia, consideran que hubo otras pruebas, obtenidas licitamente, que si pudieron servir para la condena. Pero la idea de proporcionalidad, que dichos Magistrados tambien acatan como limite para una intervenci6n en un derecho fundamental como
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es el de la intimidad, no solo exige la gravedad del delito que se investiga, sino tambien que existan verdaderos "indicios" de que se haya podido cometer, basandose para ello en el algo mas que en simples conjeturas o en escritos anonimos. La idea de la proporcionalidad es tambien exigida por la jurisprudencia y la doctrina alemanas, que tienen en este sentido a su favor que el paragrafo 100 b V StPO (Ley de Enjuiciamiento criminal alemana) dice expresamente que no pueden emplearse procesalmente las pruebas obtenidas a traves de una intervencion telefonica cuando se trate de delitos respecto a los cuales no esta permitida la intervencion y sobre aquellos que no estan en conexion con los delitos respecto a los cuales se ha autorizado la intervencion. "Si, por ejemplo, - dice RoxiN -, se ha intervenido el telefono de un sospechoso en un delito de trafico ilicito de drogas agravado, pero la intervencion solo prueba un robo o una estafa cometidos par el sospechoso, no puede ser utilizado este material en su contra" 25 . Mas discutible parece, sin embargo, la decision del Tribunal Supremo Federal aleman, citada tambien por RoxiN26, que prohibio usar como prueba la grabaci6n de una conversaci6n privada de un matrimonio mientras comia y en la que se detecto un asunto de trafico de drogas, ya que la misma se habia producido porque el telefono habia quedado mal colgado y la autorizaci6n judicial s6lo se referia a la conversacion telefonica no a la privada del matrimonio que se grabo por casualidad. En este tema de los "hallazgos casuales" la jurisprudencia suele ser bastante contradictoria, pero, en todo caso, la idea de proporcionalidad impone un limite material adicional a los requisitos puramente procedimentales con que debe realizarse la medida de grabaci6n. Sin embargo, ni la legislacion ni la jurisprudencia espafiolas dicen nada ni respecto al ambito de la intimidad que puede ser controlado de esta manera, ni respecto a la posibilidad de que se instalen de forma permanente durante un cierto tiempo escuchas en ambitos de la mas estricta intimidad. La licitud de las grabaciones realizadas en este ambito (las llamadas "grandes escuchas"), y su utilizacion como prueba, es actualmente en muchos paises un tema bastante controvertido. Asi, por ejemplo, en Alemania el tema de las "grosse Lauschangriffe" ha sido objeto de una regulacion legal expresa, que ha sido cuestionada desde el punto de vista de su constitucionalidad. Al principio, de acuerdo con la "teoria de los dos niveles" elaborada por el Tribunal Constitucional Federal aleman, se diferenciaba entre el simple ambito privado y el "ambito intangible de la vida privada". Las diferentes consecuencias procesales segun se trate de uno u otro ambito radicaba en que los medias de prueba que afectan al primero pueden ser utilizados de acuerdo con una ponderaci6n 25 RoxiN, La evoluci6n de la politica criminal, el derecho penal y el proceso penal, traducci6n de G6mez Rivero y Garcia Cantizano, Valencia, 2000, p. 147. 26 Ob. y lug. u. cit ..
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entre el interes a la averiguaci6n estatal en la verdad y el del procesado a que se respete su ambito privado; mientras que cuando se trata del "ambito intangible" el interes general no puede nunca justificar una injerencia en el mismo. Las diferencias entre uno y otro ambito son, sin embargo, como reconoce RoxrN 27 , dificiles de marcar y ello provoca dificultades en su aplicaci6n practica, como lo demuestra el caso fallado por el Tribunal Supremo Federal en el que se conden6 a un individuo acusado de haber matado a una mujer en base a las notas personales que habia escrito en su diario intimo. Evidentemente, si el diario intimo pertenece al"ambito intangible de la intimidad", las anotaciones que en el se encuentran no pueden ser utilizadas, segun la tesis del Tribunal Constitucional antes mencionada, en contra de su titular. La decision de este Tribunal en 1989 (BverfGe, 80, 367) no fue, sin embargo, pacifica, ni unanime, y tras un renido empate (cuatro Magistrados votaron a favor de su valoraci6n, y cuatro en contra), se mantuvo la sentencia del Supremo favorable a su valoraci6n como prueba y en base a la cual el acusado fue condenado 28 . EXCURSO I: Comentarios a la sentencia del Tribunal Constitucional Federal Aleman (BVerjG) de 3 de marzo 2004.
A la vista del estado contradictorio y a veces confuso de la jurisprudencia alemana, el legislador aleman quiso zanjar las dudas y vacilaciones jurisprudenciales, regulando expresamente el problema. En un principio, en 1992, se pennitieron las escuchas secretas de conversaciones llevadas a cabo fuera del domicilio; pero, posteriormente, en 1997 se aiiadi6 al articulo 13 de la Ley Fundamental de Bonn, cuatro nuevos parrafos (3 a 6), en los que se admite la posibilidad de que en casos de delitos especialmente graves se instalen sistemas tecnicos de escucha en el interior de la vivienda en la que resida el sospechoso; esta medida solo puede ser acordada judicialmente y par tiempo determinado. A partir de la nueva normativa constitucional, se aprob6 par el Parlamento aleman el 4 de mayo de 1998 una Ley para la mejora de la lucha contra la criminalidad organizada par la que se modific6 la Ordenanza del Proceso penal (StPO), introduciendo en ella los arts.100 c y ss., en los que se regulan los requisitos para acordar la medida de vigilancia acustica de un domicilio particular, siempre que esta sea aprobada par una Sala especial, o en caso de urgencia par su Presidente, durante un plaza determinado, en caso de sospecha de un grave delito (especificando en una larga lista los delitos en Ios que esta medida es posible) y cuando la investigaci6n del hecho fuera de otro modo extraordinariamente dificil o imposible29 â&#x20AC;˘ 27
Ob. cit., p. 149. Cfr. RoxiN, ob. cit. p. 155, quien, como la mayoria de la doctrina, se muestra contrario a la admisi6n como prueba del diario. Cfr. tambien AMELUNG, Die zweite Tagebuchsentscheidung des BverfG, en Neue Juristische Wochenschrift, 1990, p. 1753 ss .. 29 V ease sobre esta reforma RoxiN, Strafverfahrensrecht, 25.a ed., 1998, paragrafos 71, 72 (hay traducci6n espafiola, publicada en Buenos Aires, editora del Puerto, 2000). Una breve referenda a esta reforma tambien en RoxiN, La evoluci6n cit., p. 155 s .. 28
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Contra esta reforma interpusieron recurso de inconstitucionalidad varios diputados. La Sala Primera del Tribunal Constitucional Federal ha acogido en parte este recurso en su sentencia de 3 de marzo 2004, declarando par unanimidad que la implementacion procesal de la reforma constitucional que se hizo en 1998 es en gran parte inconstitucional "par no cumplir en toda su extension las exigencias juridicas constitucionales en relacion con la proteccion de la dignidad humana (Art. 1, 1 GC), el principio de proporcionalidad comprendido en el Estado de Derecho, la garantia de una efectiva proteccion juridica (Art. 19, 4 GC) y el derecho a ser oido (Art. 103, 1 GC)". Dos magistradas de dicho Tribunal, Jaeger y Hohmann-Dennhardt, formularon voto particular, considerando que ademas deberia haber sido declarada igualmente inconstitucional la reforma del art. 13 de la GC que dio lugar a la reforma de la Ordenanza Procesal, par considerar que el derecho a la intimidad domiciliaria al afectar a los principios recogidos en los arts.1 y 20 de la Ley Fundamental no puede ser objeto de ninguna intervencion, "pues el desarrollo de la personalidad requiere de espacios reservados, en los que el individuo se pueda expresar autonomamente sin miedo a ser vigilado y comunicar confiadamente sus opiniones y sentimientos personales. Precisamente en un mundo, en el que ha llegado a ser posible perseguir y grabar cualquier movimiento o comunicacion de una persona, la vivienda privada sirve al individuo coma el ultimo refugio, en el que puede manifestar sin ser observado la libertad de sus pensamientos. Ella (la vivienda particular) es, par tanto, coma lugar media para preservar la dignidad humana". El argumento principal en el que se poyan los magistrados alemanes en su sentencia de mas de 150 paginas para declarar inconstitucional la reforma procesal es que la "dignidad humana protege el nucleo de la configuracion privada de la vida" y, en consecuencia, "todo ciudadano tiene derecho a estar tranquilo en su casa". La sentencia analiza y desmenuza cuidadosamente los argumentos que se oponen a esta regulacion tambien desde el punto de vista del nucleo estricto de la intimidad; sin embargo, la mayoria de cinco de esos Magistrados admite, excepcionalmente y bajo estricto control judicial, el empleo de medias de vigilancia acustica del domicilio privado cuando se trate de controlar conversaciones sabre "hechos delictivos ya cometidos o cuando el delito que se investigue tenga asignada una pena de prision superior a cinco ai1os" (excluyendo mas de treinta tipos delictivos, entre ellos, la estaja o el cohecho, en los que la regulacion declarada inconstitucional permitia el control acustica). Pero para instalar esas medidas de control "la policia debe tener concretos puntos de referenda de que el sujeto investigado hable de asuntos criminales en el estrecho circulo de los amigos y parientes que se encuentren en ese momento en el domicilio privado, o que estos amigos o parientes esten tambien implicados en esos delitos". La que, en ningun caso, se permite es la escucha abierta e indiscriminada. Asi, par ejemplo, si hay una reunion del cartel de Medellfn en el domicilio de uno de ellos sus conversaciones pueden ser grabadas, pero dicha grabacion debe ser automaticamente suspendida, cuando la conversacion sea con sus familiares o sabre asuntos privados. Para comprobar que todo ello se cumple, incluso Lusiada. Direito. Lisboa, n. 0 4/5 (2007)
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una vez obtenida la grabaci6n, esta tiene que ser de nuevo analizada par el Tribunal que la autoriz6, que es el que decide, en ultima instancia, si puede ser admitida y presentada coma prueba. A la vista de que la actual regulacion no cumple estos requisitos el Tribunal Constitucional emplaza al Gobierno Federal y a los Gobiernos de cada uno de los Estados de la Federacion para que antes del 1 de junio del 2005 adapten sus legislaciones a los principios y requisitos que se exponen en esta decision. En Espafia el problema no ha sido objeto de una especial regulacion, lo que ya ha sido denunciado por el TC en sentencia 49/1999, reiterada en una mas reciente 18/2003, de 23 octubre, anteriormente citada y comentada. En ellas se dice que "la situacion del Ordenamiento juridico espafiol, puesta de manifiesto en la concreta actuacion que aqui se examina, y sufrida por los recurrentes, ha de estimarse contraria a lo dispuesto en el art. 18, 3 de la Constitucion". De un modo general, el Magistrado del TS Enrique BACIGALUPO, en una comunicacion a la III. Reunion del Proyecto comun europeo de lucha contra la criminalidad organizada, Programa Falcone Union Europea, celebrada en la sede del Tribunal Supremo de Espafia, 15-18 junio 2000, propone una "regulacion del uso de medios h~cnicos para la interceptacion de comunicaciones privadas", bastante coincidente con la regulacion alemana, sobre todo en lo que se refiere a la necesidad de una lista en la que se especifiquen los delitos en los que cabe adoptar esa medida (que el de todos modos no menciona expresamente), el grado de sospecha requerido respecto a las personas cuyas conversaciones se quiere controlar, excluyendo en principio a las que tengan derecho al secreto profesional (salvo que haya sospechas de que cooperan en el delito) y una serie de cuestiones procedimentales (Tribunal o Juez competente para adoptar la medida, duracion de la misma, etc). No obstante, salvo en lo que se refiere a la existencia de una lista de delitos en la que se permitan tales escuchas, la jurisprudencia espafiola ha interpretado la regulacion existente sometiendola a estrictos requisitos, como anular la grabacion por falta de control judicial suficiente, o por falta de proporcionalidad de la medida en relacion con la gravedad del delito que se investigaba o por haberse descubierto a traves de la grabacion un delito de menor gravedad que el delito para cuya investigacion se habia autorizado la grabacion (recuerdese el Auto del TS 18 junio 1992 en el "caso Naseiro", o la STC 18/2003, 23 octubre, antes citadas). A pesar de ello, la sentencia del Tribunal Europeo de Derecho Humanos de 30 junio 1998, "caso Valenzuela", considero que en esta materia el derecho espafiol, "escrito o no", no cumple los requisitos del art. 8 del Convenio europeo de Derechos Humanos 30 â&#x20AC;˘ Y es que realmente no puede admitirse, o por lo menos 30 Este articulo, anteriormente trascrito, no se refiere expresamente a las escuchas telef6nicas, pero el Tribunal Europeo de Derechos Humanos no ha tenido ningun problema en incluirlas dentro
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no sin reservas y sometiendo la medida a estrictos requisitos formales y justificandola con criterios materiales en relacion con la gravedad del delito y la urgencia y necesidad de aplicm路la, que se pueda invadir el ambito mas estricto de la intimidad (como puede ser un dormitorio), con la misma intensidad que cualquier otro ambito menos intangible. Pero aun en el caso aleman, donde la medida de las "grandes escuchas" venia limitada, antes incluso de que el Tribunal Constitucional la declarara inconstitucional (cfr. supra EXCURSO I), por estrictos requisitos procedimentales y materiales, la norma incluida por la reforma de 1998 en los arts. 100 c y ss. StPO, habia sido ya muy criticada, porque, como deda ROXIN, "no solo perjudica puntualmente el ambito privado domestico ..... , sino que lo anula por completo", considerandola "un ataque a la dignidad humana" 31 . Y es que ademas, como sefiala el Magistrado BACIGALUPO en su comunicacion antes citada, "la utilizacion de medios tecnicos para la obtencion de manifestaciones de un inculpado constituye, de esta manera, una extension de la idea fundamental de limitar el derecho del inculpado de ciertos delitos a no declararse culpable y a reducir las exigencias garantisticas de los interrogatorios de aquel". Desde luego, tales procedimientos, se corresponden mal con el principio "nemo tenetur se ipsum accusare", trascrito en el art. 24, 1 de la Constitucion espafiola como el derecho a no declarar contra uno mismo. Asi, por ejemplo, en el caso antes citado de la valoracion como prueba de un diario intimo no solo se viola el derecho al "nucleo intangible de la intimidad", sino el derecho a no declarar contra si mismo. Lo mismo sucede cuando se utilizan agentes encubiertos o confidentes que graban conversaciones con el presunto responsable (con el que, por ejemplo, conviven en la misma celda) y luego esas grabaciones se utilizan como pruebas en el proceso, pues esta claro que en estos casos la Policia, o el agente estatal que sea, esta incumpliendo su
de la clausula generica de su apartado 1 que se refiere a la "vida privada y familiar"; cfr. LorEZ BARJA DE QurROGA, El convenio, el tribunal europeo y el derecho a un juicio justo, Madrid, 1991, p. 74, citando varias decisiones de este Tribunal (caso Huvig y caso Kruslin-Amas de 1990) en !as que se dice expresamente que "!as escuchas y otras formas de intervenci6n de !as conversaciones telef6nicas representan un atentado grave al respeto a la vida privada y a su correspondencia. Por tanto, deben basarse en una "ley" de una precision especial. La exigencia de reglas clm路as y detalladas en esta materia parece indispensable". Concretamente, la sentencia del Tribunal de 30 julio 1998 en el "caso Valenzuela contra Espai'ia" dice que la ley que regule esta materia debe contener: "la definici6n de categorias de personas susceptibles de poder dar lugar a la medida; la fijaci6n de un limite a la duraci6n de la ejecuci6n de la medida; el procedimiento de trascripci6n de !as conversaciones interceptadas; !as precauciones a observar para comunicar intactas y completas !as grabaciones realizadas a Ios fines de control eventual por el Juez y la defensa; !as circunstancias en !as cuales puede o debe procederse a borrar o destruir !as cintas, especialmente en caso de sobreseirniento o puesta en libertad" (trascrito en ARMENTA Dw, Lecciones de Derecho procesal penal, Madrid, 2003, p. 179. Cfr. tambien STC 18/2003, 23 octubre). 31 RoxrN, La evoluci6n cit., p. 156.
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obligaci6n de proporcionarle asistencia juridica al sospechoso en su declaraci6n y de advertirle a este que todo lo que diga puede ser utilizado en su contra32 â&#x20AC;˘ b) En espacios pl'1blicos Distinto, por lo menos respecto a los requisitos exigibles para su admisi6n, es el tema de las grabaciones audiovisuales de actividades privadas en espacios publicos; un tema que desde un principio gener6 polemica y motivo una regulaci6n legal expresa del uso de videocamaras en los espacios publicos. Es indudable que desde el punto de vista de la seguridad ciudadana y de la prevenci6n de delitos (videovigilancia) puede ser un medio eficaz, igual que puede serlo posteriormente como prueba material de la comisi6n y de la autoria de un hecho delictivo cometido en esos espacios publicos. Sin embargo, tambien en estos casos pueden conculcarse derechos fundamentales, cuya lesion puede, en principio, determinar la nulidad de la prueba asi obtenida. Un caso de este tipo fue fallado por la Audiencia provincial de Madrid en sentencia 12 abril de 1994. Se trataba de una instalaci6n de videocamara que habia puesto la Policia en un urinario publico, en el que solian producirse actos de trafico de drogas ilegales. La sentencia de la Audiencia anula la prueba de uno de estos actos obtenida mediante la grabaci6n de la video camara con el argumento de que si bien se trataba de un espacio publico, la actividad que en una parte de dicho espacio, los servicios higienicos, se lleva a cabo de forma general es eminentemente privada y afecta al nucleo mas estricto de la intimidad, y no ya la de los narcotraficantes que en ellos puedan realizar tambien los hechos delictivos, sino la de los centenares o miles de personas que pueden utilizar dicho espacio para realizar sus necesidades fisiol6gicas mas elementales. Sin embargo, de su Fundamento Juridico parece desprenderse que la raz6n principal por la que se rechaza esta grabaci6n como prueba es que "la policia no obtuvo autorizaci6n judicial previa para realizar la grabaci6n audiovisual con la videocamara, pues le fue comunicada el 4 de marzo al Juez de Instrucci6n del Juzgado n. 2 de Arganda del Rey, quien en ningun momento dict6 resoluci6n alguna autorizando la instalaci6n de la videocamara". De ello parece desprenderse que si hubiera habido tal autorizaci6n judicial, la instalaci6n de videocamara incluso en los inodoros hubiera sido correcta y la grabaci6n se hubiese podido utilizar como prueba. El Ministerio Fiscal recurri6 esta sentencia, por considerar que la grabaci6n no se habia realizado dentro del espacio estrictamente reservado a la intimidad fisiol6gica, sino en lo que la sentencia denomina la "antesala del vater" (sic), no siendo necesario para este tipo de grabaciones ninguna autorizaci6n judicial. La STS 5 mayo de 1997 (ponente: Garcia Calvo) acoge el recurso del Fiscal, 0
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En el mismo sentido RoxrN, ob. cit., p. 123 ss ..
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considerando que "el ambito del Derecho a la Intimidad - entendida esta en el sentido constitucional del termino y, por tanto, sometida a la exigencia de autorizaci6n judicial previa para su invasion- no debe extenderse en el presente supuesto a aquella zona comun o de distribuci6n en la que se encuentran situados los lavabos de los servicios publicos del parque .... , sino unicamente a los habihkulos cerrados en los que se encuentran los inodoros y a los que se accede desde dicha zona comun despues de traspasar una puerta". A la vista de esta sentencia, el Plena de la Sala Penal del TS de 30 junio de 1997, expresa: "Examinada la cuesti6n en terminos generales, y sin perjuicio de la que pueda resolverse en cada caso en virtud de especiales circunstancias, Ios
Magistrados llegan a la conclusion de que los lavabos publicos son lugares donde se desarrollan actividades que afectan a la intimidad de las personas, par la que no cabe situar en ellos aparatos que recojan las imagenes de dichas personas, sin autorizaci6n judicial" (citada apud GRANADOS Pf:REZ, Acuerdos del Plena de la Sala Penal del TS para unificaci6n de la Jurisprudencia, Valencia 2000, p. 21). Tres conclusiones cabe destacar de esta resoluciones: 1.") Se reconoce el derecho a la intimidad estricta que se desarrolla tras la puerta cerrada de un inodoro. 2.a) Se admite que en este caso se pueda excepcionalmente utilizar un sistema de grabaci6n audiovisual, con autorizaci6n judicial. 3.") La autorizaci6n judicial no es preceptiva cuando se trate de actividades desarrolladas en un espacio publico.
A la vista de esta resoluciones parece discutible la tesis mantenida en la sentencia de la Audiencia provincial de Bilbao de 10 de enero 1995, que, en un caso de instalaci6n de videocamaras en un recinto ferial, consider6 que "Existen manifestaciones publica de la vida privada .... y que un sistema de
vigilancia indiscriminada par parte de los poderes publicos sabre estas manifestaciones de la libertad ciudadana y de cada uno de los ciudadanos, en opinion de la Sala, supondria una injerencia abusiva en el derecho a la intimidad a la propia imagen de Ios ciudadanos" 33 â&#x20AC;˘ De todos modos, el TS ya tuvo ocasi6n de pronunciarse sobre esta materia en sentencia de 6 mayo 1993 (ponente: Martin Pallin), senalando la legitimidad de la instalaci6n por parte de la Polida de estas videocamaras en espacios publicos, pero salvaguardando siempre el recinto inviolable del domicilio y el espacio donde tiene lugar el ejercicio de la intimidad. En el mismo sentido STS 6 abril de 1994 (ponente: Ruiz Vadillo) establece que: ÂŤLa filmaci6n se llevara cabo en espacios libres y publicos, sin introducirse /jamas, salvo la correspondiente
autorizaci6n judicial motivada y proporcional al hecho que se trata de investigar, en
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Citada apud CHocLAN MoNTALVO, ob. cit., p. 62, nota 50.
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los domicilios o lugres considerados coma tales, pues a ellos no puede ni debe llegar la investigaci6n, debiendose limitar, coma queda dicho, a los exteriores, donde para nada quedan afectados tales derechos fundamentales" 34 (vease tambien STS 13 marzo 2001: ponente M6ner Mufioz). Pero cualquiera que sea la opinion que merezcan estas decisiones judiciales vinculadas a las particularidades del caso concreto, lo que todas ellas ponen de relieve es la necesidad de distinguir lo que serian las manifestaciones privadas en espacios publicos, cu ya captaci6n filmada generica puede admitirse bajo ciertas condiciones, de lo que es el m:'lcleo estricto de la intimidad en domicilio particular, cuya filmaci6n s6lo puede admitirse excepcionalmente, y aun asi de forma discutible, con una autorizaci6n espedfica de la Autoridad judicial. En todo caso, la necesidad de una regulaci6n legal espedfica de esta materia era notoria. En algunas de las STS antes citadas se menciona expresamente como fuente legal la LO 1/1982, de 5 mayo, sobre protecci6n civil del derecho al honor, a la intimidad personal y familiar y a la propia imagen, que, como ya hemos visto, s6lo indirectamente se refiere a este tipo de captaciones filmicas en espacios publicos. Ello motiv6 la creaci6n de la Ley organica 4/ 1997, de 4 de agosto, que concibe, en un principio, la filmaci6n en lugares publicos como una medida de vigilancia, lo que no excluye que las imagenes asi obtenidas puedan ser utilizadas tambien como prueba de un delito o de la identidad de su autor. Pero para ello tienen, en primer lugar, que cumplirse determinados requisitos formales fijados en la propia Ley. Ast por ejemplo, si se trata de un lugar publico, su instalaci6n debe ir precedida por el informe preceptivo de una comisi6n presidida por un Magistrado, y mediante resoluci6n motivada (art. 3). Y si se trata de un lugar privado, tambien debe contar con la necesaria autorizaci6n judiciat cumpliendose determinados requisitos de especificidad y motivaci6n similares a los que autorizan las escuchas telef6nicas, o, por supuesto, con la autorizaci6n del titular (art. 6). Aun ast la grabaci6n obtenida s6lo tiene el valor de mera denuncia, debiendo, para alcanzar eficacia probatoria, incorporarse al juicio orat y corroborarse allt mediante la correspondiente contradicci6n, con la declaraci6n de los agentes que la realizaron. Lo que por lo demas es doctrina jurisprudencial ya reiterada respecto a la utilizaci6n de otras medidas similares35 â&#x20AC;˘
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V ease referencias a !as mismas tambien en C!-IOCLAN MONTJ\LVO, ob. cit, p. 61. Vease STS 30 enero 1999: la prueba videografica fue corroborada en el juicio oral por el polida que la film6. En este sentido tambien la doctrina, vease C!-IOCLAN MoTALVO, ob. cit, p. 77; DAMIAN MoRENO, Reflexiones sobre la reproducci6n de imagenes como medio de prueba en el proceso penal, en Revista Vasca de Derecho procesal y arbitraje, Tomo IX, Mayo-Agosto 1997, p. 244; y el comentario-editorial a la Ley de utilizaci6n de videocamaras de DiEz PICAZO GuviENEZ, Nota editorial, en Tribunales de Justicia, 10, 1997, p. 959 ss. Sobre la necesidad de corroboraci6n en el juicio oral de la identidad de !as imagenes captadas en bancos y establecimientos privados, para que puedan ser estimadas como pruebas, vease tambien STS 7 marzo 2000. 35
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Que ni siquiera en caso de defensa nacional y de otras tareas social o polfticamente importantes, se legitiman por si solas el uso de grabaciones o de otras medidas de captaci6n de imagenes y I o sonidos, lo confirma la sentencia de la Audiencia de Madrid de 26 de mayo de 1999, que conden6 a los responsables del CESID (Centro de la Defensa Nacional), que, con el pretexto de adoptar medidas de vigilancia y seguridad, captaron "mediante h~cnicas de barridos" conversaciones de personajes polfticos importantes, cuando hablaban a traves de telefonos oficiales o m6viles particulares. La fundamentaci6n de esta sentencia es clara: "No hay en esta materia una causa general de justificaci6n que convierta en lfcita la mas cruda forma de raz6n de Estado". (Esta sentencia fue luego confirmada por el TS, pero ha sido anulada por otra del TC de marzo del 2004, en base a que los magistrados integrantes del Tribunal sentenciador habian perdido la imparcialidad objetiva al haber intervenido previamente en la resoluci6n de un recurso contra el auto de procesamiento). A la vista de todo lo dicho en este apartado III, podemos establecer como principio que las injerencias estatales en la vida privada a traves del empleo de medios audiovisuales solo debe admitirse en los casos fijados legalmente, bajo control judicial y siempre de acuerdo con el principio de necesidad, intervenci6n minima y proporcionalidad. Incluso frente a determinadas manifestaciones del ambito intangible de la intimidad" deberia excluirse cualquier tipo de injerencia, siendo discutible si, incluso en los paises en los que, bajo estrictos presupuestos, se penniten las llamadas "grandes escuchas", estas serian compatibles con el derecho constitucional fundamental a la intimidad en su nucleo mas estricto y reservado. En todo caso, las grabaciones que no cumplan estos requisitos deben considerarse que violan directamente el derecho fundamental a la intimidad y, por tanto, de acuerdo con lo dispuesto en el art. 11, 1 de la Ley Organica del Poder Judicial no pueden "surtir efecto" como prueba. If
IV. Grabaciones realizadas por particulares Las grabaciones realizadas por particulares en el ambito de las relaciones privadas que, por tanto, suponen una inje1路encia en la intimidad de otros particulares, no tienen una regulaci6n legal espedfica y deben ser, por tanto, valoradas en cada caso concreto de acuerdo con los intereses en conflicto. Punto de partida es, sin embargo, el caracter delictivo de dichas grabaciones, tanto si las realiza uno de los intervinientes en el acto de la intimidad (conversaciones, acto sexual), como un tercero ajeno al mismo. En general, hoy en dia es doctrina dominante que la grabaci6n del sonido o de la imagen que vulnere la intimidad o descubra secretos de otro, aungue sea realizada por uno de los protagonistas o intervinientes en el acto de la
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intimidad, constituye el delito previsto en el art. 197, 1, del C6digo penal, que no se olvide, castiga este hecho con una pena de prisi6n de uno a cuatro afios y multa de doce a veinticuatro meses, lo que demuestra la importancia que le da el legislador al derecho a la intimidad y la gravedad de las conductas que lo atacan 36 â&#x20AC;˘ No obstante, a efectos de su valoraci6n como prueba de los datos obtenidos a traves de la comisi6n de este delito, no se puede hacer una declaraci6n general sobre cuando puede admitir y cuando no. En relaci6n con la situaci6n de este tema en Alemania, dice RoxiN37 : "En general, los Tribunales, en relaci6n
a los delitos mas graves, han dado primacfa al inten?s en la averiguaci6n de la verdad, y respecto a los menos graves, par el contrario, han dado prioridad a la protecci6n del ambito privado". Y seguidamente menciona los siguientes casos:"Llna sentencia del Tribunal Supremo Federal del aiio 1989 contempl6 el caso en el que dos hombre de negocios hablaban sabre un gran incendio que planeaban ... Uno de los dos hombres de negocio grab6 la conversaci6n de forma secreta y mas tarde la aport6 al tribunal coma prueba. Aunque la realizaci6n de grabaciones secretas sabre conversaciones privadas esta sancionada penalmente, segun el Derecho aleman (paragrafo 201 del C6digo penal), el Tribunal Supremo Federal acept6 la grabaci6n coma prueba (BGHSt, 36, 167) ( ). La conversaci6n de dos hombres de negocios no se encontrarfa en el ambito intangible par antonomasia de la vida personal y, respecto, a la consiguiente Ucita valoraci6n, mereceda primarse el interes en la averiguaci6n de la verdad, frente a la protecci6n de la vida privada, porque el incendio cualificado es un delito grave castigado con pena privativa de libertad hasta quince afios. Respecto a los delitos menos graves, par el contrario, se dispone la primacfa de la protecci6n del ambito privado. Asi el Tribunal Supremo Federal ha rechazado el uso procesal de una grabaci6n oculta que podia emplearse coma prueba de un delito de perjurio (BGHSt 14, 358). De manera analoga, el Tribunal Superior de Baviera rechaz6 coma prueba una grabaci6n que podia demostrar la comisi6n de un delito de difamaci6n y calumnia (BayObLG NStZ 1990, 101) ( )". Por tanto, en opinion de RoxiN y de la jurisprudencia alemana, la admisi6n de la valoraci6n como prueba de este tipo de grabaciones entre particulares, dependeria sobre todo de la gravedad del delito que se este juzgando. En caso de un delito grave (con pena de por ejemplo, quince anos de prisi6n), debe darse la primacia del interes en la averiguaci6n de la verdad, pero cuando se trata de un delito menos grave (que, por ejemplo, no tenga asignada una pena de prisi6n, sino de multa, o de prisi6n inferior a cuatro o dos afios, que puede ser suspendida) la primacia debe darse al interes privado, es decir, al derecho
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Vease infra IV a). La evoluci6n cit., p. 153 ss ..
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a la intimidad del acusado y, en consecuencia, prohibirse la valoraci6n de la prueba obtenida violando ese derecho, porque ademas ello constituye un delito de escucha o grabaci6n ilegal. La tesis jurisprudencial alemana situa, por tanto, el problema en el ambito propio del estado de necesidad, en el que, como es sabido, predomina el principio de la ponderaci6n de intereses: si el interes prioritario es el publico a la averiguaci6n de la verdad, entonces estaria justificada, seria, por tanto, admisible, valorar la prueba; pero si, por el contrario, el interes preponderante es el interes del particular a su intimidad, la prueba obtenida con violaci6n de la misma no puede ser admitida. Y como criteria o baremo a tener en cuenta para hacer esta ponderaci6n sobre cual de los dos intereses en conflicto es prioritario se utiliza practicamente de un modo exclusivo el de la gravedad del delito que se este juzgando: si se trata de un delito grave, entonces el interes prioritario es el publico; pero si se trata de un delito menos grave, es el del particular. No cabe duda de que con ello se aplica directamente la idea del principio de proporcionalidad, que, como ya hemos visto varias veces a lo largo de este trabajo, es un criteria adicional, doctrinal y jurisprudencialmente admitido, cuando se trata de admitir la valoraci6n de pruebas obtenidas con violaci6n indirecta de algun derecho fundamental o simplemente con hechos antijurfdicos que no lesionan directamente un derecho fundamental. Este criteria ha sido acogido expresamente por el legislador aleman, que admite las "grandes escuchas" solo respecto a los delitos mas graves, y siempre de acuerdo con los principios de necesidad y subsidiariedad (cfr., sin embargo, supra EXCURSO I, comentario a la sentencia del Tribunal Constitucional Federal Aleman de 3 marzo 2004, que ha declarado esta regulaci6n inconstitucional). Pero evidentemente la situaci6n no es la misma cuando se trata de grabaciones realizadas por particulares y debe tenerse sumo cuidado en trasplantar a este ambito principios o privilegios que pueden, aunque de forma discutible, admitirse cuando sean indispensables para que los 6rganos estatales encargados de la investigaci6n, persecuci6n y castigo de los delitos puedan llevar con eficacia su tarea, pero no forma general y mucho menos cuando se trate de particulares. La aplicaci6n de un principio general de ponderaci6n nos llevaria a apreciar, por ejemplo, una especie de estado de necesidad en el que de la comparaci6n de las penas asignadas a la grabaci6n y escuchas ilegales en el art. 197 con las penas que tuviera asignadas el delito que se estuviera investigando o juzgando, se deduciria si la grabaci6n ilegal era un mal menor que estaria justificado para, no ya evita1~ sino sancionar un delito mas grave. Pero con este planteamiento se olvidarfa que el delito previsto en el art. 197 del C6digo penal espafiol (o en el correspondiente de cualquier otro C6digo penal del mundo que castigue este delito) es un delito que viola directamente el derecho fundamental reconocido en el art. 18 de la Constituci6n, y que por aplicaci6n directa de lo
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dispuesto en el art. 11, 1 de la Ley Organica del Poder Judicial (o en el art. 8 del Convenio Europeo de Derechos Humanos) no podria tener eficacia probatoria. Por tanto, salvo que todo la teoria de la prueba prohibida elaborada en base a estos preceptos se viniera abajo o tuviera un valor meramente simbolico sin ninguna eficacia practica, la tesis de la que en esta materia tenemos que partir es de la prohibicion de valorar como prueba la obtenida con violacion directa del derecho fundamental a la intimidad, que ademas constituye una infraccion penal. Sin embargo, tambien en este tema se deben hacer diversas matizaciones que no contradicen el principio del que se parte, pero que lo delimitan con mayor precision. La clave para saber en que casos, excepcionalmente, puede ser utilizada como prueba la grabacion audiovisual realizada por un particula1~ la da a mi juicio la situacion en la que se encuentre el particular que hace la grabacion (que naturalmente puede ser tambien un detective privado contratado por el particular), pues evidentemente no es lo mismo que la haga alguien que en ese momento esta siendo victima de un delito y con la grabacion pretende facilitar su averiguacion, persecucion y posterior castigo, o que lo haga alguien que no es la victima, sino incluso (co)autor de ese delito o quiere utilizar la grabacion para chantajear luego a la persona a la que la graba, amenazandola con denunciarla. La jurisprudencia no distingue estos diferentes supuestos con la suficiente nitidez, pero creo que la distincion y el diferente trato juridico que merece esta implicita en muchas decisiones jurisprudenciales. Veamosla, pues, por separado. Supuestos en los que el particular que realiza la grabacion esta siendo victima de un delito. Ya la sentencia del Tribunal Constitucional 114/1984, de 29 noviembre, (ponente: Diez Picazo), que fue la primera que se ocupo de la validez de las pruebas obtenidas con violacion de derechos fundamentales, se enfrento con un caso de este tipo, si bien no se trataba exactamente de un delito contra los intereses del que realizo la grabacion, sino de una infraccion laboral que motivo un despido. Efectivamente, en una conversacion telefonica con un representante de una empresa de medios de comunicacion del Estado el demandante en el recurso de amparo habia hecho unas declaraciones que fueron grabadas por el representante que las utilizo para en base a ellas despedirlo. El TC, despues de varias consideraciones sobre si el problema debe ser enfocado como una lesion directa del derecho fundamental a la intimidad reconocido en el art. 18, 3 de la Constitucion, o como una vulneracion del derecho tambien fundamental a un proceso con todas las garantias reconocido en el art. 24, 2 del texto constitucional, y tras exponer la situacion del tema en el derecho comparado, con alusiones al derecho anglosajon, frances e italiano, llega a la conclusion de que, a la vista de la falta (en aquel entonces) de un precepto legal especifico que regule este tema, debe aplicarse directamente el contenido esencial de los
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derechos fundamentales, estimando, finalmente, que el derecho fundamental al secreta de las comunicaciones no fue violado en el presente caso y, por tanto, confirm6 la validez del despido y de las sentencias de los tribunales laborales que lo habian confirmado. Pero ello lo hace en base a una muy discutible interpretaci6n del derecho entonces vigente, que no tipificaba penalmente todavia las escuchas telef6nicas ilegales, y del que se cre6 poco antes de la fecha en que se dict6 esta resoluci6n, entendiendo que "qui en grab a una conversaci6n con otro no incurre, par este solo hecho, en conducta contraria al precepto constitucional citado", para decir posteriormente, de forma un tanto contradictoria, que la penalizaci6n de las escuchas ilegales que en aquel momento se acaba de introducir en el C6digo penal "se proyecta, exclusivamente, en la medida en que los (as) mismos (as) se usen para obtener una informaci6n o para descubrir un dato que, sin ellos, no se habria alcanzado, dejando, pues al margen la posible utilizaci6n de estos mismos artificios por aquel que accedi6 legitimamente a la comunicaci6n grabada o registrada". Desde luego, no es esta la interpretaci6n que, a mi juicio, habia que hacer del art. 49'7 bis introducido en el C6digo penal anterior por Ley Organica '7 I /1984, de 15 octubre, ni la que se debe hacer ahora del art. 19'7, 1 del vigente C6digo penaP 8 . Tanto entonces como ahora, he mantenido que la grabaci6n por parte de los interlocutores de una conversaci6n o de un acto de la intimidad, sin el consentimiento del otro protagonista, constituye el delito de grabaci6n escucha ilegal, siempre que se den los demas elementos que configuran la tipicidad de este delito 39 â&#x20AC;˘ Por lo que respecta a las grabaciones de imagenes, ello ha quedado claro en la sentencia de la Audiencia provincial de Madrid 31 julio 2002. Se trataba de un caso, en el que el director de un importante peri6dico de alcance nacional fue grabado, sin saberlo, mientras mantenia relaciones sexuales con una prostituta que habia previamente conectado una camara de video dispuesta al efecto. Naturalmente, nadie duda de que se trataba de un atentado contra la
38 Dice asi este precepto: "El que para descubrir Ios secretos o vulnerar la intimidad de otro, se apodere de sus papeles, cartas, mensajes de correo electr6nico o cualesquiera otros documentos o efectos personales o intercepte sus telecomunicaciones o utilice artificios h'>cnicos de escucha, transmisi6n, grabaci6n o reproducci6n del sonido o de la imagen, o de cualquier otra sefial de comunicaci6n, sera castigado con !as penas de prisi6n de uno a cuatro ai'\os y multa de doce a veinticuatro meses" 39 Cfr., por ejemplo, Mui\Joz CoNDE, Derecho penal, Parte especial, 6." ed., Sevilla, 1985, p. 133, y Mui\Joz CoNDE, Derecho penal, Parte Especial, 14." ed., Valencia, 2002, p. 254: "Especial dificultad encierra aqui el consentimiento como causa de justificaci6n en aquellos casos en Ios que hay varios interlocutores y uno de ellos consiente en la escucha o grabaci6n por un tercero ajeno a la conversaci6n o a! acto de intimidad. En este supuesto, el consentimiento de uno de Ios interlocutores no justificaria el hecho e incluso cabe coautoria o participaci6n punible del interviniente en la conversaci6n o en el acto intimo que consiente en su grabaci6n sin comunicarselo a Ios demas". Cfr. tambien lo dicho mas adelante respecto a la STS 1 marzo 1996.
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intimidad del citado periodista, castigado en el art. 197, 1 del C6digo penal. En este caso el consentimiento de uno de los protagonistas del acto sexual, no destifipica ni justifica la grabaci6n realizada bien por el mismo, y mucho menos la llevada a cabo por un tercero ajeno al acto, siendo condenados ambos por coautoria en este delito. La opinion contraria supondria dar rienda suelta al chantaje y reduciria el derecho a la intimidad, sobre todo cuando la grabaci6n, como sucedi6 en este caso, se comunica ademas a terceros, que igualmente, aunque no hayan intervenido en la misma realizarian el tipo cualificado que tanto para el que graba y luego comunica la grabaci6n a terceros, como para estos terceros que la difunden, preve el apartado 3 del art. 197, que impone una pena de prisi6n de dos a cinco afios para el graba y difunde la grabaci6n, y de prisi6n de uno a tres al'ios y multa de doce a veinticuatro meses para el tercero que, con conocimiento de su origen ilicito y sin haber tornado parte en su descubrimiento, realizare la conducta de difusi6n. El problema a mi juicio es otro. No se trata de si la grabaci6n de una conversaci6n por uno de los interlocutores sin consentimiento del otro, realiza el tipo del art. 197, 2 del C6digo penal, lo que, a mi juicio, esta fuera de duda, sino de si en algun caso, excepcionalmente, puede esta conducta quedar amparada por una causa de justificaci6n, que tratandose de un particular puede ser el estado de necesidad o el ejercicio legitimo de un derecho. Desde luego, este puede ser el caso, cuando el que graba pretende con la grabaci6n defender sus legitimos derechos, sobre todo si esta siendo victima de un delito y con la grabaci6n puede ayudar a la identificaci6n del autor y a su castigo. Creo que, aunque el caso de la STC 111/1984 no se trataba de un proceso penal, sino laboral, podria haberse tenido en cuenta que el empresario que utiliz6 la cinta para justificar el despido estaba legitimamente defendiendo sus intereses, en le medida en que el contenido de la conversaci6n grabada podia afectarlos negativamente, y, en consecuencia, la medida de despido podia considerarse proporcionada a la entidad del dal'io que se le producia. Precisamente porque no se trataba de una defensa de los intereses legitimos de la empresa, sino de un gesto desproporcionado de control por parte de la misma hacia la intimidad de los trabajadores (croupiers, cajeros, etc) con el pretexto de dar un plus de seguridad frente a eventuales reclamaciones de los clientes, el TC en sentencia 98/2000, 10 abril, consider6 que la instalaci6n y puesta en funcionamiento en divers os lugares de un casino (zonas de juego) de un sistema de captaci6n y grabaci6n del sonido lesionaba el derecho a la intimidad de los trabajadores, "pues no existe argumento definitivo que autorice a la empresa a escuchar y grabar las conversaciones privadas que los trabajadores del casino mantengan entre si o con los clientes". Sin embargo, la sentencia del TC 186/2000, de 10 julio, vuelve a dar validez a la prueba videografica aportada por la empresa en un proceso laboral de despido motivado porque, como atestiguaban las grabaciones realizadas, naturalmente sin previa comunicaci6n a los traba-
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jadores, "el actor realiz6 de forma reiterada maniobras en el cobro de artfculos a los clientes del economato, sustrayendo diferentes cantidades de la caja. La investigaci6n sobre las otras dos cajas puso de relieve irregularidades consistentes en que uno de los cajeros desprecint6 en la caja unos calcetines y se los guard6, en tanto que otro de los cajeros desprecintaba en la caja y manipulaba prendas interiores femeninas, como consecuencia de una adicci6n fetichista reconocida por el autor de los hechos". En definitiva, el TC, aplicando el principio de proporcionalidad, considera que el tribunal laboral al valorar la prueba videognifica y declarar en base a ella procedente el despido, habia "ponderado adecuadamente que la instalaci6n y empleo de medios de captaci6n y grabaci6n de imagenes por la empresa habia respetado en el presente caso el derecho a la intimidad del solicitante de amparo" 40 â&#x20AC;˘ Tambien claramente en la STS de 30 mayo 1995 (ponente: Delgado Garcia) se ve que la raz6n fundamental de admitir como prueba la grabaci6n de una conversaci6n privada por parte de uno de los interlocutores es que el que graba esta siendo vfctima de un delito. En esta sentencia el supuesto de hecho era la petici6n de dinero que hacia un funcionario a un particular para mediar en un asunto de su competencia, es decir, un delito de cohecho. El TS considera que el delito de escuchas ilegales "no puede referirse a hechos como el presente en que un ciudadano obtiene una fuente de prueba respecto de un delito grabando la conversaci6n que mantiene con un funcionario que le esta extorsionando mediante la exigencia de una retribuci6n"; y continua diciendo el TS: "Si hay obligaci6n de denunciar los delitos de que un particular tiene conocimiento (arts. 259 y ss, LECrim.) ha de considerarse legitimo que el que vaya a denunciarlo se provea de algun medio de acreditar el objeto de su denuncia, incluso aunque ello sea ocultando el medio utilizado respecto al delincuente a quien se desea sorprender en su ilicito comportamiento (salvo el caso del llamado delito provocado), siempre que este medio sea constitucionalmente permitido y no integre, a su vez, una infracci6n criminal". Como demuestra la ultima de las sentencias que hemos citado, la admisi6n como prueba de una captaci6n videografica que revela actos de la intimidad personal es mucho mas factible cuando el que realiza la captaci6n se trata de la vfctima de un delito. Pero tambien cuando alguien puede tener fundadas sospechas de que va ser vfctima de un atentado a sus intereses. Asi, por ejemplo, en la STS 28 octubre 2002, se admite como prueba la grabaci6n obtenida por instalaci6n llevada a cabo por una agencia de detectives privados "de un
40 El tema de si las empresas pueden controlar de un modo general datos de la intimidad de sus trabajadores, con la instalaci6n de aparatos de grabaci6n audiovisuales, o con el control de su correspondencia informatica o incluso de su estado de salud, es bastante controvertido, vease al respecto, MoRALES GARCiA, La tutela penal de las comunicaciones laborales, en IURIS, Actualidad y practica del derecho, num. 54, octubre 2001, p. 48 ss ..
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circuito de sistema cerrado de TV oculto consistente en dos mini-camaras con dos objetivos especiales para cubrir las cajas registradoras existentes en el mostrador de venta al publico", que captaron como la dependienta de una farmacia se apoder6 de diversas cantidades de dinero. El detective privado que efectu6 la filmaci6n hizo entrega al Juez de Instrucci6n de las grabaciones originales, declarando luego como testigo. Posteriormente las cintas originales y una copia resumen fueron visualizadas en el Plenario por las partes y por el Tribunal que las valor6 como prueba de cargo y conden6 a la dependiente por el delito de hurto con abuso de confianza. Esta es tambien la causa principal de por que se admite la instalaci6n en establecimientos comerciales (grandes almacenes, bancos, etc) de sistemas de grabaci6n tanto de clientes, como de trabajadores en los lugares donde se realizan las transacciones comerciales y demas espacios abiertos al publico. Pero la admisi6n como prueba de las grabaciones realizadas esta condicionada al cumplimiento de otros requisitos, sin los cuales la grabaci6n realizada s6lo puede tener como maxima el valor de denuncia. En relaci6n con las camaras de videos instaladas en los Bancos, para obviamente filmar e identificar a quienes puedan entrar en los mismos con objeto de llevar a cabo un atraco, la jurisprudencia lleva ya largo tiempo pronunciandose sabre el valor procesal que tienen estas grabaciones. En estos casos, la grabaci6n videografica realizada de manera automatica por camaras fijas instaladas al efecto bien por prescripci6n legal o por iniciativa de la propia entidad bancaria, ha sido considerada como prueba de cargo apta para desvirtuar la presunci6n de inocencia en cuanto media que recoge la participaci6n del acusado en el hecho ilfcito enjuiciado, pero advirtiendo que "la eficacia probatoria de la filmaci6n videografica esta subordinada a la visualizaci6n en el acto del juicio oral, para que tengan realidad los principios procesales de contradicci6n, igualdad, inmediaci6n y publicidad" (vease STS 15 septiembre 1999, que cita ademas otras varias de 18 diciembre 1995, 27 febrero 1996, 5 de mayo de 1997 y 17 julio 1998). Es deci1~ la grabaci6n en s1 misma no es prueba, si no es exhibida en el juicio oral y analizada por las partes de acuerdo con los principios de contradicci6n, igualdad, inmediaci6n y publicidad, que son los que le dan su verdadero caracter de prueba. Este extremo es muy importante, p01¡que de no llevarse a cabo esta visualizaci6n en el juicio oral, la grabaci6n carece de toda eficacia probatoria. As£ se ve claramente en la STS de 19 mayo 1999 (ponente: Ramos Gancedo), en la que en un caso de robo con intimidaci6n, allanamiento de morada, detenci6n ilegal y lesiones, el TS anula la sentencia condenatoria de la Audiencia Provincial de Lerida, en base a las siguientes consideraciones: pues .. resulta patente y definitiva la absoluta falta de control judicial en el proceso de gestaci6n y obtenci6n de esta prueba que, a la postre iba a
constituir el elemento de cargo que fundamentara la condena del acusado. No fue el Juez de Instrucci6n quien dispuso la positivaci6n de Ios fotogramas, ni seleccion6 Ios
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que debfan ser extraidos de la pelicula para su incorporaci6n a !as actuaciones, sino que esa decision y elecci6n fue adoptada por los propios funcionarios policiales a su exclusiva y personal discreci6n. La cinta videografica no se entreg6 a la autoridad judicial de inmediato, sino que trascurrieron casi siete meses !Jasta que la misma se recibi6 en el Juzgado. Y, por si esto fuera poco, no existe concordancia en autos de que la pelicula videografica fuera visionada en sede judicial a fin de comprobar si las fotograjfas proporcionadas par la policia con la imagen del rostra del acusado correspondian a esa filmaci6n. Tampoco comparecieron al juicio oral los funcionarios que efectum路on la positivaci6n, por lo que no fue posible a la defensa ejercer su derecho a la contradicci6n sabre el proceso de obtenci6n de los dos fotogramas que se erigieron en la prueba de cargo para la condena". Queda, pues, claro que, como se deduce con claridad de esta sentencia, no es suficiente la mera constataci6n videografica como medio de prueba si la misma no pasa por todos los controles procesales de validez que la convierten en verdadera prueba. Esta es la diferencia principal, que muchos todavia desconocen, entre lo que puede ser un dato util para una investigaci6n policial y lo que despues puede ser utilizado como medio de prueba. El Estado de Derecho impone unos limites y unas garantias, no bastando, por tanto, ni la buena fe de los investigadores, ni la constataci6n material de unos hechos, si estos no pasan luego por el tamiz mucho mas estricto de la contradicci6n e inmediaci6n en el juicio oral. La independencia del Tribunal sentenciador, que, salvo algunos casos excepcionales de prueba preconstituida de los que aqui no podemos ocuparnos, debe obtener su convicci6n de las pruebas presentadas y practicadas en el juicio oral, se manifiesta cuando solo a partir de las pruebas presentadas en juicio puede formar libremente la convicci6n a la que se refiere el art. 746 de la LECrim. Es decir, y para recordar la ya vieja sentencia del TC de 1981, para valorar libremente una prueba, lo primero y principal es tener una prueba que valorm~ y como se ve claramente en el supuesto de hecho que sirve de base a la STS 19 mayo 1999, lo que el Tribunal sentenciador habia valorado como tal no podia tener este caracter por no haber pasado los filtros procesales preceptivos. Otro caso interesante de este tipo lo ofrece el conocido como el "caso padre Coraje". Se trataba de un robo con homicidio: atraco a una gasolinera en el que muri6 el empleado como consecuencia de las mas de 30 pml.aladas que le inflingieron los atracadores, que se dieron a la fuga tras apoderarse de unas 70.0000 pesetas). Tras el correspondiente juicio oral en el que figuraron como acusados de los terribles hechos varias personas, la Audiencia Provincial de Cadiz en su sentencia de 8 de febrero de 1999, estima que no puede proclamarse la autoria de ninguno de los procesados y, en consecuencia, aplicando el principio de presunci6n de inocencia, los absuelve. Hasta aqui, sin problemas. Un caso mas en los que una mala investigaci6n policial, una deficiente instrucci6n, la ausencia de testigos y de pruebas materiales como huellas dacti-
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lares, sangre, etc., que pudieran acreditar la identidad de los asesinos, determinaron la absolucion de los que realmente nunca sabremos si fueron o no los autores o tuvieron alguna participacion en el hecho. Sin embargo, lo que provoco una cierta conmocion es que el padre de la vfctima habfa hecho por su cuenta sus propias investigaciones, y disfrazandose y conviviendo durante un cierto tiempo con personas del entorno de los que pudieron haber asesinado a su hijo, consiguio grabar algunas conversaciones con ellas en las que de forma indirecta se recogian rumores y se hadan alusiones personales y se daban nombres de posibles autores. No obstante, la Audiencia considero que no debia admitir estas grabaciones como prueba, no ya solo por su endeble contenido material probatorio, pues solo recogian rumores y conversaciones en las que no se constata la autoria de nadie, sino "por las reservas y objeciones formales que a las mismas pudieran formularse (no fueran aportadas en sede de instruccion, ni tan siquiera antes de procederse al inicio de las sesiones y carecen de garantias de integridad y autenticidad"). Planteado el correspondiente recurso de casacion por la acusacion particular por entender que con esta decision se habia vulnerado el derecho de prueba (la inadmision de las cintas magnetofonicas grabadas por el padre), el TS en sentencia de 6 de julio 2000 (ponente: Conde-Pumpido), acordo anular la sentencia de la Audiencia de Cadiz y ordenar que se celebrar un nuevo juicio por un tribunal de composicion distinta al que dicto la sentencia impugnada. La decision del TS tuvo dos votos particulares disidentes de los Magistrados Carlos Granados Perez y Andres Martfnez Arrieta. No podemos detenernos en el analisis de esta sentencia, pero en relaci6n con nuestro tema lo que interesa destacar es que dando, por supuesto, la justificacion de las grabaciones llevadas a cabo por el padre de la victima en un comprensible y loable intento por dar con los asesinos de su hijo, una consideraci6n "pro victima" que el Magistrado ponente de la sentencia del TS llama "sensibilidad probatoria", lleva incluso a admitir "la practica de esta prueba con posterioridad al escrito de calificaci6n, siempre que exista una causa justificada para ello y no implique ni un fraude procesal ni un obstaculo al principio de contradiccion". Sin embargo, CaRTES BECHIARELLI, en comentario a esta sentencia41, rechaza, con raz6n, esta argumentacion considerando que la admision de una prueba extemporaneamente propuesta y debilitada, ademas, por su propio proponente, sin ningun tipo de garantias de integridad y autenticidad, vulnera los principios basicos del Estado de Derecho. El caso ha sido de nuevo juzgado por otro Tribunal de la Audiencia de Cadiz, que en octubre del 2003 ha vuelto a absolver a los acusados por falta de pruebas. Una vez mas, y a
41 Temporalidad y admisibilidad de la prueba en el proceso penal (a prop6sito de la sentencia del"padre coraje", en El Derecho, Diario Jurisprudencial, 2 octubre 2000.
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pesar de los loables intentos del padre de la victima por esclarecer el asesinato de su hijo (que han motivado incluso un interesante film televisivo de Benito Zambrano), la formalizaci6n necesaria para que los mismos lleguen a tener el caracter de prueba de cargo ha impedido que puedan tenerse en cuenta para en base a ellos basar una condena que hubiera podido llegar para los acusados, si hubieran sido condenados, a los treinta afios de carcel. De todo ello se deriva, que las escuchas o grabaciones videograficas llevadas a cabo por la victima de un delito pueden ser utilizadas como pruebas, siempre que despues sea comprobada su autenticidad y sean incorporadas al juicio oral, para ser sometidas a contradicci6n y a la valoraci6n del juzgador. Por supuesto, el mismo tratamiento hay que darle a los casos en los que el que realiza la grabaci6n es un tercero que, de algun modo, incluso fortuitamente, actua en beneficia de la victima del delito. Asi, por ejemplo, ningun problema hay en admitir como prueba, cumpliendo con los requisitos procesales antes dichos, la grabaci6n en video realizada por un tercero que pasaba casualmente por alli de una brutal paliza que le dan unos agentes de la policia a un individuo que al parecer se resistia a ser detenido 42 â&#x20AC;˘ 0 la que hicieron los padres que grabaron subrepticiamente los malos tratos que una nifiera inflingia a su hija pequefia, mientras ellos se encontraban fuera de la casa (sentencia de un Juzgado de lo Penal de Sevilla, mayo 2003). En este ambito deben admitirse y valorarse en su caso como prueba tambien las grabaciones que puedan realizar detectives privados, encargados por un particular de investigar a quien pueda estar cometiendo algun delito en contra de sus intereses (cfr. STS 28 octubre 2003, antes citada). Sin embargo, las exigencias para darle el caracter de prueba a la grabaci6n videografica realizada por detectives privados en los procesos de caracter dispositivo, como el civil o el laboral, suelen ser menos estrictas. Ello explica que los arts. 265 y 380 de la Ley de Enjuiciamiento civil del 2000 les de el caracter de prueba, cuando son reconocidos por la parte contraria, y si no lo son deben ser complementados con la prueba testifical del detective privado que la efectu6 (cfr. sentencia Audiencia Provincial de Sevilla 16 enero
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Coma sucedi6 en Los Angeles en el "caso Rodney King", cuando la madrugada del 3 de marzo de 1991 unos policias para reducir a Rodney King que durante horas habia conducido su auto a gran velocidad, sustrayendose a la persecuci6n policial, una vez que este se detuvo lo golpearon repetidas veces en todo el cuerpo con fustas, patadas, pufietazos mientras estaba tendido en el suelo, causandole lesiones de diversa consideraci6n. En el primer juicio contra los policias, estos fueron absueltos precisamente en base a una valoraci6n del video en el que se habia grabado la paliza que hizo un "experto" policial ante el Jurado, segun la cuallos policias actuaron correctamente empleado la violencia que en esas circunstancias era necesaria para reducir a Rodney King. El escandalo y las protestas que provoc6 tal resoluci6n en mayo de 1992, oblig6 a la celebraci6n de un nuevo juicio, esta vez en el ambito de la Justicia federal, entendiendo que en la actuaci6n de la policia habia habido motivos racistas (Rodney King es de raza negra). En este segundo juicio los policias fueron condenados, si bien a penas bastante suaves (vease FLETCHER, Las victimas ante el jurado, cit., p. 63 ss.).
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2002: se admite la prueba videografica realizada por un detective privado de que el sujeto que reclamaba una mayor indemnizaci6n a la compafiia de seguros no tenia la secuela que alegaba; y sentencia Audiencia Provincial de Guadalajara de 19 junio 2003: prueba videografica de que un inquilino no habitaba la casa arrendada, por lo que fue desahuciado). EXCURSO II: Control audiovisual y prevencion situacional La instalacion de medidas preventivas o de control de la delincuencia con
sistemas audiovisuales en Ios grandes almacenes, bancos, via ptiblica, etc, se ha convertido en uno de Ios temas predilectos de una nueva corriente criminologica, de especial relevancia en la Criminologia norteamericana de Ios ultimos afios, que es la llamada "situacional crime prevention"43 â&#x20AC;˘ Pocos son ciertamente los comercios que no tienen instaladas camaras de video que graban la que sucede en su interior y, par tanto, la que hacen Ios clientes y empleados. Es evidente que solo par eso, y en la medida en que se sabe que esas camaras estan instaladas e incluso a la vista, hay una prevencion de Ios delitos que mas frecuentemente se cometen en este ambito, que ha dado lugar a uno de Ios temas mas estudiados par la criminologia de la "vida cotidiana": Ios hurtos en grandes almacenes. Tambien facilita la identificacion de Los autores de un delito, aunque a veces, dada la mala calidad de las imagenes o, en caso de atraco a bancos, a que Ios autores suelen llevar la cara tapada, dicha identificacion no siempre es factible, teniendo, en todo caso, que pasar la grabacion par Ios controles de autenticidad y visionado y analisis contradictorio par las partes en el juicio oral. Pero a estas dificultades probatorias se afiade la lesion del derecho a la intimidad que pueden comportar cuando las camaras se instalan en lugares eminentemente privados, coma vestuarios, probadores, servicios higienicos. El tema ha sido planteado tambien en el ambito de la jurisdiccion /aboral, cuando, coma ya hemos vista, dichas instalaciones se emplean para controlar el grado de cumplimiento y fidelidad de Ios trabajadores para con la empresa. Una vez mas, el problema consiste en el equilibrio entre la legitima prevencion o defensa de quienes pueden ser o son de hecho victimas de un delito contra sus intereses y el derecho a la intimidad de trabajadores y clientes. La diferencia entre ambito de utilizacion publica y ambito reservado a la intimidad, no siempre es jacil de hacer y depende del tipo de establecimiento e incluso de la mercancia u objeto de las actividades comerciales que en el se desarrolla. Igual que sucede con Ios "mecanismos automaticos de defensa" 44 , tambien aquf es 43 Cfr. al respecto MEDINA ARIZA, El control social del delito a traves de la prevenci6n situacional, en Revista de Derecho penal y Criminologia, 2, 1998, p. 281 ss. Para una exposici6n resumida de esta teoria, Mui\Joz CONDE/HASSEMER, Introducci6n a la Criminologia, Valencia, 2002. "Tambien llamados "offendicula". Se trata normalmente de descargas electricas de alto voltaje, pinchos, alambradas, etc, que suelen instalarse en Ios muros de Ios domicilios o comercios para evitar la entrada de personas no autorizadas o por lugares no destinados al efecto. En la medida en que dichas instalaciones pueden provocar lesiones o incluso la muerte de alguien que, con prop6sito de cometer un delito o incluso inadvertidamente, caiga bajo su radio de acci6n, se plantea si seria aplicable aqui la legitima defensa de la propiedad o alguna otra causa de justificaci6n; cfr. al respecto
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discutible si de un modo general se puede admitir la licitud de tales grabaciones y su utilizaci6n coma prueba en el correspondiente proceso (penal, !aboral, civil) en e/ que se presenten. Lo que es evidente es que en todo caso esas grabaciones no pueden ser empleadas fuera del proceso penal, incluso convertidas en un negocio, vendiendolas a cadenas de television o medias de comunicaci6n, cuando en el hecho en cuesti6n este implicado un personaje famoso. Lln caso de este tipo se dio, cuando la cinta en la que se grabaron Ios hurtos que al parecer cometi6 la famosa actriz norteamericana Winona Ryder, fue exhibida, antes que en el proceso en el que se la jug6, en todas la televisiones y medias de comunicaci6n, distribuida par la propia empresa victima de Ios presuntos hurtos. Es evidente que una de las objeciones que se formulan contra las tesis de la "situational prevention" es precisamente en este ambito de las grabaciones audiovisuales la compatibilidad de las mismas con el derecho a la intimidad45 . b) Supuestos en los que el particular que realiza la grabaci6n no actua justificadamente o incluso la realiza para cometer otros delitos. Coma ya hemos dicho, cuando la escucha o grabaci6n ilegal no tiene ninguna justificaci6n y el sujeto que la hace, la hace para divulgar secretos o datos de la intimidad del grabado, para chantajearlo o para obtener alguna prueba de hechos no delictivos, pero considerados socialmente inmorales (adulterio, homosexualidad, etc), es directamente aplicable el delito previsto en el art. 197 del C6digo penal, incluso en su modalidad cualificada del apartado 3, aplicable tambien a los meros divulgadores que no tuvieron parte en la grabaci6n. Diariamente vemos coma la prensa amarilla, o la del coraz6n u otros medias de comunicaci6n incluso pretendidamente serios, revelan datos, fotos intimas, videos y conversaciones privadas de personajes conocidos, politicos, artistas famosos, deportistas, etc, obtenidas mediante la utilizaci6n sistemas de grabaci6n instalados ilegalmente en sus propios domicilios, o suministrados par personas de su entorno, personal de servicio, que hacen de esta manera incluso un buen negocio vendiendo estos datos a los citados medias. No cabe duda de que esto ha llegado en nuestro pais ya a unas cotas realmente vergonzosas, que solo una muy discutible "adecuaci6n social", o la propia indiscreci6n de los protagonistas (que a veces venden tambien sus intimidades o sacan alguna ventaja o publicidad de las mismas), hacen que en la mayoria de los casos estos evidentes atentados al honor, a la intimidad o a la propia
ONTIVEROS, Mecanismos de autoprotecci6n, tesis doctoral inedita, Salamanca, 2002. Una exposici6n resumida de la problematica que plantean estos "mecanismos automaticos de autoprotecci6n", vease Mu!\ioz CoNDE/GARCfA ARAN, Parte General cit., pp. 352/353. 45 Sobre la prevenci6n situacional a traves de del empleo de sistemas audiovisuales, vease ELLIOT, Video Tape Evidence, The Risk of Over-Persuasion, en The Criminal Law Review, 1998, p. 159 ss.; tambien VoN HmscH, The Ethics of Public Television Surveillance, en VoN HmscH/GARLAND, Ethical and social perspectives on situational crime prevention, Oxford, 2000, pp. 59 ss ..
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imagen no se persigan penalmente, o no den ni siquiera lugar a una demanda civil al amparo de la Ley de protecci6n a estos derechos. Pero de lo que aqui se trata ahora es de saber hasta que punto estos datos pueden ser utilizados aportandolos tal como se exhiben en los medios de comunicaci6n como prueba de, por ejemplo, un adulterio en un proceso de divorcio, de paternidad en un proceso de filiaci6n, o incluso de un hecho delictivo de los que suelen darse en el ambito de la privacidad (malos tratos familiares, aborto, abusos sexuales de menores, donaci6n y consumo compartido de drogas ilegales), y sobre todo de que esto lo pueda hacer impunemente alguien que incluso ha participado en esos hecho o ha sido incluso coautor de los mismos. Antes poniamos el caso del periodista, cuyas relaciones sexuales mas o menos an6malas con una prostituta fueron filmadas por esta y posteriormente entregadas previo pago de una importante suma de dinero a terceros, que las divulgaron. Conforme a la tesis aqui mantenida respecto a la interpretaci6n del delito tipificado en el art. 197, 1 y 3, del C6digo penal, no cabe duda de que tanto la prostituta, como los que le compraron esas imagenes y las divulgaron, cometieron este delito. Pero lo que aqui se plantea es si, por ejemplo la mujer del citado periodista podria haber utilizado esta grabaci6n como prueba en un proceso de divorcio, o si la Policia o un Juez hubieran podido utilizar grabaciones o fotos similares como prueba de algun delito que hubiera podido cometer pagando, por ejemplo, los servicios de la prostituta con droga, o si esta hubiera sido menor de edad (vease, por ejemplo, sentencia de la Audiencia provincial de Sevilla 25 marzo 1994: "caso Duque de Feria", ponente: Gil Merino. En esta sentencia no se plante6, sin embargo, el problema de la admisibilidad de esta prueba como unica prueba de cargo, porque de todos modos los hechos quedaron probados a traves de otros medios de prueba, sobre todo con la prueba testifical). La respuesta a este problema no es facil, porque como ya hemos visto, existe en estos casos un conflicto entre dos intereses contrapuestos: la intimidad del sujeto violada de esta manera y, en el caso de prueba de la comisi6n de un delito, el interes en la persecuci6n y castigo del mismo. Pero lo que no cabe duda es que de si se admitiera de forma general la validez de estas pruebas obtenidas por un particulat~ cometiendo el delito previsto en el art. 197, no solo se volatizaria la protecci6n penal del bien juridico protegido en este delito: la intimidad, sino que se abriria la puerta a la practica masiva del chantaje, lo que por lo demas se suele dar frecuentemente en relaci6n con actos de la intimidad. Adulterio (de la mujer) y homosexualidad (masculina) han sido fuente permanente de chantaje durante mucho tiempo, sobre todo en epocas donde ademas de forma directa o indirecta estos hechos eran constitutivos de delito 46 â&#x20AC;˘ Para acabar con esta lacra, bastante frecuente por lo demas y que
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Vease Mui\Joz CoNDE, Pr6logo a FERNANDEZ RooRfGUEZ, El chantaje, Barcelona, 1995.
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queda la mayoria de las veces en la impunidad, el C6digo penal en su art. 171, apartado 3 dice que "si el hecho descrito en el apartado anterior consistiere en la amenaza de revelar o denunciar la comisi6n de algl'm delito, el Ministerio fiscal podra, para facilitar el castigo de la amenaza, abstenerse de acusar por el delito con cuya revelaci6n se hubiere amenazado, salvo que este estuviere sancionado con pena de prisi6n superior a dos ail.os. En este ultimo caso, el Juez o Tribunal podra rebajar la sanci6n en uno o dos grados". De este modo se anima a la victima de un chantaje, que puede estar basado en que ha cometido un delito, a que denuncie al chantajista, ofreciendole incluso la mas absoluta impunidad si el delito que hubiera cometido y por el que esta siendo chantajeado tiene una pena de prisi6n inferior a dos afios, y en todo caso una sustancial rebaja de la pena en uno o dos grados, si el delito por el que fuese chantajeado tuviese pena superior. Esta magnanimidad dellegislador espafiol para con la victima del chantaje que se atreva a denunciar al chantajista, nos debe tambien llevar a plantearnos si las pruebas en las que se base el chantaje (fotografias, conversaciones telef6nicas, videos, etc) pueden ser utilizadas, cuando ademas su obtenci6n se debe a la comisi6n de un delito de escuchas o grabaciones ilegales previsto en el art. 197. Como antes se ha dicho, la jurisprudencia y la doctrina alemana aplican para estos casos el principio de proporcionalidad. Asi, por ejemplo, en el caso antes citado, relatado por RoxiN, en el que uno de los hombres de negocios graba la conversaci6n con otro en la que se habla de incendiar un edificio y luego entrega como prueba la grabaci6n a la policia, la gravedad de este delito, permite admitir esta prueba y valorarla como prueba de cargo. Sin embargo, grabaciones en las que se recoge la prueba de un perjurio o de un delito de calumnia, son rechazadas por considerar que en estos casos se trata de delitos menos graves y es prioritario el derecho a la intimidad del particular que qued6 conculcado con la grabaci6n 47 â&#x20AC;˘ Esta soluci6n, por las razones ya dichas, no es del todo convincente, aunque ofrece un criteria, el principio de proporcionalidad, que debe ser siempre, como cualquier otro principio general informador del ejercicio del poder punitivo del Estado, tenido en cuenta a la hora de resolver un problema juridico, sabre todo cuando como en este caso se trata de un conflicto de intereses. Pero las insuficiencias de un criteria tan abstracto, a concretar despues en cada caso, han sido puestas de relieve por la doctrina alemana hace ya algun tiempo, que por lo demas ha ido manteniendo a lo largo de estos ultimos afios diferentes posiciones que van desde la absoluta posibilidad de valoraci6n, a la no valoraci6n tambien de un modo absoluto de este tipo de pruebas, pasando,
47 Cfr. RoxiN, La evoluci6n cit., p. 154 s., con referencias a las decisiones jurisprudenciales en las que se adoptaron tales decisiones.
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ademas de par la teorfa de la ponderaci6n, por otra teorfas como la de derivar del derecho material, incluso de las relaciones civiles entre el que graba la voz y el que habla, la posibilidad o imposibilidad de la valoraci6n48 , lo que demuestra lo diflcil que es dar una respuesta (mica a este problema, tanto si es favorable como contraria a su valoraci6n. Pero lo que realmente dificulta una soluci6n unitaria a este problema es la variedad de situaciones que se pueden presentar, que van desde la del agente provocadar, que incluso puede ser un infiltrado por la Polida, que consigue sin darse cuenta su interlocutor que este se delate hablando, mientras el otro graba sus palabras, hasta la del chantajista que filma a quien esta comprando droga para despues pedirle dinero a cambio de no denunciarlo, pasando por caso en los que politicos y personajes importantes son grabados par particulares en sus "debilidades", para despues poder chantajearlos. Uno de estos casos es elllamado "caso Montesinos", en el que el que a mediados de los afios 90 fue famoso asesor del ex Presidente de Peru Fujimori, grababa las conversaciones que mantenfa con las personas que iban a verlo en su despacho, principalmente empresarios, con los que unas veces mantenfa conversaciones mas o menos inocuas o todo lo mas constitutivas de un trafico de influencias, otras se trataba de autenticos sobornos pasivos, en los que el citado asesor pedfa dinero para su partido a cambio de favares o de promesas de gestiones. Evidentemente, ello no lo hada para denunciar a los empresarios supuestos corruptores que venfan a sobornarle, sino para conseguir un instrumento de chantaje, con el que poder presionarlos o amenazarlos en su dfa, si se negaban a dar mas dinero o hacian algo que no le gustara. Que, en todo caso, estos empresarios eran sorprendidos en su buena fe y que nada sabfan de tales grabaciones era evidente; como lo era tambien que las mismas no se hada con el fin de ayudar a la Justicia y acabar con la corrupci6n, sino para todo lo contrario: para tener un arma con la que seguir manejando la tela de arafia de la corrupci6n. Pero tambien en este caso se daban diversas situaciones en las que las conversaciones grabadas iban desde la solicitud de gestiones carentes de significado penal, de las muchas que en cualquier pais se hacen diariamente ante politicos, Ministros, altos cargos de la Administraci6n, etc, hasta otras que podfan rayar en lo delictivo como trafico de influencias o
8 " Sobre !as diferentes posiciones mantenidas en la doctrina y jurisprudencia alemanas sobre la posibilidad de valorar como prueba !as grabaciones de voz realizadas entre particulares, vease FRANK, Die Verwertbarkeit rechtswidriguer Tonbandaufnahmen Privates, Uberlegungen zu einem einheitlichen Schutz des Rechts am gesprochenen Wort im Straf-und Strafverfahrensrecht, 1995, p. 67 ss., quien mantiene, en principio, que no pueden ser valoradas !as grabaciones de voz realizadas ilegalmente que afectan a! nucleo absoluto de la intimidad y !as que no son congruentes con el fin de persecuci6n de un delito; considerando por el contrario que si pueden valorarse !as que se hacen a favor del acusado o son congruentes con la finalidad de obtener pruebas para perseguir el delito (p. 128 s.).
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incluso directamente como cohecho. Lo verdaderamente ins6lito en este caso es que se grababan, a pesar de que en los casos en que las conversaciones grabadas podian versar sobre hechos constitutivos de delito, la responsabilidad de 'los mismos recaian tambien sobre Montesinos que grababa, en estos casos, su propio delito. No se trataba, por tanto, de los casos, que ya hemos mencionado antes, en los que el que es victima de un chantaje o de la petici6n de dinero por parte de una autoridad o funcionario graba al chantajista o al autor del cohecho para despues denunciarlo, sino de que el que solicita la dadiva o realiza el chantaje graba su propio delito. De lo que en este caso y en otros similares a este (recuerdese lo videos que han surgido a principios del 2004 en Mejico recogiendo supuestos sobornos y entrega de comisiones a politicos de casi todos los partidos del espectro politico mejicano) se trata, es de si, por las razones que sean, estas grabaciones, que pueden ser tambien manipuladas, llegan a manos de la Polida y se incorpora a un proceso penal, se pueden utilizar sin mas y directamente como prueba de cargo contra el que fue grabado contra su voluntad, sin su consentimiento. No plantea la menor duda, por supuesto, que si puedan utilizarse como prueba contra el que realiza la grabaci6n, porque ello es ya en si mismo constitutivo de un delito y esta es la prueba del mismo. Pero el problema en este caso, yen otros similares en los que se graba conversaciones de politicos y funcionarios con particulares cuyo contenido puede ser delictivo (recuerdese la STC 18/ /2003, 23 octubre), es si cuando estas grabaciones se realizan con fines de chantaje y no ya de perseguir el delito, y fuera de los casos regulados legalmente y autorizados judicialmente, se pueden valorar como prueba de los supuestos delitos que hayan podido cometer los particulares cuyas conversaciones fueron grabadas ilegalmente. Imaginemos que en el famoso "caso Juan Guerra", que tanto dio que hablar en Espafia a mediados de los ml.os 80, el hermano de un alto cargo del Gobierno que recibia en "su" despacho instalado en un edificio publico a multitud de empresarios, politicos, etc, que iban a solicitar su mediaci6n en problemas de todo tipo, hubiera procedido a filmar subrepticia e ilegalmente a los que iban a visitarlo, Lhubiera podido utilizarse esas grabaciones como prueba en un proceso por trafico de influencias contra los que hubieran sido filmados sin su consentimiento? Como ha quedado demostrado, no fueron uno, ni diez, ni cien, sino muchas mas las personas de todo tipo que pasaron por ese despacho 49 • Unas s6lo iban a pedirle que hiciera alguna gesti6n, otras a tomar un cafe y a comentar con el cosas de la politica local o nacional, y otras a cosas sin duda mas relevantes y sustanciosas, como instar una subvenci6n, un trato de favor en determinadas pollticas econ6micas, una recalificaci6n de terrenos, " Vease Libra de registro de visitas de Juan Guerra, quien es quien en el libro escandalo, Documento/Texto integro, editado por la Revista Tiempo, Madrid, 1990.
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etc. Curiosamente, cuando se proces6 y juzg6 a este personaje, que finalmente fue condenado por delito fiscal, pero no por los delitos contra la Administraci6n de Justicia de los que tambien fue acusado (cfr. STS 24 octubre 1996), a nadie se le ocurri6 acusar tambien a los centenares de personas que fueron a su despacho a visitarlo y solicitar alguna gesti6n que pudiera entrar en el terreno de lo delictivo. Pero es que ademas la propia sentencia admiti6 que estos hechos no eran constitutivos de delito, lo que por cierto dejaba malparada una investigaci6n judicial que se llev6 a cabo "a bombo y platillo", paralelamente a una campafia mediatica que no tenia otro fin que el de desacreditar al Gobierno (socialista) que regia en aquel momento (cfr.tambien el supuesto de hecho de la STC 18/2003, 23 octubre citada supra). Fueron estas mismas dificultades para tipificar estos hechos, reconocidas por la propia sentencia que los juzg6, lo que motiv6 que se creara y se introdujera por aquellas fechas en el C6digo penal el delito de trafico de influencias50, que actualmente se recoge en los artkulos 428 a 430 del C6digo penaP 1 . Estos delitos se configuran como una especie de acto preparatorio del cohecho o como una forma de castigar un cohecho que o bien no existe realmente por no mediar la entrega de alguna cantidad econ6micamente relevante a la autoridad o funcionario que tiene, o porque no puede probarse dicha entrega. Los delitos exigen ademas en su modalidad de influencia sobre funcionario o autoridad que se de una "situaci6n de prevalimiento" sobre el funcionario o autoridad (cfr.arts.428 y 429), yen la modalidad de ofrecimiento de influencia a particular ni siquiera eso (cfr.art. 430). Las penas con que se castigan tampoco son graves (de seis meses a un afio de prisi6n y multa); y la eficacia practica que han tenido hasta la fecha ha sido practicamente nula, pues apenas han sido objeto de aplicaci6n, lo que demuestra que una vez mas estamos aqui ante un Derecho penal simb6lico hecho mas de cara a la galerfa, para salvar la imagen de honestidad de la clase polltica, que con vocaci6n de atajar realmente por esta via el fen6meno, sin duda preocupante en cualquier pais y mas con un sistema democratico, de la corrupci6n52 â&#x20AC;˘ Pero volviendo al tema de si en los procesos que pudieran surgir por estos delitos puede utilizarse como prueba material videografico grabado ilegalmente por un particular, que de hecho puede funcionar tambien como agente
50 Vease sabre esta reforma MuJ\Joz CONDE, Los nuevos delitos de trafico de influencias, revelaci6n de secretos e informaciones y uso indebido de informaci6n privilegiada, apendice a la 8." edici6n de Derecho penal, Parte Especial, Valencia, 1991. 51 V ease MuJ\Joz CoNDE, Derecho penal, Parte Especial14." ed., Valencia, 2002, p. 9.62 ss. Tambien OcTAVIO DE ToLEDO Y UBIETO, Los delitos relativos al trafico de influencias, La Ley 1998. 52 La bibliografia sabre este tema aparecida en los (tltimos at1os es bastante abundante, par una vision global del problema me remito a la obra de CuGAT MAURI, La desviaci6n del interes general y el trafico de influencias, Barcelona, 1997.
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gubernamental o politico, para luego chantajear a la persona grabada, y no con el fin de ayudar a la Justicia denunciando a los que pretenden sobornarlo o ejercer influencia sobre sus decisiones, la respuesta, aunque con matizaciones que dependen de las particularidades de cada caso, debe ser negativa 53 . Lo cual, obviamente, no quiere decir que no se puedan utilizar otras pruebas, desde la propia declaraci6n del autor de las grabaciones, hasta la prueba de la entrega del dinero o su ingreso en una determinada cuenta corriente, documentos que acrediten las gestiones ilegalmente realizadas, etc. Pero de lo que se trata es de saber hasta que punto en estos casos es prioritario respetar el derecho a la intimidad del que, sin su consentimiento, fue objeto de una grabaci6n mientras conversaba con su interlocutor. La jurisprudencia espafi.ola en tanto yo sepa, salvo en los casos en los que el graba es un agente estatal o un particular victima de un delito, apenas se ha ocupado de casos de este tipo. En una sentencia del TS 1 de marzo de 1996 (ponente: Martin Pallin), en la que se trataba de la validez de la grabaci6n subrepticia de una conversaci6n entre cuatro personas realizada por una de ellas sin advertirsela a las demas, se parte ciertamente, aunque, en mi opinion, de forma criticable, de que dicha grabaci6n "no ataca a la intimidad, ni al derecho al secreto de las comunicaciones, ya que las manifestaciones realizadas representaban la manifestaci6n de voluntad de los intervinientes que fueron objeto de grabaci6n de manera desleal desde el punto de vista etico pero que no traspasan las fronteras que el ordenamiento juridico establece para proteger lo intimo y secreto". Tras esta afirmaci6n, a mi juicio y por las razones ya dichas anteriormente, discutible, el TS alega, como apoyo a lo que acaba de afirmar, que "el contenido de la conversaci6n pudo llegar al proceso por la via de su reproducci6n oral si alguno de los asistentes recordaba fielmente lo conversado" (lo que plantearia entonces, afi.ado, el problema de la validez como prueba de la declaraci6n de un coimputado contra otro coimputado54); "o mediante la entrega de la cinta que recogia textualmente, con mayor o menor calidad de sonido, el intercambio de palabras entre todos los asistentes" (pero en ese caso, afi.ado, la cinta hubiera tenido que ser autenticada y llevada al juicio oral para pasar la inmediaci6n y el analisis contradictorio de las partes).
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En el mismo sentido, en la doctrina alemana, vease FRANK, lug. a. cit.. Sobre la dudosa admisibilidad desde el punto de vista constitucional del valor probatorio de la declaraci6n de un coimputado contra otro coimputado, vease Mur\Joz CoNoE, La busqueda de la verdad cit., (p. 69 a 84 de la 2.a edici6n argentina). A favor de su canicter como prueba, aunque requiriendo, en todo caso, la corroboraci6n, vease DTAZ PITA, Paula, El coimputado, Valencia, 2000, y una amplia jurisprudencia recogida par FLORES PRADA, El valor probatorio de !as declaraciones de Ios coimputados, Madrid, 1998. Cfr. sin embargo, STC 207/2002, de 11 noviembre, (ponente: Delgado Bm路rio), que rechaza expresamente el canicter de prueba de la declaraci6n del coimputado cuando esta no es corroborada. 54
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Y de una forma bastante discutible dice esta sentencia, a mayor abundamiento, lo siguiente: "cuando una persona emite voluntariamente sus opiniones o secretos a un contertulio sabe de antemano que se despoja de sus intimidades y se
las transmite, mas o menos confiadamente, a los que le escuchan, los cuales podran usar su contenido sin incurrir en ningun reproche jurfdico". Desde luego, con este parrafo final de su Fundamento Juridico, la STS hace una interpretaci6n del delito de grabaci6n ilegal que, admitida de forma general, deja practicamente sin protecci6n la intimidad de una conversaci6n o cualquier otra comunicaci6n verbal. En el se viene a decir mas o menos que "cuando un sujeto habla con otra persona, asume el riesgo de que sus palabras pueden ser grabadas". Esto puede tener sentido cuando se hacen declaraciones en un lugar o en unas condiciones (bar, restaurante, calle, conferencia, etc) en las que ciertamente ademas del interlocutor pueden escuchar las palabras cualquier otra persona55; pero no cuando se pronuncian en la intimidad y en relaci6n directa con una persona o personas (micos destinatarios de las mismas; y mucho menos cuando se trata de conversaciones mantenidas con un profesional (abogado, medico, psic6logo), cuya revelaci6n por parte de este constituye ademas el tipo agravado de revelaci6n de secreto profesional recogido en el art. 199 del C6digo penal. LSe imagina alguien que el profesional abogado o medico pudiera grabar la conversaci6n con su cliente y que luego esta se pudiera utilizar como prueba en un proceso penal? Carece, a mi juicio, de sentido convertir en delito la grabaci6n ilegal de una conversaci6n privada y decir luego que el interlocutor cuyas palabras han sido grabadas ilegalmente por el destinatario de las mismas tiene que asumir el riesgo de que la grabaci6n sea utilizada como prueba contra eL Si prosperarse la interpretaci6n que propone en este caso el TS, adi6s privacidad de las conversaciones entre particulares, adi6s intimidad de las conversaciones telef6nicas. Atenci6n miembros de Consejos de Administraci6n, cuidado con lo que digais en alguna reunion en el seno del mismo, si alguien os graba podra usar vuestras palabras, darselas a la prensa, etc, revelando incluso datos econ6micos sobre el estado de la empresa, su estado financiero, sin incurrir par ello en la menor responsabilidad penal. Cuidado, tambien enamorados que teneis relaciones intimas con vuestros amantes, sabed que estos pueden grabar impunemente vuestras pasiones y caprichos er6ticos, cuando las manifesteis verbalmente. La prensa amarillista o la llamada del coraz6n estarian de enhorabuena, sin ningun problema podrian y publicar todas las conversaciones grabadas par alguno de sus agentes que consigui6 conversar privadamente con el personaje famoso; y lo que es peor, la grabaci6n se podria utilizar como prueba en un proceso penal. 55
Y aun as! ello es tambien discutible; cfr. la sentencia del Tribunal Superior de Cantabria de 25 abril2003 (recogida en La Ley, 12 diciembre 2003), en la que se confinna la validez de la expulsion de un Concejal del Salon de Plenos del Ayuntamiento decretada por el Alcalde y ejecutada por la Fuerza Publica, por utilizar una grabadora durante una de !as sesiones.
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Y lo mismo habria que decir y admitir, si se sigue lo que dice el TS en el Fundamento Juridico de esta sentencia, cuando ademas de las palabras se graban tambien la imagen del que habla, quedando asi tambien desprotegidas penalmente situaciones como la del periodista filmado en sus caprichos er6ticos. Sin embargo, el art. 197, 1 del C6digo penal vigente (y el 497 bis del anterior) equiparan, con raz6n, la grabaci6n del sonido y la imagen, y es que tanto la una como la otra son parte de la intimidad de una persona, que, es en definitiva, lo que dicho precepto quiere proteger. A la vista de lo que dice el art. 197, 1 del C6digo penal, esta claro que es grabaci6n ilegal toda aquella en la que se em plea algun medio tecnico que recoja el sonido y I o la imagen de alguien sin su consentimiento. El TS solo puede tener raz6n en lo que se refiere a conversaciones no grabadas, bien percibidas directamente por uno de los interlocutores (que luego puede testificar sobre el contenido de las mismas), bien indirectamente, de manera fortuita por encontrarse en las cercanias, o incluso por escuchar detras de la puerta de la habitaci6n en la que se esta hablando. Pero en este caso, ya no se trata de admitir como prueba una grabaci6n (ilegal), sino de admitir y valorar como tal la declaraci6n de un testigo que oy6 la conversaci6n. Pero independientemente de este razonamiento, lo mas curioso de esta sentencia es que despues de lo dicho respecto a la licitud de las conversaciones privadas grabadas por uno de los intervinientes, afirma respecto a su valor probatorio lo siguiente: "No obstante y de manera clara y terminante la Sala
sentenciadora acuerda rechazar la validez de la grabaci6n pues si la hubiese admitido se desconoceria el derecho de los acusados a no declarar contra si mismos y a no confesarse culpables. La conversaci6n no surgi6 espontaneamemte y hubiera tenido otros derroteros, coma es l6gico, si todos los interlocutores supieran que se estaba grabando o por lo menos hubieran acomodado sus preguntas y respuestas a la situaci6n creada par la existencia de un instrumento de grabaci6n". Y todavia dice mas:"El contenido de una conversaci6n obtenida par estos metodos no puede ser incorporada a un proceso criminal en curso cuando se trata de utilizarlo coma prueba de la confesi6n de alguno de los intervinientes ya que si esta se ha producido sin ninguna de las garantias establecidas par los principios constitucionales es nula de plena derecho. La Sala sentenciadora de acuerdo con esta doctrina proclamada expresamente prescinde par completo de cuantas manifestaciones se hicieron en la conversaci6n grabada ya que, desde un punto de vista estrictamente procesal, se hicieron de manera provocada y con la exclusiva intenci6n de presentarlas coma prueba en las diligencias en curso y sin estar revestidas de las garantias que aporta la intervenci6n del Juez y del Secretario Judicial y la advertencia de los derechos a no declarar a y no confesarse culpable". Es decir, y en definitiva, lo que esta sentencia viene a afirmar por un lado: la admisibilidad como prueba de la grabaci6n de la conversaci6n obtenida sin consentimiento de uno de los intervinientes en la misma; lo niega por otro, al rechazar esta prueba por violar el derecho de los acusados a no declarar
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contra si mismos y a no confesarse culpables. Algo que como ya hemos visto, ya ha seftalado RoxiN, cuando afirma que este tipo de procedimiento viola el principio"nemo tenetur se ipsum accusare" (nadie esta obligado a declarar contra si mismo) y que tambien entre nosotros el Magistrado del TS, Enrique BACIGALUPO, habia puesto de relieve en su comunicacion anteriormente citada 56 . De un modo u otro, de lo que se trata es, pues, de rechazar como prueba un dato que se ha obtenido de una forma que claramente lesiona un derecho fundamental; careciendo de interes desde el punto de vista practico que ese derecho sea el derecho a la intimidad (lo que rechaza el TS en esta sentencia), o el derecho a no declarar contra si mismo (que el TS admite). Lo que, en todo caso, esta claro es que hay muchas razones tanto de indole espedficamente juridicopenal, como tambien constitucional, para rechazar, en principio, la utilizacion como prueba en un proceso penal de las grabaciones de conversaciones, videos, etc, realizadas por un particular cometiendo el delito previsto en el art. 197 del C6digo penal, sin ninguna causa que lo justifique. Entre las primeras esta que se trata de un hecho delictivo, que ademas lesiona directamente un bien juridico que afecta a un derecho fundamental como es el derecho a la intimidad, y al que, por tanto, no puede darsele valor probatorio, salvo que queramos provocar un efecto criminogeno e incitar a todo el mundo a convertirse en una especie de detective privado buscando pruebas para cargarse a su enemigo politico, empresarial o simplemente personal. Entre las segundas esta no solo el respeto que merece el derecho fundamental a la intimidad, de rango constitucional, que solo en casos excepcionales, tasados legalmente y controlados judicialmente, puede ser limitado o vulnerado de algun modo, sino tambien el derecho constitucional igualmente fundamental a no declarar contra si mismo. Cual de estos caminos se elija para fundamentar la inadmisibilidad de esta prueba, es ahora indiferente, y creo que cualquiera de ellos puede utilizarse, o incluso todos al mismo tiempo. Pero no podemos olvidar que la propia idea de la Justicia exige tambien la proporcionalidad entre la entidad del delito de que se trate y la gravedad de la violacion de la intimidad que implica la grabacion con la que quiere probarse ese delito (en este sentido y en relacion con la intervencion de comunicaciones, vease STC 167/2002, 205/2002, 184/2203 en las que se otorga el amparo por haberse infringido este principio de proporcionalidad). y si este, como ya hemos visto, es un principio aplicable a cualquier acto de injerencia en el derecho a la intimidad que realicen agentes estatales en la averiguacion y castigo de los delitos, con mucha mayor razon debemos exigirlo cuando se trate de injerencias cometidas por un particular, que ademas son constitutivas de un delito, que se realiza incluso para cometer otros.
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Vease !as referencias a ambos autores supra.
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En un caso en el que se me pidi6 un Dictamen sobre la validez como prueba de una de las grabaciones realizadas ilegalmente por el entonces todopoderoso asesor del Presidente de Pen]57, se trataba, segun la acusaci6n que hada el Ministerio fiscal peruana, de un presunto delito de trafico de influencias que podria haber cometido el gerente de una fabrica de pastas alimenticias que queria gestionar con el citado politico que se anulase por un Tribunal la denegaci6n de una licencia de apertura de la citada fabrica que habia acordado la Municipalidad de Lima. Analizando detenidamente la trascripci6n de la grabaci6n videografica de dicha conversaci6n que el abogado solicitante del dictamen puso a mi disposici6n, no tuve la impresi6n de que efectivamente se hubiera cometido dicho delito, salvo que se puedan estimar como tales este tipo de conversaciones y gestiones que se suceden frecuentemente en los despachos ministeriales de cualquier pais (que obviamente, como ya ha pasado en otros paises, pueden ser grabadas para explotarlas politicamente cuando convenga, provocando el consiguiente escandalo politico, o simplemente para chantajear al interlocutor). En consecuencia, y dado el caracter delictivo de las grabaciones que habia realizado el tal asesor presidencial, considere que las mismas no deberian ser admitidas como prueba en el proceso que por un supuesto delito de trafico de influencias se habia incoado contra el citado gerente de la compafiia que habia hecho las gestiones ante el, aunque si obviamente en el proceso que en su dia se dirigiera contra el asesor presidencial, como autor de un delito de grabaci6n ilegal. Es posible que en otros casos, y asi parece desprenderse de la existencia otros videos, cuyo contenido parcial solo conozco por referencias en los medios de comunicaci6n, a traves de las cintas grabadas puedan constatarse otros delitos mas graves cometidos por dicho sujeto, y que las mismas puedan utilizarse, si se cumplen los requisitos de autenticaci6n, contradicci6n y presentaci6n en el juicio oral, como prueba en el proceso penal que en su dia pueda llevarse a cabo contra el citado asesor presidencial por estos delitos, ademas de por el delito de grabaci6n ilegal masiva; pero no me parece tan claro que puedan utilizarse contra los que fueron victimas de estas grabaciones ilegales. No cabe duda de que la corrupci6n es un fen6meno que se da con frecuencia en muchos paises incluso con una gran tradici6n democratica y con fama de honradez en sus gobernantes. El "caso Kohl" en Alemania, el "caso Jupee" en Francia, los procesos contra Berlusconi en Italia, los casos "Naseiro", "Filesa", "Ayuntamiento de Burgos", etc, en Espafia, han puesto de relieve lo preocupante puede ser este fen6meno cuando alcanza a los mas altos puestos de la politica y se utiliza frecuentemente como medio de financiaci6n ilegal de los partidos polfticos. Pero un analisis de este
57 Vease MuNoz CoNDE, Sobre el valor probatorio en un proceso penal de grabaciones de conversaciones obtenidas mediante videos y relevancia penal de las conversaciones grabadas en ellos, en Revista Penal, n. 0 13, 2004, p. 105 ss.
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problema nos llevaria mas lejos de lo que era el objeto de este trabajo: demostrar una vez mas que la lucha contra la criminalidad, contra cualquier tipo de criminalidad, no puede llevarse a cabo a toda costa o a cualquier precio, con desprecio o merma de derechos fundamentales cuya salvaguarda y garantia constituyen la esencia del Estado de Derecho. Que ello puede conducir a decisiones jurisprudenciales discutibles o, por lo menos, dificiles de entender por el que no esta avezado en las reglas de exclusion de la prueba obtenida con vulneracion de derechos fundamentales, lo demuestra el caso siguiente: La Camara Federal de la Plata en Argentina sostuvo la ineficacia probatoria de una documentacion que se hallaba en un maletin del que se habia apoderado indebidamente un particular que a la vista de su contenido (documentos falsificados) denuncio a su propietario a la Policia. El Tribunal de Apelaciones descalifico la presentacion como prueba, por ilegitimidad de su origen, de esta documentacion, distinguiendo claramente los actos del Estado en la investigacion penal de los de los particulares, considerando que respecto a estos 1iltimos la injerencia antijuridica en la intimidad priva de eficacia probatoria a los datos asi obtenidos58 â&#x20AC;˘ A este respecto, basta recordar tambien la vieja jurisprudencia espafiola que ya se habia tenido que enfrentar tambien con casos en los que un vecino se apoderaba de documentos, sobres cerrados y correspondencia, de otro vecino, bien extrayendolos de su buzon particular, bien p01¡que fueron depositados en su buzon por error del empleado de Correos, para descubrir su contenido y denunciarlo a la Polida, ya que rnuchas veces se trataba de revistas o documentos que demostraban su pertenencia a uno de los partidos politicos declarados ilegales en la epoca de la dictadura franquista. LHabria que admitir tambien en los momentos actuales que tales documentos, que ahora pueden consistir en grabaciones ilegales, pueden valorarse como prueba en un proceso penal, cuando se han obtenido de esta forma ilegal y delictiva? (cfr. STS 6 octubre 1967 y 25 noviembre 1969). Y con este interrogante termino esta incursion en el campo procesal siempre minado por los peligros de las pruebas prohibidas, que me he atrevido a hacer como modesto homenaje a uno de los mejores especialistas en Proceso penal que conozco. Aunque solo fuera por esto ya mereceria este Homenaje. Pero tambien quiero homenajear al que ademas de un gran jurista, profes01~ abogado y juez, es, sobre todo, un gran universitario y excelente persona que con su bonhomia ha sabido mantener discusiones cientificas con colegas, incluso de forma apasionada, sin perder por ello la caballerosidad y el respeto que merece el adversario 59 â&#x20AC;˘
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Citado por HAIREBEDIAN, en N ueva Doctrina Penal citada. V ease el debate mantenido entre MAIER y Jaime MALAI\!UD en Ios voll'1menes correspondientes al af\o 2002 y 2003 de la revista Nueva Doctrina Penal. 59
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0 INIMIGO NO DIREITO PENAL
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0 INIMIGO NO DIREITO PENAL Jose de Sousa e Brito
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Escolhi este tema em homenagem a Winfried Hassemer, em primeiro lugar, porque aqui se revela a grande proximidade entre o direito penal, o direito constitucional e a filosofia do direito, tres disciplinas que me unem ao homenageado e que em temas como este tem que ser tratadas conjuntamente. Em segundo lugar, porque o meu tratamento do tema se pode entender como uma glosa a urn Leitmotiv que nao e apenas urn titulo de urn aclamado artigo seu sobre "o que e indisponivel no processo penal (Unve1jiigbares im Strafprozess)" 2, mas uma marca da sua personalidade cientifica. Hassemer e urn jurista fil6sofo que nas grandes batalhas da politica legislativa do seu tempo desce a terreiro na defesa de principios. E precisamente o conjunto de principios indisponiveis do processo penal, como a presun<;:ao de inocencia ou a proibi<;:ao da tortura, que formam a civilidade ou a cultura juridica do processo penal. Nao sao urn direito natural que tenha sido evidente em qualquer epoca, sao prindpios que se desenvolveram historicamente no direito positivo, mas sao susceptiveis de justifica<;:ao racional e, por isso, diria eu, integram o que Arist6teles chamava "direito natural", como aquela parte do direito positivo que corresponde a natureza racional do homem. Hassemer falava do que e indisponivel no processo penal, mesmo quando se esta numa situa<;:ao de estado de necessidade da averigua<;:ao (Ermittlungsnotstand). Eu vou falar do que e indisponivel em direito e processo penal numa situa<;:ao de estado de necessidade da preven<;:ao -que inclui, decerto, situa<;:6es de estado de necessidade da averigua<;:ao -, que e a situa<;:ao de guerra global do terrorismo e contra 0 terrorismo, depois do 11 de Setembro. Tratarei de duas tentativas de responder ao terrorismo atraves da cria<;:ao de urn "direito penal do inimigo", corn principios diferentes dos do direito penal actual. A primeira e a proposta te6rica que, sob aquele nome, vem sendo
1 Ex-Conselheiro do Tribunal Constitucional. Professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. 2 Winfried Hasseme1~ Festschrift fiir Mailwfer, Frankfurt am Main, Klostermann, 1983, 183.
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defendida por Jakobs desde 19853 . A outra e a legislac,;ao de Bush sobre o combatente inimigo depois do 11 de Setembro de 2001. Quando aqui falo de direito penal, emprego a palavra em sentido lato, que inclui o processo penal, salvo se o contrario resultar do contexto.
0 "direito penal do inimigo" de Jakobs
No seu estudo de 1985 sobre "a incriminac,;ao no antecedente de uma violac,;ao do bem jurfdico" Jakobs contrap6e a definic,;ao do autor coma inimigo do bem juridico, segundo a qual e permitido combater os primeiros sinais de perigo, embora isso possa nao ser oportuno no caso, a sua definic,;ao coma cidadao. Segundo esta ultima, o autor e desde logo definido pelo seu direito a uma esfera livre de controlo 4 . 0 que corn os seus efeitos ainda cabe dentro da esfera privada, em que o cidadao tern o direito de imunidade frente ao controlo do Estado, e que abrange desde a intimidade do seu corpo aos meros contactos sociais por ml'1tuo acordo, nao pode ser acto preparat6rio, nem tentativa, nem execuc,;ao de urn crime. Quando, por exemplo, se considera punivel coma tentativa de comparticipac,;ao criminosa uma conversa em privado entre amigos conspirativa para a pratica de urn crime, esta se a tratar os intervenientes coma inimigos, aos quais se nao reconhece o estatuto de cidadao. Uma tal diminuic,;ao do sujeito pertence a urn direito penal de caracter especial, que se distingue claramente do direito penal civil ou do cidadao: o direito penal do inimigo optimiza a protecc,;ao dos bens juridicos, o direito penal civil optimiza a liberdade5 . As constric,;6es que deste ultimo resultam para a eficacia do Estado sao, pm¡em, constitutivas do Estado liberal, quem as elimina abandona-o. Diz Jakob que "uma pessoa (ein Mensch) e, num ordenamento que existe em conformidade corn a Lei Fundamental, urn cidadiio" 6 â&#x20AC;˘ No entanto, Jakobs admite que haja situac,;6es em que normas irrenunciaveis do Estado liberal perderao a forc,;a da sua validade se a repressao ficar a espera de que o autor saia da sua esfera privada. Mas, mesmo entao, o direito penal do inimigo s6 e legitimavel coma urn direito penal de necessidade excepcionalmente vigente. Par isso, ha que separar rigorosamente os seus preceitos (aqui Jakobs da coma exemplo a
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Giinther Jakobs, "Kriminalisierung im Vorfeld einer Rechtsgutsverletzung", ZStW 97 (1985), 751 (cit.: Jakobs 1985); do mesmo, ,Das Selbstverstandnis der Strafrechtswissenschaft vor den Herausforderungen der Gegenwart", Albin Eser, Winfried Hassemer, Bjorn Burkhardt (eds.), Die Deutsche Stmfreclztswissenschaft vor der Jahrlumdertwende. Riiclcbesinnung und Ausblick, Mi.inchen, Beck, 2000,47 (cit.: Jakobs 2000); ,Bi.irgerstrafrecht und Feindstrafrecht", HRRS, 2004, Heft 3, 88 (cit.: Jakobs 2004). ' Jakobs 1985, 753. 5 Jakobs 1985, 756. 6 Jakobs 1985, 755.
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priva<;:ao de contactos - Kontaktsperre -, entao introduzida por lei extravagante) dos do direito penal civil, preferentemente colocando-os fora do C6digo 7 â&#x20AC;˘ No seu comenhirio sobre "a compreensao de si mesma da ciencia do direito penal perante os desafios do presente", na reuniao de balan<;:o e prospectiva dos penalistas alemaes em 1999, Jakobs volta ao tema e apresenta as seguintes caracterfsticas tlpicas do direito penal do inimigo: (1) larga antecipa<;:ao da punibilidade e, portanto, mudan<;:a de vista do facto passado para urn facto futuro, de que sao exemplo os tipos da forma<;:ao de associa<;:6es criminosas ou terroristas ou da planta<;:ao colectiva de estupefacientes; (2) ausencia de uma redu<;:ao da pena proporcional a antecipa<;:ao; (3) passagem da legisla<;:ao penal para a legisla<;:ao de combate, no ambito da qual leis extravagantes alemas tern sucessivamente vindo "a combater"(zur Bekiimpjung) a criminalidade econ6mica, o terrorismo, a criminalidade organizada, inclusivamente, corn perda de contornos, os crimes sexuais e outros crimes perigosos e, acima de tudo, o crime; (4) diminui<;:ao de garantias processuais de que a priva<;:ao de contactos dos detidos se tornou 0 classico exemplo 8. 0 inimigo e agora definido coma urn indivfduo que nao apenas ocasionalmente, pela sua atitude (delitos sexuais; ja tambem o velho delinquente habitual "perigoso" nos termos do §20 do C6digo Penal alemao ate 1969) ou pelo seu modo de ganhar a vida (criminalidade econ6mica, criminalidade organizada, especialmente criminalidade da droga) ou principalmente, pela sua integra<;:ao numa organiza<;:ao (terrorismo, criminalidade organizada, de novo criminalidade da droga, ja antigamente a conjura<;:ao para homiddio), de todo o modo, portanto, se presume que se desviou duradouramente do direito e "nessa medida nao garante a seguran<;:a minima de comportamento pessoal e demonstra esse defice pelo seu comportamento" 9 â&#x20AC;˘ 0 alcance desta ultima frase depreende-se do primeiro dos dois novos desenvolvimentos justificativos que Jakobs apresenta, urn sobre o conceito de pessoa, outro sobre os fins da pena. Sobre a pessoa diz agora Jakobs que quem quer ser tratado como pessoa tern por seu lado que dar uma certa garantia cognitiva de que se comportara coma pessoa. Se falta esta garantia ou se ela e mesmo recusada explicitamente, transforma-se o direito penal, de uma reac<;:ao da sociedade ao facto de urn dos seus membros, numa reac<;:ao contra urn inimigo. Nem por isso passa a ser permitido tudo, ate uma ac<;:ao desmedida. Pelo contrario, "pode conceder-se ao inimigo uma personalidade potencia/" 10 . "Os inimigos sao actualmente nao-pessoas. No rigor do conceito o direito penal do inimigo e, portanto, guerra, cuja conten<;:ao ou totalidade depende (tambem) de tudo o que se receia do
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Jakobs 1985, 784. Jakobs 2000, 51 s. 9 Jakobs 2000, 52. 10 Jakobs 2000, 51.
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inimigo. Isto soa escandaloso e e-o, porque trata da impossibilidade de abrangencia pelo direito e, portanto, contradiz a equivalencia entre racionalidade e personalidade 11 â&#x20AC;˘ A pena entende-a Jakobs como "a marginaliza<;ao do facto no seu significado como viola<;ao da norma e, assim, como a declara<;ao de que o conjunto das normas da sociedade continua inalterado; a pena e confirma<;ao da identidade da sociedade e, portanto, do conjunto das normas, e corn a pena alcan<;a-se sempre este fim da pena- por assim dizer" 12 . Ora este efeito confirmativo - correspondente a uma fun<;ao expressiva -da pena deve ser separado dos efeitos preventivos- correspondentes a fun<;6es latentes- da mesma, porque a pena segundo a sua fun<;ao dirige-se a destinatarios diferentes. 0 efeito confirmativo dirige-se as pessoas, portanto, a participantes na comunica<;ao, representados como orientados pelo direito. 0 que esta em jogo e apenas a certifica<;ao do que e direito e do que e nao-direito ou ilicito. Kant designaria o destinatario como homo noumenon. Passa-se coisa diferente corn as fun<;6es latentes. Habituar-se a fidelidade ao direito ou ficar atemorizado nao sao reac<;6es pessoais, as pessoas nao precisam de habitua<;ao nem de temor, uma vez que sao representadas como participantes na comunica<;ao orientados pelo direito. S6 tern que ser dirigido por meio de habitua<;ao e temor aquele que nao e por si orientado pelo direito, o homo phaenomenon na linguagem de Kant, o individuo que faz a conta do prazer e da pena 13 . Como corolario, o direito dos tribunais penais internacionais e considerado direito penal do inimigo, por nao ser verdadeiramente direito. Por ultimo, o tema foi retomado por Jakobs num ensaio de 2003 intitulado "Direito penal do cidadao e direito penal do inimigo" 14 â&#x20AC;˘ Abstraindo de uma tentativa de demonstra<;ao de que a sua teoria do direito penal do inimigo entronca na tradi<;ao da teoria do contrato social e especialmente de Hobbes, Rousseau, Kant e Fichte - materia que me abstenho aqui de discutir, porque a sua discussao nos levaria longe - o novo ensaio afasta-se dos anteriores em dois pontos significativos. Direito penal do cidadao e direito penal do inimigo sao agora considerados dois tipos ideais, que nunca porventura se encontram realizados na sua pureza. Mesmo no direito penal do cidadao de urn Estado mundial havera sempre alguma defesa de perigos futuros, e mesmo o terrorista mais afastado da cidadania e pelo menos formalmente tratado como pessoa, quando no processo penal lhe sao reconhecidos os direitos de urn cidadao inculpado. Nao se trata, portanto, de contrapor duas esferas isoladas de direito 11
Jakobs 200, 53. Jakobs 2000, 50. 13 Jakobs 2000, 50. "J akobs 2004. Em 2003 o ensaio foi publicado em Taipe (Gediichtnissclzrift Prof Fu-Tseng-Hung, cit. por Jakobs 2004) e em tradu~ao espanhola (Gunther Jakobs, Manuel Cancio Melia, Dereclw penal del enemigo, Madrid, Civitas). 12
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penal, mas de mostrar dois p6los de um mundo ou duas tendencias de sentido contrario em um contexto do direito penal, em que estas tendencias se podem completamente sobrepor, a saber, a que tende a tratar o autor como pessoa e a que tende a trata-lo como fonte de perigo ou como meio de intimidar outros 15 . A segunda diferent;a significativa e que Jakobs passa a apresentar como exemplos de direito penal do inimigo, alem dos anteriores, as sanc;oes meramente preventivas do direito penal classico, como sao as medidas de seguranc;a (Jakobs refere especialmente o internamento de seguranc;a- haveria que referir entre n6s, quer o internamento em estabelecimento de seguranc;a, quer a pena indeterminada dos delinquentes por tendencia -, mas haveria que acrescentar todas as outras medidas de seguranc;a) e no processo penal a prisao preventiva, as medidas de coac;ao, como as escutas e outras averiguac;oes secretas, e a sujeic;ao a exame, nomeadamente de sangue 16 . 0 11 de Setembro e agora aduzido para afastar d-L1vidas, e a legislac;ao penal americana produzida ad hoc e apresentada sem critica como exemplo de direito penal do inimigo, fazendo-se notar sem critica que o respectivo processo, que nao separa a jurisdic;ao do executivo, tern a forma de guerra e nao de justic;a. Verifica-se entao que a integrac;ao do direito penal do inimigo como tipo, tendencia ou p6lo do direito penal nao ajuda a determinar-lhe os principios, mas a desistir de os procurar. Diz Jakobs que quem nao quiser retirar ao direito penal as suas qualidades num Estado de direito - controlo dos afectos, reacc;ao apenas a factos exteriorizados e nao a simples tentativas, respeito pela personalidade do criminoso no processo penal, etc. - devera "chamar, ao que se tem de fazer contra os terroristas, se nao se quer sucumbir, outra coisa, justamente direito penal do inimigo, guerra controlada" 17 . Anteriormente era s6 guerra, eventualmente total, agora ja e controlada (gebiindigt). Pergunto eu: controlada como? Passando a critica, direi que a teoria do direito penal do inimigo deriva de falsa concepc;oes de Estado de direito, de pessoa, dos fins das penas, de direito internacional publico. 0 Estado de direito, precisamente na tradit;ao liberal de que se reclama Jakobs e que culminou em Kant, nao fundamenta apenas urn direito de cidadaos dirigido aos mesmos cidadaos, mas subordina o Estado e todos os sujeitos de direito nao apenas ao direito democraticamente criado e aceite, mas ao direito democraticamente criado, mesmo quando nao e aceite pela minoria, e ainda a urn certo conteudo de direito, baseado na dignidade da pessoa humana e expresso nos direitos do homem, que se desenvolvem, e certo, no horizonte hist6rico e hermeneutico das declarac;oes de direito democraticamente deliberadas e dos seus passados desenvolvimentos legislativos e jurisprudenciais, 15 16 17
Jakobs 2004, 88. Jakobs 2004, 89, 93. Jakobs 2004, 92.
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mas tarnbem nurna permanente critica e reconstru<;ao racional. 0 Estado e formal e rnaterialmente de direito. Ora as norrnas sobre direitos do hornern aplicarn-se a todos os hornens, inclusivamente terroristas e inirnputaveis. As norrnas do Estado de direito e norneadarnente as do direito penal nao distinguem entre os seus destinatarios entre os que se orientarn e os que, provisoria ou duradourarnente, nao se orientarn por elas, entre pessoas e pessoas potenciais, ou nao-pessoas ou individuos. Passando aos fins das penas, a fun<;ao reparadora ou reintegradora da pen;;t nao se limita a reafirma<;ao da norma violada, que e sempre feita independenternente do conteudo da pena, corno reconhece Jakobs. Estende-se a repara<;ao do dano social indirecto que e a perda de eficacia da norma pelo aurnento da tendencia para a criminalidade corno consequencia do crime. Especificamente a pena repara a culpa como desvaloriza<;ao do criminoso, nao apenas no sentido formal de este paga atraves dela a sua divida a sociedade, mas no sentido material de que visa reintegra-lo como rnernbro valioso da sociedade atraves da preven<;ao especial possivel dentro dos lirnites dos outros fins das penas. Quer na preven<;ao geral, quer na especial, 0 crirninoso nao e tratado corno urn homo phaenomenon do mundo natural que se motiva pelo calculo do prazer e da dor, mas como uma pessoa corn a dignidade que lhe e propria, que se auto determina pela escolha livre das maximas do seu agir, e que a pena corno tal interpela corn os seus fins de preven<;ao positiva tanto geral corno especial. Acresce que o prindpio constitucional da necessidade da pena nao deriva da exigencia de racionalidade implicita na preven<;ao geral, deriva principalmente do prindpio constitucional da maxima restri<;ao das restri<;5es dos direitos fundamentais, baseado, tal como o prindpio da culpa (tambern a pena do terrorista esta limitada pela culpa), na dignidade da pessoa humana. Finalmente o direito internacional penal corno parte do direito internacional publico, no entendimento que este tern de si proprio e que a constitui<;ao dele tern, e verdadeiro direito, rnesrno quando tern algurn deficit de eficacia.
0 direito penal do combatente inimigo de George W. Bush A mais irnportante tentativa de cria<;ao de urn direito penal do inimigo diferente do direito penal comum, corno o pretendia ern teoria Jakobs, e o direito penal criado por Bush depois do 11 de Setembro, prirneiro atraves do USA Patriotic Act de 24 de Outubro de 2001 e depois atraves da Military Order N. 0 1 de 13 de Novernbro de 2001 sobre "deten<;ao, tratarnento e julgarnento de certos nao cidadaos na guerra contra o terrorisrno". 0 USA Patriotic Act alargou o tipo do crime de terrorisrno, estendeu os poderes da administra<;ao de proceder a buscas secretas dorniciliarias, perrnitiu ao attorney general prender
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estrangeiros como amea<;as a seguran<;a sempre que entender, deu a administra<;ao poderes de requisitar os registos de compras de livros em livrarias e de emprestimos de livros em bibliotecas, etc .. A Military Order de 13 de Novembro, depois de declara que "nao e praticavel aplicar em comissoes militares nos termos desta ordem os princfpios de direitos e as regras de prova geralmente reconhecidos no julgamento de casos criminais nos tribunais distritais dos Estados Unidos", cria tribunais militares que sao nomeados pelo Departamento da Defesa, que tern o poder de condenar em penas, incluindo a pena de morte, sem as garantias de prova do processo penal comum- por exemplo, e admitida a prova por depoimento indirecto (ou de ouvir dizer), ou por confissao involunt<iria "desde que tenham valor probat6rio para uma pessoa razoavel". Nao ha recurso excepto para o Secretario da Defesa e para o Presidente. Os arguidos tern defensores oficiosos militares, podendo contratar advogados de defesa civis, que estao contudo sujeitos a exames de seguran<;a e nao podem participar em sessoes que o presidente do tribunal declarar fechadas 18 . Em consequencia desta legisla<;ao, e da Authorisation for Use of Military Force Joint Resolution, aprovada na semana seguinte ao 11 de Setembro, a administra<;ao americana no rescaldo da guerra do Afeganistao, manteve detidos durante mais de dois anos numa base americana em Cuba, que considerava subtraida ao poder dos tribunais americanos, 650 prisioneiros declarados combatentes inimigos, sem contacto corn advogado ou qualquer pessoa exterior. A Supreme Court, porem, em recursos interpostos pelos familiares e amigos dos detidos 19, nao s6 declarou a sua competencia para julgar actos praticados pelos 6rgaos ou agentes do Estado em territ6rio estrangeiro, como concluiu que, embora o Congresso tenha autorizado a deten<;ao de combatentes nas restritas circunstancias do caso, a cLiusula constitucional do "due process" exige que a urn cidadao detido nos Estados Unidos como combatente inimigo seja dada uma oportunidade significativa de contestar a base factual da sua deten<;ao perante uma entidade decis6ria independente. Nao posso discutir no pormenor esta hist6rica decisao 20, mas penso que ela tomou o born caminho de ponderar em que medida a legisla<;ao especial sobre o inimigo e compatfvel cam a conteudo essencial dos direitos fundamentais envolvidos. A questao do direito penal do inimigo nao se resolve corn nomes, mas corn respostas baseadas nos princfpios constitucionais.
18 Esta legila~ao foi analisada e discutida criticamente por Ronald Dworkin, "Terror and the Attack on Civil Liberties", The New York Review of Books, 6. 11. 2003, 37. 19 Hamdi e tal. V. Rumsfe/d, Secretary of Defense, et al., No 03- 6696, 542 U. S. _ (2004); Rumsfe/d, Secretary of Defense v. Pad ilia et al., N" 1027, 542 U.S.- _ (2004); Rasul et al. v. Bush, President of the United States, et al., N"s 03-334, 03-343; decididos em 28.6.2004; ver slip opinions. 20 Veja-se para tal Ronald Dworkin, "What the Court Really Said", The New York Review of Books, 12.8.2004 e http:/ /www.nybooks.com/articles/17293.
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EL CRIMEN ORGANIZADO EN EL MARCO DE LA CORRUPCION PUBLICA Y PRIVADA
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EL CRIMEN ORGANIZADO EN EL MARCO DE LA CORRUPCION PUBLICA Y PRIVADA* Juan Carlos
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1. Corrupci6n en el sector publico
Hablar de corrupci6n nos lleva a aproximarnos a situaciones comunmente conocidas, que suponen en lo esencial el enriquecimiento ilicito de funcionarios publicos o autoridades al tomar decisiones arbitrarias o ilegales en el ejercicio de sus cargos. Sin embargo, se trata de un fen6meno que excede el ambito de los mencionados funcionarios y autoridades. Como primera e importante premisa debo destacar algo que me parece obvio: no puede haber corrupci6n en el sector publico si no intervienen de manera activa y eficaz protagonistas del sector privado. El mundo de los negocios y la economfa es el que da contenido al fen6meno de la corrupci6n en todas sus manifestaciones. Los caminos para el enriquecimiento de los servidores publicos son cada vez mayores: concesi6n de obras publicas, compra de material belico y en general cualquier contrataci6n por parte del Estado, comisiones por licencias para construir en suelo publico o privado, negociaciones que pueden producirse en el mundo econ6mico como subvenciones publicas, blanqueo de dinero, corrupci6n en el sistema bancario, etc.. La lista es, sin duda, interminable. La corrupci6n es un fen6meno universal, pues afecta tanto a pafses con modelos pollticos totalitarios como democraticos y en general suscita el descredito de las instituciones publicas. Se debe destacar el fen6meno de la financiaci6n ilegal de los partidos pollticos que provoca graves distorsiones al Estado de Derecho. Nos preocupa tambien una forma muy evolucionada de corrupci6n, la que relaciona la actuaci6n de la Administraci6n con la economfa, a traves del papel asignado a funcionarios o autoridades que gestionan, deciden, adjudican y resuelven la asignaci6n o el control de importantfsimos contratos o subvenciones publicas.
â&#x20AC;˘ Conferencia proferida em Lisboa, na Universidade Lusiada em Outubro de 2004. 1 Catedn1tico de Derecho Penal. Universidad de Huelva. Espanha.
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Nos encontramos en el ambito privado, el de las empresas, el de los mercados financieros, en el que intervienen sujetos distintos a los funcionarios pl'1blicos o autoridades que incurren en practicas corruptas o incluso las provocan. Este tipo de corrupci6n genera vicios diflciles de reparar en la gesti6n publica y en buena medida se producen alteraciones en el conjunto de la economia. Por una parte, se aprecia que el enorme volumen de dinero en juego potencia la compra de voluntades entre funcionarios, autoridades y politicos. Por otra parte, las reglas que regulan las contrataciones publicas o las subvenciones resultan enormemente alteradas, de tal forma que en muchas ocasiones las empresas optan por imputar las cantidades destinadas al pago de sobornos como un coste mas de la operaci6n comercial. Como resulta l6gico, estas conductas llegan a distorsionar las condiciones de competitividad internacional de las empresas. Una prueba irrefutable de la existencia y disfuncionalidad de estos comportamientos es la Recomendaci6n del Consejo de la Organizaci6n de Cooperaci6n y Desarrollo Econ6mico (OCDE) relativa a la deducibilidad tributaria de los sobornos a funcionarios publicos extranjeros, que recomienda a aquellos Estados miembros que no impidan la deducibilidad de los sobornos se replanteen ese tratamiento con el objeto de denegar la mencionada deducibilidad sobre la base del caracter ilicito de esos hechos. En otros terminos, se ha llegado a la increfule situaci6n de importantes empresas que pretenden y posiblemente obtienen beneficios fiscales por los sobornos que pagan en el extranjero. Esta realidad nos lleva a abordar el fen6meno de la globalizaci6n. Estamos ante una de las manifestaciones mas caracteristicas de nuestro tiempo. A la globalizaci6n se adjudican grandes ventajas para la evoluci6n del comercio y las comunicaciones a nivel mundial. Pero no pueden desconocerse las graves consecuencias sociales que esta generando en los paises perifericos. Se trata de un fen6meno que no solo tiene consecuencias en el libre flujo de capitales internacionales, sino que produce sus efectos incluso en el ambito del Derecho penal. Desde esta perspectiva, globalizar supone que las pollticas criminales nacionales de los distintos Estados van perdiendo peso espedfico en beneficia de las pollticas criminales internacionales. La globalizaci6n se refleja fundamentalmente en la extraterritorialidad de las disposiciones penales o procesales. Asi, en el ambito del Derecho Publico, se manifiesta con las medidas urgentes recientemente dictadas para la lucha contra el terrorismo internacional o los efectos extraterritoriales de las leyes penales para luchar contra los delitos sexuales cometidos en cualquier parte del mundo. Tambien en la expansion internacional delllamado derecho penal del enemigo. En el ambito del Derecho Privado, y fundamentalmente como consecuencia directa de la necesidad de protecci6n de las inversiones extranjeras que realizan las grandes empresas trasnacionales, la globalizaci6n se advierte con la propuesta de sanciones por actos de corrupci6n de funcionarios publicos extranjeros.
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Esta situaci6n explica el creciente interes de la Organizaci6n de Cooperaci6n y Desarrollo Econ6micos (OCDE) para luchar contra la corrupci6n y el fraude en las transacciones econ6micas internacionales. Esta organizaci6n ha promovido un Convenio, firmado en Paris el 17 de diciembre de 1997, que claramente pretende acabar con la corrupci6n de agentes publicos extranjeros en las transacciones comerciales internacionales. En la actividad de la Administraci6n Publica, y fundamentalmente en la toma de las decisiones importantes, cuando la Administraci6n se relaciona con los particulares (adjudicando obras, servicios o regulando la actividad del Estado con una politica de subvenciones) existen ciertas reglas de juego. La previsibilidad de esas reglas, que normalmente deben estar enunciadas en la normativa, como las bases del concurso, o las bases de la convocatoria de una subvenci6n, hacen que las empresas interesadas presenten su oferta tecnica y econ6mica. Sin embargo, cuando la decision final a cargo de las autoridades, dentro del margen de libertad que siempre permite en ultima instancia la concesi6n de una obra o servicio publico o la concesi6n de una subvenci6n, esta condicionada por la influencia de intereses privados, las reglas de juego resultan alteradas. Esta situaci6n no solo resiente la convocatoria de que se trate, sino que se presentan importantes consecuencias para la economia y las empresas, como una variaci6n sustancial del precio final que debe pagarse por una obra publica o la seguridad de las inversiones empresariales en paises en las que estas practicas corruptas estan generalizadas. La practica del lobby fue considerada durante mucho tiempo un metodo corrupto de aproximaci6n e incidencia sobre el poder. Hoy por hoy se considera una practica licita en buena parte de los paises, que lo ven como una forma apropiada de hacer politica. Sin embargo, esta practica de lobby debe tener algunas limitaciones. El sector privado puede tener cierta cuota de influencia sobre el poder politico, pero cuando las decisiones politicas comienzan a ser erraticas, favoreciendo claramente a determinados sectores o intereses, aunque puedan encontrarse dentro de un marco general de legalidad aparente, terminan afectando las reglas de juego limpio que exigen todos los que intervienen y en ultima instancia, se resiente el conjunto de la economia. Esta forma de actuar afecta las relaciones del poder politico con los ciudadanos, y favorece la aparici6n de autenticos grupos de criminalidad organizada de naturaleza econ6mica, e incluso de criminalidad organizada econ6mica internacional, un fen6meno muy propio de nuestro tiempo "globalizado". Aqui aparecen todos los elementos en juego: corrupci6n, crimen organizado y globalizaci6n, lo que obliga a replantear seriamente la situaci6n y a planificar y desarrollar una estrategia de conjunta contra la corrupci6n. La politica criminal contra la corrupci6n debe abarcar, desde la perspectiva de la tipificaci6n de conductas delictivas, los distintos supuestos de delitos contra la Administraci6n Publica cometidos por funcionarios o
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autoridades. Asi, por ejemplo, el cohecho o la prevaricaci6n. Sin embargo, cuando entramos en el ambito mas espedfico de la persecuci6n del fraude las figuras penales deben ser revisadas. El Convenio del Consejo de Europa de 27 de enero de 1999 de Derecho Penal sobre corrupci6n gira fundamentalmente en torno a la figura del cohecho (de funcionarios p11blicos nacionales, internacionales, por parte del sector privado, etc.) pero tambien comprende el trafico de influencias, el lavado de dinero y las infracciones contables. Sin embargo, los limites no estan ni mucho menos definidos. Se intenta proteger de la corrupci6n las transacciones comerciales internacionales, que prefieren sin duda alguna contar con seguridad juridica. En este sentido, Espafia ha incorporado en el afio 2000 el delito de corrupci6n en las transacciones comerciales internacionales, al establecer en el art. 445 bis del C6digo Penal la sanci6n para aquellos que con dadivas, presentes, ofrecimientos o promesas corrornpieren o intentaren corromper, por si o por persona interpuesta, a las autoridades o funcionarios publicos extranjeros o de organizaciones internacionales en el ejercicio de su cargo en beneficia de estos o de un tercero, o atendieren a sus solicitudes al respecto, con el fin de que act11en o se abstengan de actuar en relaci6n al ejercicio de funciones p11blicas para conseguir o conservar un contrato u otro beneficia irregular en la realizaci6n de actividades econ6micas internacionales. Ante un fen6meno tan generalizado, que provoca irreparables consecuencias para la economia y tambien para el conjunto de la sociedad, se pueden adoptar distintas soluciones politico criminales. Desde una primera aproximaci6n podemos sefialar dos caminos para perseguir penalmente estas conductas, que se presentan en algunos paises como soluciones perfectamente compatibles. Por un lado, la creaci6n de un autentico arsenal punitivo que desarrolle los ilicitos y sanciones imputables a funcionarios p11blicos, fundamentalmente las figuras de cohecho o corrupci6n. Estos delitos se complementan con las conductas penales que ya se han referido precedentemente (blanqueo de dinero, trafico de influencias, delitos contables, fraude de subvenciones, corrupci6n en las transacciones comerciales internacionales). Otra via, tal vez mucho mas eficaz pero dudosamente garantista pasa por la figura penal del enriquecimiento ilicito. El enriquecimiento ilicito es una figura potenciada por la Convenci6n de la Organizaci6n de Estados Americanos contra la corrupci6n, cuyo articulo IX compromete a los estados miembros a tipificar como delito "el incremento del patrimonio de un funcionario publico con significativo exceso respecto a sus ingresos legitimos durante el ejercicio de sus funciones y que no pueda ser razonablemente justificado por el''. Guiados por esta Convenci6n o por iniciativa propia, muchos paises iberoamericanos han optado por incorporar la figura del enriquecimiento ilicito en sus C6digos Penales, posiblemente con la ilusi6n de solventar por esa via
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los enormes problemas de corrupci6n que padecen. Asi, por ejemplo, en un pais como Argentina, donde los indices de corrupci6n han llegado a provocar la quiebra del propio Estado, la Ley 16648 sanciona el enriquecimiento ilfcito de funcionarios y empleados publicos, fundamentalmente aquellos que no justifiquen la procedencia de un enriquecimiento patrimonial apreciable con posterioridad a asumir el empleo o cargo ptlblico. La figura penal del enriquecimiento ilfcito ha sido incorporada en distintos C6digos Penales iberoamericanos por la presunta ventaja de su eficacia, dado que supone invertir la carga de la prueba obligando a los funcionarios y autoridades a demostrar el origen de todos sus bienes. Sin embargo esta iniciativa ha tropezado con dos inconvenientes. Por un lado, tal como demuestra la crisis argentina y la situaci6n en muchos paises iberoamericanos, los resultados en cuanto a la sanci6n penal por este delito son completamente intrascendentes. En otras palabras, un instrumento penal que se ha creado sobre la base de su eficacia ha demostrado ser completamente ineficaz. Por otra parte, una norma penal de esta naturaleza ha sido cuestionada por su falta de garantfas, e incluso en algunos paises ha sido declarada inconstitucional. (AAVV, Revista Penal, 1999, 123). Volvemos a preguntarnos, LSon eficaces los delitos contra la Administraci6n Publica? Estos ilfcitos eshin regulados en la pnictica totalidad de los ordenamientos juridicos, no solo europeos sino del resto del mundo, en las figuras del cohecho activo o pasivo o incluso bajo la similar denominaci6n de corrupci6n activa o pasiva. Su eficacia pnictica ante el fen6meno de la corrupci6n puede ponerse en duda, justamente por las peculiaridades que presenta el derecho penal econ6mico, a lo que se afi.aden las dificultades probatorias que pueden reflejarse como resultado de los otros dos fen6menos que inciden en estos delitos: la globalizaci6n y la criminalidad organizada. No podemos desconocer las carencias de la polftica criminal en materia de corrupci6n, las que l6gicamente se van agravando con la proyecci6n internacional de la delincuencia. Por ese motivo, se hace imperioso buscar soluciones eficaces pero siempre recordando la vigencia del principio de ultima ratio y las garantfas propias de todo sistema penal. Con los instrumentos politico criminales actuales existen dificultades para frenar la enorme expansion de la corrupci6n econ6mica. Se exigen propuestas innovadoras en el marco del Derecho Penal sustantivo, y fundamentalmente explorar las soluciones no penales a este conflicto que pueden arrojar soluciones mucho mas eficaces y por supuesto mucho mas garantistas. Dejando a cada Estado la opci6n por el derecho penal o por las vias no penales, es muy importante destacar las responsabilidades en el ambito de la contabilidad. Ya el Convenio Europeo para la protecci6n de los intereses financieros de las Comunidades Europeas, de 1995, aplicable al ambito de las subvenciones, hace referenda a la necesaria criminalizaci6n de conductas relativas a la elaboraci6n o el suministro intencionado de declaraciones y documentos falsos, inexactos
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o incompletos (art. 1.3) Pero es el Convenio de la OCDE de lucha contra la corrupci6n de agentes puNicos extranjeros el que mas destaca el determinante papel de la contabilidad en la lucha contra la corrupci6n. Asf, establece el art. 8 que "Con elfin de luchar eficazmente contra la corrupci6n de agentes publicos extranjeros, cada parte tomara las medidas que sean necesarias, dentro del marco de sus leyes y reglamentos relativos al mantenimiento de libros y registros, la publicaci6n de estados financieros y las normas de contabilidad y auditoria, con el fin de prohibir el mantenimiento de registros extracontables, la realizaci6n de transacciones extracontables o insuficientemente identificadas, el registro de gastos inexistentes, el asiento de partidas del pasivo con una incorrecta identificaci6n de su objeto, asf como la utilizaci6n de documentos falsos, por las sociedades sometidas a dichas leyes y reglamentos, con el fin de corromper a agentes publicos extranjeros o de ocultar dicha corrupci6n". A esto se anade que "Cada parte establecera penas eficaces, proporcionadas y disuasorias de caracter civil, administrativo 0 penal para dichas omisiones y falsedades con respecto allos libros, registros, cuentas y estados financieros de dichas sociedades". En sfntesis, las responsabilidades contables, penales o no, se convierten en uno de los instrumentos jurfdicos mas relevantes para detectar y luchar contra la corrupci6n en el ambito econ6mico. Se hace necesario exigir mas al Derecho Administrativo. Dado que se estan gestionando bienes publicos, la Administraci6n debe funcionar correctamente. Su actividad no es similar a la que desarrolla una empresa privada, por lo que se le exige imparcialidad, eficacia, transparencia y servicio a los intereses generales. En base a estos principios surgen intereses o bienes jurfdicos que deben recibir, como es l6gico, una primera protecci6n o tutela desde el propio Derecho Administrativo. No puede pensarse en el Derecho Penal como el sustituto que releve al Derecho Administrativo en la resoluci6n de una problematica que incumbe a todo el ordenamiento jurfdico. Desde esta perspectiva existen innumerables medidas que pueden hacer cambiar la percepci6n actual de la corrupci6n econ6mica. En primer lugar, es necesario destacar el papel que incumbe a los Tribunales de Cuentas. Estas instancias fiscalizadoras deben ser muy escrupulosas y esforzarse por detectar las irregularidades que se presenten en la actuaci6n de los funcionarios o autoridades que gestionan los bienes publicos. Podemos simplemente enumerar otras medidas que incumben a la actuaci6n de la Administraci6n, como las declaraciones juradas de los funcionarios publicos que ocupen cargos relevantes, el registro obligatorio de sus bienes y patrimonio, o las modificaciones pertinentes en los regfmenes de contrataci6n publica, de concesi6n o control de subvenciones, etc. Es oportuno destacar que la Convenci6n de la Organizaci6n de Estados Americanos contra la Corrupci6n ha consagrado un importante catcilogo de medidas preventivas no penales. En su art. Ill se hace referenda a la potenciaci6n de normas de conducta para el "correcto, honorable y adecuado cum-
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plimiento de las funciones publicas" a las que se afiaden las declaraciones patrimoniales de los funcionarios y autoridades, sistemas apropiados de contratacion de bienes y servicios, un sistema tributario que impida la corrupcion, controles contables, etc. Es importante sefialar tambien el papel fundamental que desempefia el Ministerio Publico en la lucha contra la corrupcion economica. Bien sea dentro de su estructura tradicional sin especializacion, o bien a traves de la creacion de una autentica Fiscalia Anticorrupcion, se trata del instrumento mas adecuado dentro del Estado de Derecho para perseguir la corrupcion economica. En Espafia, fue creada por la Ley 10/1995 la Fiscalia Especial para la Represion de los Delitos Economicos relacionados con la corrupcion. La Fiscalia se establece para especializar a los fiscales que deben intervenir en estos delitos. Esta formula da mucho mas protagonismo al Ministerio Publico, que toma a su cargo la iniciativa procesal cuando se trata de hechos que por la implicacion de funcionarios o del propio poder politico podrfan quedar amparados por un marco de impunidad. El problema de estas instituciones esta marcado, como de costumbre, por el mayor o menor grado de independencia del poder politico, por su estructura organizativa y, en definitiva, por el margen de maniobra del que se dispone para investigar e interveni1~ cuando se trata de hechos que pueden comprometer a importantes mandatarios del Estado.
2. Corrupci6n que afecta a las finanzas publicas europeas La proteccion penal de los intereses financieros de las Comunidades Europeas supone el punto de partida para crear un Derecho Penal Europeo armonizado, tal como se ha demostrado en los ultimos 25 afios. Sin embargo, es un punto de partida que no ha conseguido superar esa etapa inicial, pues tras multiples iniciativas, proyectos y cambios en las fuentes del derecho europeo ' el derecho penal no supone aun un ambito propio del ordenamiento jurfdico comunitario. En esta azarosa evolucion se suscribe el Convenio relativo a la proteccion de los intereses financieros de las Comunidades Europeas firmado el 26 de julio de 1995 . Este convenio regula en su articulado un importante numero de disposiciones de naturaleza penal. Muchos pafses europeos han incorporado a sus legislaciones estas disposiciones, que hasta el momento se han mostrado poco utiles contra el fraude y la corrupcion. Ante la ineficacia demostrada por los organos politicos europeos para estructurar y plantear un sistema penal europeo, la iniciativa surgio de instancias privadas, de tal forma que un grupo de expertos entre los que se encontraban representantes todos los estados miembros redacto el conocido como "Corpus Juris de disposiciones penales para la proteccion de los intereses financieros de la Union Europea". Se trata de un estudio y propuesta de modelo
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legislativo para Europa realizado por un grupo de expertos a petici6n del Parlamento Europeo, y en definitiva del primer intento serio de sintetizar principios penales comunes, relacionados con los intereses financieros de las comunidades, y en el que se procura eliminar la corrupci6n. Sin embargo, en este momento el objeto de discusi6n ya no es el Corpus Juris, que puede ser considerado como una propuesta superada. Ha sido reemplazado en el debate por elllamado Libro Verde sobre la protecci6n penal de los intereses financieros comunitarios y la creaci6n de un Fiscal Europeo presentado por la Comisi6n el 11 de diciembre de 2001, texto que destaca literalmente que "la reflexi6n no pude detenerse en estos estudios .. " sino que ya es hora de una implicaci6n mas importante por parte de la propia Comisi6n, que "no se inspira en ningun modelo nacional particula1~ sino que busca el sistema mas adaptado a las especificidades del objetivo de la protecci6n de los intereses financieros comunitarios, recogiendo las mas altas exigencias de protecci6n de los derechos fundamentales" El establecimiento del Ministerio Publico Europeo es el objetivo principal de toda esta iniciativa de reformas. La Comisi6n pretende que la creaci6n de esta figura suponga un valor afiadido, un sustancial avance que permita superar los problemas que se presentan en la actualidad. Se pretende una mejora significativa en ambitos concretos, como por ejemplo la admisibilidad mutua de pruebas entre los tribunales de los paises miembros. Un Ministerio Publico Europeo independiente incluso de su propio pais de origen es una decision muy acertada para luchar contra el fraude y la corrupci6n en Europa. Ello permitira que el actual fraccionamiento territorial de Europa en distintos Estados, no se convierta en un obstaculo para proteger de la manera mas homogenea posible los intereses financieros. En este sentido, se lucha contra el notable incremento de la delincuencia organizada, que aprovecha el fraccionamiento territorial para conseguir un mayor grado de impunidad. Ya no se esta ante la clasica cooperaci6n judicial, se pretende algo mas. La propuesta se concentra en la centralizaci6n de las investigaciones y actuaciones en materia de tutela de intereses financieros europeos, bajo la direcci6n del Ministerio Publico Europeo. En este complejo marco tambien se encuentra la Oficina Europea de Lucha contra el Fraude (OLAF), cuyas tareas son bastante limitadas, pues se ha dicho que "sigue siendo un simple servicio administrativo de investigaci6n", esto es, se reducen por el momento a la prevenci6n y estudio del fraude, incluso a intervenir en el ambito sancionatorio administrativo pero no penal. Se exige un incremento de competencias para esta Oficina, como colaboradora del Ministerio Publico. En cuanto a los contenidos sustantivos, la Comisi6n Europea "se inclina por un grado de armonizaci6n elevado" Es decir, crear nuevos delitos en materia de protecci6n penal de intereses financieros, fraude y corrupci6n en Europa.
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El punto de partida es la tutela de los intereses financieros de las Comunidades, que deben recibir un grado de proteccion adecuado, previendose fundamentalmente la represion penal. AsÂŁ, los espacios criminalizados van paulatinamente creciendo, y el Convenio de Proteccion de Intereses Financieros ya incorpora a traves de protocolos adicionales la corrupcion y el blanqueo de dinero. El Libro Verde ve con muy buenos ojos esta estrategia, planteando nuevos ambitos como el fraude en materia de adjudicacion de contratos, el abuso de funcion o la revelacion de secretos conocidos en el ejercicio de la funcion publica. En cualquier caso no esta de mas recordar el principio de ultima ratio. En otras palabras, si bien reconocemos que existe una gran cantidad de actividades ilegales que afectan a los fondos comunitarios, no queda tan claro que la sancion para todas estas conductas deba ser penal, y aun siendolo, que deba regularse de forma unificada por las Comunidades Europeas o de forma aislada, en su caso, por cada uno de los Estados miembros. Se ha abierto el debate acerca de la incorporacion de otros ambitos sancionatorios desligados por completo de la proteccion de los intereses financieros, pero muy importantes en materia de corrupcion (como por ejemplo la tutela de la funcion publica europea a traves de los delitos cometidos por funcionarios publicos comunitarios en el ejercicio de sus cargos).
3. Corrupci6n en el sector privado La corrupcion es un fenomeno que se presenta preponderantemente en el ambito publico, aunque su metodologia y efectos practicos se pueden trasladar tambien al ambito privado. En los ultimos tiempos se ha comenzado a hablar seriamente de ello, y prueba de esta situacion es la Decision Marco de 22 de julio de 2003 del Consejo de la Union Europea sobre la Corrupcion en el Sector Privado que considera corrupcion, entre otros comportamientos, el pedir o recibir en el ejercicio de actividades profesionales "una ventaja indebida de cualquier naturaleza", a cambio de realizar o abstenerse de realizar un acto incumpliendo sus obligaciones. Segun la Decision Marco comentada, los Estados miembros pueden declarar que limitaran la punicion de estas conductas a las que vayan dirigidas a distorsionar la competencia, en relacion a la adquisicion de bienes o de servicios comerciales. Se trata de formulas que pueden aproximarse a muchos delitos cometidos contra intereses pttblicos, con la evidente salvedad de referirse a comportamientos desarrollados en el ambito privado. En la misma direccion se mueven, por ejemplo, los arts. 7 y 8 del Convenio del Consejo de Europa de 27 de enero de 1999 de Derecho Penal sobre la corrupcion. Considero muy relevante apuntar que estos comportamientos ilkitos llevados a cabo en el ambito privado son el resultado de una caracterizacion muy reciente, y que esta provocando un importante cambio conceptual. El
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punto de partida no puede ser otro que considerar a las conductas caracterizables como corrupci6n en el sector privado son susceptibles de ser sancionadas penalmente, en la medida en que lesionen o pongan en peligro bienes juridicos, debidamente identificados en el mundo de la economia, las finanzas y la empresa Sin embargo, debemos formularnos nuevas preguntas e intentar aportar alguna solucion. En primer lugar se encuentra la necesidad de criminalizar especificamente la corrupcion en el sector privado, o bien optar por el mantenimiento del arsenal punitivo tradicional, de delitos patrimoniales y societarios, para atender esta problematica. Lo que esta claro, y puede ser tornado como punto de partida, que lo publico y lo privado en materia de corrupcion se superponen permanentemente. Como se viene observando desde hace tiempo, el entramado de los negocios inmobiliarios ha implicado en practicas corruptas a un sector de la clase politica espafiola, pero no como podria pensarse en el ambito tradicional del cohecho a traves de la concesion de obras publicas o la construccion de autopistas o aeropuertos, sino en otro mucho mas propio de la actividad puramente privada, la calificacion administrativa de terrenos, como aptos o no aptos para la construcci6n de viviendas. El mercado inmobiliario se rige por las reglas de la libre competencia, salvo que los funcionarios publicos influyan para alterar esas reglas, que es lo que se esta demostrando ante estos casos de corrupcion, en los que suelen intervenir tramas perfectamente organizadas. Los Considerandos de la mencionada Decision Marco europea recuerdan los precedentes e iniciativas legislativas, y procuran trazar los objetivos perseguidos, siendo de particular importancia el punto que sefiala que "Los Estados miembros conceden una importancia especial a la lucha contra la corrupcion tanto en el sector publico como en el privado, por estimar que en ambos sectores constituye una amenaza para el Estado de Dcrecho, al tiempo que distorsiona la competencia respecto a la adquisicion de bienes o servicios comerciales e impide un desarrollo econ6mico solido". Apunta a continuacion que "El objetivo de la presente Decision Marco es, en especial, asegurar que la corrupcion activa y pasiva en el sector privado sea una infraccion penal en todos los Estados miembros, que las personas juridicas tambien puedan ser consideradas responsables de tales delitos y que estos se castiguen con sanciones efectivas, proporcionadas y disuasorias". For una parte, se persiguen objetivos propios de la Union Europea, la defensa de los mercados y la libre competencia. La pregunta es si los intereses enunciados deben ser protegidos penalmente de esa manera. Es comprensible que pretender legislar para 25 Estados con sistemas juridicos distintos es muy dificil. Sin embargo, desde un punto de vista garantista y de cumplimiento de derechos fundamentales es necesario precisar el bien juridico tutelado y concretarlo directamente en la conducta que se pretende prohibir. Ello no ocurre con la normativa europea aqui comentada.
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El art. 2 regula la corrupci6n activa y pasiva en el sector privado. "1. Los Estados miembros tomaran las medidas necesarias para asegurar que lo siguientes actos intencionados constituyan una infracci6n penal cuando se lleven a cabo en el transcurso de actividades profesionales: promete1~
ofrecer o entregar, directamente o a traves de un intermediario, a una persona que desempefi.e funciones directivas o laborarles de cualquier tipo para una entidad del sector privado, una ventaja indebida de cualquier naturaleza para dicha persona o para un tercero, para que esta realice o se abstenga de realizar un acto incumpliendo sus obligaciones" b) pedir o recibir, directamente o a traves de un intermediario, una ventaja indebida de cualquier naturaleza, o aceptar la promesa de tal ventaja, para si mismo o para un tercero, cuando se desempefi.an funciones directivas o laborales de cualquier tipo para una entidad del sector privado, a cambio de realizar o abstenerse de realizar un acto incumpliendo sus obligaciones" a)
Se trata de figuras paralelas al tradicional cohecho, aunque cambian los sujetos, ya que en este caso el autor no es funcionario ptiblico, y la persona juridica que representa o para la que trabaja no es el Estado sino una empresa privada. En estas figuras debemos detenernos un momento, porque en Derecho Penal, y no puede ser de otro modo, hay que comenzar identificando el bien juridico tutelado. LCual es el interes que se pretende proteger a traves de la corrupci6n en el sector privado? P01路que cuando se realizan identicas conductas en el marco de la funci6n ptiblica, se protegen los intereses de la propia Administraci6n Publica, que permiten escapar de los tipos penales tradicionales (estafa, apropiaci6n indebida) en base a la particular relaci6n del funcionario con los intereses publicos. En sintesis, el interes general convierte delitos comunes en delitos especiales, amenazados con una mayor entidad de pena. En estos supuestos estamos ante intereses privados, que no deberian en principio verse favorecidos por una legislaci6n penal tan excepcional. Parece que en Europa se quieren tutelar los intereses de las empresas privadas de la misma forma que se tutela la Administraci6n Publica. Se protegeria la libre competencia y ellibre comercio. Pero el enunciado legal no exige que estos intereses resulten efectivamente dafi.ados o puestos en peligro por la conducta corrupta y es mas, el art. 2.3 permite que cada Estado opte por limitar estos delitos a aquellas conductas que afecten la libre competencia o bien se tipifiquen estas conductas mas ampliamente. Existen otros instrumentos, penales o no, para solventar estos problemas. Las figuras tradicionales, los delitos societarios e incluso las sanciones administrativas o puramente laborales pueden zanjar claramente, sin necesidad de reformas, buen numero de situaciones como las previstas en estas nuevas regulaciones.
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El art. 5 dispone: Responsabilidad de !as personas juridicas. 1. "Los Estados miembros tomanin las medidas necesarias para asegurar que las personas jurfdicas puedan ser consideradas responsables de las infracciones mencionadas en los artkulos 2 y 3 cometidos en su provecho por cualquier persona que, actuando a tftulo individual o como parte de un 6rgano de la persona juridica, ostente un cargo directivo en el seno de dicha persona juridica basado en: a) un pod er de representaci6n de dicha persona juridica, o b) una autoridad para adoptar decisiones en nombre de dicha persona juridica, o c) una autoridad para ejercer un control en el seno de dicha persona juridic a. Se sanciona que la persona juridica obtenga, actuando en relaciones de Derecho privado, una ventaja indebida. Pero, (que significa una ventaja indebida en el marco de una empresa, que busca sacar provecho econ6mico a su actividad? La distorsi6n se provoca al pretender trasladar, creo yo sin una reflexi6n convincente, el modelo del cohecho a la empresa privada. El tema es muy complejo, pues la empresa privada busca obtener beneficios econ6micos. Ahora estara supeditada a las investigaciones judiciales, para saber si su conducta es o no COlTupta, si en una operaci6n econ6mica ha ganado lo justo, o ha obtenido una "ventaja indebida". Todo ello es muy dificil de precisar. For supuesto que deben darse todos los elementos de los articulos 2 y 3: la persona juridica debe prometer, ofrecer, dar, etc. ventajas indebidas para que otro, en el ejercicio de sus actividades profesionales, realice conductas desleales ( no sabemos hacia quien) que por ultimo alteren la libre competencia en el mercado, si el ordenamiento del Estado exige este requisito. La formulaci6n es tan amplia, los elementos incardinados tan complejos y las actuaciones en el mercado de las empresas tan similares normalmente a estas conductas que habria que replantearse la formula legal propuesta desde Europa. El art. 5 tambien dispone: 2. "Ademas de los casos a que se refiere el apartado 1, los Estados miembros tomaran las medidas necesarias para asegurar que pueda considerarse responsable a una persona juridica cuando la falta de vigilancia o control por parte de una de las personas mencionadas en el apartado 1 haya hecho posible que una persona sometida a la autoridad de la persona juridica cometa en provecho de esta una infracci6n del tipo descrito en los artkulos 2 y 3." Se trata de un nuevo ejemplo del impulso de las corrientes que procuran generar nuevos conceptos para la imputaci6n penal, basandola no solamente en la omisi6n de posiciones de garantia, sino incluso de responsabilidades in
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vigilando. Tal vez sea el momento de replantear los deberes que se imponen a las empresas, fundamentalmente cuando de la actuaci6n empresarial se derivan hechos delictivos. Sin embargo, y aunque no descarto que sea la soluci6n mas apropiada, debemos ser muy criteriosos a la hora de basar una responsabilidad penal en deberes de vigilancia y control sobre el personal de la empresa. Parece un intento de resucitar la responsabilidad objetiva, que afortunadamente ha desaparecido de nuestros C6digos como un sintoma de un derecho penal minimamente garantista, incluso para las empresas.
4. Conclusion
La corrupci6n tiene en nuestro tiempo cada vez mas manifestaciones: corrupci6n en el sector publico, corrupci6n en el sector privado, fraude a los intereses financieros comunitarios, etc. Para complicar aun mas el panorama, todas estas formas de corrupci6n se ponen en contacto directo con dos de los fen6menos mas relevantes para el derecho penal contemporanea, como son la globalizaci6n, con todas sus consecuencias, y el crimen organizado. En la actualidad los grupos profesionales de presi6n, que consiguen el dictado de normas juridicas a su medida (por ej. calificaci6n de terrenos y fraude inmobiliario) estan actuando como manifestaciones del crimen organizado, que tambien influye decisivamente en materia de contrataciones publicas, subvenciones estatales o comunitarias e incluso en sobornos dentro del marco de las propias empresas privadas. Son ejemplos de esta nueva y preocupante realidad.
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LA INTERVENCION PENAL CONTRA LA VIOLENCIA DE GENERO"¡ Luis Arroyo Zapatero1
Introducci6n
La cuestion de los malos tratos a las mujeres presenta gran complejidad por razones culturales, juridicas y criminologicas. En lo antropologico cultural baste decir que aunque hoy en dia - salvo los imanes radicales ¡- no hay nadie que se atreva a afirmar que la mujer debe estar sometida al marido, incluso por la fuerza, como proclamo nuestra tradicion por boca de Santo Tomas y nuestra modernidad ilustrada por la de Rousseau, remachada por el propio Napoleon, de cuyo Codigo civil se acaba de cumplir el 200 aniversario 2 â&#x20AC;˘ Apenas a finales de los ail.os 60 comienza a afirmarse la idea de la radical igualdad de hombres y mujeres en la pareja. En otro orden de cosas se plantea al filo del 68 la necesaria retirada del derecho penal en las relaciones homosexuales entre adultos, la primera victoria contra el derecho penal moralizante, bien es verdad que tuvo lugar en Alemania y que entre nosotros requirio veinte afios mas y una sentencia manipulativa de Tribunal Constitucional para acabar por via procesal con la Ley de peligrosidad y rehabilitacion social. En Espafia la vigencia de la tradicion llega - por razones bien conocidas - hasta antes de ayer. Solo en 1963 se deroga el privilegio del varon de su cuasi impunidad para dar muerte a su mujer sorprendida en adulterio 3. Y solo ayer
' Conferencia proferida em Lisboa, na Universidade Lusiada em Outubro de 2004. Catedratico de Derecho Penal de la Universidad de Castilla- La Mancha. Director de Instituto de Derecho Penal Europeo e Internacional. Presidente de la Societe Internationale de Defense Social. 2 Como nos lo recuerda Robert BADINTER en un hermoso opusculo conmemorativo: "Le plus grand bien ... ", Fayard, Paris. 2004. El regimen subordinado es obra suya, no en vano presidi6 personalmente 55 de las 107 sesiones de la Comisi6n de Codificaci6n v. p. 57. 3 La evoluci6n hist6rica del tratamiento de la mujer por los C6digos penales esta muy bien desarrollada por M. J. Crwz BLANCA, Derecho penal y discriminaci6n por raz6n de sexo. La violencia 1
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mismo, en los albores de la democracia, en 1977 ser despenalizaba el adulterio y se suprimia la discriminadon que el codigo penal hada de la mujer al requerir para el adulterio masculino el publico amancebamiento. A la mujer le bastaba con un unico descuido revelado por el marido, mientras que para incriminar a este se requeria la pl'1blica exhibidon. Debe recordarse tambien que la legalizadon del divorcio llego solamente en 1981 y la parcial despenalizacion del aborto comenzo tan solo en 1985. y como sabemos no hemos superado aqui el sistema de indicaciones, que no permite la libre decision de la mujer en el periodo ordinaria europeo de los tres primeros meses de la gestadon. El privilegio del infanticidio y el aborto honoris causa tienen la misma raiz masculina que todo lo anterior Es mas, resulta muy significativo que en la legislacion historica se hayan previsto de modo constante dos tipos de faltas singulares: la del marido que maltratare a su mujer aun cuando no le causare lesiones y la de "la mujer desobediente a sus marido que le provocare o injuriare" previstas en el art. 483,1 del Codigo de 1848, que se reproducen en el art. 603, 2 y 3 del Codigo de 1870 y que se mantiene en el Codigo de 1932, perdiendo la referenda a la desobediencia y sustituyendo la provocacion y la injuria por el maltrato de palabra y obra, y que continua superstite hasta la reforma del Codigo de 1983, que crea la falta bilateral de malos tratos. Para lo que sirve la referenda historica es para poner de relieve la sabiduria de los legisladores de los codigos del siglo XIX: los maridos maltratan, las mujeres desobedecen y se rebelan. El sometimiento de la mujer estaba explidto en la moral ofidal y en la legislacion vigente hasta nuestro tiempo cercano. No es de extranar que esa moral oficial historica este todavia bien presente y vigente en la cabeza de muchos hombres, e incluso de sus victimas mujeres, y que esa concepcion de dominio natural sobre la mujer que tantos tienen a flor de piel o escondida en el reservorio mas profunda de la memoria emocional, rebrote ante la vida en una Espana moderna en la que la mujer se abre paso como ser autonomo e igual, a pesar de todas las limitaciones sabidas y por aprender. Pero junto a la moral oficial y a las leyes esta siempre la concepcion del mundo de los aplicadores del derecho penal y, al margen de un porcentaje relevante de mentalidades mas proximas a Santo Tomas que a Rouseau, no es menos cierto tambien que hasta la actual crisis la idea general preponderante consistia en que lo mejor y mas prudente era la minima intervencion en los conflictos de la vida domestica". Con ello, lo que no se veia se acompanaba del no querer ver. domestica en la codificaci6n penal, en L. MORILLAS, Estudios penales sob re violencia domestica, Edersa Madrid, 2000, p. 19 y ss.; Maria ACALE SANCHEZ, El delito de malos tratos fisicos y psiquicos en el ambito familiar, Tirant, Valencia 2000, p. 23 y ss .. 4 Yid. Enrique Ru1z VADILLO, La violencia fisica en el hogar, en" Actualidad Aranzadi", 22 enero 1998, p. 2.; v. asimismo JJ Rurz Rrco, El sexo de sus sei'lorias, Madrid, 1991. Resultan de mucho interes
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Pero un buen dfa todo lo que era invisible o no se querfa ver se col6 lo en la primera pagina de los peri6dicos y en las ediciones de los telediarios, sin soltarla, y el parafso de la igualdad de hombres y mujeres de nuestra democracia se quebr6 al mostrar un infierno radicalmente intolerable.
2. Las sucesivas reformas penales 1. Las primeras reformas legales se centraron en el C6digo penal y abordaron la cuesti6n como si el asunto fuera de lesiones y de homicidio. La reforma del c6digo de 21 de junio de 1989 introdujo en el art. 425 la incriminaci6n con prisi6n de seis meses a seis afios de quien habitualmente ejerciera violencia ffsica sobre los miembros del grupo familiar. El precepto no contemplaba la violencia psfquica y daba pie a una concepci6n cuantitativa y formal de la habitualidad, para lo que terminaron requiriendose tres 0 mas episodios concretos de violencia, frente a la tesis que luego intent6 imponer el Tribunal Supremo, en sentencia del 7 de julio de 2000, en el sentido de que lo relevante era el que la vfctima "viva en un estado de agresi6n permanente". El nuevo C6digo penal de 1995 mejor6 la figura del anterior art. 425, incremento la severidad de la pena y precis6 la compatibilidad concursal del maltrato habitual con las faltas y delitos de lesiones concretos producidos. Pero daba lo mismo, pues como reconociera el propio Consejo general del Poder Judicial los jueces segufan calificando los hechos principalmente como faltas, con los conocidos efectos de tener que prescindir de prisi6n provisional que era la unica medida cautelar sobre el acusado de que se podfa entonces disponer y dar pie a que el maltratador terminara por acabar con la vida de la mujer delante del juzgado, sumido en culpable impotencia las mas de las veces 5 â&#x20AC;˘ Pero en el infierno se aviv6 el fuego y el problema se convirti6 en radicalmente insoportable, en especial con el asesinato de Ana Orantes en 1997. S6lo desde entonces muy en numerosas las iniciativas de todo orden, entre ellas, muy especialmente la ley de Castilla - la Mancha cuya presentaci6n en el otofio de 2000 dio lugar a un gran debate institucional y social y que termin6 aprobandose el 17 de mayo de 2001 2. La Ley Organica de 1999 abord6 el problema de modo mas decidido que en las anteriores ocasiones: crea las penas y medidas cautelares de prohi-
Ios informes anuales que publica la Federaci6n de Mueres Progresistas sabre !as sentencias parcialmente recogidas en Ios peri6dicos en www.mujeresprogresistas.org, el IV alcanza el afio 2003, aun cuando serfa necesario un examen pormenorizado sabre !as propias sentencias. 5 Para el regimen penal del C6digo de 1995 ver, por todos Luis GRACIA MARTIN, en la coedici6n con J.L. Dm Rrrouils, Comentarios a! C6digo penal. Parte especial, Ti!¡ant, Valencia, 1997, p. 413 y ss ..
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bici6n de aproximaci6n y comunicaci6n con la victima, reconoce a la violencia psiquica junto a la fisica en el delito de maltrato habitual - cuyo concepto precisa positivamente - y amplia el espacio temporal de las violencias tipicas al tiempo posterior a la ruptura de la convivencia 6 â&#x20AC;˘ En el afio 2001 el Consejo General del Poder Judicial presenta un informe de gran interes sobre la materia, y tras un examen critico del marco legal pone de relieve el desamparo de las victimas y la impunidad de los agresores derivado de la falta de posibilidad legal de recurrir a la prisi6n provisional ante las faltas, que siguen siendo las calificaciones juridicas preponderantes en sede judicial, apunta la posibilidad de ampliar el delito de malos tratos habituales renunciando a la exigencia de la habitualidad, lo que supone absorber buena parte de las faltas de lesiones y malos tratos, e incluso sugiere la supresi6n de la falta de malos tratos entre parientes, para garantizar su calificaci6n como delitd.
3. Las reformas de 2002 A las alturas de la preparaci6n de la reforma del C6digo penal de 1995, que se realiz6 mediante varios instrumentos legales durante 2002, las medidas penales no parecian servir gran cosa para atajar la epidemia. Con la intervenci6n penal a partir de los tipos de homicidio y lesiones los jueces llegaban manifiestamente tarde, y cuando se les presentaba el problema en la fase inicial, con lesiones leves y maltratos, no s6lo se llegaba tarde sino que el proceso y las consecuencias juridicas de las faltas, ademas de no proteger, parecian envalentonar a los maltratadotes y generaban en las victimas mayor desconfianza en la justicia y des nacimiento8 . Se debe recordar que la figura juridico penal de las faltas no permite adoptar en que al imputado la prisi6n provisional, por lo que, siendo la calificaci6n judicial del hecho mas frecuente la de falta, la denunciante no encontraba nunca la protecci6n que esa un otra medida cautelar pudieran ofrecer frente al peligro de reiteraci6n de las violencias. De tal manera que lo que generaba mayor impotencia era que frente la evidencia de los indicios de grave peligro en los hechos denunciados evidenciaban se terminaba en lo pe01~ sin modo conforma de poder ofrecer a la victima una tutela eficaz.
6 Vid. P. GARCfA ALVAREZ y J. DEL CARPIO DELGADO, El delito de malos tratasen el ambito familiar~ Tirant, Valencia, 2000. 7 En "Actualidad Penal" 2001(2). 8 Vid. el amplio Informe sobre el tratamiento de la violencia domestica en la Administraci6n de Justicia de Manuel CALVO GARCfA, en Laboratorio de Sociologia Jurldica de la Universidad de Zaragoza, www. unizar.es/ sociologia_juridica.
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Todo ello madura y tiene un resultado en tres tiempos. En primer lugar la Ley 27 de 2003, relativa a la Orden de protecci6n de las victimas de la violencia domestica, de 31 de julio, la reforma de la prisi6n provisional por la L. 0. 13/2003, de 24 de octubre, y la reforma del C6digo penal que se adopta por la Ley Organica 11 de 2003, de 29 de septiembre 9 â&#x20AC;˘ a) La Orden de protecci6n en un instrumento capital, pues con la atribuci6n de la competencia concentrada en el Juez a quien llega la denuncia, tanto para las medidas penales como para la civiles, otorga el instrumento mas necesario en un conflicto en el que la denuncia presenta un hecho que, por no ser materialmente la "primera vez ", revela el grado de peligro real que la victima corre en "ciclo de la violencia" en que suele estar inmersa. A la Ley debe seguir la practica, con organizaci6n y con medios, pero tambien la disciplina conceptual por parte de los 6rganos judiciales. Baste hacer una referenda en este aspecto a la demanda de ampliaci6n espacial de la Orden de alejamiento que en los primeros meses se viene estableciendo en distancias minimas y espacios incompletos que no evidencian mucho sentido comun. b) La reforma de la prisi6n provisional en lo que aqui interesa incorpora expresamente al elenco de los fines que la autorizan el "evitar que el imputado pueda actuar contra los bienes juridicos de la victima, especialmente cuando se trate de algunas de las personas a las que se refiere el art. 153" (por 173.2) y excluye en estos casos la limitaci6n de que el delito por el que se imponga tenga prevista pena privativa de libertad igual o superior a dos afios de prisi6n, bastando que tenga pena privativa de libertad es decir a partir del 1 de octubre prisi6n de tres meses. c) La reforma de C6digo que opera la L. 0. 11/2003 consta de los siguientes elementos: 1. Lleva las violencias domesticas habituales, que se situaban en el art. 153, al delito contra la integridad moral del articulo 173, en el n. 0 2, ampliando mas el elenco de lo domestico hasta extremos ridiculos y dificilmente comprensibles: ademas del c6nyuge y analogos, los padres, hijos, hermanos, tios, tios politicos, del c6nyuge o conviviente, los menores o incapaces que con el convivan, los que por cualquier otra relaci6n esten integrados en la convivencia familiar y, ademas, los guardas o custodios de centros de acogida de personas vulnerables.
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Sabre el conjunto vid. Patricia LouRENZO CorELLO, Los nuevos delitos de violencia domestica: Otra reforma precipitada, en "Articulo 14", v. 4, diciembre de 20003, Instituto Andaluz de la Muje1~ p. 4 y ss ..
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2. El nuevo delito contra la integridad moral resulta punitivamente compatible con las penas de los delitos o faltas que se hubieren podido cometer en el curso del maltrato. 3. Las penas se agravan desde la basica de 3 meses a 3 afios a su mitad superior cuando las violencias se hayan realizado en el domidlio comun o en el de la vfctima, en presencia de menores, portando armas, o con quebrantamiento de una pena u orden cautelar de alejamiento. 4. A su vez, el articulo 153 se aprovecha para incorporar en el los malos tratos que hasta el momento se consideraban faltas, en concreto todos los malos tratos violentos - los que causan menoscabo psfquico o lesiones no constitutivas de delito, los golpes y maltratos de obra sin causar lesion y las amenazas leves con armas, proyectado todo ello sobre el elenco de vfctimas incorporado en el 173.2. Todo ello se castiga con pena de prisi6n de 3 meses a 1 afio o trabajos en beneficia de la comunidad de 31 a 80 dfas y otras penas accesorias. Las principales se imponen en su mitad superior si concurren las drcunstancias enunciadas antes al hacer referenda al 173.2 Posiblemente estas conductas que constitufan faltas de lesiones y malos tratos se han elevado a delito para "forzar" a los Jueces poco rigurosos a "hacer Justicia", dificultandoles la calificaci6n de falta y posibilitando el recurso a la prisi6n provisional. Pero serfa mejor que se hubiera hecho asf por la plena conciencia de que estas conductas presentan un grado de injusto y culpabilidad mayor que la propia de las faltas, como veremos despues, pero el maremagnun de situadones y reladones del autor y las vfctimas impide entenderlo asf. Con todo, la reforma en este punto es globalmente positiva, salvo en el mantenimiento de todo el elenco de vfctimas a que se ha hecho referenda que creo dificulta captar debidamente el problema de las violencias de genero en la pareja.
4. Propuestas penales del Las Proyecto de Ley Organica de medidas de proteccion integral contra la violencia de genero
Lo primero y principal es que por vez primera nos encontramos con una ley integral que fija y articula todas las polfticas sociales y jurfdicas para la lucha contra la violencia de genero una ley de esta clase integral es reclamo fundamental de la polftica criminal ante problemas complejos. Se complementa asf el principio de codificaci6n con acciones y disposiciones horizontales coordinadas y con dotaciones presupuestaria que lo soporten. Por vez primera
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no nos encontramos con una ley que confia todo al Derecho Penal. Y lo que al Derecho penal se refiere es lo siguiente: a) Agrava la pena de los delitos de lesiones afiadiendo a las causas de agravaci6n de las mismas previstas en el art. 148 (empleo de annas, ensafiamiento, minorfa de edad o incapacidad de la victima) la circunstancia de que la vktima "fuere o hubiere sido esposa o mujer que estuviere o hubiere estado ligada al autor por una analoga relaci6n de afectividad, aun sin convivencia". b) En el delito previsto en el articulo 153 redactado por la L. 0. 11 I 2003, de malos tratos y de amenaza leve con armas respecto del cfrculo de vfctimas del art. 173. 2 el Proyecto se limita a suprimir la referenda al uso de armas, que lleva luego a las nuevas amenazas del 171.4. No hace aquf menci6n aut6noma ni agravada a la violencia de genero como en el anterior. c) Configura como delito de amenazas las amenazas leves constitutivas ordinariamente de falta, cuando estas se profieran contra la esposa o mujer que .. ., como en el 148. La pena se incrementa sobre la falta de multa de 10 a 20 dfas (conforme a la nueva redacci6n del art. 620. 2 de la LO 15/2003) a prisi6n de seis meses a un afio o trabajos al servicio de la comunidad de 31 a 80 dfas. Esta pena admite un parrafo terror puede ser reducida a la inferior en grado "en atenci6n a las circunstancias personales del autor y a las concurrentes en la realizaci6n del hecho", pero "razonandolo expresamente en la sentencia". El nuevo delito parte pues de la consideraci6n del amenazas leves cuando sen de genero como conductas mas graves que las demas, y conforme al saber empfrico y criminol6gico. Pero para permitir correcciones por el injusto y la culpabilidad preve la clausula de reducci6n de la pena en un grado, es decir, por seguir la argumentaci6n antes expuesta, para cuando excepcionalmente en la practica el hecho denunciado fuere propia mente "la primera vez" y sin situaci6n de riesgo de relaci6n de sindrome. d) Como n .0 4 del art. 171 situa las amenazas leves con armas u otros objetos peligrosos frente a las personas del cfrculo del 173.2, que desde la LO 11/2003 se habia residenciado en el art. 153, pero excluye las proferidas contra el c6nyuge que considera implicitas en el apartado anterior. e) Configura como delito de coacciones en el art. 172, 2, con pena de seis meses de prisi6n a un afio o trabajos de 31 a 80 dias, la coacci6n leve, normalmente constitutiva de falta cuando se efectue sobre la esposa o ... etc., que en los demas casos se regira por lo dispuesto por la L015/ /2003 en el art. 620.2 y las realizadas sobre los sujetos del art. 173.2 se penan con localizaci6n permanente de 4 a 8 dias, con alejamiento res-
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pecto de la victima o con trabajos d_e 5 a 10 dfas. Lo que se mantiene y ajusta en el Proyecto. 路 f) El Proyecto propone la modificacion del delito de quebrantamiento de condena., que en la version de la 1015/2003, de proxima entrada en vigor tambien se modifica con un incremento punitivo. Lo que el Proyecto aquf propone es elevar la pena a prision de seis meses para el que quebrantare las penas y como las medidas de la orden de proteccion en los casos relativos al drculo de victimas de art. 173.2 Este incremento resulta necesario y justificado desde el principio de proporcionalidad pues los quebrantadores de la pena y la medida de proteccion, de alejamiento, etc, no solo lesionan el bien jurfdico de la Administracion de Justicia, sino que lesiona la seguridad de la victima a quien se trata de proteger, genera en ella el fundado temor a la continuacion del maltrato, del ciclo de la violencia y de nuevos riesgos y peligros Esa perdida psicologica y material de la seguridad que proporciona la orden de proteccion no es un mero peligro adstrato o concreto sino un dafio efectivo para la mujer. Bien es cierto que el asunto se plantea asf con mas claridad para las mujeres y no tanto par las demas victimas del 173.2. g) El proyecto concluye la parte penal su stantiva con una clausula dirigida a que la Administracion penitenciara incorpore programas espedficos de violencia de genero y y programas espedficos para los maltratadores, que es una experiencia clfnicamente recomendada 10 .
5. La incomprendida esencia del problema del tratamiento penal de los malos tratos y violencias domesticas: el deficit del conocimiento criminol6gico. Mas alla de todo deficit normativo o funcional para abordar el fenomeno de los malos tratos a las mujeres 11 , lo que encuentro mas relevante es la incom10 Vid. ECHEBURUA, FERNANDEZ MONTALVO, y DE LA CuESTA, Articulaci6n de medidas penaJes y de traamiento psicol6gico en Ios hombres violentos en el hogat~ en "Psicopa tologia clinica, legal y forense, I, 2, 2001, p. 19 y ss .. 11 La bibliograffa espafiola sobre la violencia de genera en la pareja puede seleccionarse en lo siguiente:: Maria Jose BENITEZ JiMENEZ, Violencia contra la mujer en el ambito familiar. Cambios sociales y legislativos, Edisofer, Madrid, 2004; FJ LABRADOR La bibliografia en castellano sobre la aproximaci6n criminol6gica a! problema puede seleccionarse y otros, Mujeres domestica. Programa de actuaci6n, Piramide, Madrid, 2004; Juan J, MEDINA, Violencia contra la mujer en la pareja: lnvestigaci6n comparada y situaci6n en Espai'ia, Tirant, Valencia, 2002, con bibliografia vic tima s de la violencia cerrada a 2001; GANZENDLLER, Escu DERO y FRIJOLA, La violencia domestica. Regulaci6n legal y analisis sociol6gico y multidisciplinat~ Bosch, Barcelona, 1999; M. y J. A. LORENTE AcoSTA, Agresi6n a la mujer: Maltrato, violaci6n y acoso, Comares, Madrid, 1998; Enrique EcHEBURUA Personalidades violentas, Piramide,
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prension de que esa violencia de hombres sobre mujeres en la pareja presenta caracteres materiales, sociales y psicologicos bien distintos de las demas violencias interpersonales, inclusive de aquellas a quienes se tiende a tratar del mismo modo: las violencias sobre menores y ancianos, a todo lo cual se le cubre incluso bajo un mismo titulo, "violencia domestica", como si lo unico singular de todo ello fue la relacion parental y la comunidad del espacio domiciliario. Aun mas, se tiende a creer que en la pareja la violencia es bipolar, y ello por el mero hecho de que las estadisticas de resultados de muerte y lesiones arrojan un porcentaje de autores mujeres, sin que hasta ahora se haya procurado completar la pobreza informativa de nuestra estadistica judicial con la averiguacion de en que medida esa violencia femenina es puramente reactiva, es decir de retorsion o de defensa 12 . Las razones del deficit de comprension criminologica singularizada del fenomeno de la violencia de genera estriban en lo tardio de la elaboracion criminologica del "sindrome de la mujer maltratada" y en las dificultades afiadidas a la propia dificultad de la materia para su comprension general, toda vez que su elaboracion vino de la mano, en buena parte, de la criminologia "feminista", que como cualquier otro tipo del movimiento no podia carecer de manifestaciones o propuestas extremadas en otros aspectos, como aquellas que identifican fenomenos como la pornografia o la prostitucion con la violacion misma, con lo que al obstaculo de las mentalidades "tradicionales" se afiadira la confusion y el rechazo en las mentalidades mas "modernas" a estas propuestas neomoralizantes.13 La esencia y signo diferencial de la violencia de los hombres sobre sus parejas no es otra que la necesidad-deseo de dominio sobre la mujer. La accion violenta del hombre esta psicologicamente orientac:J.a a someter a la mujer mediante un combinado de agresiones fisicas y psiquicas que integran el elenco de las infracciones penales constitutivas de homicidio lesiones, malos tratos, amenazas y coacciones. El sometimiento se persigue a traves de la produccion del miedo en la mujet, miedo a seguir sufriendo dafios fisicos y psicologicos en si misma o sobre sus hijos, todo lo cual constituye ese sindrome de la mujer maltratada 14 . Madrid, 1994; Maria Jose JIMENEZ DIAZ, Mujer victima domes tica, trastorno de estres postraumatico y eximente de miedo insuperable, en L. MoRILLAS, ed. Estudios penales sobre la violencia domestica, Edersa, Madrid, 2002: Elena LARRAURI, L Por que retiran las mujeres maltratadas las denuncias?, en "Revista de Derecho penal Criminologia" n. 0 12 (2003), p. 271y s .. 12 Vid. LARRURI, violencia domestica y legitima defensa, un caso de aplicaci6n masculina del derecho, en E. LARRAURI y D. V ARONA, Violencia domestic a y legitima defensa, EUB, Barcelona, 1995, p . 9 y ss .. 13 Que en mi opinion ha tenido acogida, por ejemplo en la reforma d e Ios delitos de violaci6n operada por la L.O. 12/2003 en el art. 179. 14 Vid M .LORENTE AcoSTA, Agresi6n a la mujer... , cit. p. 113, M. J. BENITEZ JIMENEZ cit.. p. 31 y ss., JIMENEz DiAz, cit, p. 289 y ss. LABRADOR y otros cit 24 y ss ..
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En las conductas violentas y de malos tratos hay, por supuesto, dolo de lesionar - en su caso, de matar - pero lo mas relevante es la voluntad mas o menos intelectualmente elaborada por el autor de someter a su pareja 15 â&#x20AC;˘ Las violencias contra la mujer por parte del marido no son tanto un hecho como un proceso y lo mas grave en ello no es tanto la lesion misma como la permanente exposicion al peligro de lesion flsica y el permanente dolor del sometimiento al maltrato y a la humillacion. Los golpes y el dolor duran mas o menos, pero el miedo, en no pocos casos verdadero terror, la humillacion, la impotencia, la destruccion de la personalidad, la quiebra de la integridad moral hacen que estas violencias y malos tratos sean continuados y permanentes. El proceso y la dinamica de la violencia de genera en la pareja estan hoy perfectamente identificadas en el "ciclo de la violencia" del "sindrome de la mujer maltratada": voluntad de dominacion y sometimiento, acumulacion de la tension, explosion violenta, reconciliacion o manipulacion afectiva, escalada y reanudacion del ciclo 16 . Siendo asi las cosas, resulta que la denuncia o la intervencion penal no se produce casi nunca en el primer tiempo del ciclo, sino tras la fase de explosion violenta de cualquiera de los sucesivos ciclos. La formulacion de la denuncia ante la policia o el juez nunca llega a producirse con ocasion de la "primera vez". Esta circunstancia tiene varias consecuencias muy relevantes: 1. 0 El hecho que llegara a ser objeto de denuncia por la victima o de
conocimiento por la autoridad tiene siempre un previa proceso de hechos de dafios y peligros que no solo es fundamental captar en la investigacion y en la prueba, sino tambien en el propio momento de la denuncia, pues solo asi se puede captar el grado de exposicion al peligro en que se encuentra la mujer y la propia naturaleza y gravedad del peligro que amenaza a la mujer, para tomar asi las medidas cautelares pertinentes. Asi lo ha captado perfectamente la Ley de la orden de proteccion, cuyo presupuesto es, ademas de los indicios fundados de comision de un delito o falta, "una situacion objetiva de riesgo para la victima". 2. 0 Es esa situacion de peligro, que quien mejor capta es, naturalmente, la victima- la que convierte en graves hechos aparentemente menores, que de producirse por "primera vez" podrian tratarse como leves. Y esto es lo que ocurre precisamente en el espacio de las amenazas y coacciones: lo que violenta mas a la victima no es tanto el grado objetivo de la coaccion o amenaza "leves", sino la significacion que 15 Yid. Miguel LOI~ENTE ACOSTA, El rompecabezas. Ana tomfa del maltratador, Ares y Mares, Barcelona, 2004. 16 Vid . especialmente BENITEZ J!MENEZ, cit., p. 44 y ss. Y M. LORENTE AcORTA, Agresi6n a la mujer, cit, p. 96 y ss ..
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en verdad tiene para la victima ese hecho leve en el contexto del proceso del sindrome de los malos tratos. Lo que para el observador externa y superficial resulta leve, para la mujer, por las circunstancias del proceso de conflicto, puede tener un grado de credibilidad y de inexorable que la resultani. bien grave, asi como para el observador atento. Esto es lo que creo que acontece en la vida practica judicial: la lesion leve o el maltrato aparecen como hecho aislado, con desconocimiento de la dinamica general y concreta de la violencia de genera en la pareja y, m as alla d e operadores juridicos extravagantes, se termina calificando como falta lo que es grave, y que deberia ser, por tanto, delito. El debate sobre el originario articulo 153 del Codigo del 95 y la posterior creacion del delito de maltrato habitual contra la integridad moral en el art. 173.2,y la nueva y distinta dimension que toma la cuestion con la integridad moral como bien juridico, de contornos no precisos, han inducido erroneamente a no captar la dimension de dano efectivo y real que presentan no solo los delitos y faltas de las lesiones leves los maltratos de obra, sino tambien las coacciones y amenazas leves en la salud fisica y psiquica y la libertad moral que son los bienes juridicos que tales delitos tutelan. Son delitos y faltas de lesion de los bienes juridicos y no meras puestas en peligro, ni abstracto ni concreto, aunque ademas de lesion se incorporen peligros concretos17 . Por otra parte, merece observarse que mientras que en la generalidad de las violencias interpersonales la denuncia y la subsiguiente intervencion policial o judicial ordinaria basta para interrumpir la accion criminal, no ocurre lo mismo en la violencia de genera. La compulsion del varon al maltrato esta preordenada a la dominacion y tiende a superponerse a las motivaciones ordinarias que suele producir la m era intervencion de la autoridad. La consecuencia de ello es la extraordinaria n ecesidad de disponer de las m edidas cautelares de proteccion, desde la orden de alejamiento a la prision provisional y, a su vez, el asunto nos muestra lo largo que resulta el ciclo de la violencia y del sometimiento al terror de la victima, poco propicio a ser bien entendido por a ideologfa mecanicista que todavfa pesa en la dogmatica de los delitos de violencia. Por todas estas razones estimo que esta bien fundamentado tanto el sistema de la orden de proteccion como la conversion de la falta de lesiones y de malos tratos en delito operada por la ley organica 11 del 2003 en el articulo 153, y por las mismas razones estim o que resulta razonable convertir en delitos las
Vid. exhaustivamente sob re es ta polemicaL. GRACIAMARTIN, ob., cit., p. 418 y ss, quien es, por otra parte, el que ve mas acertadamente esta cuesti6n en aquel momento. Vid sobre el delito del1 73 Jesus BARQUfN SANZ, Delitos contra la integridad moral, Bosch, Barcelona, 2001. 17
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faltas de coacciones y amenazas leves cuando se trata de las cometidas en el marco de la violencia de genero, es decir, por el hombre sobre la mujer, tal y como plantea el Proyecto de ley.
6. Constitucionalidad de las propuestas del Proyecto de ley
Tras lo expuesto creo que no se puede razonablemente ni pensar que nos encontremos ante un tratamiento desproporcionado. Bien al contrario, esas coacciones y amenazas que en las relaciones interpersonales pueden ser leves, y seguir siendo faltas, si se produce en el marco de conflicto de genero en la pareja y en los terminos que describe el sindrome de la mujer maltratada, deben convertirse en mas graves y por lo tanto, ser tratadas como delito, procesal y materialmente, es decir, con pena de delito y con posibilidad de prisi6n provisional por delito . Puede razonablemente alegarse que aunque la regla general sea la mantenida no se puede excluir el que al juez pueda llegar una amenaza o coacci6n propiamente leve, aislada por completo de toda situaci6n de conflicto, y por lo tanto carente del desvalor de acci6n y de resultado que he expuesto como comun u ordinario. Ante esta observaci6n, si asi se desea puede asegurarse la presencia del grado de desvalor aii.adido mediante la incorporaci6n a los diferentes tipos de las nuevas amenazas y coacciones la necesaria concurrencia de la "situaci6n objetiva de riesgo" para la victima, que es ademas el concepto que utiliza la Ley de la Orden de protecci6n y va ser merecedor de desarrollo y utilizable en la Orden y en tipo penal. Procede, ahora que segun mi criterio se ha expuesto la naturaleza propia de la violencia de genero en la pareja, el abordar la cuesti6n de la constitucionalidad de la creaci6n de tipos que tienen por sujeto activo al var6n y por victima a la mujer. Creo que tras lo descrito nadie puede pensar que nos encontremos en la reforma penal propuesta ante un supuesto de discriminaci6n positiva o negativa alguno. Estamos ante el prop6sito de tipificar de modo aut6nomo un tipo de comportamiento que solo se da por parte del hombre sobre la mujer en la pareja y no de la mujer sobre el hombre. Los daii.os que sobre la salud y libertad de la mujer se producen en el contexto del sindrome de la mujer maltratada por via de lesiones, amenazas y coacciones son mas graves que cualquiera otras lesiones, amenazas y coacciones interpersonales comunes de mujeres sobre hombres dentro de la pareja, o de hombres sobre mujeres con quienes no tengan ni hayan tenido la relaci6n de pareja, o de hombres y mujeres contra cualesquiera otras victimas. Puede alegarse que son tambien mas graves que las lesiones, amenazas y coacciones comunes las infligidas a menores y mayores dependientes. Esto
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es cierto solo si tales personas se encuentran en una especial situacion de desvalimiento, y en ese caso lo que procede es castigar mas gravemente a los que lesionan o maltratan a personas desvalidas del cfrculo domestico, para no incluir a menores o ancianos que se valen por si mismos y para no dejar fuera a quien siendo mayor, resulta estar desvalido por ser, p. ej., paraplejico. Pero estos tipos de violencias interpersonales no estan provistos de las mismas caracteristicas materiales de gravedad y de relaciones de peligro que las violencias sobre las mujeres18, como se manifiesta en la practica de la orden de proteccion, y en especial de las variantes de alejamiento y prohibiciones de comunicacion, pues no son relevantes las aplicaciones a las violencias sobre menores y ancianos. Frente al derecho vigente me parece imprescindible tratar separadamente la violencia de genero domestica de las demas violencias domesticas, y todas estas referenciadas unica y exclusivamente a las ejercidas sobre personas desvalidas o en situacion de vulnerabilidad. Todo lo anterior se puede formular en los terminos mas propios de la dogmatica penal en del modo siguiente: El principio constitucional de igualdad requiere en las incriminaciones penales, en la configuracion tfpica y en la pena que no se traten de modo desigual, privilegiada o agravatoriamente, conductas cuyo valor de accion y de resultado sean iguales. Se dice lo mismo cuando los penalistas se expresan con la formula de que no se pueden hacer distingos de incriminaciones o de pena ante conductas lesivas del mismo bien juridico que ofrecen el mismo grado de injusto y de culpabilidad. A su vez, resulta legitimo constituir tipos agravados sobre los comunes o basicos de lesiones, amenazas y coacciones, para captar en ellos en mayor desvalor de accion en los tres supu estos y el mayor desvalor de resultado en las amenazas y coacciones que representan los casos de violencia masculina generadora del sindrome de la mujer maltratada. En estas conductas el grado de injusto es mayor, pues el dafio sobre la libertad, la seguridad y la integridad de la mujer es mayor, y tambien es m ayor el grado de culpabilidad, pues resulta mas reprochable la motivacion que inspira al autor de la violencia de genero.
Conclusiones
El Proyecto de Ley Organica representa el cierre del largo e intenso proceso legislativo para afrontar el problema de los malos tratos fundamentalmente a traves de una Ley de caracter integral, que abarca todos los aspectos institucionales, asistenciales, economicos penales y procesal penales. En lo penal
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Cfr. M. J., BENITEZ, p . 27 y s. con referencias y Miguel LoRENTE AcosTA, en todos Ios luga res.
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mediante la creaci6n de tipos aut6nomos agravados para los supuestos de violencia de genero, de hombres sobre sus parejas, que es una realidad criminol6gica material, conocida como sindrome de la mujer matratada que presenta mayor desvalor de acci6n y de resultado que en las demas violencias interpersonales, por lo que este tratamiento no resulta ni discriminatorio ni inconstitucional y mediante la protecci6n penal singularizada y agravada del cumplimientos del sistema de medias de protecci6n con un nuevo delito de quebrantamiento de condena. En lo procesal porque concentra todas la competencias penales y civiles en el mismo 6rgano judicial que permitira una mas eficaz coordinaci6n interinstitucional, de la investigaci6n y de la protecci6n de las victimas. El texto de las propuestas penales merece algunas reformas, como la reconfiguraci6n de las personas particularmente vulnerales y quiza abordar de nueva planta en problema de los delitos contra la integridad moral.
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DELINCUENCIA ORGANIZADA Y EN ORGANIZACIONES PROBLEMAS DE AUTORIA Y PARTICIPACION
Miguel Diaz y Garcia Conlledo
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DELINCUENCIA ORGANIZADA Y EN ORGANIZACIONES PROBLEMAS DE AUTORIA Y PARTICIPACION* Miguel Dfaz y Garcfa Conlledo 1
I. Dedicatoria
El presente trabajo va dedicado a los dos sobresalientes penalistas con motivo de cuyo Doctorado honoris causa en la Universidad Lusfada de Lisboa se celebro la importante reunion cientffica en cuyo seno se presentaron las lfneas basicas de este trabajo: los Profs. Dres. Winfried Hassemer y Francisco Mufioz Conde. Poder contribuir al homenaje a estos dos grandes penalistas, compartiendo intervenciones con prestigiosos colegas (y, en algunos casos, entrafiables amigos con los que compartf los primeros afios de formacion en la investigacion) de diversos pafses, es algo que debo agradecer a la Universidad Lusfada y a su s organos directivos y, muy especialmente, a mi querida amiga y compafiera Concei<;ao Valdagua. No soy yo quien pueda descubrir los enormes meritos academicos y de otra fndole de los Profs. Hassemer y Mufioz Conde, pues son notorios y de todos conocidos. Por ello, en esta dedicatoria, me limitare a dos reconocimientos personales, anecdoticos desde luego en la trayectoria de ambos penalistas: al Prof. Hassemer debo agradecerle el haber sido mi primer anfitrion en una reunion cientffica internacional que, cuando yo apenas empezaba a elaborar mi tesis doctoral en Munich, se celebro bajo su direccion en Frankfurt a. M.; es facil comprender la importancia que para mf tuvo aquel evento. Al Prof. Mufioz Conde le agradezco haber actuado siempre conmigo como uno de mis maestros y, sobre todo, como amigo probado incluso en momentos diffciles.
路 El presenta trabajo se encuadra en diferentes proyectos de investigaci6n de Ios que soy investigador principal: especialmente SEJ-2004/0062-JURI (Ministerio de Educa ci6n y Ciencia), pero tambien LE009C05 (Junta de Castilla y Le6n) y otro financiado por la Excma. Diputaci6n Provincial de Le6n (Conferencia proferida em Lisboa, n a Universidade Lusiada, em Outubro de 2004) . 1 Catedratico de Derecho Pena!Universidad de Le6n (Espafta) .
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11. Introducci6n
En primer lugar, se ha de destacar que el tema del que me ocupo es de gran complejidad, pues ni siquiera se sabe bien que es la delincuencia organizada. Si parece que una cosa es la organizaci6n criminal y otra el aprovechamiento para el crimen de la estructura de una organizaci6n no criminal. Las posturas que se defienden en la materia son muchas y no cambian demasiado con el tiempo. Personalmente siempre he albergado muchas dudas y, aun a riesgo de defraudar, debo confesar que sigo dudando, por lo que no deben esperarse de mi posturas cerradas e inamovibles y me daria por satisfecho con contribuir a hacer dudar, esto es, a reflexionar con fundamento sabre la cuesti6n. Debo advertir a la vez que en mi exposici6n dejo de lado algo basico, coma las posibilidades de castigo en comisi6n por omisi6n, pues ocuparme de ellas haria demasiado extenso este trabajo. En tan ardua materia, quiza si tengo claro lo que no debe hacerse: no debe acudirse al recurso aparentemente facil de establecer figuras propias del concepto unitario de autor en los tipos penales, y tampoco acudir, en un empleo espurio de la figura, a las regulaciones de actuar par otro, para establecer automaticamente responsabilidad de los administradores o directivos de la organizaci6n (como sucedi6 en alguna sentencia espafiola en materia de media ambiente en una fase afortunadamente hoy superada). Mas aceptable, pero no suficiente, resulta penar por la propia integraci6n en la organizaci6n (banda) ilicita, o por realizarse el hecho en organizaci6n . Y tampoco resuelve el problema el eventual establecimiento de responsabilidad penal de las personas juridicas. Conviene tambien no dramatizar en el sentido que a veces se percibe en algunas posturas que se ocupan del problema: el que no se pueda fundamentar la responsabilidad como autor de personas que ocupan ciertas posiciones (destacadas) en la organizaci6n no significa que no se les pueda exigir responsabilidad penal. No debe olvidarse que los C6digos penales recogen diversas figuras de codelincuencia, unas de autoria y otras de participaci6n y que en la mayoria de los casos, cuando s6lo se pueda calificar de participes a ciertos sujetos, ello no sera 6bice para sancionarlos penalmente, pues normalmente no existiran problemas derivados del principio de accesoriedad. Tras muchos afios de estudio de la distinci6n entre autoria y participaci6n y, aunque reconociendo su importancia, creo que tendemos a menudo a exagerarla. Es importante explicar c6mo se empieza a debatir el problema. La discusi6n de este tipo de supu estos y la soluci6n mas generalizada para resolverlos es deudora de RoxiN y su famosa construcci6n de la autoria m ediata por instrumentos organizados de poder. La figura la plante6 RoxiN y se ha discutido sabre ella despues sabre todo en relaci6n con los crimenes del aparato estatal de poder n acionalsocialista en la Alemania hitleriana, pero puede ser aplicada a supuestos similares (por ejemplo, y no es el unico caso, se utiliz6 en
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la acusaci6n por crfmenes de Estado cometidos durante la dictadura de las juntas militares argentinas de los anos setenta y primeros ochenta, o de los crimenes en la antigua RDA) o de organizaciones no estatales desligadas de las normas juridicas (por ejemplo, algunas organizaciones terroristas o mafiosas, como las dedicadas al trcifico de drogas, de armas, blanqueo de dinero, etc.); mas problematica resulta, al parecer, su aplicaci6n a la delincuencia en estructuras empresariales. Se trata de casos en que alguien ordena la realizaci6n de una acci6n delictiva y el ejecutor material no actua (o no siempre actua, pues en los ejemplos citados se daran a menudo casos en que si) en situaci6n de miedo insuperable, estado de necesidad, obediencia debida o error (en cuyo caso nos hallarfamos ante otros supuestos de autorfa mediata), sino que podrfa no obedecer la orden y siempre habria otro dispuesto a cumplirla; es decir, la "maquina de delinquir" en que consiste la organizaci6n funciona automaticamente, incluso aunque falle alguno de sus engranajes. RoxrN y quienes le han seguido defienden aqui la autoria mediata del que da la orden (ocupe el puesto que ocupe en la organizaci6n y aunque el a su vez haya recibido la orden de mas arriba), pese a que exista plena responsabilidad del autor inmediato (estariamos, por tanto, ante un caso de autor tras el autor), por el hecho de la fungibilidad de este, es decir, porque quien da la orden puede tener plena seguridad de que el delito se llevara a la practica por uno o por otro autor inmediato (la propia estructura de la organizaci6n y la fungibilidad del ejecutor son los elementos clave de la construcci6n). Mas adelante volvere a los elementos exigidos por RoxrN para la existencia de autoria mediata en estos casos, pero antes vamos a repasar otras posibles calificaciones.
Ill. La tesis de la inducci6n Autores alemanes como HERZBERG (recientemente, pues antes estaba de acuerdo con RoxrN en la autoria mediata), ROTSCH, KbHLER o RENZIKOWSKI (en parte, JAKOBS) y espanoles, como GrMBERNAT 0RDEIG, GunERREZ RoDRIGuEz, PEREZ CEPEDA (para la criminalidad en la empresa) (en parte FERRE) y, con dudas, yo mismo, han o hemos sostenido (con muchos matices en ocasiones) que (al menos el sujeto de atras que da la orden: por ejemplo, para GrMBERNAT no los eslabones intermedios) es un inductor, senalando en ocasiones que con ello ademas se consigue una soluci6n plenamente adecuada en las consecuencias (GrMBERNAT - aunque con matices -, KoHLER), puesto que la pena que corresponde a la inducci6n es igual a la del autor, que la garantia del sujeto de detras de ver realizado su plan no suple su ausencia de dominio en el caso concreto (RENZIKOWSKI) y no hay figura legal que permita imputar como autor al sujeto de detnis, cuando existe plena autonomfa del delante (RE~ZIKOWSKr) . En general, la calificaci6n de inductor no intenta fundamentar se aut6no-
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mamente, sino sobre la base de (o para los casos en) que la autoria mediata no se considera sostenible, especialmente por la plena libertad y responsabilidad del ejecutor; como no puede ser autor mediato, quien hace surgir en otro la decision de cometer el hecho sera un inductor. RoxiN ha aducido que esta tesis ignora la diferencia entre un inductor, que necesariamente deja en manos del inducido la decision de realizar el hecho, y quien domina un aparato organizado de poder y, de ese modo, cuando emite una orden criminal puede confiar en que esta se cumplira. Hasta aqui, valorar la tesis de la induccion implica tomar posicion primero sobre la de la autoria mediata (y tambien la de la coautoria), que es la cuestion clave, pues, si se rechaza esta, parece sensato calificar de inductor a quien hace nacer en otro la resolucion delictiva. Por ello, la cuestion se analizara mas adelante (al valorar la posicion de la autoria mediata). VALDAGUA ha recordado recientemente en contra de la tesis de la induccion que quien da la orden no lo hace normalmente al ejecutor, sino a otro eslabon de la cadena de mando de la organizacion, de modo que se trataria de un supuesto de induccion en cadena, que no es posible castigar como tal induccion, al menos en el Derecho portugues, lo que crearia indeseables lagunas de punici6n. Algo similar ocurriria en el Derecho penal espafiol, especialmente para quienes creen que el caracter directo que la segunda parte del art. 28, letra a) CP exige para la induccion significa cualidad de inmediata y excluye precisamente la induccion mediata y la inducci6n en cadena. Sin embargo, ademas de que caben otras interpretaciones de lo que sea directo, la laguna de punici6n es relativa, pues siempre cabria calificar a los eslabones intermedios de c6mplices en el hecho; se aducira con seguridad que ello, con la rebaja obligatoria de pena al c6mplice, sigue sin resultar satisfactorio. A ello cabe contestar que el Derecho espafiol brinda una soluci6n materialmente satisfactoria desde el punto de vista de la pena a traves de la figura del cooperador necesario del art. 28, segunda parte, b) CP a la que me referire enseguida. Por otro lado, GIMBERNAT ha negado que estemos ante una induccion en cadena, pues los transmisores de la orden de quien ocupa la cupula en la piramide (este si, verdadero inductor), en realidad no inducen, sino que se limitan a comunicar a otro la orden inductora de la cabeza del aparato, por lo cual y porque su actividad no es escasa, para este autor espafiol, las "ruedecillas" intermedias del aparato responderian como c6mplices, calificacion que, como veremos de inmediato, considero discutible.
IV. La tesis de la complicidad Como acabamos de ver, GIMBERNAT estima que los eslabones intermedios de la cadena de mando son meros complices. Baste decir aqui (porque a
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continuacion voy a completar la argumentacion) que esta calificacion no parece muy satisfactoria desde el punto de vista de la consecuencia penologica, dada la rebaja obligatoria de p ena al complice en el Derecho penal aleman, en el portugues y en el espaii.ol.
V. La tesis de la cooperaci6n necesaria El Codigo Penal espafi.ol contiene en su art. 28, segunda parte, b), contiene una figura de participacion ausente actualmente en el Derecho aleman y en el portugues. Segun el, "Tambien seran considerados autores:" (participes asimilados en pena, frente a quienes lo "son" en sentido estricto de la primera parte del precepto, segun interpretacion generalizada en la doctrina espafi.ola) "b) Los que cooperan a su ejecucion con un acto sin el cual no se habria efectuado". Ciertamente la redaccion del precepto, con su formulacion hipotetica, me parece desafortunada, pero, contra lo que opinan algunos autores espafi.oles, la propia figura (que deberia definirse de modo positivo y con referencias materiales que aqui no puedo detallar - lo he hecho en otros lugares -)me parece acertada y debe mantenerse en nuestro Derecho, pues, entre otras cosas, permite a tender a la diversa importancia de las contribuciones sin forzar o ampliar el concepto de autor en la coautoria, como en mi opinion hacen (en m ayor o menor medida) los defensores de la teoria del dominio del hecho, calificando de coautores a sujetos cuyo dominio no pasa de ser (en las versiones mas exigentes, como la del dominio funcional del hecho de RoxrN) negativo (el poder de hacer fracasar la empresa comun retirando su aportacion, lo que no debe confundirse con el mero poder de interrupcion que puede tener incluso un tercero ajeno a la empresa delictiva), frente al dominio o determinacion positiva (y objetiva) del hecho que, en mi opinion, debe caracterizar toda forma de autoria. Pues bien, determinados autores espafi.oles, no siempre desde una perspectiva comun, han acudido a esta figura para calificar los supuestos que nos ocupan. Asi, yo mismo sugeria hace tiempo esta posibilidad, sin dejar cerradas otras, GunERREZ RooRfGUEZ (en el mismo sentido), HERNANDEZ PLASENCIA (citando la frase de Mm Pure de que "el hecho no pertenece a todo aquel de quien depende la posibilidad de su ejecucion, sino solo a quien lo realiza"). Pero, naturalmente, esta tesis, como la de la induccion, tiene sentido solo si se rechaza el caracter de autor (mediato o coautor), cuestion que todavia no he tratado y, por lo tanto, queda en suspenso la validez de la calificacion de cooperador necesario. Ahora bien, quiero sefi.alar aqui que un detractor de la construccion roxiniana del dominio del hecho por utilizacion de aparatos organizados de poder como es GrMBERNAT calificaba, como hemos vista, de complices a los eslabones intennedios de la cadena de mando, descartada para el la posibilidad de apreciar una induccion en cadena (el unico inductor seria, en su opinion, quien
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da la orden en la cupula de la organizaci6n). GrMBERNAT senala que en el delito de genocidio se produce la unica excepci6n a la regia general de que toda contribuci6n que aparezca coma una conducta claramente criminal es una condici6n escasa y, par lo tanto, esencial y constitutiva de cooperaci6n necesaria (desde el punto de vista de su caracterizaci6n, bastante aceptada de esta figura delictiva) y no de mera complicidad. La raz6n es que un Estado al margen del Derecho tiene a su disposici6n multitud de "ruedecillas" (personas intermedias) en la cadena de mando, por lo que sus aportaciones no constituyen para ese Estado criminal un bien o actividad escasos. Si nos fijamos, el argumento (aunque no referido a los ejecutores, a los que se les podrfa extender) guarda cierto parecido (aunque en relaci6n con otra figura delictiva) con el de la fungibilidad. Sea como fuere, prescindiendo de matizar algunas partes del razonamiento de GrMBERNAT, constatada, si se quiere, la fungibilidad de los mandos intermedios, y suponiendo que estos miembros (y, si se quiere, la cupula) de la cadena no fueran autores o inductores, zes verdad que no realizan contribuciones escasas? Aparentemente el argumento de GrMBERNAT es claro y aplastante; y, sin embargo, no me convence. Mas bien pienso que la escasez se da y (dadas las premisas citadas) la calificaci6n correspondiente en su caso seria la de cooperadores necesarios y no c6mplices. La raz6n es que precisamente el que existan multitud de "ruedecillas" es lo que garantiza el exito de la empresa criminal y, por lo tanto, la abundancia y sustituibilidad de esas "ruedecillas" de la maquinaria criminal estatal poseen caracter esencial para el buen funcionamiento del mecanismo global y, en cuanto contribuyen a el, cada uno de los mandos que en realidad intervienen en el delito realiza una aportaci6n esencial.
VI. La tesis de la coautoria
Diversos penalistas califican de coautores a los organizadores (junto con los ejecutores). Asi, sin afan de exhaustividad, SCHROEDER, JESCHECK y JESCHECK/ WEIGEND, BAUMANN/WEBER, Orro, SAMSON; JAKOBS o LESCH, entre los alemanes, y especialmente Mur\Joz CoNDE (sin descartar otras posibilidades, incluida la de la autoria mediata cuando se trata de aparatos de poder estatales), en la espanola (tambien, por ejemplo, TASENDE CALVO; en parte FERRE; y, con muchos matices, yo mismo). Asi, por ejemplo, JAKOBS ve una ventaja en la coautoria, frente a la soluci6n de la autorfa mediata: que pone de manifiesto el hecho de la vinculaci6n organizativa entre todos los intervinientes en el regimen nacionalsocialista; solo la conjunci6n entre quienes imparten la orden y quienes la ejecutan permite interpretar el hecho del ejecutor como aportaci6n a una unidad que abarque diversas acciones ejecutivas, defendiendo la posibilidad de coautoria del
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ordenante aunque no realice acciones ejecutivas, y acudiendo a un sfmil extrapenal: nadie negarfa al au tor de una obra teatral al menos la misma importancia que a los actores en el resultado de un estreno, aunque no este presente en el. Tambien LESCH, sefialando que no considerar al jefe de la mafia autor supone alejarse demasiado de los canones sociales de imputacion, pues es una clara figura central; ahora bien, no es autor mediato porque no domina la ejecucion inmediata, sino un coautor que no posee un dominio sabre la accion ejecutiva tipica completa, exactamente igual que en el resto de casos de la coautorfa. Y MuN"oz CONDE, aunque solo para supues tos de criminalidad organizada con exclusion de la estatal o paraestatal, defendiendo la tesis del dominio funcional del hecho, pero renunciando al requisito de la actuacion en fase ejecutiva, pues cree que, mas alla de la coautoria ejecutiva, caben "otras formas de realizacion conjunta del delito en las que alguno o algunos de los coautores, a veces los mas importantes, no estan presentes en la ejecucion". La crftica a esta postura (encabezada por RoxiN y seguida tambien por diversos autores, entre otros, portugueses como VALDAGUA) se basa en tres argumentos: falta el plan, acuerdo o decision conjunta o comun de realizar el hecho, el sujeto de atras no actua en fase ejecutiva y se ignora que la coautoria posee un caracter horizontal, mientras que nuestros supuestos presentan una estructura vertical, a la que responde la autoria mediata. Pues bien, en lo que se refiere a la falta de acuerdo comun (al margen de que algunos defensores de la tesis que analizamos, como JAKOBS o LESCH, prescinden de este requisito en toda coautoria), no me parece tan obvia la inexistencia del mismo, salvo que lo entendamos como una planificacion comun expresa y previa, lo que no me parece necesario ni conveniente. En nuestros supuestos, se podria decir que quien manda sabe que va a ser obedecido y quien obedece sabe que alguien ha m andado (DuRAN SEco); es verdad que, como sefiala HERNANDEZ PLASENCIA, esta forma de acuerdo recuerda mas a la induccion, en la que la adhesion al plan del mandante queda en manos del inducido, pero no deja de ser una forma posible de acuerdo, pues noes necesaria la simultaneidad o coetaneidad del acuerdo entre los coautores. Pero es que, ademas, el propio funcionamiento como organizaci6n supone la preexistencia de una red comun, que podemos identificar con el acuerdo y actuacion conjunta; se puede hablar, como hace RoxrN para descartar otra tesis, de la "logica del aparato" (y creo que esto serviria tambien para las organizaciones no criminales, como las empresas). En cuanto al caracter horizontal y no vertical de la coautoria, parece que es un lugar ya comun. Y es que, ciertamente, la mayoria de las veces se da esa estructura horizontal. Pero lo cierto es que legislaciones como la alemana o la espafiola (menos clara me parece en este punto la portuguesa) solo hablan de realizacion o comision conjunta y la espafiola ni siquiera le da el nombre de coautoria. Creo que no cabe descartar supuestos de coautoria vertical. Pre-
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cisamente los casos de autor tras el autor (aunque unos masque otros) suponen una figura intermedia entre las claras de coautorfa y autorfa mediata; inclu so, en Derechos como el espafiol que h abla realizacion del hecho por medio de otro del que se sirven coma instrumento (formula que se considera descriptiva de la autorfa m ediata), podrfa haber dificultades (de hecho es lo que mas se alega por los detractores de la tesis de la autorfa mediata) para hablar de instrum entalizacion y, sin embargo, entenderse que el hecho es obra conjunta del sujeto de detras y el de delante (en un sentido similar la propuesta d e BoLEA BARDON) y encajar el supuesto en la "realizacion conjunta". En mi opinion, las diferencias reales entre las dos posibilidades no son tan grandes y cabrfa elegir una u otra segtin se crea que refleja mejor la dinamica del sujeto (pero, al fin y al cabo, serfa la btisqueda de una mayor plasticidad en la explicacion: se ve en las observaciones de JAKOBS y RoxiN). La cuestion es si de verdad en nuestro caso posee un autentico dominio del hecho el sujeto de atras. Probablemente la crftica mas importante es la relativa a la no intervencion en la fase ejecutiva, si bien hay que decir diversos partidarios de la teorfa del dominio del hecho no consideran exigible esta intervencion para la calificacion como coautor, y tambien que, en mi opinion, RoxiN incluye esta exigencia en su fundamentacion, tan exitosa, del dominio funcional del hecho en un loable intento de evitar una extension excesiva de la autorfa en la coautorfa y no alejar esta demasiado de la realizacion tfpica, pero sin embargo, el requisito no casa muy bien con la idea central d el desbaratam iento del plan con la sola retirada de la contribucion, que fund amentarfa la esencialidad de la contribucion para el plan comtin, y que puede darse tambien en intervinientes en la fase previa. ScHROEDER, reconociendo las dificultades, apunta a casos especialmente complicados, en que la organizacion es necesaria, en que la organizacion serfa ya la tentativa (nacionalsocialismo, Staschynskij). Mas adelante dire algo en relacion con el ejemplo "teatral" de JAKOBS, pues esta basado en la idea del autor (en es te caso, coautor) como figura "central" (o sea, al final, "importante") del hecho, que tambien esta muy presente en la tesis de la autorfa mediata. En todo caso, quiza la crftica piensa en exceso en la realizacion de propia mano de acciones ejecutivas, pero hay que reconocer que en muchos casos la fundamentacion del dominio de quien acttia detras y no actualiza su intervencion en la fase final resulta por esta cuestion mas sencilla a traves de la autorfa mediata. Pero la calificacion de intervenciones esenciales en fase previa puede captarse muy bien tambien, si se rechaza la existencia de dominio del sujeto de atras (por falta de instrumentalizacion, en referenda a la autorfa mediata, o por falta de determinacion objetiva y positiva del hecho, en el caso de la coautorfa), a traves de la anteriormente m encionada figura de participacion de la cooperacion necesaria.
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VII. La tesis de la autoria accesoria
La calificacion del sujeto "de escritorio" como autor accesorio (aunque d ebe recordarse que la autoria accesoria es mas una constelacion de casos que una forma de autoria) junto con los ejecutores ha sido sustentada en ocasiones, como por ejemplo hac en BocKELMANN/ VoLK, aunqu e sin fundamentarla demasiado, dandola por supuesto ante la imposibilidad d e apreciar coautoria por falta de acuerdo, plan o resolucion conjunta. Pero como precisamente he opinado que seguramente lo que falta no es el acuerdo, podria ya rechazar esta posicion, a lo que se podria aftadir, entre otras, la critica d e RoxrN, al sefialar que en los aparatos organizados de poder no se trata de cursos causales independientes entre si, sino encadenados por la propia logica del aparato (observacion que yo llevo m as lejos hasta dudar de la inexistencia del acuerdo, plan o resolucion comun) .
VIII. La tesis de la autoria mediata
Esta es la posicion que podriamos calificar de "reina", desde que RoxiN expu so la construccion de la autoria m ediata mediante aparatos organizados de poder, que algunos pretenden extender incluso a otras formas de delincuencia, como la que se produce mediante el aprov echamiento de una organizacion "legal" (delincuencia en empresas, por ejemplo). Los autores que siguen, con mayor o m enor extension, matices o precisiones, la tesis de RoxrN son cad a vez mas numerosos. Ast entre otros, KoRN, BuscH, ScHMIDI-IAUSER, HERZBERG (an teriormente), STRATENWERTH, CRAMER/HEINE, TR6NDLE/FrsCHER, LACKNER/KDI-IL, EBERT, M. K. MEYER, HDNERFELD, W ALTHER, BOTTKE; SCHILD, ScHUMANN, BLOY (con algun matiz relevante), AMBOS (con precisiones importantes), en Alemania; GRACIA MARTiN, JAEN VALLEJO, BACIGALUPO, BusTOs RAMIREZ/ HoRMAZABAL MALAREE, CI-IocLAN MoNTALVO, PEREZ CEPEDA, M uN'oz CoNDE (solo para aparatos de poder estatales), ANARTE BoRRALLO, en Espafia, o, aunque mi revision no ha sido exhaustiva, FTGUEIREDO DIAS, en Portugal. Los elementos de esta forma d el dominio del hecho y de autoria mediata serian: 1) Dominio de la organizacion. Dice RoxrN: "Cabe afirma1~ pues, en generat que quien es empleado en una maquinaria organizativa en cualquier lugar, d e una manera tal que puede impartir ordenes a subordinados, es autor mediato en virtud del dominio de la voluntad que le corresponde si utiliza sus competencias para que se cometan acciones punibles. Que lo haga por ptopia iniciativa o en interes de instancias superiores y a ordenes su yas es irrelevante, pues para su autoria lo
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unico decisivo es la circunstancia de que puede dirigir la parte de la organizaci6n que le esta subordinada sin tener que dejar a criteria de otros la realizaci6n del delito". 2) Fungibilidad del ejecutor. El ejecutor es un sujeto libre y responsable que, por tanto, respondera penalmente como autor inmediato, pero la peculiaridad es que es un ser an6nimo y sustituible, que, si, domina la acci6n (y, por ello, tambien es autor), pero sigue siendo un engranaje reemplazable en la maquinaria del poder, de modo que el sujeto de atras puede contar siempre con que alguien cumplira su orden y domina siempre asi el acontecer tipico. 3) Por ultimo, RoxiN, exige que se trate de aparatos de poder al margen o desvinculados del Derecho, pues, de lo contrario, lo normal es que no existan sujetos dispuestos a cumplir 6rdenes antijuridicas, decayendo toda la construcci6n en ese caso. Ello significa que, si bien RoxrN admite la posibilidad de esta forma de autoria mediata en organizaciones criminales distintas de los aparatos estatales de poder en regimenes fuera del Derecho (como organizaciones mafiosas, terroristas, etc.), la descarta para la delincuencia en empresas. Las criticas a esta posici6n, que podemos calificar de exitosa y dominante, son sin embargo tambien abundantes. Aparte de algunas que se derivan de lo explicado al exponer otras posturas, una parte de las criticas se refiere a la propia existencia de fungibilidad en el ejecutor. Se dice que no esta tan clara como parece a ojos de RoxrN la fungilibilidad en los aparatos organizados de poder y que no es tan ilimitado e numero se sujetos dispuestos, sin coacci6n o engano, a colaborar. 0, como senalan SCHROEDER, AMBOS o FREUND, en ocasiones seran necesarios sujetos tan especializados que dificilmente podran considerarse fungibles. Sin negar algun peso a esta critica (luego la veremos mas desarrollada), el propio RoxrN, advierte, con raz6n, que, naturalmente, la fungibilidad hay que comprobarla en el caso concreto. Yo anadiria que esto es importante y que, dependiendo del delito y de la organizaci6n de que se trate, habra fungibilidad en el ejecutor en unos casos y en otros no, pero no au tomaticamente en todos los aparatos de poder estatales u organizacion es estrictamente criminales, pero tampoco estara ausente de modo necesario la fungibilidad en organizaciones "legales" como las empresas. Probablemente en ellas sera mas facil que el ejecutor sea fungib le en los sectores del Derecho penal accesorio o secundario en que la delincuencia no se c01-responde con una valoraci6n etico-social evidente, como viene a senalar (estando, por lo demas de acuerdo con RoxiN) FrcuEIREDO DrAs. Pese a todo, y admitiendo en el piano l6gico la respuesta de RoxiN, VALDAGUA cree que su construcci6n de la autoria mediata (calificaci6n que ella misma tambien sostiene) en los supuestos de fungibilidad del ejecutor y negaci6n de ella en los de unico especialista
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dentro de la organizaci6n o de free-lancer especializado carece de fundamento valorativo suficiente, pues VALDAGUA aprecia en todo caso una situaci6n de dominio del sujeto d e atras. Ello le conduce a su propia concepci6n amplia de la autoria mediata de la que me ocupare con cierto detenimiento mas adelante. Importante aparentemente es la critica de RENZIKOWSKI de que, pese a que el sujeto de atras pueda contar con la seguridad o la alta probabilidad de que el hecho sera realizado con independencia de la persona d el ejecutor, esto no pasa de ser una hip6tesis que no fundamenta el dominio factico del instrumento en el caso concreto. Esta critica parece, como digo, importante, pero quiza confunde, como ha seftalado FARALDO CABANA, fungibilidad del ejecutor con probabilidad de que el delito se cometa, pues no es exactamente esta ultima el factor decisivo en la construcci6n de RoxrN: puede que la tarea que se debe realizar sea muy dificil y por ello no haya altas probabilidades de exito, pero sin embargo se cuente con ejecutores intercambiables, que es lo que fundamentaria el dominio y lo que diferenciaria el supuesto de los de inducci6n, en los que el inductor s6lo puede confiar en el inducido, en cuyas m anos queda la comisi6n del delito. Lo que hay de cierto seguramente en la critica seftalada es lo que tambien ha puesto de manifiesto en Espafta H ERNANDEZ PLASENCIA: que por mucho que se pueda contar con el cumplimiento de la orden por la intercambiabilidad del ejecutor, en el caso concreto siempre cabe la posibilidad, por la plena libertad y reponsabilidad de este, de que decida no cumplirla, con lo que no existiria dominio en el caso concreto. Dejando de momento de lado las criticas al tercer presupuesto de RoxrN, que no desvirtuan la validez de su propuesta, sino s6lo su alcance, debe seftalarse que la inmensa mayoria de las criticas se dirige a la vulneraci6n por RoxrN del principio de responsabilidad, en el sentido de que es contradictorio suponer a la vez que un sujeto es libre y responsable y un instrumento en manos de otro. En mi opinion, el principio de responsabilidad precisamente no debe ser un principio. Dicho de otra forma, admito supuestos de autor detras del autor responsable: por ejemplo, en la creaci6n de un error de tipo vencible en el ejecutor o, incluso, en la creaci6n de un error de prohibici6n vencible en el sujeto. Pero la cuesti6n es que en estos casos el sujeto de detras determina (domina, si se quiere) el h echo porque los deficits de conocimiento de la situaci6n (factica - en sentido amplio - , en un caso, juridico-valorativa en el otro) del sujeto de delante permiten una atribuci6n normativa de dominio al de detras, basandola, por ejemplo, en su mayor capacidad de inhibici6n o, mejor, la menor capacidad de inhibici6n del otro (el suj eto de delante), que le pone en manos del primero. Sin embargo, esos deficits no son apreciables en nuestro supuesto tal y como RoxrN y sus seguidores lo configuran. Pero RoxrN y m as aun otros autores han dado respuesta a esta cuesti6n seftalando que aqui el fundamento no es ta en los deficits (de libertad o conocimiento, como en otros casos) de ejecutor, sino que el dominio se ejerce
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sobre el aparato, en virtud de la fungibilidad del ejecutor. A ello hay quien ha contestado, con un argumento de Derecho positivo que se presenta con especial claridad en el Derecho espafiol, que la ley pide que el instrumento sea una persona y no urr aparato (GuTIERREZ RooRiGUEZ). El argumento es interesante, pero mas bien creo que lo que sucede, sin necesidad de defender a ultranza y en todo caso el principio de responsabilidad, es que seguramente el fundamento central de la fungibilidad no es suficiente por si solo para sustentar el dominio del hecho y la autorfa mediata del sujeto de detras, pero puede ser un elemento junta a otros para explicarlo. Por fin, en cuanto a la exigencia de actuacion del aparato al margen del Derecho, cuya principal consecuencia serfa limitar el alcance de la construccion roxiniana, excluyendo la comision de delitos en organizaciones "legales", tambien ha sido objeto de matizaciones, como la ya sefialada anteriormente de FIGUEIREDO DJAS, que me parece consistente, aun cuando se estuviera (como el esta) de acuerdo con la exigencia de RoxiN, y de crfticas, como la que, en mi opinion con bastante razon, viene a poner de manifiesto que ni la fungibilidad (sin coaccion o engafio) en los aparatos estatales y similares debe suponerse ni debe excluirse en otros supuestos, sino que lo unico que sucede es que el caracter criminal de la organizacion hace mas facil suponerla y probarla, puesto que quien entra en ella lo hace necesariamente para cometer delitos (aproximadamente en este sentido GunERREZ RooRiGUEZ). Diversos autores, seguidores por lo demas de la construccion de RoxiN, niegan este tercer requisito y admiten la posibilidad de aplicarla, por ejemplo, a la delincuencia empresarial (aunque otros, en sentido contrario, critican incluso que RoxiN analice este requisito en relacion con el delito concreto que se comete y no exija que el aparato no se considere obligado a respetar el Codigo Penal; asf, por ejemplo, FARALDO CABANA). E incluso la jurisprudencia alemana admite esta posibilidad desde la conocida sentencia del BGH de 267-1994 (v. tambien, por ejemplo, SERRA, FIGUEIREDO DIAS). Especialmente ha insistido en ello AMBOS, con distintos argumentos que no es posible reproducir detalladamente aquf, como la infiltracion en administraciones publicas de Estados no criminales de algunos sindicatos del crimen (a lo que FIGUEIREDO, con razon, contesta que ello no significa que esos sindicatos no sigan actuando al margen del Derecho, como algo separado del Estado y opuesto esencialmente a el). En mi opinion, por lo tanto, no cabe excluir a las empresas de la consideracion de aparatos de poder con ejecutores fungibles en algunos casos y respecto de ciertos delitos. Pero con eso, todavfa no he dicho que el sujeto de atras, en estos o en los aparatos organizados de poder criminales (estatales o no), sea un autor mediato. Sin poder detenerme aquf en algunas posturas cercanas a la de RoxiN, pero no identicas (como la del "autor intelectual" que propane en Espafia
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JosHI JusERT y que, segun FERRE Ouvf.: no encuentra solido sustento en el Codigo Penal), dire que la fundamentacion de la autoria mediata en la fungibilidad del instrumento resulta muy sugerente, pues destaca claramente lo que separa estos supuestos de los "clasicos" de induccion, en los cuales, al no existir fungibilidad del autor inmediato, el inductor no puede contar con que por el simple hecho de proponerlo el el delito se cometera o se intentara cometer. Sin embargo, aunque con algunas dudas, estimo que, como ya seiialo en Espafia hace bastante tiempo GIMBERNAT, no nos hallamos ante casos de autoria mediata, sino de participacion en sentido estricto (segun las circunstancias y, sobre todo, segun el lugar que el sujeto ocupe en la cadena que sigue la orden, se tratara de induccion ode alguna forma de cooperacion), pues, pese a todo, la comision del delito pasa siempre por la decision voluntaria libre de un (uno u otro) autor inmediato doloso (consciente) y responsable, que "ve" la situacion (en sentido amplio, incluyendo tambien su valoracion juridica) igual que el que da la orden. El supuesto presenta peculiaridades por tanto frente a los supuestos "clasicos" de induccion y frente a los casos mas claros de autoria mediata. Pero de admitir esta, quiza tambien habria que admitirla (pese alas diferencias que sin duda existen con el supuesto analizado) en los casos de quien, disponiendo de ciertas cantidades de dinero, puede contar con encontrar siempre a alguien, en el mundo de la delincuencia habitual o profesional, que cometa acciones delictivas a cambio de una contraprestacion economica, sobre todo si se trata de hechos no extremadamente graves (aunque seguramente no solo en ese caso), como, por ejemplo, quien contrata a un maton solo "para dar un susto", mediante la amenaza o pequeftos daf\.os en la propiedad a su deudor o enemigo; y en estos casos parece dificil afirmar que quien paga ha realizado el hecho a traves de otro que actua como instrumento. Mas adelante matizare que las soluciones pueden ser diversas y que no cabe excluir de antemano ningun titulo de intervencion. Esta diversidad de posibilidades la aceptan distintos autores y, en definitiva (aunque d efendiendo para los casos conocidos, su tesis de la autoria mediata), tambien, en cierta medida, RoxJN (quien, aunque cree que la regia es la autoria mediata, admite supuestos de coautoria y de induccion) y algunos de sus seguidores. En muchos defensores de la autoria (si no en todos), tras esta calificacion (normalmente autor mediato), esta latente la famosa idea general de RoxiN del autor como figura central (esto se confiesa a veces claramente, como veremos hace V ALDAGUA, lo que me parece preferible, pero la id e~ esta latente quiza casi siempre). La imagen prejuridica de la figura central se torna a menudo en la cuestion de la "importancia". Con caracter general, he considerado de cierta utilidad la idea prejuridica de la figura central (conectada con las concepciones sociales, con un valor plastico como imagen), mientras de ella no se quieran extraer demasiadas consecuencias coi1cretas (juridicas). Pero, centrandonos en el supuesto que ahora nos ocupa, debe decirse que, al acudir (confesadamente
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ono) a la idea de la figura central, el razonamiento hace ver un cierto "truco", porque aqui los autores se fijan mas bien en Hitler, Himmler, etc., pero RoxrN extiende su calificaci6n de autor mediato a todo el que puede dar 6rdenes, que, a m enudo, es un bur6crata gris, mero trasmisor en una cadena (v. las consideraciones de GIMBERNAT). La idea de la figura central aparece tambien en defensores de la coautoria, como JAKOBS, con su ejemplo del autor y los actores de la obra teatral (habla de "importancia), ejemplo al que inteligentemente observa ALCACER GuiRAO que "posiblemente nadie negaria la misma importancia al autor de una obra de teatro que a los actores de la misma por no estar aquel presente durante la representaci6n, pero tampoco nadie le imputaria responsabilidad por una desastrosa representaci6n por parte de los actores, 0 pm路que estos se hubieran negado a salir a escena. Son estos y no el escritor quienes tienen la decision ultima sobre la representaci6n de la obra, y, por tanto, sobre el exito 0 fracaso del autor de la misma". Pero, ademas, cu ando se resalta el papel de figura central del ordenante, se olvida que los defensores de estas tesis califican de autor tambien al ejecutor, cuando la argumentaci6n tiende a colocar al primero en el centra y a es te en la periferia. Y es que, como sefiala VrvEs ANT6N (cuya perspectiva formal no comparto, aunque admito aspectos positivos en ella), "en ocasiones, la mayor responsabilidad por un delito puede corresponder, no a quienes lo realizaron, sino a quienes lo proyectaron, alentaron y dirigieron: asi lo reconoce expresamente el C6digo para algunas modalidades de delito; pero, lo que aqui se ventila no es el problema de la relevancia a efectos de la responsabilidad criminal, sino el m as limitado, por puramente conceptual de a quien cabe tener por autor" (subraya esta argumentaci6n DuRAN SEco, quien sugiere la posibilidad de crear una agravante generica para los organizadores o similares, con independencia de la calificaci6n de autor o participe que reciban en cada caso). Para terminar, sefialare sin embargo que la idea de la figura central p esa incluso en autores que niegan la autoria de los "de arriba" (lo cual no carece de l6gica, desde luego); asi, GIMBERNAT dice que la calificaci6n de Hitler o Himmler como inductores, que el propugna, parece poco adecuada, pues el delito fue "su" obra, y achaca la imposibilidad de considerarlos autores a la inadecuaci6n de los preceptos reguladores de la autoria y la participaci6n al delito de genocidio.
IX. La fundamentaci6n de la autoria mediata en V ALDAGuA V ALDAGUA, que considera razonable, en gran medida con apoyo en la idea rectora de la "figura central del acaecer d elictivo", a la que ya m e he referido (criticamente), cree sin embargo que la fungibilidad del ejecutor por la propia
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estructura de la organizacwn no es un fundamento vaido para la autoria mediata, aduciendo la vieja objecion de ScHROEDER (acogida por autores como FREUND o AMBOS) de la necesidad de especialistas en algunos casos, a la que sabemos que RoxJN contestaba que hay que analizar el caso y que en esos no habra fungibilidad y autoria mediata, sino instigacion, lo que no convence a AMBOS, pero sirve, segun el, para demostrar que lo esencial no es la fungibilidad. La respuesta de RoxrN le parece a V ALDAGUA inatacable en el plano logico de la coherencia interna, pero no en el valorativo o axiologico, pues RoxrN deberia demostrar por que pierde el caracter de figura central quien da la orden cuando solo uno o dos miembros de la organizacion poseen las aptitudes necesarias para ejecutarla, por que el caso es diferente. En mi opinion, la anterior exposicion de planteamientos pone de relieve lo manipulable de la idea de la figura central. RoxJN podria contestar: precisamente porque los ejecutores son especialistas, su posicion es central, se torna central; pero se le podria responder: el ingeniero especializado que disefi.a el arma de destruccion masiva mas compleja del mundo es el especialista, pero RoxiN nunca lo considerara figura central por actuar en fase preparatoria, mientras que le dara el papel central (siempre se lo da pues cree que es autor) al terrorista (jcurioso, pues la explicacion de que el "jefe" es central parece que desplazaria a los subordinados a la periferia, para acabar diciendo, sin embargo, que son coautores!), acaso fungible, y entonces tambien al jefe de organizacion terrorista 0 de la celula que transmite la orden. La citada falta de explicacion en el plano axiologico se daria tambien, segun VALDAGUA, en el caso de que el ejecutor fuera un sujeto ajeno a la organizacion, unfree lancer, contratado ad hoc para la ocasion. Y recuerda que, por lo demas, la calificacion de instigador llevaria, segun ella, en el Derecho portugues, a la impunidad cuando se produzca en cadena (ya he realizado algunas observaciones al respecto) . Mi opinion es que VALDAGUA no hace plenamente justicia a RoxiN, pues este ve la diferencia claramente en que en el supuesto de la fungibilidad la voluntad de cada concreto sujeto pierde la relevancia absoluta que tiene en los otros casos para la empresa criminal. Y se podra estar de acuerdo o no con RoxiN en que en el primer caso haya autoria mediata, pero la diferencia de situaciones permite una valoracion distinta, a la que se le podran anudar (como RoxiN) o no consecuencias juridicas (de ahi precisamente mis dudas anteriormente expresadas). Pero, en todo caso, lo mas relevante aqui seria que, a partir de estas premisas, VALDAGUA propane su propia y novedosa solucion (muy valiente, desde luego) de estos supuestos como de autoria mediata, considerando que esta figura se da siempre que de la actuacion del sujeto de detras sobre el de delante se derive expresa o concluyentemente que, al tomar la resoluci6n criminal, el agente inmediato acepto no ejecutar el hecho punible en el supuesto
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de que el suj eto de detnis le comunique que ya no quiere que se realice el hecho . En este caso se produce una subordinacion voluntaria del actuante inmediato a una eventual decision del agente mediato (no en el caso contrario) . Podemos realizar ya algunas observaciones, obviando, pues resultarfa reiterativa, mi valoracion de la idea de la figura central. A primera vista, la propuesta de VALDAGUA podrfa recordar a alguna de las viejas teorfas subjetivas (especialmente a alguna version de la del dolo), pero ello es solo aparente, pues V ALDAGUA no niega la autorfa del actuante inmediato. Lo que si creo es que, aun suponiendo que exista, el dominio del sujeto de detnis resultarfa meramente negativo (puede detener la accion criminal), lo cual, como sabemos, me parece insuficiente para fundamentar la autorfa. Y, por fin, habrfa que decir que la voluntad debe actualizarse siempre y el de delante podrfa echarse atnis en cualquier momento. Pero, continuando con la exposicion de la interesante tesis de VALDAGUA, la situacion descrita se produce, segun ella, cuando hay un acuerdo, ajuste o pacto criminal en el que el sujeto de atras se compromete a realizar una determinada prestacion de cosa o actividad y, como contrapartida, el agente inmediato se obliga a cometer el crimen. Igual sucederfa, por ejemplo, cuando la actuacion del de detras sobre el de delante se configure como una orden para cometer el delito, pues quien se arroga la capacidad de dar ordenes tambien se arroga la de revocarlas o dar contraordenes u ordenes de otra especie. Y quien acata la orden admite de forma concluyente que puede revocarse y, por lo tanto, se subordina a la decision del agente mediato. Afiade VALDAGUA posteriormente los supu estos de encargo del hecho punible y de promesa unilateral de proporcionar prestacion de cosa o actividad y, eventualmente, los de dadiva (aunque dudando, por los casos en que el ejecutor puede aceptar la dadiva sin asumir el compromiso). Y, en todo caso, la relacion de supues tos no pretende, segun sefiala la propia VALDAGUA, ser exhaustiva. Todo esto supondrfa, en mi opinion, que un sujeto, con ponerse al servicio o someterse a la decision de otro, si este se lo pide o lo acepta, se convierte en autor mediato, olvidando asf que la libertad del que va a actuar p erdura hasta el ultimo momento, por mucho que haya declarado su subordinacion (salvo situaciones patologicas, en que se convierte en absolutamente literal el dicho "tus deseos son ordenes para mf) . Cree VALDAGUA que, por el contrario, no hay autorfa mediata, sino instigacion, cuando el suj eto d e atras se limita a provocar la resolucion d el delante por incitacion ("matalo") o consejo ("debes m atarlo si no quieres que testimonie contra ti y te haga pasar el resto de tu vida en la carcel") o cualquier otra forma ("deberfas avergonzarte de dejar con vida a ese hombre que mancho publicamente tu honra") de la que no resulte expresa o concluyentemente que
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el ejecutor se compromete a no ejecutar el hecho si el de atras cambia de opinion. En mi opinion, vemos nuevamente que todo sigue en manos del sujeto de delante, quien, si sigue "solo" sera inductor, mientras que, si dice "vale, salvo que me digas lo contrario", sera autor mediato. Aunque pueda parecer verdad que, por voluntad del de delante, en los casos en que acepta la eventual "marcha atras" del sujeto de detras, aqwยงl pone el hecho, como sostiene VALDAGUA, en manos de este, en realidad lo unico que hace es ponerlo "en principio", pues no se establece ningun obstaculo para que, en cualquier momento, el de delante sea el que decida no obedecer en ningun sentido (en el de la orden, en el de la contraorden o en ninguno de los dos). Esto es, la voluntad y el dominio (positivo del hecho) se mantienen en manos del ejecutor hasta el ultimo momento. Lo unico que hace la subordinacion, en principio, de este a la de aquel es resaltar la importancia de este, de modo que, de no ser un inductor, habria que calificarlo de cooperador esencial (en la fase previa a la ejecucion), de cooperador necesario en el Derecho espafiol (lo que normalmente no sera preciso, por tratarse ya de un inductor). Sefiala por fin VALDAGUA que la diferencia de trato de ambos supuesto ya fue defendida hace tiempo por PuPPE, a quien se adhirio posteriormente JAKOBS, solo que en otro sentido: solo en los casos de subordinacion del ejecutor hay instigaci6n, induccion, perteneciendo los demas al ambito de la complicidad. Con razon desestima VALDAGUA esta apreciacion, aduciendo que los preceptos del Derecho penal portugues y aleman sabre la induccion no mencionan para nada esa subordinacion. Lo mismo sucede en el Derecho penal espafiol, aunque en algunos casos, cuando la induccion no sea a las claras, en mi opinion ya no seria "directa" como pide el art. 28, segunda parte, a) CP espafiol y solo podra tener cabida en alguna de las formas de cooperacion o complicidad (necesaria ono), en este caso psiquica, que acoge el CP espafiol, dependiendo el caracter necesario de la esencialidad de la aportacion para la empresa delictiva (o, en su caso, como uno de los aetas preparatorios excepcionalmente sancionados para algunos delitos). De todas formas, las diferencias podrian ser tenidas en cuenta, si procede, en el marco de la determinacion de la pena, sin necesidad de llegar a los extremos de PuPPE o JAKOBS y menos aun a los de VALDAGUA. A la critica, que VALDAGUA anticipa, de que la realizacion del hecho sigue dependiendo de la voluntad del ejecutor, contesta la autora portuguesa que de esa voluntad depende tomar o no la decision delictiva (y por eso el ejecutor es tambien autor), pero ya no depende de el exclusivamente mantener o no esa resolucion, especialmente en el momento decisivo de la ejecucion. En mi opinion, ello significa que el otro "puede" influir mas, pero no que el ejecutor no mantenga su capacidad de decidir hasta el final. A ello opone VALDAGUA si el ejecutor, en el momento de la acci6n, actua por motivos distintos a los que le proporciono el sujeto de atras, ya se trata de otra resolucion criminal (tras haber abandonado
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quiza la inicial). Pero yo considero que esto s6lo prueba (cuando conste) que la inducci6n ha sido ineficaz (como puede serlo en otros casos), con las consecuencias que se anuden a ello, pero sin tener nada que ver con el dominio del hecho o la autoria. Y, en todo caso, puede que sea verdad, como sefiala VALDAGUA, que el caracter voluntario de la subordinaci6n no excluye que el agente inmediato quede vinculado al mediato en lo que respecta a la posibilidad o imposibilidad de mantenimiento de la resoluci6n criminal inicial, pero, desde luego, no lo presupone ni lo determina necesariamente, lo que seria condici6n para que de verdad el hecho quedara en las manos del sujeto de atras. Preve eventualmente VALDAGUA el traspaso a su propia tesis de la critica que STEIN y RoxrN dirigian a la posici6n de PurrE o JAKOBS, consistente en que dejan en la complicidad (psiquica) precisamente los casos mas peligrosos, aquellos en que el incitador normalmente no puede detener el curso de los acontecimientos despues de haber desencadenado la resoluci6n criminal del agente inmediato. La critica no alcanzaria a su propia tesis, pues, como el mismo RoxrN indica como presupuesto metodol6gico, la figura central, el autor, no es necesariamente el agente con un comportamiento mas peligroso (aunque creo que, a menudo, se transmite esta imagen). Y cree que la definici6n del art. 26 CP portugues ("ejecutar el hecho ... por medio de otro") hace aparecer como figura central al sujeto de atras (me pregunto: LY tambien al de delante?, pues se le califica igualmente como autor), siempre que - y s6lo cuando - el actuante inmediato se subordina a la decision de aquel involuntariamente (debido a coacci6n o error) o voluntariamente (en los casos propuestos por VALDAGuA). Al respecto procede realizar al menos dos observaciones: una relacionada con el Derecho positivo espafiol, pues el art. 28, primera parte, CP espafiol pi de que el sujeto realice el hecho a traves de otro "del que se sirve(n) como instrumento" y precisamente la idea de instrumentalizaci6n no aparece demasiado clara en los supuestos de subordinaci6n voluntaria. Y, aqui, la segunda observaci6n, de caracter mas general, es que en los supuestos que VALDAGUA denomina de subordinaci6n involuntaria (coacci6n, error) precisamente no es el agente inmediato el que se subordina al de atras, sino este el que le subordina (crea o aprovecha sus deficits) tomando asi las riendas de la situaci6n, por mucho que esta no escape del todo de las manos del agente inmediato (en los casos de autor tras el autor - responsable - existiran siempre deficits en el de delante respecto del de detras: error de tipo - cuando se castigue la imprudencia - o de prohibici6n vencible basicamente, aunque quiza no s6lo). La voluntariedad de la subordinaci6n, salvo que vaya acompafiada de un procedimiento asegurativo (por ejemplo, el sujeto se droga o se hace hipnotizar para obedecer), en cuyo caso crea ya un deficit en su persona, impide precisamente el paso del sujeto de delante y del hecho a las manos del instigador. Por fin, se plantea VALDAGUA otra posible critica a su tesis: que conduce a una ampliaci6n excesiva de la autoria mediata. Cree que la objeci6n no rige
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respecto de los casos en que el sujeto de atras seria castigado, conforme a la concepcion al uso, con la misma pena como inductor (a lo que ya cabria preguntar: Lno habiamos quedado en que el problema no se reducia al quantum de pena?) . Solo seria relevante en los casos de actuacion en cadena, pues esta no es, segun ella, punible en Derecho portugues, pero ello no seria un defecto, sino una ventaja de su tesis, que permitiria castigar (al contrario que la tesis de la induccion) lo que debe ser castigado. No puedo pronunciarme con fundamento solido sobre la punibilidad de la induccion en cadena en el Derecho portugues, si bien debo dejar constancia que la tesis de la impunidad sostenida por VALDAGUA no es, por lo que alcanzo aver, una doctrina unanime en Portugal. En el Derecho espanot creo que, aun cuando no se admitiera el castigo como induccion de la induccion en cadena, quedaria abierta la posibilidad de calificar de cooperador o complice (necesario o no) en el hecho principal al instigador en cadena y, como la subordinacion voluntaria del sujeto de delante ciertamente puede dotar de esencialidad a la contribucion del de detras, la calificacion procedente en Derecho espanol sera seguramente (de no admitirse la de inductor) la de cooperador necesario (castigado con la misma pena que el autor). Es decir que, como factor de cobertura de lagunas de punibilidad (por cierto, una funcion que la autoria mediata cumplia en sus origenes), la calificacion que propugna VALDAGUA no seria necesaria en Derecho espanol y, en todo caso, creo que forzaria el concepto de autor en virtud de consideraciones de magnitud de pena. Tambien podra tener relevancia la propuesta de VALDAGUA, ÂŁrente a la opinion mayoritaria, en los supuestos en que el agente inmediato no llegue a ejecutar, siquiera parcialmente, el hecho, pues, en Derecho portugues, la induccion intentada es impune, mientras que podria propugnarse ya el castigo por una tentativa de autoria m ediata, aunque ello solo, como con razon senala VALDAGUA, si se defiende una tesis acerca del comienzo de la tentativa del autor media to que lo situe, por regla general, antes del comienzo de la ejecucion por el inmediato, lo que, en su contenido esencial, le parece a VALDAGUA rechazable. Y VALDAGUA acaba reflexionando que precisamente en los casos que ella caracteriza de autoria mediata por subordinacion voluntaria del ejecutor, la impunidad de la tentativa del sujeto de atras constituye una laguna de punicion, sobre todo en los supuestos de pacto y orden criminal, pero tambien en los demas. Aqui habria que observar (hacienda con ello notar que, por lo que parece, el Derecho penal espanol podria dar respuesta a esta supuesta deficiencia del portugues sin necesidad de adoptar la posicion de VALDAGuA ) que no esta claro que en el Derecho penal espanol no se castigue la tentativa de induccion y, sobre todo, la induccion frustrada (como acto preparatorio punible, en concreto y fundamentalmente, proposicion) en los delitos en principio mas graves (aquellos en que el CP preve expresamente el castigo de la proposicion), con
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algunas precisiones que no es posible realizar aqui y que, en buena medida, tienen que ver con la advertencia de VALDAGUA de que su propuesta no lleva en todo caso a una punicion injustificada de toda tentativa de induccion, incluso cuando esta condenada manifiestamente al fracaso (por ejemplo, pedir por la calle a un desconocido que mate a tal o cual politico u ofrecer a una persona que acab a de ser presentada pagarle una comida si fa lsifica un documento), pues, en estos casos, la delimitacion del ambito de punicion del agente mediato discurrira, en el Derecho penal portugues, conforme a lo dispuesto en el n째 3 del art. 23 CP, valido tanto para el autor inmediato como para el mediato. Pero, en mi opinion, con todo ello, VALDAGUA habra convencido, a lo sumo, de que su tesis no necesariamente lleva a una mayor punicion que la mayoritaria de la induccion o incluso de que puede cubrir algunas lagunas de punicion a que esta conduce, pero no explica que su postura no desemboque en una extension excesiva de la autoria mediata, pues la calificacion de un sujeto como autor o participe no es solo una cuestion de quantum de pena ni la autoria mediata debe ser concebida como un expediente para cubrir supuestas lagunas de punicion (que a veces no se dan siquiera, al menos en el Derecho espafiol) . No obstante la novedad de la propuesta y el innegable esfuerzo fundamentador de su autora (brillante especialista por lo demas en temas de autoria) merecen sin duda una discusion a fondo en el futuro.
X. Algunas reflexiones sobre la autoria y la participaci6n en la "delincuencia empresarial"
Hemos visto hasta aqui mi opinion general sobre las diversas posiciones que se sustentan en tomo a la autoria (y la participacion) en la delincuencia organizada y en organizaciones. Como se ve, el debate ha estado muy marcado por la propuesta de RoxrN de la autoria mediata en aparatos organizados de poder, que el propio autor aleman considera solo valida para los aparatos organizados criminales y no para la criminalidad que aprovech a estructuras organizativas en principio licitas, como las empresas, aunque esta opinion no es compartida por div ersos autores. Pues bien, la autoria y la p articipacion en el seno de empresas (con principios como los de jerarquia, division d el trabajo, etc.) plantea multiples problemas que aqui no puedo abordar d e m anera especifica. Sin embargo, no quiero terminar el trabajo sin exponer algunas reflexiones generales al respecto, ad virtiendo que lo que se dice a continuacion simplifica los fenomenos y las soluciones refiriendose solo a la autoria y la participacion y dejando de lado, conscientemente, cuestiones tan importantes para la atribucion de responsabilidad en esas organizaciones como es, por ejemplo y especialm ente, la omision.
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En el ambito de la "delincuencia empresarial", en raras ocasiones podremos aplicar la autoria mediata en que se instrumentaliza a otro mediante coaccion o procedimientos similares, salvo excepciones particulares en que algun empresario, directivo, etc., fuera del desarrollo normal de las relaciones dentro de la empresa, coaccione a algun miembro de la misma a cometer delitos. Parece que tampoco podremos recurrir en este ambito a la fundamentacion de la autoria mediata del sujeto de atras en que otros miembros de la empresa (por ejemplo, trabajadores) obedecen ordenes vinculantes de realizar vertidos contaminantes o fabricar, por ejemplo, productos defectuosos peligrosos para la salud humana. Y ello porque la opinion doctrinal y jurisprudencial generalizada (con alguna excepcion) es que la causa de justificacion de la obediencia debida (no recogida expresamente en el CP 1995, pero reconducible al cumplimiento de un deber o a otra causa de justificacion) no es de aplicacion en las relaciones laborales (ni en las familiares); quiza tal postura deba ser matizada, pero no es este ellugar adecuado para hacerlo. Sin embargo, tengase en cuenta que el cumplimiento de estas ordenes o encargos puede estar originado por el temor de un sujeto a perder su trabajo o a sufrir represalias en el mismo (empeoramiento del puesto, de las condiciones de trabajo, del salario, etc.), lo cual, en determinadas circunstancias, podria fundamentar la autoria mediata del sujeto de atras, si se cumple el resto de los requisitos tipicos (objetivos y subjetivos). Todo ello sin entrar a analizar otros posibles mecanismos psicologicos en los integrantes de estas organizaciones complejas que, en su caso, pudieran influir en la capacidad de motivacion o inhibicion de los mismos (estos mecanismos resultan muy interesantes, sobre todo en algunas organizaciones que basan su eficacia en la creacion de un sentimiento profunda de fidelidad a la empresa por parte de los empleados, y utilizan tecnicas psicologicas, a veces cuestionables, para conseguirlo). En cuanto a la autoria mediata por provocacion o aprovechamiento de un error, al margen de los casos seguramente excepcionales de engafi.o puro y simple de uno o varios miembros de la empresa por otros, es posible que la misma pueda tener lugar en bastantes supuestos, dado que es facil pensar que algunos de los miembros que ocupan la parte mas elevada (al menos en la direccion tecnica) de la piramide empresarial tendran a menudo como minima una mas completa percepcion de la real situacion factica que algunos otros, como los operarios, que puede que se limiten a abrir una compuerta, sin saber que lo que sale por ella es un vertido toxico, o a fabricar una pieza unos o a ensamblarla otros, pieza cuya peligrosidad solo se advierte teniendo una vision sobre el conjunto del proceso productivo. Cabe desde que esos trabajadores actuen sin dolo ni imprudencia, hasta que lo hagan imprudentemente (inconsciente o conscientemente) o incluso que lo hagan con dolo, pero que este por ejemplo no abarque la magnitud real de la catastrofe ecologica que puede producirse o del peligro para la salud humana que implica el producto
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defectuoso (error sobre el significado concreto de la acci6n), situaciones todas que podrfan implicar una instrumentalizaci6n de estos trabajadores por los sujetos de atras, que, de cumplir el resto de los requisitos tlpicos, serfan autores mediatos de los concretos delitos, al margen de que los propios trabajadores pudieran en ciertos casos responder por delitos dolosos o imprudentes (supuestos de autor tras el autor). Tampoco cabe descartar la creaci6n o aprovechamiento por parte de los sujetos de atras de errores de prohibici6n en los de delante. Mas difkil me parece construir supuestos de autorfa mediata de los sujetos de atras, si los de delante son autores libres, responsables y dolosos, con plena vision de la situaci6n factica (y jurfdica); estos casos son de todas formas menos problematicos, pues en ellos sera posible con frecuencia el castigo de los sujetos de atras coma inductores o cooperadores en los delitos que los de delante cometen como autores (siempre, claro esta, que no exista alguna dificultad en el tipo de que se trate - por ejemplo, que estemos ante un delito especial- para que estos ultimos puedan ser autores responsables del mismo - por ejemplo no podran serlo si en ellos no concurre la cualificaci6n exigida por ese delito especial -) . Naturalmente, serfa seguramente mas facil admitir la autorfa mediata de algunos sujetos de detras incluso en algunos de estos supuestos, con la fundamentaci6n de la fungibilidad del "instrumento", pues se podrfa trasladar, quiza con algunas modificaciones, la construcci6n de RoxiN de la autorfa mediata por utilizaci6n de un aparato organizado de poder a la estructura empresarial; pero ya hemos visto que, aun con dudas, estimo insuficiente esa construcci6n para sustentar la autorfa mediata de quien da 6rdenes o instrucciones en la cadena. Por fin, en estos ultimos casos podrfa encontrar aplicaci6n la propuesta realizada en Espafia por MIR Pmc de utilizar la autorfa mediata como traducci6n de la idea de los distintos ambitos de competencia en las organizaciones complejas, aplicando esa figura para caracterizar al superior incluso cuando el subalterno o subordinado actue sin error; para la cuesti6n, mas discutible segun MIR, de si y c6mo debe responder penalmente este subalterno que actua sin error (y, anado yo, del que en principio se podrfa decir que es autor inmediato), MIR pretende distinguir (aunque sefiala que debe profundizarse en el estudio de la posibilidad de la distinci6n) segun la clase de delito de que se trate : en determinados delitos, como los dolosos contra la vida u otros bienes jurfdicos altamente personales, toda intervenci6n serfa relevante y por tanto el subalterno deberfa responder penalmente (aunque no sefiala expresamente MlR si como autor inmediato - produciendose entonces un supuesto de autor tras el autor- o como partkipe); sin embargo, en otros delitos, como los delitos contra el honor o las falsedades documentales, pero tambien en la mayorfa de los delitos que se producen en el ambito de la criminalidad econ6mica, la realizaci6n personal en la ultima fase no tendrfa relevancia y permitirfa castigar
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al superior como autor mediato y, al menos en algunos casos (esto no lo deja del todo claro MIR), relevar de pena al (autor inmediato) inferior; a esta ultima categoria de delitos la caracteriza Mm como opuestos a los de propia mano y yo creo que, al menos en parte, podria relacionarse con los que RoxiN llama delitos de infracccion de deber (Pflichtdelikte), si bien la categoria que MIR propane se extiende a otros ambitos distintos de los la infraccion de deberes extrapenales a que aluden RoxiN y sus seguidores (por tanto la propuesta por MIR parece una categoria mas amplia). La propuesta de MIR me parece interesante, pero, si bien no es este el lugar para valorarla en profundidad ni seguramente esta lo suficientemente desarrollada por su autor para poder hacerlo, creo que puede someterse a criticas similares a las que se oponen a la pretension de validez generalizada y de lege lata de la idea de los delitos de infraccion de deber; ademas, aun pudiendo comprender (y compartir, al menos, de lege ferenda) la idea de MIR de que lo relevante en determinados delitos es algo muy distinto (y por concretar, por cierto) de la realizacion de propia mano, y de que por tanto el verdadero autor es el superior (autor al que ni siquiera seria necesario llamar autor mediato probablemente, en mi opinion), pienso sin embargo que lo anterior no excluiria la responsabilidad del ejecutor de propia mano al menos como participe del hecho injusto del superior (siempre y cuando en el inferior se dieran los demas requisitos de la responsabilidad penal). En cualquier caso, en el ambito de la delincuencia en estas organizaciones complejas, debe huirse tanto del automatismo de considerar que autor solo puede ser el ultimo eslabon de la cadena, el operario que actua inmediatamente (lo cual contradice la propia configuracion y principios que rigen esas organizaciones, y frecuentemente aparece como injusto), como del automatismo de creer que no lo sera nunca y que la responsabilidad (ademas a titulo de autoria siempre) solo haya de recaer en los directores de la organizacion. Precisamente la complejidad de estas estructuras (que, por cierto, no se configuran exclusivamente por "los de arriba y los de debajo", sino que en ellas se encuentran multitud de situaciones y posiciones intermedias) obliga a un analisis pormenorizado de los repartos de responsabilidad (aqui me he referido solo a algunos problemas de autoria), aplicando las categorias dogmaticas elaboradas y teniendo siempre en cuenta las peculiaridades de estas organizaciones. Asi, por ejemplo, su estructura y principios rectores podrian hacer que la existencia de una influencia que no llega a la coaccion o de ordenes no estrictamente vinculantes, que por si sola no fundamenta normalmente una autoria mediata, unida al mejor conocimiento de la situacion por el sujeto de atras (aun sin existir errores de tipo o de prohibicion en el sujeto de delante) e incluso el dato de la fungibilidad de quienes actuan delante, sea capaz de fundamentar la autoria mediata en este ambito. Y no debe olvidarse la idea de la posibilidad de existencia de un "autor tras el autor", y que, quiza, la figura de la coautoria
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(con algunos matices respecto de los casos mas habituales de la misma) o algo que se le parece mucho (que a veces estaria entre el "autor tras el autor" y la coautoria "clasica") puede tambien ser aqecuada para la calificaci6n de fen6menos de codelincuencia en este ambito. En resumen, ante la complejidad del fen6meno, creo que hay que realizar un especial esfuerzo de argumentaci6n en la aplicaci6n de las categorias dogmaticas atendiendo a la configuraci6n de los distintos supuestos y no caer en la tentaci6n de soluciones aparentemente faciles, pero poco precisas y fundamentadas y, a menudo, tambien solo aparentemente justas (similar FrcuEIREDO DIAS).
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VISAO CRITICA DO SISTEMA PENAL NOS CRIMES ECONOMICOS NO BRASIL
Ricardo Breier
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Primeiramente gostaria de agradecer o convite da professora e amiga Maria Concei<;:ao Valdagua para participar deste evento em Direito penal, a nfvel internacional, onde estao reunidos professores de grande conhecimento h~cnico a respeito de nossa Ciencia. Debater temas sobre o futuro do Direito penal e uma missao diffcil, pois cada cultura nacional tern como objetivo desenvolver seu criterio valorativo dentro de seu proprio sistema s6cio-polftico e economico, o qual em muitos casos possui urn desnfvel na estrutura funcionalsish~mica (diversas classes sociais), o que dificulta urn trabalho homogeneo de estrutura cientffica de nossa ciencia, principalmente em meu pafs. A unanimidade que posso identificar nesse momento e o esfor<;:o da Professora Maria da Concei<;:ao em organizar o presente evento, como contribui<;:ao a sociedade academica e profissional de seu pafs de forma impecavel e competente. Na p essoa da professora, mestre e amiga, cumprimento a todos os colegas de jornada deste dia, na qual ficam consignados meus profundos votos de admira<;:ao e respeito por seus conhecimentos cientfficos. A plateia tenho urn recado especial: Seguindo as palavras do professor e jurista argentino Zaffaroni, os eventos e seminarios sobre nossa Ciencia s6 tern imporH\.ncia quando a comunidade jurfdica participa ativamente, principalmente nos assuntos de diffcil abordagem e entendimento. Os senhores da plateia, estudantes ou profissionais tenham o meu reconhecimento de que suas participa<;:6es tern uma fundamental importancia para o crescimento e desenvolvimento dos temas aqui tratados. Minha contribui<;:ao e procurar demonstrar os problemas que o sistema penal a que perten<;:o vem enfrentando no tocante aos processos de causalidade e imputa<;:ao subjetiva nos delitos s6cios economicos. ' Conferencia proferida em Lisboa, na Universidade Lusiada em Outubro de 2004. 1 Professor de Direito Penal. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Porto Alegre (Brasil).
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Para tanto, delimitarei minha tematica em tres seguimentos distintos: Primeiro: Questoes atuais do Direito. Penal Economico. A evolw;ao de qualquer ciencia esta voltada, em geral, a mecanismos sociais determinados pelo desenvolvimento de cada sistema. A economia, a politica e a estrutura das institui<;:6es responsaveis pela administra<;:ao do Estado sao a exterioriza<;:ao etica e tecnica dos institutos responsaveis pela conserva<;:ao de urn sistema juridico justo, imparcial e principalmente operante. As sociedades modernas, atraves do acrescimo de suas tecnologias, originam varios fenomenos que diversificam o atuar de seus agentes em diversos seguimentos. Nao menos surpreendente vem a ser as consequencias de tal muta<;:ao social. Na materia referente a nossa Ciencia, esse fenomeno tambem produz efeitos nos comportamentos delitivos (crimes economicos, geneticos e de informatica). Segundo Klaus Tiedemann (Poder economico y delito - Introducci6n al Derecho penal econ6mico y de la empresa. p. 121 e ss), os avan9os sociais e
tecnol6gicos trazem paralelamente consigo, formas de criminalidades especificas que abarcam consequencias em varios setores publicos e privados, principalmente na materia s6cio-econ6mica (jraudes bancarias, fraudes par meio de empresas, delitos fiscais e contra o meio ambiente). A questao, a saber, vem a ser: nossa Dogmatica penal esta permanentemente atualizada para identificar e reprimir todas essas condutas ditas modernas? Garcia-Pablos de Molina ja interpretava e descrevia muito hem tal questionamento, nem sempre os avan9os sociais estiio inseridos no contexto dos criterios normativos para a especie (in Estudios penales, 1984). As sociedades p6s-industriais estao a determinar urn crescimento economico-financeiro, o que em contra partida, esta aumentando os indices de comportamentos delitivos corn caracteristicas hem especificas, distantes do instrumental normativo tradicional do Direito penal. Qual o papel que o Direito penal tern a desempenhar para procurar estar o mais atualizado possivel, frente a evidente escala no mundo dos neg6cios que abrange as complexas rela<;:6es do mercado capitalista? A resposta parece que estabelece urn elo especifico corn o Direito penal Economico, nao como urn modelo cientifico ou academico e sim sob o contexto social, ou seja, o relacionar das questoes emergentes provocados pelos modernos avan<;:os do tecnismo do seculo XXI. A ingerencia do Direito penal Economico ratifica o seu nascimento pelos problemas de interven<;:ao estatal nas atividades humanas de natureza economica, o que Jescheck, situa historicamente ap6s as consequencias da primeira guerra mundial. Tratar neste espa<;:o sobre a tematica intervencionista do Estado e ingressar num mar de correntes ideol6gicas. Essa, por hoje nao e nossa missao. Mas o
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que podemos extrair deste tema vem a ser o modelo e o movimento que delimitam os conceitos legitimados pelo Direito penal economico sobre o que significam determinadas nomenclaturas a respeito do que evidentemente possa ser definido por crime economico, crime de colarinho branco ou entender as formas de manifesta<;ao das opera<;6es de lavagem de dinheiro. Esses conceitos podem estar relacionados num primeiro momento por criterios criminol6gicos, e corn isso me reporto a Sutherland, responsavel pelo estudo dos crimes de colarinho branco em varios paises, 0 que nao deixa de possibilitar de certa forma, urn estudo dogmatico a respeito destas tematicas que envolvem os crime economicos de uma forma ampla (consumidor, fraudes fiscais, meio ambiente, crimes farmacol6gicos e etc.), principalmente na tematica causalidade e imputa<;ao objetiva e subjetiva. Creio que a analise tecnica de como identificar e determinar a responsabilidade criminal de agentes, os quais atraves de seus comportamentos, revelam urn prejuizo perante a economia de determinado Estado (estamos falando de uma macrocriminalidade economica) se faz imperiosa ao ponto de nos defrontarmos corn a velha problematica do Direito penal tradicional: qual o melhor criteria para uma teoria de imputa<;ao penal? Todos sabemos que o imputar determinado comportamento humano e necessaria, o que significa o respeito aos criterios fundamentais que a lei penal determina no sentido de organizar urn ato a forma precisa e concreta da norma penal. 0 dinamismo funcional desta propositura de imputar o atuar humano, vem a ser urn dos pantos de maior conflito ideol6gico de nossa ciencia. As fun<;6es dos preceitos juridicos, expressados pelos modelos de adequa<;ao objetiva iniciam a partida em busca do definir ilicito, como dimensao extensiva do comportamento lesivo ao bem juridico protegido. Sem desconsiderar que as dificuldades de identificar urn atuar tecnologicamente ilicito, onde em muitos casos nao conseguimos identificar as vitimas, mas sabemos que existem, e que sao pulverizadas pela macrocriminalidade, tambem nao diminuem as dificuldades de delimitar a responsabilidade causal dos agentes ativos (s6cios, mandatarios, gerentes e etc.), e que em muitas circunstancias o Estado nao consegue, atraves dos processos legislativos, desenvolver uma competente legisla<;ao penal para a especie. Em muitos casos, o legislador em materia penal flexibiliza formas de puni<;ao que cada vez mais se afastam dos principios garantistas. 0 responsabilizar pela participa<;ao criminal nas modalidades dos crimes economicos se tornou uma missao praticamente mirabolante, onde os institutos da dogmatica penal rompem corn o verdadeiro dogma de nossa ciencia: o responsabilizar de forma clara, exata e precisa. Para concluir nosso primeiro apontamento, as quest6es mais atuais do Direito penal economico estao justamente no adequar da responsabilidade,
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principalmente daqueles que atuam em nome de outrem, bem como no problema comprobat6rio do processo causal, atraves dos fundamentos de uma imputa<;ao subjetiva. Segundo: Do processo causal objetivo nos crimes s6cio-economicos (visao da doutrina brasileira). Seguindo a orienta<;ao do jurista alemao Hans-Joachim Rudolphi todos os delitos pressup6e urn resultado antijurfdico e estao estritamente delimitados a partir de uma conduta tfpica. 0 fundamento para imputar o resultado ao seu autor esta determinado pela dogmatica a partir de uma rela<;ao de causalidade entre a conduta tfpica e o resultado antijurfdico. Entao, s6 poderemos considerar a produ<;ao de urn resultado como obra do homem quando o mesmo, pela pratica de uma conduta dolosa ou culposa de alguma forma concorreu para o evento. Sabemos que somente o fundamento da causalidade nao basta para determinar o injusto penal, mas somado a este temos obrigatoriamente que satisfazer as exigencias normativas que resultam do respectivo tipo penal e a teoria geral do delito. Numa retrospectiva doutrinal, podemos afirmar corn certeza que a causalidade nao e problema para alguns tipos penais (crimes contra a vida, les6es corporais), o que nao desmerece a importancia do tema para varios casos de nossa disciplina. Coma Welzel afirmava, a causalidade e urn processo cego, uma cadeia de causas e efeitos, a finalidade e vidente. Possui razao parte dessa afirmativa do nobre jurista alemao, mas nao podemos deixar de considerar que tambem a causalidade e algo real, uma categoria do ser, e nao do pensamento. Segundo Zaffaroni, a causalidade ffsica e uma situa<;ao da propria conduta humana, cabendo apenas ao tipo penal dar-lhe ou retirar-lhe sua relevancia. A doutrina ao longo dos tempos nunca foi unanime na materia. Para alguns autores, o resultado e a causalidade sao processos a nfvel pre-jurfdico Welzel. Para outros ambos devem ser considerados na teoria do tipo Maurach, Wessels, Zaffaroni. Seja qual for a teoria que procure definir o processo causal (seja a teoria da equivalencia das condi<;6es na concep<;ao filos6fica de Stuart Mill e direcionada por Glaser - adotada pelo C6digo penal Brasileiro, em seu artigo 13, - a teoria da causalidade adequada atribufda a von Bar, Massari corn algumas varia<;6es atribufdas por Antolisei e Grispigni e por fim a teoria da relevancia causal, como representante Mezger) nao encontramos uma forma concisa (Elena Larrauri) tal contata<;ao resulta na proje<;ao da teoria da imputa<;ao objetiva, coma resposta aos obstaculos que as teorias causais enfrentam para determinados casos. Todavia, seu desenvolvimento a levou a caminhar em varias dire<;6es, de sorte que nao podemos falar em uma tinica teoria da imputa<;ao objetiva.
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0 criar urn legislativo penal tern como primeiro ponto selecionar condutas humanas que lesam ou expoe objetos valorados como essenciais a convivencia humana, em determinado momento hist6rico social. Tanto a doutrina quanta a jurisprudencia analisam quais sao as circunstancias que determinam 0 raciocinio de qual comportamento humano parte de uma compreensao punivel para uma compreensao ilicita. Sabemos que o conhecer dos elementos subjetivos ou momentos subjetivos dos agentes, fazem presentes na teoria do fato punivel. 0 entender destes elementos tern como confirmar nao apenas a ilicitude do atuar humano, como tambem os modelos especificos do comportamento humano. A imputa<;ao subjetiva na sua conceitua<;ao e ampla e corn varias denomina<;oes por parte da doutrina (Gimbernat Ordeig, Jescheck - denominam elementos subjetivos do tipo Mui1oz Conde 2 elementos subjetivos do tipo de injusto doloso - Mir Puig, Mezger, Gomez Benitez - elementos subjetivos do injusto e finalmente Welzel como elementos subjetivos do autor da a<;ao). Os elementos subjetivos do injusto sao considerados como fatores do campo psiquico do agente, que revela a manifesta<;ao das inten<;oes ou tendencias (fim de agir) o qual fundamentam urn juizo de valora<;ao do comportamento ilicito. Os elementos subjetivos do injusto cumprem tambem uma fun<;ao orientadora da atividade legislativa considerando-se a realidade empirica das manifesta<;oes das velhas e das novas formas da criminalidade, propiciando urn melhor conhecimento das inter-rela<;6es, que servem de substrata a valoriza<;ao das normas penais. Tern especial relevancia os elementos subjetivos do injusto, nos amplos e dispares supostos de a<;ao tipica, na qual a resolu<;ao concreta da conduta criminal por parte de urn autor provem de atitudes passionais e de impulsos motivacionais do sujeito agente. Os estados animicos do autor devem assumir singular transcendencia no sistema penat contribuindo para a configura<;ao de tipos delitivos, que descrevem atua<;oes humanas que nao sao acromaticas nem despersonalizadas em sua manifesta<;ao criminol6gica na vida real. Sobre esta base realista, os elementos subjetivos servem, ainda, para orientar a aplica<;ao da norma penal de uma maneira mais humana, atenta a considera<;ao da personalidade de autor e ao proprio tempo mais eficaz. Entende-se,portanto, que a luz da compreensao dos atos do homem e suas motiva<;oes podem ser aplicados tratamentos executivos adequados aos fins das san<;oes juridico-penais Em ordem a punibilidade prevista nos tipos legais para cada comportamento delitivo, os elementos subjetivos do injusto representam a oposi<;ao da responsabilidade penal objetiva, sempre repudiada, mas nao absolutamente erradicada das legisla<;oes criminais. A proclama<;ao enfatica do prindpio de imputa<;ao subjetiva, como criteria reitor da legisla<;ao punitiva, recolhida na Parte geral dos C6digos penais, as vezes, e mais uma declara<;ao programatica do que uma realidade positiva.
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Os tipos de delito que qualificam intensamente uma conduta delitiva pela mera gravidade da prodw;ao criam uma antinomia legislativa. Dificilmente sao compativeis corn as exigencias do principio de imputa~ao subjetiva, e quando menos, criam a duvida interpretativa e abrem urn perigoso leito ao arbftrio judicial. Em outras ocasioes, a complica~ao da pena nao atenta contra as exigencias de culpabilidade, mas infringe o principio de proporcionalidade, que e a mais fiel expressao em materia penal. Na esfera dos crimes econ6micos o problema da imputa~ao subjetiva e vasto, gerando enormes dificuldades, principalmente nas figuras que envolvem empresas como sujeito ativo de infra~6es tanto administrativas quanta penais. Por principios constitucionais a imputa~ao subj etiva nao pode se deslocar do campo fisico e psicol6gico de seu autor, onde estao unidos por la~os de vontade ilicita. Sabemos que numa visao ampla das legisla ~oes que comportam nossa materia, em grande parte maci~a, preve a modalidade dolosa (sejam nas varias classes da estrutura tipica do Direito penal Econ6mico - Delitos de domfnio, de infra~ao de clever ou de omissao - Silvina Bacigalupo). Por conseguinte, raramente o legislador faz referenda a modalidade de comportamento culposo. Tal realidade tipica vem sendo discutida pela doutrina especializada em materia criminal econ6mica. Segundo Tiedemann, as renuncias de elementos subjetivos nas figuras tipicas, simplificam as quest6es de determinados casos que envolvem provas em materia processual penal, o que para o autor tern carater primordial na esfera de Direito penal econ6mico. Numa forma de sedimentar seu pensamento Tiedemann cita sistemas legislativos comparados (Fran~a, Italia e Espanha, e incluo o Brasil) onde determinados preceitos tern inserido elementos subjetivos que provocam enormes dificuldades para a comprova~ao tipifica subjetiva. Em situa~6es especificas o julgador tera que analisar o grau dos animos do agente infrator, ou seja, se o mesmo atraves de seu comportamento realizou a conduta descrita no tipo penal. Caso nao consiga identificar tal animo subjetivo, isso leva a impunidade do agente. Nao fosse suficiente essa problematica, temos ainda em muitos casos a substitui~ao de elementos subjetivos do injusto penal econ6mico por elementos que expressam figuras objetivas de perigo concreto ou abstrato, como criteria de identificar (objetivo) futuras lesividades aos bens jurfdicos (ex. casos de altera~ao de pre~os, omiss6es de declara~ao de tributos, falsidade documental societaria, onde se abandona a ideia de constru~ao tipica estritamente subjetiva), o que segundo Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, lesam o principio da proporcionalidade exigido como fundamento em muitas cartas Constitucionais. Por conseguinte outra parte da doutrina julga necessaria a demonstra~ao na imputa~ao subjetiva dos elementos animicos para fins de comprova~ao do
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injusto, sob pena de absolver o agente (ex. casos de crimes tributarios onde a reda<;:ao nao se encontra tacitamente a presen<;:a do elemento subjetivo, mas que no corpo das decis6es o magistrado tern considerado este criteria como fundamento da senten<;:a condenat6ria). Outras quest6es pontuais vem sendo discutidas pela doutrina referente aos aspectos subjetivos do comportamento humano em materia penal econ6mica. Por quest6es de tempo nao temos condi<;:6es de aprofunda-las, vista que pretendo abordar quest6es dos crimes s6cios economicos na doutrina brasileira. Temas como os problemas das tipifica<;:6es de delitos s6cio-econ6micos imprudentes, onde ainda parte da doutrina tern lutado para nao serem tipificados, vem ocasionando uma repercussao pratica, principalmente quando se trata da tormentosa materia de erro penal. Tiedemann, ve a possibilidade de incriminar condutas imprudentes pela premissa do especial dever de comportamento, onde determinaria a caracteriza<;:ao de uma negligencia por parte do autor, o que ja esta tipificado no C6digo Penal alemao (fraude de subven<;:6es imprudentes - ex. a ausencia de clever de diligencia, caracterizada no tipo, ocasionaria a quebra em determinados casos a prote<;:ao de credito, trazendo enormes consequencias para a manuten<;:ao da vida economica, o que sob sua 6tica legitimaria a incrimina<;:ao de condutas imprudentes), caso contrario segundo o autor, em respeito ao principio da legalidade, nao ha por parte do legislador a legitimidade da incrimina<;:ao de delitos dessa natureza. Neste campo quest6es que envolvem o dolo eventual e a culpa consciente em muitos casos carecem de certeza no enquadrar subjetivo em varios tipos penais de natureza economica (crimes praticados por particulares contra a Ordem Tributaria). Sem entrar em quest6es profundas , saliento o problema que a doutrina enfrenta nas quest6es que envolvem delitos de perigo, vista a abundancia de tipifica<;:6es dessa natureza, e que vem a ser a possibilidade de enquadrar subjetivamente urn comportamento humano a titulo de dolo eventual. A doutrina entende ser aceitavel a possibilidade do dolo eventual em crimes de perigo concreto e nao abstrato, pois no primeiro caso teremos a possibilidade acerca da possibilidade real de urn resultado de perigo. Em fim, sao algumas quest6es que a doutrina tern enfrentado ao longo desses anos de estudos sabre a imputa<;:ao subjetiva em materia de crimes economicos, onde em muitos casos estamos caminhando em dire<;:ao a uma unanimidade, e, em outros, estamos distantes. Mas o importante neste contexto academico, e que devemos sempre identificar a correta tipifica<;:ao subjetiva, para nao cometermos injustos legais ao cidadao acusado de infringir a legisla<;:ao criminal economica.
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Terceiro: Aspectos da legisla<;ao penal economica brasileira.
Em meu pais nao e diferente a problematica de temas voltados a criminalidade economica propriamente dita. Em alguns seguimentos estamos muito atrasados na orienta<;ao doutrinal estrangeira. Utilizam-se ainda criterios do Direito penal chissico para resolver quest6es criminais. Temos muitas legisla<;6es que tratam do tema, (crimes de sonega<;ao, tribuhirio, financeiro, consumidor, societarios, previdenciarios, ambientais e etc.). Em varios casos temos problemas nao s6 de ordem de Direito material como formal. Nao menos diverso do que ja exposto acima, a legisla<;ao penal economica brasileira tern por exceH~ncia a tipifica<;ao dolosa como regra geral. Raramente o legislador tipifica uma conduta imprudente. Sendo assim a doutrina pouco explora as quest6es dogmaticas a respeito da causalidade e imputa<;ao subjetiva nos casos de comportamentos imprudentes. Isso dificulta os estudos tecnicos do Direito penal Economico. Alias, essa foi a constata<;ao do curso de especializa<;ao em Direito penal Economico que se realizou, em sua primeira edi<;ao a nivel nacional em minha Universidade. Poucos foram os profissionais nacionais corn que pudemos contar para desenvolver o programa do curso. Os estrangeiros, entre eles o prof. Andrea Castaldo (Italia), Prof. Raul Cervini (uruguai), Prof. Yaccobucci (Argentina) e Polaino Navarrete (Espanha), proporcionaram urn avan<;o em nossos estudos nao s6 te6ricos como praticos. Temas como bem jurfdico, delimita<;ao nos processos criminalizadores, administrativiza<;ao do Direito penal, entre outros, foram o inicio dos problemas que estamos enfrentando em nosso pais. Sem me alongar nessas quest6es escolhi urn tema que tanto a doutrina quanta a jurisprudencia brasileira estao desenvolvendo, 0 que nao tern sido aceito por grande parte dos estudiosos da materia, a chamada acusa<;ao generica nos crimes economicos. Se imputar ao agente tipifica<;ao subjetiva nao e em muitos casos uma tarefa facil, imaginem como prosperar urn processo criminal, onde o 6rgao responsavel pelo procedimento acusat6rio nao individualiza condutas de responsabilidade de administradores de empresa. E isso que estamos vivenciando no Brasil, a denuncia generica. De acordo corn o artigo 41 do C6digo de Processo Penal, determina que a conduta tern que ser individualizada, a denominada participa<;ao subjetiva. Assim, em se tratando de fato ocorrido no ambito de uma empresa de qualquer natureza, mas que esta operando ativamente no sistema economico, devera o 6rgao acusador individualizar a conduta de cada urn dos participantes no ilicito economico identificado, Ha, entretanto, inumeras quest6es divergentes, inclusive nos Tribunais superiores, no sentido de validar a acusa<;ao que nao descreve a conduta indi154
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vidual de cada uma dos participantes no cometimento do ilicito economico. Exemplo: os tipicos casos de crimes contra a Ordem Tributaria do Pais. Os que defendem a validade da denuncia generica (vaga) invocam quest6es de natureza jurisprudencial referente aos crimes de at;6es coletivas, citando como exemplo os casos de crimes contra o patrimonio, assalto, nos quais dispensam a descrit;ao da individualizat;ao das condutas. Por outro lado, aqueles que nao sustentam essa posit;ao, postulam a necessidade de determinar a participat;ao individual de cada agente infrator, como respeito ao prindpio da ampla defesa e do contradit6rio. Sem duvida, admitir que alguem sera ou e acusado pelo simples fato de ser gerente, diretor, ou simplesmente acionista de uma empresa, e admitir nao s6 a responsabilidade de natureza objetiva, como nao respeitar os prindpios da propria teoria do injusto penal (imputa<;ao subjetiva). Incensuravel, portanto, aqueles que pensam como nossos Tribunais em aceitar esse posicionamento afrontador de prindpios consagrados em nossa doutrina (individualizat;ao de comportamento e de acusat;ao). Concluindo: Temos que avant;ar nos estudos deste tipo espedfico de criminalidade, visto que suas formas estao cada vez mais complexas e dinamicas. Os institutos do Direito penal nao mais estao conseguindo prosperar nessa tematica, o que sobrecarrega a missao dos institutos ja institucionalizados como o da causalidade e o da imputa<;ao subjetiva e objetiva. Os criterios doutrinais e jurisprudencias que identificam o homiddio e outros crimes tradicionais, nao podem ser transladados para os crimes s6cioecon6micos. Sem ingressar na seara do Direito Administrativo ou do carater subsidiario do Direito penal como solut;ao a processos descriminalizadores, temos que efetuar dentro do que possufmos, atualmente, criterios claros e precisos de delimita<;ao dos processos de imputa<;ao subjetiva. Entao, nos delitos de mera atividade ou de perigo, ha de se reconhecer e exigir uma adequat;ao ou idoneidade do comportamento como requisito tipico, sob pena da incidencia do fenomeno da atipicidade, e para a sociedade o cruel fenomeno da impunidade.
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SISTEMA DEMOCRATICO Y CONCEPCIONES DEL BIEN JURIDICO
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SISTEMA DEMOCRA TICO Y CONCEPCIONES DEL BIEN JURIDICO* Tomas Vives Anton 1
I. Derecho, moral y bien juridico 1. Introducci6n: bien juridico y moralidad
El concepto de bien juridico es uno de los mas problematicos de la dogmatica penal, pues todo en else discute: desde su condicion intra o extra normativa hasta su virtualidad henneneutica y, sobre todo, su capacidad de servir de limite a los posibles excesos del legislador. Sin embargo, hay una especie de resurgimiento de la idea del bien juridico como delimitador de la diferencia entre derecho y moral, especificamente en el ambito de los delitos sexuales 2 • Frente a esa postura que pudieramos denominar liberal se arguye, no obstante, que todo lo que ha de protegerse necesariamente es la paz social, sin que importe que la inquietud producida por el comportamiento sancionado se halle fundada objetivamente o se base solo en una falta de ilustracion de la sociedad de que se trate 3 • En consecuencia, se afirma que "la configuraci6n del 01·den que ha de proteger el Derecho penal no viene definida par todos los bienes y no siempre solo par bienes. La suma de todos los bienes juridicos no forma «el orden social>>, sino que constituye solo un sector de este, que ademas, solo se puede caracterizar si es que se conocen los limites del orden social. Solo el interes p1iblico en la conservacion de un bien lo convierte en bien juridico, y el interes publico no siempre se refiere solo a la conservacion de bienes" 4 • El filtro por el que necesariamente han de pasar todas las normas penales es, · Confen2ncia proferida em Lisboa, na Universidade Lusiada, em Outubro de 2004 1 Catednitico de Direito Penal na Universidade de Valencia Ex-Vice-Presidente do Tribunal Constitucional. 2 Vid. al respecto, Jage1~ H., Strajgesetzgebung und Rechtsgiiterschutz bei Sittliclzkeitsdelikten, Stuttgart, 1957, pags. 29 y ss .. 3 Jakobs, G., Derecho Penal. Parte General, Madrid, 1995, pag. 55: "una sociedad no ilustrada y un Derecho penal ilustrado", dice este autor, "no son compatibles". 4 Jakobs, G., Der. Pen., cit., pag. 56.
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desde esta perspectiva, el de la dafiosidad social, sin que pueda formularse tampoco un concepto objetivo de lo que es socialmente dafioso 5, con lo cual su determinacion queda librada a las diferentes concepciones de lo bueno, esto es, en definitiva, a la moralidad. Pues bien, frente a esta ultima posicion, me propongo defender la idea de que es no solo posible sino indispensable para todo sistema democnitico la separacion entre Derecho y moral y que esa separacion ha de regir, no solo en el ambito de los comportamientos sexuales, sino tambien, y muy especialmente, en el de los comportamientos politicos: de no aceptarse asf, quedarfan, en mi opinion, anuladas o indebidamente restringidas, las libertades mas basicas, como la de ideologfa o expresion y, finalmente, ilfcitamente constrefiido el derecho al libre desarrollo de la personalidad que constituye el nucleo sin el cual no cabe, en puridad, hablar de sistema democratico. Antes de seguir adelante, debo precisar, sin embargo, que el termino "moral" se utiliza en la formulacion de mi tesis en un sentido mas restringido que el que a veces requiere la palabra en el uso ordinaria - aun academico del lenguaje. El significado que atribuyo a la expresion "moral" viene dado por el que adquiere cuando se habla de una oposicion "legalidad-moralidad", significado que podrfa determinarse negativamente detrayendo de la moralidad, tal y como a menudo se la entiende comunmente, toda referenda al Derecho, positivo o metapositivo . Con otras palabras, en el sentido amplio del termino, la moral incluirfa tanto las condiciones de una convivencia externa racionalmente ordenada cuanto las que definen el ideal de la vida buena, mientras que en el restringido que aquf propongo, la moral se referirfa solo a estas ultimas. For eso, en otro lugar, he hablado de moral-justicia, para referirme al Derecho metapositivo y de moral-virtud para referirme a la realizacion del ideal de la vida buena, esto es, al camino de perfeccion individual o social6 . Si sostengo que la moral, entendida en esta ultima forma, no puede, legitimamente, limitar el derecho al libre desarrollo de la personalidad ni, en consecuencia, la libertad de expresion, que forma parte del "nucleo mas duro" de aquel derecho es, obviamente, porque me refiero a un orden jurfdico inspirado en un cierto tipo de legitimidad, en la legitimidad democratica. Entiendo que esa legitimidad es incompatible con la idea de que el desarrollo de la personalidad pueda resultar constrefiido por opciones morales que no sean las propias; y, si estoy en lo cierto, las Constituciones que apelan al principio democratico y permiten luego que el libre desarrollo de la personalidad, en general, o la libertad de expresion, en particular, resulten limitados por cualesquiera opciones morales mayoritarias, incurren en una contradicci6n practica7 , o sea, en un engafio, en una trampa cuya gravedad es directamente proporcional a la restriccion de la libertad resultante. 5
Jakobs, G., Der. Pen., cit., pag. 58. Fundamentos del Sistema penal, Valencia, 1995, pags .. 7 Vid. al respecto cuanto se dice en Fundamentos del Sistema penal, cit., pags ..
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2. La situaci6n constitucional espafiola
Pese a lo dicho, el articulo 29.2 de la Declaracion Universal de Derechos Humanos dispone que: "En el ejercicio de sus derechos y en el disfrute de sus libertades, toda persona estanl. solamente sujeta a las limitaciones establecidas por la ley con el unico fin de asegurar el reconocimiento y el respeto de los derechos y libertades de los demas, y de satisfacer las justas exigencias de la moral, del orden publico y del bienestar general de una sociedad democratica". Y en parecidos terminos se expresan los artfculos 18.3, 19.3 b), 21 y 22.2 del Pacto Internacional de Derechos Civiles y Pollticos y los articulos 9.2, 10.2 y 11.2 del Convenio Europeo para la Proteccion de los Derechos H umanos y de las Libertades Fundamentales. A tales preceptos se remite la STC 62/ 1982, de 15 de octubre (caso dellibro "A ver"), que se pronuncia sob re el problema que nos ocupa en los terminos que siguen: "Para resolver la primera cuestion enunciada - la moral coma posible limite de la libertad de expresion -, hay que partir del art. 20.4 de la Constitucion que dice asi: ÂŤEstas libertades tienen su limite en el respeto a los derechos contenidos en este titulo, en los preceptos de las leyes que lo desarrollen y, especialmente, en el derecho al honm~ a la intimidad, a la propia imagen y a la proteccion de la juventud y de la infancia>>. De acuerdo con el precepto transcrito, en conexion con el 53.1 de la Constitucion, la Ley puede fijar limites siempre que su contenido respete el contenido esen cial de los derechos y libertades a que se refiere el art. 20. Queda asi planteada la cuestion de determinar si la moralidad publica puede ser un Hmite establecido por el legislador, o si tal limite afectaria al contenido esencial de la libertad de expresion. Problema que puede resolverse facilmente a partir del art. 10.2 de la Constitucion, dado que tanto en la Declaracion Universal de los Derechos Humanos, coma en el Pacto Internacional de los Derechos Civiles y Pollticos hecho en Nueva York el 19 de diciembre de 1966, y en el Convenio d e Roma de 4 de noviembre de 1950, se preve que el legislador puede establecer llmites con el fin de satisfacer las justas exigencias de la moral (art. 29.2 de la Declaracion), para la proteccion de la moral publica [art. 19.3 b) Convenio de Nueva York], para la proteccion de la moral (art. 10 Convenio de Roma) . El principio de interpretacion de conformidad con la Declaracion Universal de Derecho s Humanos y con lo s tratado s y acuerdos internacionales ratificados por Espafia (art. 10.2 de la Constitucion), nos lleva asi a la conclusion de que el concepto de moral puede ser utilizado por el legislador coma Hmite de las libertades y derechos reconocidos en el art. 21 de la Constitucion. En relacion con este punto el recurrente plantea la cu estion de que el Codigo Penal refleja un concepto de moral que es la propia de la religion
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cat6lica, y afirma que la jurisprudencia que interpreta su art. 431 se refiere a esta particular moral con rechazo de toda concepci6n pluralista. Estamos, afiade el actor, en una sociedad aconfesional y pluralista (arts. 16.3 y 1.1 de la Constituci6n) y por ello puede alegarse como vulnerado el art. 27.3 de la Constituci6n, en virtud del cual el libro "A ver" se publica para aquellos padres que deseen que sus hijos reciban la formaci6n religiosa y moral que este de acuerdo con sus propias convicciones. Sin perjuicio de ulteriores precisiones, debe recordarse que, como ha declarado ya este Tribunal en reiteradas ocasiones, las normas preconstitucionales han de interpretarse de conformidad con la Constituci6n, por lo que cualquiera que fuera el concepto de moral que tomara en consideraci6n el legislador anterior, es lo cierto que con posterioridad hay que partir de los principios, valores y derechos consagrados en la misma. Pero dicho lo anterior, es lo cierto, segun hemos visto, que de acuerdo con la Constituci6n, y con la Declaraci6n Universal, acuerdos y tratados ratificados por Espafia, el concepto de moral puede ser utilizado por ellegislador y aplicado por los Tribunales como limite del ejercicio de los derechos fundamentales y libertades publicas, como asi lo ha hecho el legislador postconstitucional al regular en la Ley Organica 7/1980, de 5 de julio, la libertad religiosa (art. 3.1), y sefialar como limite de su ejercicio ÂŤla protecci6n del derecho de los demas al ejercicio de sus libertades y derechos fundamentales, asi como la salvaguardia de la seguridad, de la salud y de la moralidad publica, elementos constitutivos del orden publico protegido por la Ley en el ambito de una sociedad democraticaÂť" [FJ 3 A)]. El fundamento de esa toma de posici6n del Tribunal Constitucional se halla, segun se manifiesta expresamente, en el art. 10.2 de la Constituci6n espafiola a cuyo tenor "las normas relativas a los derechos fundamentales y a las libertades que la Constituci6n reconoce se interpretaran de conformidad con la Declaraci6n Universal de Derechos Humanos y los tratados y acuerdos internacionales sob re las mismas materias ratificados por Espafia". Sin embargo, ese fundamento es discutible, pues el precepto se refiere a las normas relativas a los derechos fundamentales y no a las que configuran sus limites externos (Schranken). En efecto, segun reiteradas declaraciones del T.C., los derechos declarados en los tratados internacionales constituyen un minimo a respetar en la interpretaci6n y aplicaci6n de la Constituci6n; pero, en absoluto impiden que tales derechos se configuren en la misma con una amplitud mayor o con mayores garantias 8 .
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V. g., en la STC 49/1999, de 5 de abril, las garantias constitucionales de legalidad formal e intervenci6n judicial se sobreai'iaden a !as previstas en el Convenio Europeo. Y no puede ser de otro
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Por otra parte, la doctrina que, en la ocasi6n citada, mantuvo el Tribunal Constitucional seria hoy dificilmente sostenible. En efecto, descartado que la Constituci6n contenga un modelo de "democracia militante" que imponga "no ya el respeto, sino la adhesion positiva al ordenamiento y, en primer lugar, a la Constituci6n" 9, seria indefendible admitir una "moralidad militante" que impusiese obligatoriamente sus propios contenidos a quienes piensan de otro modo. Cuesti6n distinta es la relativa a la "protecd6n de la juventud y de la infancia" como limite explicito que la Constituci6n espafiola de 1978 impone a la libertad de expresi6n. Ciertamente, esa idea de protecci6n de la juventud y de la infanda, en cuanto limitativa de la libertad de expresi6n, comporta una indudable referenda a pautas de vida buena y, en definitiva, a la moralidad. Por eso es predso antes de intentar dotarla de contenido, llevar a cabo un breve excurso acerca del significado generico de las remisiones del derecho a la moral, para desentrafiar despues el sentido espedfico.
3. Sobre las remisiones del derecho a la moral: significado y validez Acerca del significado generico de las remisiones que el derecho, explicita o implicitamente, hace a la moral, las opiniones y, sobre todo, las practicas, son menos unanimes de lo que a primera vista pudiera parecer. Al efecto de delimitarlo, podemos distinguir entre la moral aut6noma y cualquier conjunto de pautas de conducta moral que emane de una instancia distinta de la voluntad subjetiva, ya se trata de una determinada fe religiosa, o de una ideologia secular o, simplemente, de la moral publica. Las llamadas "buenas costumbres", a las que el derecho remite en ocasiones, plantean una problematica singulm~ pm路que a veces, no contienen sino reglas puramente juridicas, y la llamada de la ley no hace sino incorporarlas al ordenamiento; otras, en cambio, representan autenticas normas morales que son objeto de un espureo proceso de juridificaci6n. En cuanto a la moral aut6noma, por mas que no pueda dedrse que sea absolutamente indiferente al derecho, parece claro que este no puede erigir en obligatorio lo que cada ciudadano entienda por tal en su coraz6n. Las remisiones a la moral habran de ser, pues, entendidas por referenda a cualquier clase de C6digos morales objetivos.
modo, pucs Ios preceptos pertinentes de la Declaraci6n Universal y de Ios Pactos de Roma y N11eva York "no obligan a Ios diversos ordenamientos estatales a imponer restricciones a la libertad de expresi6n en raz6n de la tutela de la moral p1tblica, sino que se limitan a permitirlas". Vid. Vives Ant6n, T.S. Los delitos de esclmdalo ptiblico, en La iibertad coma pretexto, Valencia, 1995, pag. 312. 9 STC 48/2003, de 12 de marzo, FJ 6.
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Esto sentado, parece existir un amplio acuerdo en la doctrina en orden a entender que cuando existe una remisi6n normativa del derecho a la moral, debe entenderse hecha a la moral publica, es decir, al conjunto de pautas morales aceptadas y observadas mayoritariamente en la comunidad, pues entender hecha la remisi6n a un determinado credo religioso o filos6fico seria discriminatorio y atentaria contra una seria de libertades basicas en un sistema democratico. Afirma Henkel que "la moral social tiene una orientaci6n en gran medida igual a la del derecho", pues en ella "se abren paso intereses y necesidades colectivas que tienden al aseguramiento de una convivencia ordenada". De otra parte, entiende este autor que, a los ojos de la moral publica "el centro de gravedad del enjuiciamiento no reside en la motivaci6n, sino en el comportamiento externo. La motivaci6n inmoral como tal no llega al forum de la sociedad, es mas la actuaci6n inmoral solo es tenida en cuenta cuando trasciende pl1blicamente" 10 . Cabe preguntarse, desde luego, cual es el fundamento que pueda justificar la obligatoriedad de esas normas morales para el individuo si es que se le reconoce, y asi lo hace el procedimiento democratico, como libre y capaz de regirse por si mismo. Pero antes de intentar responder a esa pregunta hay que precisar que la presentaci6n que hace Henkel del papel y caracteristicas de la moral publica -que, por otra parte, es casi un arquetipo en la doctrina-constituye mas bien una apologia encubierta que una descripci6n de los hechos 11 â&#x20AC;˘ Desde una perspectiva mas realista, entiende Lord P. Devlin que lo que respalda las opiniones morales de la sociedad es "la fuerza del sentido comun y no el poder de la raz6n". El hombre de sentido comun ("el hombre del autobl'ls del Clapham") reprueba determinados comportamientos, porque, desde su perspectiva moral, le irritan y repelen. "Ninguna sociedad", apostilla Lord Devlin, es capaz de prescindir de la intransigencia, la indignaci6n y la repugnancia; son estas las fuerzas que respaldan la ley moral". Por ello, no cree que pueda hablarse sensatamente de moralidad publica y privada, pues existe un interes del publico en la moralidad, de modo que no toda inmoralidad privada puede excluirse, sin mas, del ambito de la ley12 . En esa misma linea puede resultar de interes lo acaecido con la aplicaci6n de la Ley Fundamental de Bonn que, como es sabido, dispone en su art. 2.1 que "todos tienen derecho al libre desarrollo de su personalidad, en tanto no lesionen los derechos de otro ni infrinjan el or den constitucional o la ley moral".
Henkel, H ., Filosojfa del Derecho. La presentaci6n de Henkel olvida Ios numerosos conflictos entre la mora l publica y el Derecho y el papel critico que a este corresponde frente a aquella. 12 Devlin, Lord Patrick, La moral y el Derecho Penal, en La Filosojfa del Derecho, R.M. Dworkin, ed. Mejico, 1980, pags. 150-152. 10
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Sefiala Diirig que la expresion "ley moral" (sittengesetz) constituye un desarrollo de antiguos y mas limitados conceptos, como los de "buenas costumbres" (gerte Sitten), "lealtad y buena fe" (Treu und Glauben) y, a su juicio, expresa el "pathos" con que la Ley Fundamental vuelve a cimentar el ordenamiento sobre la etica 13 • Sin embargo, la Ley Moral, que el precepto consagra como limite del derecho al libre desarrollo de la personalidad, no es, segun la opinion dominante, ni una moral universal (mundial) 14, ni la vigente en el ambito cultural de Occidente, sino la que rige en la Republica Federal Alemana, que, aunque no se identifica con la totalidad de la moral cristiana, se reconoce abiertamente como modelada por ella. Desde tales premisas, en la Sentencia de 10 de mayo de 195715, la Sala Primera del Tribunal de Karlsruhe declaro que el castigo de la homosexualidad entre adultos ni era discriminatorio, porque la diferenciacion biologica justificaba la juridica, ni vulneraba el derecho allibre desarrollo de la personalidad, al ser la Ley Moral un limite legitimo de este derecho. Sin embargo, afirmaba Rudolphi en 1970, "esta concepcion no puede ser asentida. Pues si se quiere reconocer realmente al Estado el derecho de sancionar todo comportamiento que aparezca de acuerdo con un juicio generalmente reconocido como inmoral, habria a la vez que admitir de improviso que el Estado es una «institucion moral>>. El Estado tendria, entonces, el derecho de coaccionar, sin mas, mediante la pena a las minorias que no comparten las concepciones morales generales, para que adecuen sus acciones a patrones valorativos que ellos no han elegido, a pesar de que tales acciones no sean en absoluto socialmente dafiosas. No es necesario destacar mas el peligro que pueden ocasionar la tutela moral de los ciudadanos por el Estado y la intolerancia general. Toda concepcion segun la cual se interprete la limitacion por la ley moral de la garantfa constitucional allibre desarrollo de la personalidad otorgando allegislador el poder de combatir mediante la arnenaza penal meras inmoralidades, sera contraria a los principio materiales del Estado de derecho. Esta contradiccion solo puede ser resuelta a favor de los principios materiales del Estado de derecho, si es que no se quiere abrir una puerta, en contra de lo que expresa la tendencia basica de nuestra Constitucion, a una amplia tutela moral de los ciudadanos por parte del Estado, y de esa rnanera, abrir la posibilidad de la coaccion estatal dirigida a un arnplio conformismo en el ambito de la moral. Con otras palabras: la ley moral corno l:irnite del derecho a la libertad de los ciudadanos debe interpretarse de tal manera que abarque solarnente aquellas norrnas morales elementales, cuyo rnantenirniento no depende
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En Maunz und Di.irig ..... 0 sea, que en modo alguno se corresponde con "la" etica. Bverf.G, 6, mim. 26.
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de la sola voluntad d el legislador, sino de la n ecesidad de evitar efectos socialmente dafiosos" 16 . Se ha dicho, en mi opinion acertadamente, que es totalmente facil confundir el principio democratico de que el poder debe estar en manos de la mayor:la con la pretension completamente diversa, de que la mayoria en el poder no tiene que respetar ningun limite, solo cabria afiadir a esas palabras que tal confusion se da siempre que el derecho intenta respaldar con sus sanciones cualquier forma, aun la mas elevada, de moralidad, y que esa confusion no solo es fatalmente facit sino tambien facilmente fatal para la convivencia democratica, como se vera mas adelante. Y eso no quiere decir que, dada la situacion social vigente, el legislador, para evitar los desordenes que "la intransigencia, la indignacion y la repugnancia" pudieran producir, no pueda someter a ciertas medidas de polida los comportamientos que entren en conflicto con la moralidad vigente; pero, entiendase b ien, solo podra establecerlos para evitar, efectivamente, desordenes publicos, no meras alteraciones de la sensibilidad; habra de lograr la eficacia de tales medidas a traves de sanciones proporcionadas que solo en muy raros casos podran llegar a ser penas graves; y, finalmente, como la mayoria que se indigna no tiene derecho a exigir que se reprima el comportamiento que reprueba, un legislador democratico h abr:la de poner en marcha medidas pedagogicas, que fuesen inclinando a la poblacion hacia actitudes de tolerancia y respeto por los que p rofesan otra concepcion del mundo. Esa reflexion generica enmarca tambien cuanto cabe decir acerca de la proteccion de la juventud y de la infancia. Los "excesos" de la libertad de expresion en relacion con ella, solo podran reprimirse en la medida en que, dadas las pautas vigentes acerca de lo que la vida buena significa, el material informativo que se pone en manos de los nifios pueda suponer una perturbacion en su proceso de adaptacion a la sociedad y, por lo tanto, un mal. En consecuencia, no cabe inferir de la referenda constitucional a la proteccion de la juventud y de la infancia ninguna atribucion directa del papel de limite de las libertades a la moralidad : su incidencia en tal limitacion solo puede tener lugar a traves de su repercusion en el orden publico o en el proceso d e formacion y desarrollo de los jovenes, esto es, a traves de la lesion o puesta en peligro efectiva de bienes juridicos.
16 Rudolphi, H.J., Los diferentes aspectos del concepto de bien jurfdico, en Nuevo Pensamiento Penal, nLim. 5, 1975, p ag. 340. Fueron concepciones de esta indole !as que llevaron a Jager, ya en el mismo afio de la Sentencia de referencia, 1957, a revalidar la idea de bien juridico como limite frente al cas tigo de la sola inmoralidad.
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4. El bien juridico como limite al castigo de la inmoralidad
A) Presupuestos Decia al principio que iba a distanciarme de la pos1c10n defendida por Jakobs, para lo que quisiera partir de una exposicion del propio autor mas expresiva que lo transcrito hasta ahora. Dice asi en su Derecho Penal: "Pero al menos ha de pretenderse la proteccion de la paz juridica. Los contenidos del comportamiento de otras personas no pueden regularse juridico-penalmente por esos mismos contenidos. Un comportamiento sin efectos exteriores, ni objetivamente ni segun opinion de los conciudadanos, queda al margen del ambito del comportamiento que ha de regularse penalmente, por falta de referenda social, como mera inmoralidad. Que es lo simplemente inmoral no cabe desde luego averiguarlo sin presuposiciones sobre la conformacion de la sociedad. El hecho de que, p.ej., la muerte de una persona contrahecha no sea meramente inmoral, pero si lo sea la actividad lesbica, rige solo para sociedades que consideran cada existencia como asunto publico, pero no asi la actividad sexual consentida de los individuos. Para las sociedades que se definen como bastion de elites biologicas, la decision puede ser la contraria; las sociedades que elevan a asunto publico el perfeccionamiento de sus miembros pueden penalizar las dos formas de conducta mencionadas. No hay, pues, un limite absolutamente valido entre comportamiento simplemente inmoral, por una parte, y lesion de bienes juridicos, incumplimiento de deberes especiales y perturbacion de la paz social, por otra; ahora bien, sf puede
determinarse el !ÂŁmite relativamente para una sociedad de caracteristicas determinadas" 17 â&#x20AC;˘ Ante semejante toma de posicion conviene advertil~ en primer termino, que la cuestion del bien juridico como limite no puede ni siquiera plantearse como un mecanismo de descripcion de lo que sucede en las distintas clases de sociedades: no es un tema 6ntico sino de6ntico; no se trata de lo que sucede sino de lo que deberia suceder. Dicho esto, hay que partir, en segundo lugm~ de la sociedad democratica como la mejor o la menos mala de las sociedades posibles y plantearse el problema del bien juridico como limite del castigo de la inmoralidad corno un problema interno de la sociedad democratica: solo asi, y no desde la perspectiva niveladora y externa que asume Jakobs, tiene el problema sentido. Asi lo manifiesta expresamente Roxin:
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Jakobs, G., op.cit., pag. 55. La cursiva es mia. T. Vives.
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"El rechazo de una estrecha vinculaci6n del derecho penal a determinadas concepciones morales se deriva tambien de los fundamentos te6rico-pol:iticos de la democracia oecidental, tal y como se han venido desarrollando desde los pensadores de la Ilustraci6n. Habida cuenta de que todo el poder emana del pueble (art. 20, 2, GG), ellegislador, comisionado del pueblo, queda limitado en su tarea a proteger al individuo de los ataques de otros y a asegurarle una vida lo mas libre y en el mayor bienestar posible, y nada tiene que ver con tal tarea el tutelar moralmente a ciudadanos adultos en contra de su voluntad". 18 Pues bien, para argumentar acerca de si el bien juridico ha de constituir un l:imite al castigo de la inmoralidad en los sistemas democraticos, habremos de partir de una caracterizaci6n de la democracia. B) LQue es un sistema democratico? A tal efecto podemos decir que grosso modo la democracia es el procedimiento de gobierno en el que solo el pueblo legisla y todo el pueblo legisla, para caracterizarla con palabras semejantes a las que Kant aplicara al regimen republicano. Como todo procedimiento, cobra sentido desde ciertos presupuestos, a tenor de los cuales se definen sus condiciones o reglas caracteristicas. Voy a dar por sentado que, en el caso del procedimiento democratico, esos presupuestos son la autonomia, la libertad y la igualdad. Y voy a darlo por sentado, no porque afirme que entre tales presupuestos y el procedimiento democratico existe una relaci6n de necesidad 16gica y, en consecuencia, indiscutible y evidente (pues mi argumentaci6n no requiere tanto); sino porque pienso que los auna una innegable relaci6n practica, de modo que quien opta por la democracia, en nuestro ambito cultural, lo hace en funci6n de la autonom1a, la libertad y la igualdad de los hombres, es decir, reconociendo por igual a todos, al ejercitar esa opci6n, el derecho y la capacidad de regirse por s1 mismos y hacer lo que les plazca, con tal de que no invadan la esfera de los derechos de los demas. A esto se refer1a Rousseau, al sentar como exigencia de la sociedad democratica la de que cada uno, al unirse a todos, no se obedezca mas que a si mismo y quede tan libre coma antes 19 â&#x20AC;˘ Autonomia, libertad e igualdad son conceptos bien conocidos; no obstante, para determinar el sentido exacto en el que, segun creo, fundamentan la tesis que intento defender, los ilustrare sucintamente, con pasajes de Kant, Mill y Dworkin. 18
Roxin, C. y otros, en Introducci6n al Dereclw Penal y al Derecho Penal Procesal. Barcelona, 1989,
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Rousseau,
J.J., El Contrato Social o Principios de Derecho Politico. Madrid, 1988, pag. 14.
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Para Kant "la autonomia de la voluntad es la condici6n de la voluntad en virtud de la cualla voluntad (con independencia de la naturaleza del objeto del querer) es para si misma una ley". Esa condici6n de la voluntad constituye el primer presupuesto de un procedimiento democratico (que sin ella no tendria sentido) y es, a su vez, "el principio supremo de la ntoralidad", porgue sin autonomia la fundamentaci6n de la moralidad deviene imposible; pues cuando la voluntad actua segun una ley impuesta desde fuera (esto es, de modo heter6nomo), el motivo del obrar ya no podra cefiirse al cumplimiento del deber, sino que intervendran consideraciones de utilidad, convenienda o temor al castigo que empafiaran o anularan el valor moral de la acci6n 20 . Por eso, para Kant noes la moralidad condici6n de una buena constituci6n; antes al contrario, una buena constituci6n, esto es, una Constituci6n que permita a las voluntades individuales plasmar en la realidad su esencia aut6noma, dejandolas seguir su propia ley, es condici6n de la moralidad21 • Y puesto que la moralidad integra la esencia racional del hombre, una buena Constituci6n es requisito "sine qua nom" de la realizaci6n de esa esencia. En esa constituci6n ideal, el derecho estricto o puro es aquel que no se mezcla con nada propio de la moral, sino que se funda en el principio de la posibilidad de una fuerza exterior, que puede conciliarse con la libertad de todos segun leyes generales. El concepto de un derecho externa en general procede totahne/7/e del conccpto de libertad en la relaci6n externa de los hombres entre si, segun Kant; y no s6lo es absolutamente ajeno a cualesquiera concepciones morales, sino que ni siquiera tiene nada que ver con la busqueda de la felicidad ni con la determinaci6n de los medios para lograrla 22 . De la autonomia etica pasamos, pues, a la liber!ad jurfdica como presupuesto del procedimiento democratico. Para Mill, esa libertad comprende, como minimo, la libertad de pensar y senti1~ la de expresar y publicar opiniones, tan estrechamente unida a ella, la libertad de regular la vida segun nuestro caracter, de hacer nuestra voluntad, suceda lo que quiera, sin que nos lo impidan los demas, mientras no les perjudiquemos, aunque conceptlien nuestra conducta necia o censurable y la libertad de reunirse y asociarse con iguales limitaciones. "Ninguna sociedad es libre", dice Mill, "cualquiera que sea su forma de gobierno, si estas libertades no son en todo caso respetadas, y ninguna es completamente libre si no estan garantizadas de una manera absoluta y sin reservas" 23 • Una sociedad en la que una serie cualquiera de posibles proyectos vitales que, de suyo, no comprometan las posibilidades de otros y, por consiguiente,
° Fundamentaci6n.
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Conflicto de !as facultades. Kant, I., La Metaffsica de /as Costumbres. Madrid, 1989, pags. 38 y ss .. 23 De la libertad, en Libertad, Gobiemo representativo. Esc/avifud Femenina. Madrid, 1965, pag. 51. 22
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no incidan en la esfera del derecho ajeno, resulten impedidos o seriamente obstaculizados por las normas juridicas no cumple las condiciones ba.sicas del procedimiento democratico porque, de entrada, situa a algunos ciudadanos fuera de la ley. Para que todos puedan participar en el gobierno de la sociedad parece indispensable configurar una estructura de participacion que, en efecto, no excluya a nadie en razon de su condicion personal, de sus ideas o creencias de su proyecto de vida, etc., etc. Un procedimiento democratico - tal y como se entiende en elllamado mundo accidental cuando se usan las palabras como vehiculo y no como disfraz del pensamiento - o puede ser discriminatorio para personas o grupos. Por ese camino, del tema de la libertad pasamos al de la igualdad. La historia de la igualdad- concepto relacional, que carece de un propio contenido sustantivo - es la historia de la lucha contra concretas y muy reales discriminaciones: la lucha contra el privilegio, la lucha contra las diferencias de clase, o contra las desigualdades de tratamiento por razon de sexo, raza, religion, etc., etc. Pero aqui se habla de igualdad en un sentido mas generico. Dworkin 24 ha sefialado que existen dos tipos de teorias acerca de la igualdad. El primero supone que el gobierno debe ser neutral acerca de las concepciones particulares de la vida buena y que las decisiones politicas deben ser, en la medida de lo posible, independientes, de cualquier opinion acerca de lo que da valor a la vida. El segundo supone que el gobierno no puede ser neutral en este asunto, porque no puede gobernar, ni definir que trato es discriminatorio y cual no, sin una concepcion previa de lo que deberian ser los humanos. Tal y como Dworkin la formula, la primera de las concepciones de la igualdad constituye el fundamento de una de las varias actitudes politicas posibles en un sistema democratico 25 , esto es, de la actitud liberal; pero si, en la formula cion de dicha concepcion, los terminos "gobierno" y "decisiones politicas" se sustituyen por los de "Derecho" y "leyes" queda definida, no ya la concepcion de la igualdad que corresponde a una determinada direccion politica, sino el concepto de igualdad que es presupuesto y requisito del procedimiento democratico. He hablado de la autonomia, la libertad y la igualdad como presupuestos y requisitos del procedimiento democratico. No voy a dedicarme a justificar en profundidad esa afirmacion; pero hay algo que quiero sefialar al respecto. Como es sabido, buena parte de las violaciones de los derechos y libertades y, en particular, de las infracciones al principio de igualdad, se enjuician por el
Dworkin, R., Liberalism and justice, en A. Matter of Principle, Oxford, 1985, pag. 181 y ss .. Es la actitud mas coherente con el fundamento de dicho sistema, que solo tiene sentido pleno si se reconoce a Ios demas como duei'\os de si y titulares del conjunto de libertades basicas que permiten caracterizar Ios procesos democraticos como aut6nomos y racionales (vid., Rawls, J. El liberalismo Politico, Barcelona, 1996, especialmente pags. 73 a 77. 24
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Tribunal Supremo Federal americano como infracciones al derecho al "due process of law" establecido en la enmienda XIV de la Constituci6n de aquel pais. Si, mas alla de la pura contingencia hist6rica, esa forma de enjuiciamiento tiene algun fundamento racional no pueden oponerse muchos reparos a mi punto de partida, esto es, a la concepci6n de la totalidad del sistema democratico como un procedimiento y de la autonomfa, la libertad y la igualdad como condiciones irrenunciables de ese procedimiento. De esa concepci6n derivan, sin duda, consecuencias acerca de lo que puede y no puede ser considerado un bien jurfdico; pero, su examen merece un epfgrafe independiente. C) El resurgimiento de la idea de bien jurfdico.
No pretendo, en estas breves consideraciones, narrar la historia reciente de la idea de bien jurfdico. Me remito para ello a los conocidos trabajos de Sina 26 y Amelung 27 â&#x20AC;˘ Baste destacar que, tras la Segunda Guerra Mundial, la idea de bien jurfdico desempefiaba un p apel secundario en la dogmatica penal, en parte merced a los embates de las llamadas "concepciones metodol6gicas" (que conciben el bien jurfdico como una simple abreviatura del pensamiento teleol6gico que, por lo tanto, nada aporta mas alla del texto y el contexto de aplicaci6n de la ley) y, en parte, debido al auge cada vez mayor de la concepci6n personal del injusto formulada por Welzel. En ese panorama, la obra de Jager Strafgesetzgebung und Rechtsgii.terschutz bei Sittlichkeitsdelikten 28 constituye el principio de un cambio de rumbo: el bien jurfdico va a ocupar el centro de las construcciones dogmaticas. Jager opone a las concepciones metodol6gicas que al unir proposici6n normativa y objeto de protecci6n, resultan insostenibles pues conducen a identificar el injusto con la mera desobediencia, es decir, a concebirlo como simple contrariedad formal con la norma, relegando al plano de lo incognoscible su significado etico-social materiaF 9 â&#x20AC;˘ Por otra parte, reconociendo que las diversas concepciones del injusto personal pueden otorgar al bien jurfdico un papel de mayor o menor importancia, lo cierto es que a su juicio la idea de injusto personal y la de bien jurfdico como momento central y basico del injusto se contraponen, pues en esta el desvalor de los momentos etico-subjetivos s6lo desempefia un papel complementario 30 â&#x20AC;˘ La exigencia de un bien jurfdico es irrenunciable, como pone Sina, P. Die Dogmengeschichte des strafrechtlichen Begriffs "Rechtsgut". Base!, 1962. Amelung, K. Rechtsgiiterschutz und schutz der Gesellschaft. Frankfurt, 1972. Partes I y II. 28 Stuttgart, 1957 (como he sef\alado anteriormente, se publica en el mismo af\o que la Sentencia que declar6 conforme a Constituci6n el castigo de la homosexua lidad entre adultos) . 29 Jager, H., op. cit., pags. 20 a 23. 30 Jager, H., op. cit., pag. 27. 26
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de manifiesto al analizar el castigo de la homosexualidad entre mayores de edad (art. 175 del C6digo Penal aleman en~onces vigente). En efecto, los bienes jurfdicos presuntamente protegidos por dicho precepto (el mantenimiento de la relaci6n entre varones libre de contacto sexual - Mezger - o la normalidad de la vida sexual) son, o meras repeticiones de la prohibici6n legal con otras palabras 0 puras incongruencias, desde el momento en que perversiones mas graves resultan impunes: la ausencia de bien jurfdico conduce a no saber por que se castiga y, por consiguiente, a no poder determinar el sentido del castigo 31 . Es, pues, absolutamente necesario para Jager (como expone y critica Amelung32) un bien jurfdico objetivo, previa a la norma, que concrete la realidad que esta pretende tutelar y que no puede consistir en la moral sexual p ues esta es un puro orden de valores y normas que, como tal, no tiene otra objetividad que la que, formalmente, le proporciona la ley. A partir de la obra de Jager, la regulaci6n tradicional de los delitos sexuales entra en una crisis que en Alemania se salda con una opci6n a favor de la libertad que conduce a la derogaci6n del art. 175. Tambien en Espafia tiene lugar un debate semejante en torno al tipo tradicional del escandalo publico (art. 431 del C6digo Penal de 1973)33; pero, a la vez que esos debates particulares, se abre otro sobre el bien jurfdico como concepto basico de la dogmatica y como Hmite del poder punitivo del Estado, que excede con mucho la esfera de los delitos sexuales: se trata, en el, de ponderar la u tilidad y necesidad de la idea de bien jurfdico como Hmite de las libertades. Ello nos conduce, directamente, a un ambito bien distinto del de los delitos sexuales: el de los delitos politicos donde la libertad tiene, si cabe, una importancia todavfa mayor. Entre ellos escogere una figura, la de la apologia del delito que, segun creo, pu ede servir de banco de pruebas de la adecuaci6n, u tilidad y dificultades de la llamada teorfa del bien jurfdico.
II. Apologia del delito, principio de ofensividad y libertad de expresi6n 1. Un fantasma recorre el Derecho penal de la democracia
"Desde el Siglo XIX hasta nuestros dfas", se ha dicho, "la polltica crim inal en Esp afia ha cumplido fielmente con la tesis de la estrecha conexi6n entre polltica y Derecho Penal; a cada cambio politico de caracter liberal ha seguido una p olltica criminal liberal y las involuciones autoritarias se han vis to
Jager, H., op. cit., pag. 39. Amelung, K. op. cit., pag. 300 y ss .. 33 Vid. Mir Puig Objeto del delito, en Nueva enciclopedia jurfdica, Tomo XVII, Barcelona, 1982, pag. 769; Vives Ant6n, T.S. Los delitos... cit., que conduce igualmente a su derogaci6n . 3!
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acompafiadas por una producci6n legislativa del mismo cara.cter" 34 . Sin embargo, esa regia general mantiene una excepci6n: el castigo de la apologia que, ciertamente con diferente amplitud, tiene una presencia constante en la legislaci6n penal de la democracia espafiola. De modo que ha podido afirmarse, no sin raz6n, que "pocos casos hay tan paradigmaticos, como el de la regulaci6n legal de la apologia delictiva, para demostra1~ por una parte, el escaso rigor y, por otro, el discutible sentido democratico con el que nuestros legisladores penales postconstitucionales han venido tratando, desde el punto de vista legislativo, la materia penal" 35 . Poco antes de la llegada de la democracia el Decreto-Ley 10/75, de 26 de agosto, sobre prevenci6n del terrorismo, castigaba con la pena de prisi6n menor, multa e inhabilitaci6n especial a los que publicamente, de modo claro o encubierto, defendieren o estimularen las ideologias comunistas, anarquistas o separatistas, o el empleo de la violencia como instrumento de acci6n politica o social; o a los que manifestaren su aprobaci6n o pretendieren justificar la perpetuaci6n de cualquier acto terrorista; o enaltecieren a sus ejecu to res o participantes; o trataren de minimizar la responsabilidad de las conductas tipificadas en el propio Decreto-Ley por medio de la critica- directa o solapada - de las sanciones legales que las previenen o castigan; o intentaren menoscabar la independencia y el prestigio de la justicia mediante manifestaciones de solidaridad con las personas encausadas o condenadas. Este es - dice Bernardo del Rosal- "probablemente, el concepto mas amplio de apologia que legislador penal alguno haya podido inventar" 36 â&#x20AC;˘ A lo que cabria afiadir que tambien es, quizas, el mas incompatible con los requerimientos minimos de la democracia, pues lo prohibe casi todo, excepto, tal vez, pensar. Pues bien, los pactos de la Moncloa, con los que bien puede decirse que la nueva democracia espafiola inicia su camino consideraron "reforma urgente" reintroducir la apologia en el C6digo Penal no ya s6lo con la "supina ignorancia" que se imput6 a sus autores 37; sino tambien con un conocimiento discutible de las exigencias de un Estado democratico. Conocimiento que no se depur6 con el transcurso del tiempo. Al contrario, el castigo de la apologia se revela como un recurso constante de nuestra legislaci6n penal, vinculado, ciertamente, a la lucha antiterrorista. Asi la recoge el Decreto-Ley 3/1979, de 26 de enero, sabre protecci6n de la seguridad ciudadana (art. 1) y, poco despues, la reelabora la Ley Organica 1/1980, de 21 de mayo que dio nueva redacci6n a los arts. 268
34 Arroyo Zapatero, L., Ln reforma de Ios delitos de rebeli6n y terrorismo par la Ley Organica 2/1981, de 4 de mayo, en: Cuadernos d e Politica Criminal, num. 15, pag. 379. 35 Del Rosa! Blasco, B., La apologia delictiva en elnuevo C6digo Penal de 1995, en: Estudios sobre el C6d igo Penal de 1995, Consejo General d el Poder Judicial, Madrid, 1996, pag. 189. 36 Del Rosa! Blasco, B., La apologfn, cit, pag. 191. 37 Rodriguez Devesa, J. M., Derecho penal. Parte Especial, Madrid, 1988, pag. 678.
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y 566.4 del Codigo Penal. Tras el golpe de estado del 23 de febrero de 1981, por Ley Organica 2/1981, de 4 de mayo, se incorpora al Codigo Penal un nuevo articulo 216 bis, en el que el castigo de la .apologia se amplia a los delitos de rebelion, sedicion y rebelion militar. Poco mas de tres afios despues, la Ley Organica 9/1984, de 26 de diciembre, entre las medidas contra la actuacion de bandas armadas y actividades terroristas o rebeldes, contiene una regulacion de la apologia del siguiente tenor: "Articulo 10. Apologia de los delitos previstos en esta Ley. 1. La apologia de los delitos comprendidos en esta Ley sera castigada con las penas de prision menor y multa de 150.000 a 750.000 pesetas. En el supuesto de que el delito tuviera sefialada la pena de prision menor o inferior, la apologia sera castigada con la pena inferior en un grado. Los Jueces y Tribunales podran acordar la clausura del medio en el que se hubiere realizado la publicacion o difusion, con los efectos expresados en el articulo 21 . 2. Se considera, en todo caso, apologia: a) La alabanza o aprobacion de hechos delictivos comprendidos en esta Ley, mediante la manifestacion hecha en publico. b) El apoyo o ensalzamiento de la rebelion o de las actividades propias de una organizacion terrorista o grupo armada o rebelde, o de los hechos y efemerides de sus miembros mediante la publicacion y difusion en los medias de comunicacion social de articulos de opinion, reportajes informativos, composiciones graficas, comunicados y, en general cualquier otro modo en el que se materialice la difusion. c) El apoyo o adhesion a la rebelion o a las organizaciones terroristas o grupos armadas o rebeldes o a sus actividades o a las de sus miembros, mediante discursos, soflamas u ostentacion de pancartas, que se produjeren durante la celebracion de concentraciones en las vias urbanas u otros lugares abiertos al publico. 3. No se aplicara este precepto cuando el hecho este sancionado en otra o mas normas que lo castiguen con pena de mayor gravedad". La novedad mas importante de esa regulacion estriba, no solo en su amplitud; sino en que, a tenor del articulo 1 de la Ley, las medidas antiterroristas reguladas en los articulos 13 a 18, dictadas al amparo de lo establecido en el art. 55.2 de la C.E. se aplicaban tambien a los delitos de apologia regulados en ella. El Tribunal Constitucional, en Sentencia 199/1987, de 16 de diciembre, declaro inconstitucional el art. 1 de la Ley Organica 9 I 1984 "en la medida en que extiende la aplicacion de los arts. 13 a 18 de la misma Ley a los que hicieran apologia de los delitos descritos en dicho articulo". Las razones que condujeron a adoptar tal decision fueron las que a continuacion se transcriben:
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"El segundo de los parrafos del art. 1.1 de la Ley Organica 9/1984, incluye en el ambito de aplicacion de la Ley a quienes <<hicieran apologiaÂť de los delitos aludidos en el parrafo primero. Segun el Letrado del Estado esta inclusion es constitucionalmente correcta dada la posibilidad de que no estemos ante un delito independiente en sus motivaciones o en su relacion con las organizaciones terroristas, por lo que seria conveniente aplicar especiales medidas de investigacion en los casos de apologia. Este argumento no es aceptable, pues el problema planteado no es el de la razonabilidad de tal inclusion, sino el de si ellegislador estaba habilitado para ello por el art. 55.2 de la Constitucion. La manifestacion publica, en terminos de elogio o de exaltacion, de un apoyo o solidaridad moral o ideologica con determinadas acciones delictivas, no puede ser confundida con tales actividades, ni entenderse en todos los casos como inductora o provocadora de tales delitos. Los supuestos que menciona el Abogado del Estado de posible concierto o relacion de los apologistas con organizaciones terroristas, son precisamente supuestos en los que se excede del ambito de la pura apologia, pudiendo incluirse, en su caso, en el art. 1.2 k) de la propia Ley Organica 9/1984. Por todo ello, debe considerarse contraria al art. 55.2 de la Constitucion la inclusion de quienes hicieran apologia de los delitos aludidos en el art. 1 de la Ley en el ambito de aplicacion de esta ultimo en la medida en que conlleva una aplicacion a dichas personas de la suspension de derechos fundamentales prevista en tal precepto constitucional, es decir, en relacion con los arts. 13 a 18 de la Ley Organica 9 /1984". (FJ 4) Antes, en la Sentencia 159/1986, de 12 de diciembre, aun sin pronunciarse sobre la constitucionalidad generica del tipo de apologia, habia otorgado el amparo frente a la condena por tal delito al director del diario Egin 38 A partir de entonces, el castigo de la apologia entra en un proceso deflacionario que culmina en el Codigo Penal de 1995.
2. El castigo de la apologia del delito en el C6digo Penal de 1995
En efecto, en el art. 18.1, parrafo segundo, del Codigo Penal de 1995 contiene una disposicion del siguiente tenor literal: "Es apologia, a los efectos de este Codigo, la expos1c10n, ante una concurrencia de personas o por cualquier medio d e difusion, de ideas o doctrinas que ensalcen el crimen o enaltezcan a su autor. La apologia 38 Vid. el comentario crftico a dicha Sentencia de Mira Benavent, J.: El caso del diario ÂŤEgin Âť, en Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, Tomo XI, 1987, pags. 506 y ss ..
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solo sera delictiva como forma de provocaci6n y si por su naturaleza y circunstancias constituye una incitaci6n directa a cometer un delito". Probablemente, la redacci6n dada a e~te precepto, que castiga la apologia solamente cuando tenga efectos de provocaci6n, se debe al informe del Consejo General del Poder Judicial al anteproyecto de 1992. Veamoslo: "a) Constitucionalidad del castigo de la apologia. La punici6n de la apologia plantea, desde el punto de vista constitucional, problemas semejantes a los que en Estados Unidos se suscitaron, a prop6sito del libelo sedicioso, por la Sedition Act de 1778. El enjuiciamiento constitucional de dicha figura de delito atraviesa, en dicho pais, por las siguientes fases: 1. Schenk vs. US (1919). En esta primera resoluci6n, el juez Holmes sienta
el standard del ÂŤpeligro claro y presenteÂť: las palabras han de ser de tal naturaleza, y ser usadas en circunstancias tales que hayan, razonablemente, de crear un peligro claro y presente de producci6n de alguno de los males sustantivos que el Congreso tiene derecho a p revenir. 2. En Gitlow vs. New York (1925) se entendi6 que las exprresiones que incitan al derrumbamiento del gobierno por medios ilegitimos son, en si mismas, inmediatamente peligrosas. 3. En Dennis vs. US (1940) se estim6 legitimo el castigo ÂŤsi la gravedad del mal, moderada por su improbabilidad>>, justifica la injerencia en la libertad de expresi6n, precisandose ulteriormente (en Yates vs. US, 1975) que la Primera Enmienda protege la apologia en abstracto, coma materia de discusi6n te6rica y no como incitaci6n (indirecta) a la realizaci6n de actos ilegales. 4. El standard actualmente aplicable se halla expresado en Brandenburg vs. Ohio (1969). Conforme a el, el Estado no puede prohibir o castigar la apologia del uso ilegal de la fuerza, a menos que se dirija a provocar o producir una acci6n ilegal inminente y sea apta para incitar o producir tal acci6n. Los criterios transcritos, indicativos de lo que pudiera llegar a decir nuestro Tribunal Constitucional (y, en su caso, el Tribunal de Estrasburgo), deberian tenerse en cuenta a la hora de definir la apologia".39 Es evidente que la regulaci6n espafiola se ha inspirado en la doctrina sentada en la ultima de las resoluciones del Tribunal Supremo Federal americano a que se ha hecho referenda.
39 Vid. Informe y Votos agregados del Consejo General del Poder Judicial, redactado por Vives Ant6n, T.S., en CGPJ 11, pags. 194 y 195.
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Sin embargo, frente a dicho precepto se han alzado criticas de naturaleza conceptual asi, v.g., se ha afirmado que lo que hace "es tanto como decir: la apologia, que no es igual que la provocacion porque no es una incitacion directa sino una incitacion indirecta, solo se castigara cuando, por su naturaleza y circunstancias, se convierta en una incitacion directa, es decir, cuando se convierta en una provocacion" 40 • No estoy seguro de que esas criticas sean certeras, porque creo que no hay un concepto prejuridico de apologia 41 que la identifique con la incitacion indirecta, diferenciandola "ontologicamente" de la provocacion 42 • Por ello, pienso que el legislador puede distinguir entre el concepto de apologia, en el que pueden tener cabida tanto las incitaciones "indirectas" como las directas, y la punibilidad de la apologia que, sin duda, puede cefiirse legitimamente a las ultimas, esto es, a aquellos supuestos en que la apologia oficia de provocacion y es, tambien, provocacion. Naturalmente que, a partir de tal regulacion cabe poner en tela de juicio la funcion punitiva que ha de atribuirse a la apologia. "De la concepcion de la apologia punible", dice Silva Sanchez, "como provocacion <<potencial» y <<circunstancial», en los terminos del Proyecto de 1994, se ha pasado, asf, a una concepcion de la apologia punible como pura modalidad de provocacion, como provocacion en sentido estricto. Ello, sin duda, salva las objeciones que podrfan oponerse a su sancion desde la perspectiva de estimar que se esta penando el ejercicio de la libertad de expresion: la exposicion de ideas. Sin embargo, deja en pie la duda de por que proceder a definir la apologia, siesta solo es punible cuando constituye provocacion. En efecto, estando asi las cosas, para abarcar la apologia punible basta con la definicion de la provocacion" .43 Sin embargo, como a renglon seguido puntualiza este autor, el texto puede cumplir un cometido meramente declarativo al que se asocia una funcion de recordatorio para los aplicadores del Derecho. Con lo cual, de una parte, pierden peso las criticas de irracionalidad, aducidas en este punto frente al legislador de 1995 y, de otra, se realiza un viejo ideal de la doctrina penal mayoritaria: la apologia deja de ser, en si misma, punible. Del Rosa! Blasco, B., La apologia, cit., pag. 212. En tal sentido, Cuerda Arnau, M.L., Observaciones en tomo a !as nuevas figuras de apologia, en: Boletin de Informaci6n del Ministerio de Justicia e Interior, num. 1757, 1995, pag. 87. Ciertamente, coma sefiala Maqueda Abreu (Algunas reflexiones criticas acerca de la punici6n de la apologia, en Poder Judicial, 9, 1988, pag. 27), para la apologia basta con una actividad que pretenda "transferir el propio pensamiento a la conciencia de otro"; pero, la finalidad de influir sabre la voluntad no determina que sea inadecuado seguir hablando de apologia. 42 Tanto es asi que lleg6 a decirse, no sin cierta raz6n, que "seria conveniente la existencia de una definici6n legal de la apologia que entendiera esta coma una especie de provocaci6n" (Carbonell Mateu, J.C., Apologia de Ios delitos contra la seguridad interior del Estado, en: Comentarios a la legislaci6n penal, Tomo II, El Derecho Penal del Estado Democratico, Madrid, 1983, pag. 245). 43 Silva Sanchez, J., Teorfa de la infracci6n penal, regulaci6n de la imprudencia, la comisi6n par omisi6n y Ios aetas previos a la consumaci6n, en: Consejo General del Poder Judicial, Madrid, 1996, pag. 183. 40
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No obstante, la regulaci6n de la apologia en el C6digo Penal de 1995, contiene una incoherencia palmaria. En efecto, a ultima hora - en el Senado - se introdujo en el C6digo un precepto, el art. 607.2 que contradice cuanto acaba de exponerse. Reza asi: "La difusi6n por cualquier media de ideas o doctrinas que nieguen o justifiquen los delitos tipificados en el apartado anterior de este articulo, o pretendan la rehabilitaci6n de regimenes o instituciones que amparen practicas generadoras de los mismos, se castigara con la pena de prisi6n de uno a dos afios". De modo que aqui se castiga la difusi6n de ideas o doctrinas por si misma, esto es, sin necesidad, al menos expresa, de que actuen provocando a la comisi6n de delito alguno. La cuesti6n de inconstitucionalidad del precepto transcrito se halla planteada ante el Tribunal Constitucional y en modo alguno se tratara de anticipar cual haya de ser la resoluci6n que ponga fin a ese proceso. Simplemente se pretende, en un momento en que se esta tramitando un Proyecto de Ley Organica de modificaci6n del C6digo Penal en el que se propane la tipificaci6n, en el art. 578, del enaltecimiento o la justificaci6n por cualquier media de expresi6n publica o difusi6n de los delitos de terrorismo o de sus autores o c6mplices, con independencia de cualquier virtualidad provocadora, llevar a cabo una reflexi6n acerca de si el castigo de la apologia en tales h~rminos tiene o no justificaci6n racional. Las consideraciones que siguen no comportan, pues, ninguna clase de juicio de constitucionalidad; ni siquiera expresan una evaluaci6n politico-criminal. Se limitan a razonar, desde la filosofla polltica delliberalismo 44 , acerca de un problema de nuestra legislaci6n penal.
3. Apologia del delito y principio de ofensividad
La doctrina penal espafiola, mejor dicho, una abrumadora mayoria de esa doctrina, lo que no excluye algunas discrepancias tan significativas como desacertadas, sustenta el que denomina "principio de exclusiva protecci6n de bienes juridicos". Lo que de ese principio se infiere es que no pu eden castigarse conductas inocuas, conductas que no representen un dafio o un peligro para la sociedad. De Constitutione data no creo que ese sea un principio discutible. El Tribunal Constitucional ha afirmado reiteradamente un principio mas amplio, el de proporcionalidad, que cabe inferir de diversos preceptos constitucionales y que "opera esencialmente como un criterio de interpretaci6n que permite 44 Una expresi6n paradigmatica de esa perspectiva filos6fica puede hallarse en: Rawls, J., El liberalismo politico, Barcelona, 1996.
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enJUlClar las posibles vulneraciones de concretas normas constitucionales"45 . En tal sentido, se proyecta especialmente sobre los derechos de libertad y las normas que los limitan, entre las que cabe seii.alar en primer termino, las penales. Pues bien, el bien o interes juridicamente protegido o, lo que el Tribunal considera equivalente, los fines inmediatos y mediatos de protecci6n de la norma, constituyen el prius 16gico para determinar si se ha incurrido o no en una vulneraci6n del referido principio, en relaci6n con el derecho o libertad de que se trate. De modo que si la norma tutela bienes o intereses socialmente irrelevantes o constitucionalmente proscritos habra de ser declarada, sin duda, inconstitucional46 â&#x20AC;˘ El principio de exclusiva protecci6n de bienes juridicos o, como le denomino en el encabezamiento, de ofensividad, es, pues, el primer momento l6gico del principio constitucional de proporcionalidad. Se puede o no - estar de acuerdo con el; pero, en cualquier caso, el desacuerdo no puede entenderse como un problema de interpretaci6n del ordenamiento constitucional; sino que es otro, muy distinto, de falta de aceptaci6n del mismo. Esto sentado, las reservas con que la doctrina mayoritaria acoge el castigo de la mera apologia residen en que se aprecia, por regla general, una suerte de deficit de bien juridico. Con la mera apologia - se dice - el legislador castiga la simple expresi6n de opiniones y no la producci6n de un autentico daii.o o peligro para la sociedad 47 â&#x20AC;˘ Esa tesis, no por difusa menos generalizada, obliga a analizar si, en efecto, estamos ante una conducta inocua. Me permito adelantar la idea de que eso no es asi, de que no se trata de que la apologia sea inocua; sino, quizas, de que algunos daii.os o peligros bien reales, que proceden del ejercicio de algunas libertades no pueden, en el marco de un ordenamiento juridico racional, combatirse por medio de la restricci6n de la libertad. Tal vez - pero eso lo veremos mas adelante- en algunos ambitos la libertad haya de defenderse por si misma, esto es, sin ayuda de la coacci6n estatal. La idea de que la simple apologia del delito es inocua procede, probablemente, de la mas general segun la cual la sola expresi6n del pensamiento, en
45 SSTC 55/ 1996, de 28 de marzo, FJ 3 y 161/1997, de 2 de octubre, FJ 8. Vid. tambien, la jurisprudencia citada en dichas Sentencias. 46 SSTC 111/1993, de 25 de marzo, FJ 9; 55 /1996, de 28 de marzo, FJ 7 y 161/1997, de 2 de octubre, FJ 10. Vid. tambien Cuerda Arnau, M.L., Aproximaci6n al principio de proporcionalidad en OCJ¡echo Penal, en: Estudios Juridicos en Memoria del Profesor Doctor D. Jose Ram6n Casab6 Ruiz. Valencia, 1997, pags. 474 a 477. Lascurain Sanchez, J.A., La proporcionalidad de la norma penal, en: Cuadernos de Derecho Publico, 5 (1998), pags. 162 y ss. Aguado Correa, T. El principio de proporcionalidad en Oerecho Penal, Madrid, 1999, pags. 159 y ss .. 47 Sabre la fundamentaci6n del castigo de la apologia, vid. Gonzalez Guitian, L., La apologia en la reforma penal, en Revista de la Facultad de Derecho de la Universidad Complutense, V Jornadas de profesores de Derecho Penal, monografico 6 (1983), pags. 384 y ss.; Maqueda Abreu, M.L., op. cit., pags. 19 y ss ..
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raz6n de su caracter ideal, no es apta para causar daii.o; pero, esa es una idea equivocada. Utilizando una imagen, desde luego inadecuada como toda metafora, pero suficientemente expresiva, podria decirse que la sociedad humana es un mecanismo que transforma ideas en realidades materiales. En el contexto de la sociedad humana no cabe, pues, afirmar que las ideas son inocuas. Por eso, junto a las limitaciones de la expresi6n fundadas en el impacto no comunicativo que el mensaje emitido puede tener surgen otras basadas en la lesividad del impacto comunicativo. Son, como destaca Tribe, dos modos de limitar la libertad de expresi6n que merecen una consideraci6n bien distinta 48 . Pues bien, porque la expresi6n puede ser peligrosa por si misma tuvo sentido la regla del "peligro claro y presente" de "daii.os sustantivos" para la sociedad, como criteria para discernir la constitucionalidad o inconstitucionalidad de los limites impuestos por el Gobierno a la libertad de expresi6n; y tambien lo tiene la critica de Rawls a dicha regla, que estima "una base insatisfactoria para la protecci6n constitucional del discurso politico, pues lleva a centrarse en la peligrosidad del discurso en cuesti6n, como si por el hecho de ser peligroso el discurso se convirtiese en un delito" 49 â&#x20AC;˘ Sentado que la propagaci6n de las ideas puede producir un daii.o social de los que el Gobierno esta llamado a prevenir (en el caso de la apologia del genocidio o del terrorismo, eso parece evidente) habra de reconocerse que ese prius 16gico de la proporcionalidad que consiste en la existencia de un interes tutelado (o, si se prefiere, de una finalidad de tutela) constitucionalmente legitimo no se halla absolutamente ausente. De modo que el rechazo del castigo de la mera apologia, desde la perspectiva de una configuraci6n racional del ordenamiento juridico, ha de proceder, si procede, de otras causas. 0 quizas quepa tambien decir, expresando lo mismo desde otra perspectiva, que la idea de inexistencia de bien juridico no se halla del todo bien formulada.
4. Apologia del delito y libertad de expresi6n
Ciertamente la doctrina mayoritaria se cuida de advertir que el castigo de la mera apologia puede constituir una injerencia ilegitima en el derecho a expresar libremente las ideas y opiniones que se profesen; pero, no deslinda adecuadamente el plano de la libertad de expresi6n del de la inocuidad, de modo que no se sabe bien si la conducta se califica de inocua en raz6n de que hay un derecho fundamental que la ampara, o se afirma que la ampara un derecho fundamental en virtud de su inocuidad.
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Tribe, L.H., American Constitucional Law, Mineola, New York, 1988, pags. 789 y ss .. Rawls, J., Sabre /as libertades, Barcelona, 1996, pag. 98. Me he permitido retocar la traducci6n.
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Examinada anteriormente la perspectiva de la inocuidad, analizaremos ahora, de modo exclusivo, el problema de la libertad de expresi6n. Quisiera partir, en ese amilisis de la tesis de Mill, tal y como la reformula Scanlon, a saber: "Hay ciertos dafios que, aunque no sobrevengan sino por efecto de determinados actos de expresi6n, no pueden, sin embargo, tomarse como parte de una justificaci6n de la limitaci6n legal de esos actos. Tales dafios son: a) dafios a ciertos individuos, consistentes en que estos adquieren falsas creencias a consecuencia de dichos actos de expresi6n; b) consecuencias nocivas de hechos realizados como resultado de esos actos de expresi6n, cuando la relaci6n entre los actos de expresi6n y los nocivos consiguientes consiste simplemente en que el acto de expresi6n indujo a los agentes a creer (o acentu6 su tendencia a creer) que esos actos meredan realizarse". 50 La tesis expuesta ha de precisarse sefialando que no es incompatible con el castigo de la inducci6n o de la provocaci6n siempre que, cualquier cosa que sea lo que se entienda por inducci6n o provocaci6n, implique algo mas que una mera comunicaci6n de razones a favor de la realizaci6n del acto. Como entiendo que la inducci6n 0 la provocaci6n implican bastante mas que una simple comunicaci6n de razones, esto es, que son procesos comunicativos viciados en los que la raz6n de castigar reside precisamente en el vicio concurrente, no en la comunicaci6n misma, es claro que, para mi, el castigo de la inducci6n o de la provocaci6n no entra en conflicto con la tesis Mill-Scanlon que acabo de adoptar. Dicho esto, me limitare a defender esa tesis de modo muy sencillo, porque, en mi opinion, es casi una mera tautologia. De modo que, si uno admite que la libertad de expresi6n es una libertad basica y acepta la prioridad de las libertades basicas, tal como la formula Rawls 51 , ha de concluir necesariamente propugnando la tesis propuesta. Asi, parece obvio que no pueda limitarse la libertad de expresi6n por el riesgo o dafio de que los individuos adquieran falsas creencias a consecuencia de actos determinados de ejercicio de aquella. Pues esta claro tanto que toda expresi6n falsa provoca el riesgo de que otros adquieran creencias falsas cuanto que la libertad de expresi6n no puede quedar reducida a las expresiones verdaderas. Un regimen politico que s6lo reconociera el derecho a expresar la verdad constituiria una negaci6n viviente de la libertad de expresi6n, entre otras muchas cosas p01路que es muy discutible que haya algo asi como "la" 50
Scanlon, T., Teor(a de la libertad de expresi6n, en: R.M. Dworkin: La Filosofia del Derecho, Mexico, 1980, pag. 299. 51 Rawls, J. Sabre las libertades, cit., pags. 37 y ss ..
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verdad y, mas aun, que de haberlo, podamos conocerlo nosotros. Mas bien sucede que nuestro conocimiento avanza hacia creencias mejores (es decir, mejor justificadas) a traves del debate y , la discusion con otras que lo son menos o que resultan, incluso, del todo inaceptables. Dicho de otro modo: no hay la verdad, sino la busqueda de la verdad, de la que lo falso resulta ser un momento imprescindible, de modo que limitar la libertad de expresion a las expresiones "verdaderas" seria tanto como negarla. Y a la misma concepcion cabe llegar si, en lugar de la verdad se trata del bien o de lo justo. La segunda parte de la tesis se resume diciendo que no cabe imputar a los actos de expresion las consecuencias que de ellos deriven a causa de las acciones de otros realizadas en virtud de un proceso de deliberacion racional y libre y que, por tanto, no cabe limitar la libertad de expresion sobre la base de los danos que, eventualmente, puedan producir tales acciones. El fundamento de este aserto radica en que el orden politico racional, en el que la expresion ha de ser una libertad basica, presupone una sociedad de seres iguales y autonomos, es decir, de seres que se rigen por su razon y, en consecuencia, han de ser capaces de decidir correctamente por si mismos, examinando todos los argumentos, incluso los que presuntamente conducen a una solucion incorrecta. No seria congruente presuponer una sociedad de seres de tal naturaleza (y asi son, al menos idealmente, los ciudadanos de una democracia) y dejar en manos del Estado la decision acerca de si deben conocer o no determinadas clases de ideas, creencias o razones, por nefastas que puedan parecer. Pues con ello se les negaria, al menos en parte, la capacidad de decidir autonomamente, transfiriendola al Estado. Y tampoco lo seria, puesto que solo la decision racional de alguno de ellos ha producido las acciones que se consideran nocivas, proyectar ese resultado hacia atras, mas alla de dicha resolucion racional 52 . En conclusion: "aplastar la serpiente en el huevo" 53, conminando penalmente la simple expresion de opiniones y creencias "revela una inadmisible falta de confianza en la capacidad de la sociedad democratica para formar sus propias convicciones" 54 . Naturalmente, esa conclusion no es, como ya se ha anticipado, un juicio acerca de la constitucionalidad del castigo de la apologia del delito. Tal juicio no puede emitirse desde la racionalidad abstracta; sino que ha de atender a la concreta formulacion constitucional de la libertad de expresion; ni puede recaer sobre una, tambien abstracta, expresion de razones en un marco comunicativo
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Hay, pues, una prohibici6n de regreso, que rompe el nexo de imputaci6n entre la expresi6n
y el daf10. 53 Martinez Sospedra, M., Aplastar la serpiente en el huevo, en: Re vista General de Derecho, num. 664-665, Valencia, enero-febrero 2000, pags. 99 y ss .. 54 Cuerda Arnau, M.L., El denominado delito de apologia del genocidio. Consideraciones constitucionales, en: Revista del Poder Judicial, num. 56, 1999 (IV), pag. 117.
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intachable, sino que ha de proyectarse sobre tipos penales concretos aplicados en circunstancias concretas. Ni siquiera constituye una directriz politicocriminal, que solo podria emitirse analizando las circunstancias reales en que se produce una determinada legislacion. Pero, resulta enormemente significativa para calibrar el valor de cualquier sistema que se pretenda democratico. Asi, ha podido afirmar John Rawls lo siguiente: "La historia del uso por los gobiernos del delito de libelo sedicioso" (paralelo al de apologia) "para suprimir la critica y el disenso y mantener su poder demuestra la gran significacion de esta libertad particular para cualquier esquema plenamente adecuado de libertades basicas. En tanto en cuanto este delito existe, la prensa publica y la libre discusion no pueden desempefiar su papel de informar al electorado . Y, obviamente, contemplar el delito de libelo sedicioso socavaria las mas amplias posibilidades de autogobierno y las varias libertades necesarias para su proteccion. De ahi la gran importancia del caso N. Y. Times v. Sullivan en el que el Tribunal Supremo no solo rechazo el delito de libelo sedicioso sino que declaro inconstitucional ahora la Ley de sedicion de 1789, fuese o no inconstitucional en el momento en que se promulgo. Fue juzgada, por asi decirlo, por el tribunal de la historia, y resulto deficiente" 55 .
5. Una consecuencia dogmatica: la concepci6n procedimental del bien juridico En los dos epigrafes anteriores se ha llegado a conclusiones que no dejan de producir algun tipo de insatisfaccion. En efecto, de una parte y partiendo del modo comun de entender el bien juridico, se ha llegado a la conclusion de que el castigo de la apologia no infringe las exigencias del principio de ofensividad; sin embargo, de otra, esto es, desde la perspectiva de la libertad de expresion, se ha extraido la conclusion de que el castigo de la simple apologia no puede defenderse en terminos puramente racionales. Con lo cual parece que se comienza afirmando la racionalidad del delito, porque responde a una 55
Rawls, J., Sabre /as libertades, cit., pags. 90-91. Por lo que respecta a! estado actual de la doctrina del Tribunal Supremo Federal norteamericano en torno a la advocacy of unlawfull action, vid. Vives Ant6n, T.S. (Ponente), en: lnforme sabre el anteproyecto de C6digo Penal de 1992 del Consejo General del Poder Judicial, en: Cuadernos de Politica Criminal, mim. 48, 1992, pags. 691-692. En cuanto a! TEDH ha ded icado a! problema varias resoluciones recientes [Sentencias 26241/1999, de 28 de septiembre (ea so Ozttirk);26259 /1999, de 8 de julio (ea so Si.irek); 26255/1999, de 8 de ju lio (ea so Erdogdu); 26254/1999, de 8 de julio (caso Gerger); 26253/1999, de 8 d e julio (caso Si.irek); 2652/1999, de 8 de julio (caso Okcuoglu); 26251/ 1999, de 8 de julio (caso Si.irek); 26250/1999, de 8 de julio (caso Si.irek); 26248/1999, de 8 de julio (caso Ceylan); 26246/1999, de 8 de julio (caso Polat); 26245/1999, de 8 de julio (caso Arslan) y 26244/1999, de 8 de julio (caso Karatas)].
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adecuada finalidad de tutela, para acabar negandolo porque el ordenamiento no puede ofrecer, en tales supuestos, ese . tipo de tutela. Se tratarfa de una tutela que podria ser, a la vez, realmente necesaria y racionalmente imposible. Y eso es lo que hace parecer a la libertad de expresi6n "des de cierto pun to de vista, irracional" 56 â&#x20AC;˘ Esa sensaci6n de irracionalidad quizas no puede evitarse del todo; pero, puede, al menos, paliarse si se eliminan determinados modos de hablar del bien jurfdico. En efecto, a menudo la doctrina mayoritaria habla del bien juridico en terminos de objeto, como si fuera un objeto ideal (el objeto de protecci6n), delimitado por el tipo abstracto, al que se contrapone, con un status ontol6gico analogo, el objeto material sobre el que recae la acci6n delictiva concreta. Y, como se trata de un objeto, se intenta apresar en un concepto las caracterfsticas sustantivas que lo definen; pero, finalmente, se acaban adoptando definiciones vadas, como las que lo califican de interes o valor, o las que hablan de el como estado de cosas valioso, tutelable y lesionable57, o las que entienden que solo es "una denominaci6n de lo unico que es Hcito considerar digno de protecci6n desde el punto de vista de las misiones del Derecho Penal" 58 o las que lo delimitan como "unidad funcional valiosa para nuestra sociedad definida constitucionalmente y, por lo tanto, tambien para la posici6n y la libertad de los ciudadanos individualmente considerados" 59, etc.. etc ... 60 De modo que aunque se otorga al bien jurfdico un papel de la maxima importancia, tanto como base de la construcci6n dogmatica cuanto como Hmite al poder punitivo del Estado, lo cierto es que no se proporciona un concepto de bien juridico que pueda soportar esas funciones 61 â&#x20AC;˘ Y si no se proporciona es porque es imposible reunir en una clase unitaria, v.g., el interes del Estado en la vida humana, en el buen funcioScanlon, T., Teoria, cit., pag. 286. Jager, H., op. cit., pag. 13. 58 Roxin, C., Franz van Liszt y la concepci6n politicocriminal del Proyecto Altemativo, en Problemas btisicos del Derecho Penal, Madrid, 1976, pag. 47. Este autor comienza aclarando que "el concepto de bien juridico no es una varita magica con cuya ayuda se pudiera separar sin mas, por medio de la subsunci6n y la deducci6n, la conducta punible de lo que debe quedar impune", lo que equivale a reconocer que estamos ante un concepto basicamente inutil. 5 ' Rudolphi, H .J. Los diferentes ... cit., pag. 344. Con esta definici6n trata Rudolphi de conciliar !as tendencias personalistas y transpersonalistas en la concepci6n del bien juridico (vid. a! respecto, Schi.inemann, en Consideraciones criticas sabre la situaci6n espiritual de la ciencia juridico-penal alemana. Bogota, 1996, pags. 13 y ss .. 6() Para otras definiciones del bien juridico propuestas en la actuaclidad, vid. Fiandaca, G., Il "bene giuridico" come problema teorico e come criteria di politica criminale, en Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale. Nuova Serie -Anno XXV (Milan, 1982, pags. 42 y ss.). 61 A un dilema parecido conduce la idea de daiiosidad social. Dado que no es posible identificar daf\osidad social con disfuncionalidad para el sistema social, como pretendiera Amelung, pues la delincuencia no siempre es disfuncional al sistema social, tampoco puede formularse, como sefialara Jakobs (vid. nota 4) un concepto objetivo de lo socialmente daf\oso. 56 57
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namiento de la Administraci6n de Justicia y en la efectividad y vigencia del propio ordenamiento: estamos ante cosas que no cabe reconducir a un genero comun; y aunque a todas llamamos bienes juridicos, no presuponemos que sean abarcables por un concepto unitario. En otros lugares he criticado la universalizaci6n d el juego de lenguaje que pudieramos denominar "objeto-designaci6n". El caso del bien juridico no es sino uno mas, en el que el uso inadecuado del approach objetivo induce a diversas confusiones. La primera de ellas es que se le concibe como una suerte de idealidad prejuridica, que el ordenamiento encuentra ya configurada. La segunda, que como el bien juridico "es" un objeto todos los que llamamos bienes juridicos han de ser, a su vez, objetos pertenecientes a la misma clase, esto es, han de tener algo comun que nos permita formular un concepto valido para todos y cada uno de ellos. Nada tan tranquilizador como un concepto: parece dar realidad a los "objetos ideales", como la experiencia la confiere a los materiales. Pero, el bien juridico no es algo asi como un numero, un objeto ideal que remita a notas definitorias claramente determinadas. Los bienes juridicos son tan diversos que no pueden constituir un genero integrado por realidades que tienen en comun: a lo sumo, cabra hablar de "una familia" cuyos diferentes integrantes estan enlazados, no por algo que tengan en comun, sino por una suerte de parentesco62 â&#x20AC;˘ La tercera confusion, emparentada directamente con la segunda, es que la misma idea d e un concep to de bien juridico produce una suerte de nivelaci6n entre todos los bienes juridicos: todos han de definirse igualmente por mas que la funci6n que han de desempeiiar - la de justificar el castigo - sea incompatible con esa nivelaci6n. Pues el castigo habra de justificarse atendiendo a la naturaleza y entidad de la injerencia en las libertades que el delito y la pena representen y, siendo tan diversas, distintas habran de ser tambien las justificaciones posibles. For ello, he propuesto la que denominare concepci6n procedimental del bien juridico63 . Lo caracteristico de esa concepci6n no es que acepte, sin mas, como bienes juridicos dignos de protecci6n los que ellegislador, por el procedimiento democratico, tenga a bien escoger; sino que concibe el bien juridico, no en terminos de objeto, sino en terminos de justificaci6n. Hablar del bien juridico como un algo, como un objeto ideal, no es desde esta perspectiva sino apuntar a las razones que pueden justificar inmediatamente el delito y la pena. Asi concebido, el bien juridico no es sino un momento del proceso de justificaci6n racional de la limitaci6n de la libertad 64 â&#x20AC;˘ Desde esta perspectiva, la paradoja 62
Como predicaba Wittgenstein de los juegos (vid. Investigaciones filos6ficas. Barcelona, nums.
68 a 71).
Vi d . Vives Ant6n, T.S., Fundnmentos, cit., pag. 484; Cobo del Rosa l-Vives Ant6n, Derecho Penal. Parte General (5" edici6n). Madrid, 1999, pags. 318 y 319. 64 A algo semejante parece a pun tar Hassemer cuando, al ana lizar el va lor de la teorfa del bien jurfdico lo cifra "en la posibilidad de ofrecer argwnentos a la hora de aplica r el Derecho penal" 63
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conceptual de la libertad de expresi6n, a la que antes se ha aludido, queda disuelta. Porque cuando decimos que el castigo de una determinada conducta representa una injerencia en la libertad de expresi6n que no puede justificarse racionalmente estamos queriendo decir, desde luego, que no puede haber bien juridico alguno que la justifique y, por lo tanto, que el ordenamiento no considera lesiva tal conducta, por mas que a nosotros pueda parecernos que lo es 65 . Dicho esto, conviene hacer algunas precisiones acerca de los presupuestos y del posible rendimiento de esa concepci6n que he denominado procedimental del bien juridico. En primer lugar, puesto que parte de la imposibilidad de formular un concepto generico de bien juridico no se halla, obviamente, en condiciones de situar en un tal concepto el punto de arranque de la dogmatica; y cosa distinta es la de que el estudio de las distintas figuras de delito haya de comenzarse, precisamente, delimitando el respectivo bien juridico. En segundo lugar, los distintos bienes juridicos no pueden extraerse, sin mas, de los valores sociales previos al Derecho. Como ha puesto de manifiesto el analisis de la apologia comportamientos que, desde una perspectiva naturalistica, pudieran ser considerados lesivos, han de tenerse por inocuos en virtud de que no representan sino el ejercicio de un derecho fundamental, (en este caso, la libertad de expresi6n). Pero, el que no pueda hablarse de bienes juridicos en terminos totalmente independientes del Derecho no significa que, como sostuvieron las concepciones metodol6gicas, el bien juridico sea s6lo una expresi6n abreviada del fundamento teleol6gico del tipo concreto. En la concepci6n que se propane, el bien juridico concreto se conforma, no s6lo a partir de los tipos penales; sino tambien de la Constituci6n y, espedficamente, (Hassemer W. y Muftoz Conde, F., Introducci6n a la criminologfa y a/ De1-echo Penal. Valencia, 1999, pag. 112. Para una exposici6n mas amplia de la concepci6n del bien juridico de este autor, que no es de este lugar, vid. Hassemer, W., Theorie und Soziologie des Verbrechens. Frankfurt, 1973, especialmente pags. 87 y ss. y 98 y ss. 65 No obstante, el problema valorativo subsiste. Pues que una determinada medida no tenga justificaci6n racional no quiere decir que no deba adoptarse en ningun caso o, dicho con palabras de Scanlon "no significa .... que en un caso limite no pueda darse por valido que ciertas personas, que normalmente ejercitan la clase de autoridad que la teoria politica democratica reputa legitima, tomen medidas que esa autoridad no justifica. Estos actos tendrian que justificarse por otras razones (por ejemplo, utilitarias), y el derecho de sus agentes a ser obedecidos no seria el de un gobierno legitimo en el sentido usual (democratico). No obstante, la mayoria de Ios ciudadanos podria tene1~ segun este autor, en determinadas circunstancias, buenas razones para obedecer" (Scanlon, T., Teorfa, cit., pags. 316-317. La cursiva es mia y expresa el enfasis en la excepcionalidad que pone el autor en el conjunto del articulo). No descalificaria en absoluto ese argumento; pero, creo que !as razones para obedecer y la validez de la medida antidemocratica operan en pianos distintos. Puede, tal vez, haber buenas razones para obedecer una medida ilegitima; pero eso no la convierte en legitima. Creo que en una democracia, a mas de la justificaci6n procedente de Ios principios que la rigen, s6lo puede invocarse la justificaci6n de necesidad; pero, la necesidad es mucho mas estricta que la excepcionalidad, a la que Scanlon se refiere
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del contenido de los derechos fundamentales, desde los que se decide hasta que punto y en que sentido una determinada prohibicion penal resulta constitucionalmente legitima. El bien juridico asi determinado, por lo tanto, no preexiste al Derecho; pero si a las concretas tipificaciones penales: se trata de una redefinicion de los bienes juridicos que asume como punto de referencia no solo el Codigo Penal, sino tambien la Constitucion66 . En tercer lugar, parece claro que la concepcion procedimental del bien juridico, en cuanto indaga el fundamento de cada una de las prohibiciones tipicas constituye un criteria interpretativo esencial pues, como he sefialado en otros trabajos, el contexto de justificaci6n, al que la determinacion del bien juridico remite, constituye un momento esencial del contexto de sentido de las normas penales67 â&#x20AC;˘ Aqui se trata, ademas, de la constatacion de que, puesto que no cabe interpretacion alguna contraria a la Constitucion, el momento d e conformidad a ella es un momento generico de cualquier interpretacion penaL En cuarto lugar, ha de precisarse que el bien juridico, concebido procedimentalmente, si bien puede proporcionar el contenido material de lo injusto de cada figura delictiva, no esta en condiciones de delinear un nt1cleo de injusto "comun a todo comportamiento antijuridico" 68 sencillamente porque no es un concepto, como acabamos de ver, sino una simple orientacion que alberga contenidos de injusto que solo tienen en comun el dato formal de su contrariedad al Derecho, sin que, en la mayoria de los casos, compartan nada materiaL Por ultimo, la idea de bien juridico representa un limite al legislador; pero, ese limite no se halla expresado en un concepto, sino que remite a los diversos preceptos constitucionales y a sus tradiciones interpretativas: a partir de ellas se trazan los limites que el legislador no puede rebasar a la hora del castigo y, por lo tanto, aquellos objetos y valores de la vida social susceptibles de ser protegidos penalmente y aquellos que no lo son. Podria decirse que, con esta formulacion, el bien juridico resulta superfluo, pues, para conocer los limites de la legislacion, basta con remitirse a las normas constitucionales; sin embargo, la legitimidad o ilegitimidad constitucional de los preceptos penales tiene como primera condicion que estos tutelen algo que pueda ser considerado desde la perspectiva constitucional un bien. Con lo que la idea de bien sirve de intermediario entre la norma constitucional y la penal, conservando asi el papel basico que se le ha venido atribuyendo por la doctrina mayoritaria.
66 Pulitano, D. La teoria del bene giuridico fm cod ice e costituzione, en La Questione Crimina/e. Anno VII - n. 1, pag. 113. 67 Vid. Vives Ant6n, TS., Dos problemas del positivismo jurfdico, en La libertnd coma pretexto. Va lencia, 1995, pags. 135 y ss .. 68 Roxin, H.J., Los diferentes, cit., pag. 329.
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LIMITES DA INTERVEN<::AO PENAL EM TEMPOS DE TERRORISMO
Winfried Hassemer
LIMITES DA INTERVENC::AO PENAL EM TEMPOS DE TERRORISMO* Winfried Hassemer 1
I.
Situa~ao
0 Direito Penal tern passado, na Europa, por urn forte desenvolvimento desde, aproximadamente, os anos setenta do seculo passado (sem origem nos acontecimentos do 11 de Setembro de 2001 2 ). Este desenvolvimento abrange na mesma medida o Direito Penal materiaP e o Direito Processual Penal 4• E sustentado pela intensifica<;:ao da politica criminaP, que nao contrariou de forma alguma a vontade da popula<;:ao, antes tendo encontrado expectativas positivas e assentimento de cidadas e cidadaos. A sua razao de ser pode ser explicada plausivelmente, creio 6 • Esta explica<;:ao indica que os desenvolvimentos em Direito Penal e politica criminal sao poderosos e estaveis. Por esta razao e dificil determinar analiticamente, prever prognosticamente e assegurar normativamente onde tern que ser colocados em definitivo os limites de tal des en vol vim en to 7•
· Conferencia proferida em Lisboa, na Universidade Lusiada em Outubro de 2004. (Tradw;ao de Nuno Casal). 1 Professor no Instituto de Ciencias Criminais e de Filosofia do Direito da Universidade Johann Wolfgang Goethe (Frankfurt-am-Mein); Vice-Presidente do Tribunal Constitucional Federal; Presidente da Segunda Sec~ao (Karlsruhe). Doutor "honoris causa" pela Universidade Lusiada de Lisboa. 2 0 11 de Setembro (e as suas consequencias politicas, sociais e juridicas) vieram certamente intensificar e acelerar este desenvolvimento. Este, todavia, provem de camadas mais antigas e mais profundas, como se pode ver pelos eventos (em I.) e compreender pela explica~ao dos eventos (emii.). 3 A este respeito v. I.l. 4 Em I.2. 5 Em I.3. 6 Em II. 7 Em III.
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1. Direito Penal material
As reformas do Direito Penal material de desde os anos setenta do seculo passado, na Alemanha e em ordens juridicas comparaveis, caracterizam-se pela introdw;ao de novos tipos de crimes (por exemplo, Direito Penal do ambiente, Direito Penal econ6mico) e pelo agravamento das comina<;6es penais (por exemplo, Direito Penal dos estupefacientes, criminalidade organizada) . 0 legislador tern utilizado metodicamente, corn mais energia e em maior extensao, urn instrumento ja ha muito conhecido e utilizado: os crimes de perigo abstracto. Esta forma de crime auxilia invulgarmente a aplica<;ao do Direito Penal na pratica judicial. Ao contrario dos tipos de crimes de lesao, os tipos de crimes de perigo abstracto renunciam a uma parte dos pressupostos tipicos; nao descrevem qualquer resultado, e por isso tambem nao exigem qualquer rela<;ao de causalidade entre a ac<;ao e qualquer dano, satisfazendo-se corn a descri<;ao de determinada actua<;ao abstractamente perigosa (por exemplo, burla na obten<;ao de subsidios atraves da entrega de declara<;6es falsas 8, por compara<;ao corn a descri<;ao tradicional da burla corn os elementos tipicos do engano', do erro, da disposi<;ao patrimonial e do dano 9). Por esta forma o legislador facilita ao juiz o apuramento dos elementos do facto tipico. Simultaneamente dificulta ao defensor penal a realiza<;ao da sua tarefa: as suas areas de actua<;ao diminuem a razao da diminui<;ao dos pressupostos da punibilidade. De mais a mais, o legislador refugia-se em bens juridicos que sao tao universais quanta formulados vagamente; reduz por esta forma as possibilidades de critica met6dica ao alargamento dos tipos de crime (por exemplo, a saude publica como bem juridico do Direito Penal dos estupefacientes, a funcionalidade dos mercados de capitais no Direito Penal econ6mico). 0 ilicito penal torna-se difuso, perde contornos normativos (e morais). Infidelidade devido a malogro de urn neg6cio de risco e alga bem diferente de ofensas perigosas a integridade fisica devido a uma serie de golpes, 0 que tambem pode ser verificado nos respectivos processos penais 10 . § 264 do dStGB (C6digo Penal alemao, N.d.t.). intensificar e acelerar este desenvolvimento. Este, todavia, provem de camadas mais antigas e mais profundas, coma se pode ver pelos eventos (em I.) e compreender p ela explicac;ao dos eventos (emii.). ' A este respeito v. I.l. ' Eml.2. ¡ Em I.3. ' Em II. ' No Direito Penal portugues, ashkia (N.d.t.). 9 § 263 do dStGB. 10 0 que encontra correspondencia no metodo moderno de p6r termo antecipadamente, atraves de acordo, a processos penais com substractos f<kticos complexos; ver a este respeito I.2. 8
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2. Direito Processual Penal
Encontra-se urn desenvolvimento comparavel no ambito do Direito Penal formal. Aqui as reformas legais respeitam sobretudo a duas areas: uma participac;ao mais intensa da vitima (a custa tambem dos direitos processuais do arguido) e urn refon;o dos instrumentos de controlo, sobretudo nas fases preparat6rias. Na pratica judicial acresce ainda o instrumento desformalizado do «deal» que p6e termo ao processo atraves de urn acordo entre os intervenientes, tornando a justic;a penal mais barata e mais rapida a custa das formalidades tradicionais. A vitima desempenha urn papel crescente no discurso geral sobre a politica criminal, e ve sensivelmente melhorados os seus direitos de intervenc;ao e hip6teses de reparac;ao em Direito Processual Penal. No discurso politico-criminal 0 arguido (ou em geral: 0 cidadao) e posto a mar gem, por se dar a preferencia a considerac;6es e argumentos que destacam a necessidade de protecc;ao efectiva da vitima. Este discurso favorece a criminalizac;ao. 0 paradigma <<ajuda ao autor (produto de defeitos de socializac;ao)» foi substitufdo pelo paradigma <<protecc;ao de vitimas inocentes perante a criminalidade». As reformas no Direito Processual Penal levadas a cabo desde os anos setenta do seculo passado tern-se concentrado na fase do inquerito. Objectos classicos de reforma como a audiencia de julgamento, a prisao preventiva ou a defesa penal tern estado em segundo plano . 0 terrorismo e a globalizac;ao sao t6picos poderosos que tern persistentemente influenciado a necessidade de controlo do Direito Processo Penal, e continuam a faze-lo. Em termos simplificados, argumenta-se que, perante novas e graves amec;as e precisamente por causa delas, o estado de direito tambem tern que manter a sua eficiencia e utilizar, por sua vez, os meios a disposic;ao dos criminosos. Quando se fala nestes meios pensa-se, antes de mais, na colaborac;ao inter-fronteiras de organismos de investigac;ao e na utilizac;ao de meios tecnicos de prevenc;ao de perigos e combate a criminalidade. <<Colaborac;ao inter-fronteiras» nao consiste apenas na ultrapassagem de fronteiras nacionais, mas tambem das fronteiras entre diferentes entidades de investigac;ao a nivel do estado. Assim, o projecto de tratado constitucional europeu, por exemplo, preve urn <<mandata de captura europeu», bem como a criac;ao de eficazes instituic;oes europeias de combate a criminalidade. Discutese tambem a junc;ao de informac;6es de servic;os secretos e policia. 0 alargamento dos poderes de investigac;ao em processo penal, por exemplo, sacrifica dois classicos limites de intervenc;ao do Direito Penal: a suspeita de pratica de urn crime como pressuposto da intervenc;ao penal e a abertura ao arguido, em principio, das investigac;6es de natureza penal que contra ele corram. As possibilidades tecnicas de vigilancia acustica e 6ptica de determinados espac;os, as escutas teief6nicas, a observac;ao policial duradoura
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e sistematica, a utilizac;ao de agentes infiltrados, a recolha sistematica de dados, ja constituem urn processo oculto, devido a utilizac;ao de tecnologias de informac;ao; o investigado que tivesse conhecimento da vigilancia a que estava a ser submetido podia esvazia-la. Por esta forma os instrumentos classicos de investigac;ao em Direito Penal (como as revistas a pessoas, as buscas ou as apreens6es) podem ser complementados- ou contrariados. Dai resultam consequencias para as possibilidades de defesa do arguido, que s6 sabera de tais praticas - quando muito - depois do encerramento do inquerito, nao podendo tomar posic;ao em relac;ao a elas; resultam tambem consequencias para o ÂŤclima>> da fase processual do inquerito. A antecipac;ao do Direito Penal material11 conduz, em Direito Processual Penal, a desvalorizac;ao da suspeita da pratica do facto como limiar da intervenc;ao. ÂŤlnvestigac;oes previas>> destinam-se a revelar zonas perigosas antecipadamente, isto e, antes da realizac;ao do perigo. Os participantes na comunicac;ao a descobrir e vigiar, que nao sao pessoalmente objecto de qualquer suspeita, sao forc;osamente envolvidos na investigac;ao penal (escutas telef6nicas, tratamento de dados, observac;ao policial, agentes infiltrados). Para alem disso, o legislador envolveu ainda outras pessoas ÂŤacompanhantes>> - tambem nao suspeitas - na investigac;ao policial de novo estilo: a rede de controlo do processo penal tornou-se ampla e cerrada.
3. Politica criminal Os desenvolvimentos descritos tern naturalmente sido criticados, tambem e sobretudo por parte das ciencias juridico-criminais. Todavia, tern-se baseado tambem em aceitac;ao e concordancia generalizadas que sao pouco habituais na area da seguranc;a interna, na qual normalmente se verificam grandes divergencias. Ao contrario do que acontecia na tradic;ao do Direito Constitucional classico europeu, o estado ja nao surge como Leviatao, ameac;ador dos direitos civis contra cuja poderosa ingerencia surgiram os direitos fundamentais como direitos de defesa. E visto antes como instituic;ao que esta ao lado dos cidadaos e garante a sua seguranc;a contra ameac;as externas. 0 estado mudou fundamentalmente de papel; converteu-se, de ameac;ador das liberdades em garante da seguranc;a. Ja nao se sente a classica relac;ao de tensao entre liberdade e seguranc;a, que se expressa na experiencia de que o aumento da seguranc;a contra a criminalidade esta associada a limitac;ao das liberdades civis, caso seja organizada atraves do Direito Penal.
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0 paradigma absolutamente dominante e a preven<;ao. Do Direito Penal espera-se antes de mais efica.cia na protec<;ao dos bens juridicos e na cria<;ao de seguran<;a perante a criminalidade, ja menos a protec<;ao de direitos fundamentais amea<;ados. Nos anos setenta isto era ainda visto d e modo totalmente diferente. Tambem a discussao sobre a existencia ou mesmo a instituit;ao de urn «Direito Penal do inimigo» (uma discussao que, a meu ver, incide sobre nao menos que os limites do Direito PenaP 2) atesta que o Estado - corn o acordo dos seu s cidadaos - utiliza instrumentos cada vez mais acutilantes contra situa<;6es amea<;adoras.
II. Explicac;:oes
E dificil,
naturalmente, sintetizar teoreticamente estes desenvolvimentos. Pode dizer-se em geral que por tras de todos estes desenvolvimentos se encontra o refor<;o de necessidades de controlo contra desvios amea<;adores. Preven<;ao e seguran<;a sao conceitos construidos mais empirica do que normativamente, e conotados mais corn «defesa>> do que corn «ataque>>; o desejo de justi<;a cede perante o desejo d e seguran<;a. «Troca de liberdade por seguran<;a>> tornou-se na Alemanha urn lema (embora utilizado em sentido critico). Direitos civis em tempos valorizad os como a protec<;ao de dados e protec<;ao da privacidade perderam em grande medida a sua for<;a de convic<;ao e validade. Caso se pergunte pela razao de tais desenvolvimentos, a resposta sera ainda mais problematica. Todavia ha algumas exp lica<;6es cientificas que podem, pelo menos para mim, tornar a questao mais compreensivel.
1. Erosao das normas
Os soci6logos do direito alemaes ja encontraram, analisaram, lam entaram e explicaram ha algum tempo a «erosao de normas sociais>> 13 • Entende-se por esta expressao que expectativas juridicas naturalmente estruturadas no nosso dia a dia estao a minguar significativamente. Tais expectativas sao normas que nao se fundam em si pr6prias e tambem nao podem ser fundadas, que sao naturalmente vividas e nas quais podemos pm·tanto, de certo modo, confiar cegamente. Motivos para esta erosao podem ser a migra<;ao, corn a importa<;ao 12 Esta discussao radica em interven~6es do m eu colega jubilado de Bona Giinther Jakobs, e tern par objecto uma forma <<moderna>> de Direito Penal que reage m ais intensamente a amea.;as mais graves coma o terrorismo ou a erosao de normas devidas a glob al iza~ao, e que assegura as garantias tradicionais do Direito Constitucional, Penal e de Processo Penal em rela<;ao a <<cidadaos >>, mas ja nao a <<inimigos>> . 13 Teve aqui urn particular m erito a Assoc ia ~ao para a Sociologia do Direito.
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de outros modelos normativos, culturais e socials, ou tambem o refor<;:o de outros modelos de ac<;:ao sub-culturais e .a lternativos. Exemplos desta erosao sao, nomeadamente, a violencia crescente e desenfreada entre jovens ou agressoes contra circulos juridicos estranhos que eram tradicinalmente objecto de tabu. Encontram-se, por exemplo, em determinadas emissoes televisivas cujas mensagens de falta de escrupulos, dessolidariza<;:ao, narcisismo, humilha<;:ao e exibi<;:ao encontram grande interesse no publico. Esta erosao nao leva apenas ao definhamento de determinados modelos normativos para alumiar e suavizar o quotidiano (como as boas maneiras e a discri<;:ao), mas sobretudo a uma regressao de estruturas normativas dispensaveis. As nossas expectativas de dia a dia tornam-se menos seguras e este, por esta forma, mais complexo e dificil. Esta erosao tern provocado a reac<;:ao do estado para substituir ou sustentar as normas desaparecidas ou enfraquecidas. Esta tentativa depara corn dificuldades espedficas. Foi ensaiada em ac<;:ao entre nos, por exemplo, atraves do conceito de ÂŤzero toleranceÂť, contra tipos de conduta desordeira que nao alcan<;:am o limiar da criminalidade. Esta interven<;:ao tern falhado, dado que normas sociais desenvolvidas naturalmente nao podem ser plenamente substituidas por normas estatais formalizadas.
2. Sociedade de risco
Outra abordagem que me parece plausivel e o paradigma da ÂŤsociedade de riscoÂť 14 . Exprime a ideia de que nas complexas sociedades modernas os cidadaos - a quem cabe, em ultima analise, decidir sobre a politica de seguran<;:a interna- tern a percep<;:ao da existencia de grandes riscos, que assumem qualidades amea<;:adoras muito especificas: inseguran<;:a da moeda, catastrofes naturais, violencia entre crian<;:as e jovens, queda social inevitavel, pobreza na velhice, migra<;:ao agressiva, terrorismo, rios de droga. Estes riscos dominam o nosso discurso sobre seguran<;:a e liberdade. Distinguem-se pela mistura explosiva de duas propriedades: por urn lado, caso se realizem terao consequencias devastadoras; por outro, as pessoas estao cada vez mais convencidas de que tais riscos sao incontrolaveis, nao e possivel erigir nada de racional contra eles. 0 resultado e uma desorienta<;:ao destrutiva: uma disposi<;:ao crescente de defesa cega contra perturba<;:6es e perigos, e a necessidade crescente de controlar pelo menos as situa<;:6es de perigo que podem ainda ser controladas, ou que se ere poderem ainda ser controladas.
14 Corn origem no soci6logo Heinrich Beck e recebido em vasto ambito na doutrina juridico-penal alema.
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E possfvel, corn estas considera<;6es, tornar plausfveis o forte desejo de preven<;ao eficaz e as necessidades difundidas de seguran<;a, mas simultaneamente torna-se evidente como sao fnigeis as suas raz6es. 3.
Desorienta~ao
Pode concluir-se, em geral, que se verifica uma certa desorienta<;ao normativa. A necessidade de seguran<;a sentida tanto por qualquer pessoa como por qualquer ser vivo e cuja satisfa<;ao constitui sem qualquer duvida pressuposto de uma vida livre e auto-determinada, ja nao pode, manifestamente, ser assegurada corn serenidade e confian<;a. Os problemas fundamentais de orienta<;ao normativa que defrontamos sao bem demonstrados nas modifica<;6es tect6nicas do relacionamento corn estrangeiros que se verificaram imediatamente ap6s 11 de Setembro de 2001, e que tomaram corpo na consciencia da popula<;ao entre n6s e, nomeadamente, em Fran<;a, quanta ao papel de culturas islamicas e islamistas (<<proibi<;ao de uso do veu>> ). A popula<;ao ja nao esta segura de si propria; encontra-se em grande medida irritavel e irritada. As grandes linhas da polltica de seguran<;a interna sao determinadas, nao pelas amea<;as e riscos reais, mas pelo medo subjectivo dos cidadaos relativamente a tais riscos (o que nao e o mesmo quanta aos seus fundamentos, as suas dimens6es e tambem as suas consequencias!). Por esta razao a <<orienta<;ao>> constitui actualmente urn lema central no discurso sobre a seguran<;a e a liberdade.
Ill. Previsoes Mais difkil ainda do que apresentar uma boa explica<;ao parece ser o prop6sito de prever a evolu<;ao, para amanha e depois de amanha, dos desenvolvimentos apontados. Nao ouso portanto fazer tal previsao a nfvel abstracto, antes chamo a aten<;ao para determinados ambitos e pantos fulcrais relevantes para a discussao dos limites da interven<;ao penaF 5 . Antes de mais e necessaria apurar que vigencia podem ter limites a interven<;ao jurfdico-penal em tempos de terrorismo 16 . Tra<;ar limites contra interven<;6es em posi<;6es jurfdicas constitui cria<;ao de direito. Uma disposi<;ao que determine nao poderem ter lugar interven<;6es em processo penal e onde devem acabar e, no contexto jurfdico, uma norma. Consequentemente, questiona-se ate que ponto tais normas sao hoje em dia fundamentadas e estaveis. 15 16
Em III.2. Ja a seguir III.l.
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1. Vigencia Nos tempos do direito natural, quando se acreditava na existencia de direito supra-positivo e na sua reconhecibilidade, a queshio da vigencia de limites a interven<;ao juridico-penal podia ser facilmente respondida, e a resposta seria perempt6ria: Se o Direito Penal depara corn limites jusnaturalistas, qualquer interven<;ao que ultrapasse tais limites e claramente contraria ao direito natural e, possivelmente, nula. 0 direito natural sempre foi considerado como sistema juridico sobreposto ao direito positivo, pelo qual este se tera que orientar. Os tempos do direito natural passaram, na nossa cultura juridica. Ha cultores da Filosofia do Direito e da ciencia do Direito Penal que aceitam negar sem mais a existencia de urn direito natural. Mas, tanto quanto eu saiba, ja nao ha ninguem a defender que haja regras juridicas de direito natural claramente discerniveis e aplicaveis a determinados factos . Pelo menos nao e possivel invocar sem duvidas tais normas na pratica concreta da politica legislativa e de realiza<;ao de justi<;a. De qualquer modo, estou convencido de que para alem do direito positivo - e do Direito Constitucional positivo - existem criterios juridicamente relevantes pelos quais o direito positivo pode ser orientado ou, pelo menos, julgado. Uma constitui<;ao - e ja nem sequer uma lei «simples» como urn c6digo penal - nao e urn bloco monolitico; constitui antes urn sistema complexo e articulado, tambem do ponto de vista da sua for<;a de vigencia. Assim encontramos, por exemplo, no n. 0 3 do artigo 79. 0 da constitui<;ao alema, valores denominados <<eternos>> que tambem nao sao disponiveis atraves de altera<;ao constitucional: respeito pelos direitos humanos, constitui<;ao democratica da comunidade, estrutura federal do estado. A doutrina constitucional alema tambem conhece a figura do <<direito constitucional inconstitucional», tendo assim consciencia de que nem todas as normas constitucionais adquirem a mesma vigencia. Alem disso, defendo o parecer de que em todas as sociedades existe uma coisa chamada <<cultura juridica», que nao e identica ao direito positivo mas se antep6e a este, que tern tambem significado juridico. Aqui se encontram, nomeadamente, pressupostos constitucionais que nao estao expressamente formulados nas leis, mas que assumem relevo para a vigencia e a continuidade de vigencia das leis. Aqui se encontram ainda plausibilidades que em determinadas sociedades e em determinados momentos hist6ricos se instituem como evidencias, como a proibi<;ao de punir inocentes ou o clever do estado de respeitar a igualdade e a proporcionalidade nos encargos impostos aos cidadaos. Esta <<cultura juridica» nao se encontra formulada, mas tambem nao deixa por essa razao de produzir efeitos. Tambem nao e inalteravel, antes estando sujeita a varia<;6es constantes. Alem disso nao contem indica<;6es precisas, apenas directivas de natureza geral e a longo prazo. Nao obstante tern significado vital para a sobrevivencia do direito nesta sociedade.
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Assim, por exemplo, e diferente serem as normas juridicas contidas em c6digos transpostas para a realidade pratica sem problemas, ou encontraremse lacunas vastas, se nao mesmo sistematicas, na concretiza<;ao do direito. Em ambos os casos encontramos na law in the books normas positivas concordantes, mas na law in practice uma ordem juridica totalmente diferente. E tambem significativo, por exemplo, serem conhecidas e no essencial aceites em determinada ordem juridica situa<;6es de corrup<;ao, ou tal nao acontecer. Assim, a reputa<;ao da justi<;a e da actividade legislativa entre a popula<;ao e frutuosa para a confian<;a dos cidadaos na ordem juridica e, consequentemente, para coisas tao essencias para a vida como a confian<;a nos contratos e nas normas, e para a observancia do direito. Tambem experiencias corn o significado fundamental e a relevancia por que temos que passar, por exemplo, corn a existencia de Guantanamo, ganham a longo prazo significado para a cultura juridica em determinadas sociedades (e permitem alem disso retirar conclus6es sobre a composi<;ao e o teor actual de tais culturas juridicas).
2. Conteudos
Tendo em aten<;ao que as culturas juridicas se modificam lentamente, podemos plenamente indicar limites a interven<;ao penal nas ordens juridicas da Europa ocidental, que se tern mostrado bastante estaveis neste tempo e neste lugar do ponto de vista da cultura juridica. Incluo aqui, por exemplo, a proibi<;ao de tortura em processo penal ou a proibi<;ao de <<sacrificar» inocentes para evitar danos «superiores» (argumento de Caifas na Paixao de Cristo 17). Estes mandamentos contam-se hoje na Europa ocidental, se vejo bem, entre os «indisponiveis» da ordem juridica, integrando o seu cerne inviol<ivel: a cultura juridica dominante. Isto significa que aquelas certezas nao podem ser lesadas, sequer postas em causa, nem em momentos de necessidade, mesmo em situa~oes de afli~ao devido a riscos ou perigos como aqui especifiqueil 8 e tentei explicar 19 . 17 18 19
Evangelho segundo Sao Joao, 18, 14: «i'i preferivel que morra urn s6 homem pelo povo». Em I. Em II. como se pode ver pelos eventos (em I.) e compreender pela explica~ao dos eventos
(emii.). 19
A este respeito v. I.l. Em I.2. 19 Emi.3. 19 Em II. 19 Em Ill. 19 § 264 do dStGB (C6digo Penal alemao, N.d.t.). 19 No Direito Penal portugues, astucia (N.d.t.). 19 § 263 do dStGB. 19 0 que encontra correspondencia no m,etodo moderno de p6r termo antecipadamente, atraves de acordo, a processos penais corn substractos f<\ctico s complexos; ver a este respeito I.2. 19
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Constituern urna especie de «tabu» juridico. Assirn, de acordo corn a nossa doutrina constitucional, ate agora incontes,tada, a dignidade do ser hurnano e sernpre «inviolavel» (artigo 1. 0 , n. 0 1, prirneiro periodo, da GG). Este prindpio e indisputado; a controversia s6 se inflarna a prop6sito da questao subsequente sobre o arnbito da dignidade hurnana, corno acontece corn as discussoes sobre a eutanasia e a clonagern de seres hurnanos. 3. Futuro
Apreciando as controversias actuais na Alemanha sobre este tema, pode neste momento afirmar-se que os padr6es da «cultura juridica» sao fortes, mas nao contam corn a certeza e a estabilidade do direito natural. Tern surgido vozes que defendem, nomeadamente, a relativiza<;ao (a meu ver, supressao) da proibi<;ao da tortura - como nos casos em que urn bombista preso amea<;a fazer explodir uma cidade inteira mas nao da mais indica<;6es, ou quando urn tomador de refens capturado nao revela onde esta sequestrada a vitima em perigo de vida. Em tais casos nao parece evidente para o senso comum dominado por concep<;6es preventivas, ou para o pensamento juridico-penal virado para a vitima, que o respeito, nomeadamente, da proibi<;ao da tortura leve a colocar em perigo a vida da vitima. Na minha opiniao, e hoje em dia extremamente dificil defender aquelas fronteiras indisponiveis a interven<;ao juridico-penal; mas devem ser defendidas e respeitadas. A relativiza<;ao daquelas proibi<;6es levaria a sua destrui<;ao. Por esta forma destruir-se-ia simultaneamente uma cultura juridica de que vivemos. Continua a pressupor-se, apesar de tudo, que e possivel demonstrar convincentemente que tambem urn pensamento penal fixado situativamente, orientado por finalidades preventivas, centrado nas vitimas e intensamente controlador tera que respeitar limites que s6 podem ser fundados a longo prazo. Nao sei se tal e ainda possivel hoje em dia. 19
Supra, I.l. Esta discussiio radica em interven<;6es do meu colega jubilado, de Bona, Giinther Jakobs e tern por objecto uma forma <<moderna» de Direito Penal que reage mais intensamente a amea<;as mais graves como o terrorismo ou a erosao de normas devidas a globaliza<;iio, e que assegura as gara ntias tradicionais do Direito Constitucional, Penal e de Processo Penal em rela<;iio a <<cidadiios>>, mas ja nao a <<inimigos>>. 19 Teve aqui urn particular merito a Associa<;ao para a Sociologia do Direito. 19 Corn origem no soci6logo Heinrich Beck e recebido em vasto ambito na doutrina juridico-penal alema. 19 Em III.2. 19 Ja a seguir III.l. 19 Evangelho segundo Sao Joao, 18, 14: <<E preferivel que morra urn s6 homem pelo povo>>. 19Em I. 19 Em II. 19
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A CAMINHO DA ABERTURA
Jaime Cardona Ferreira
A CAMINHO DA ABERTURA* J.O. Cardona Ferreira 1
Senhor Ministro da Justi<;a - Excelencia. Exmo. Senhor Prof. Doutor Martins da Cruz- Chanceler das Universidades Lusfada e Presidente do Conselho de Administra<;ao da Funda<;ao Minerva. Exmo. Senhor Dr. Filipe Lobo d' Avila - Director Geral da Administra<;ao Extrajudicial. Exmo. Sr. Dr. Joao Perry da Camara- Vice-presidente do Conselho Geral da Ordem dos Advogados Portugueses. Exmos. Srs. Professores desta Universidade, em especial Exmos. Senhores Vice-presidentes do C. A. da Funda<;ao Minerva, Magnffico Reitor, Director da Faculdade de Direito. Meus queridos Colegas nao portugueses e portugueses, ou melhores, meus queridos Colegas europeus. Exmos. Mediadores. Exmos. Srs. Alunos desta Universidade. Minhas Senhoras e meus Senhores. Nao vou fazer qualquer interven<;ao de fundo 2 â&#x20AC;˘ Isso competira aos ilustres palestrantes. Apenas vou reflectir breves notas introdut6rias. A primeira, como nao pode deixar de ser, para cumprimentar o Sr. Ministro da Justi<;a do Governo Portugues e agradecer-lhe a circunstancia de ter aceite o convite da Sec<;ao Portuguesa do Agrupamento Europeu de Magistrados â&#x20AC;˘ Intervenc;ao na Universidade Lusiada de Lisboa em Dezembro de 2006. 1 Professor Convidado da Universidade Lusiada de Lisboa. Antigo Presidente do Supremo Tribunal de Justic;a. Vice Presidente do Agrup amento Europeu d e Magistrados pela Mediac;ao. 2 Falaram, de improviso, o Senhor Ministro da Justic;a, Doutor Alberta Costa, o Senhor Secretario de Estado da Justic;a, Mestre Joao Tiago Silveira e o Senhor Professor Doutor Martins da Cruz, Chanceler das Universidades Lusiada e Presidente do Conselho de Administrac;ao da Fundac;ao Minerva, mas nao temos os respectivos tex tos."Quanto aos conferencistas, infelizmente nao dispomos do tex to da Sr." Dr." Luisa Aboim Ingles.
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pela Media<;ao para reflectir, corn a sua presen<;a, a importancia deste evento; e agradecer-lhe o apoio que o Ministerio da Justi<;a deu a esta iniciativa da Sec<;ao Portuguesa do Agrupamento Europeu de magistrados pela Media<;ao, entidade nao governamental. No mesmo ambito, queremos agradecer ao Exmo. Sr. Prof. Doutor Martins da Cruz, distinto Chanceler das Universidades Lusiada e Presidente do Conselho de Administra<;ao da Funda<;ao Minerva, o incondicional apoio que nos deu, a disponibiliza<;ao das instala<;6es e dos servi<;os da Universidade onde temos a honra e o prazer de trabalhar; e agradecer a sua presen<;a, alias, em sua propria casa. A todos os amigos nao portugueses - hoje, tambem portugueses por adop<;ao! - urn abra<;o portugues do tamanho do mundo, de boas vindas. N6s, portugueses, temos urn gosto imenso, simultaneamente, em sermos portugueses e cidadaos do mundo e em receber quem nao nasceu neste nosso "jardim a beira-mar plantado" como disse o principe dos Poetas portugueses, que cantou a aventura lusitana, Luis de Camoes. SEDE BEM VINDOS SOYEZ LES BIENVENUES WELCOME TO PORTUGAL BIENVENIDOS A PORTUGAL BENVENUTI IN PORTOGALLO HERZLICH WILLKOMMEN NACH PORTUGAL HARTELIJK WELCOM IN PORTUGAL DERE ER WILCOMMEN TIL PORTUGAL A todos os nossos compatriotas aqui presentes, mormente as ilustres Entidades ja referenciadas - e aqueles que posso nao ter referenciado - o nosso obrigado pela vossa presen<;a, corn, permitam-me, urn abra<;o de amizade. Urn ultimo apontamento sobre o que vai acontecer - brevissimo apontamento. Vivemos urn tempo de mudan<;a. Nao sabemos exactamente para onde. Mas sente-se a mudan<;a. E ela e necessaria.
A fusti(;a, diz-nos, alem do mais, a Constitui<;ao da Republica Portuguesa e, a urn tempo, direito fundamental dos cidadaos e objecto de reserva do Estado. 0 formalismo processual espartilhante tende, finalmente, a dar lugar a urn humanismo jurisdicional que privilegie mais os valores do que as formas ou os conceitos. E, pm路que - como disse o cientista sabedor - nada se cria, tudo se transforma - retomamos velhas ideias, revestimo-las e procuramos construir o Futuro, se nao nosso, ao menos o dos nossos Filhos.
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Em Portugal, vamos ao regimento de concertadores de demandas de 1519 - ou mais longe- e reflectimos sobre a bondade do que hoje se chama a Justic;a Restaurativa de Paz. E reinventou-se a conciliac;ao, a arbitragem, os Julgados de Paz; que, em Portugal, tern urn enquadramento nao comum. E, em Portugal, corn os Julgados de Paz, toma vida algo que o mundo em que nos integramos discute e procura: a mediac;ao. A Justic;a e uma velha aspirac;ao. Os caminhos p ara la chegar sao objecto de contfnuo repen sar. Mal de n6s, se nos limitarmos a ver a vida passar, formos s6 espec tadores e nao formos tambem actores. E por isso que estamos aqui. A mediac;ao esta na ordem do dia. Seria negativo fechar-lhe os olhos. Penso que ha alguns, entre muitos muitos pontos, que merecem todavia ser pensado: - Mediac;ao e jurisdicionalidade; harmonizar; m as como harmonizar? - Ou, parafraseando uma frase ja celebre, se o Juiz, obviamente, nao pode ser o "mecanico" do direito; podera o mediador ser o "mecanico" de acordos ou, como penso, mais do que isso, interveniente no sistema de Justic;a? Mas, enfim, ja falei demais. Finalizando, para comec;armos: Temos, hoje, a felicidade de se encontrarem, entre n6s, pessoas que, seguramente, nos darao perspectivas muito importantes. E, para comec;ar, a primeira intervenc;ao neste Col6quio perten ce, por direito proprio, a Sua Excelencia 0 Senhor Ministro da Justic;a. A mim, nao me coube, sublinho de novo, fazer qualquer intervenc;ao. Apenas dizer onde estamos e porque. Nem me compete "dar" a palavra ao Senhor Ministro. 0 Senhor Ministro nao precisa que lhe deem o que lhe pertence. Apenas me compete dizer que, corn a permissao do Senhor Prof. Doutor Martins da Cruz, ele sim, ilustre representante e titular desta Casa de Cultura e de Civismo, os organizadores deste Col6quio pedem, a ilustre assistencia que oic;amos as palavras do primeiro conferencista, Sua Excelencia o Ministro da Justic;a do Governo Portugues, corn o nosso sublinhado agradecimento.
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MEDIA~AO E JUSTI~A. JUSTI~A E MEDIA~AO
Albertina Pereira
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MEDIA<;AO E JUSTI<;A. JUSTI<;A E MEDIA<;AO*
Albertina Pereira 1
SUMARIO: 0 novo rnodelo de adrninistra~ao da justi~a corn rnetodos extrajudiciais deve ser urn rnodelo integrado e convenienternente articulado corn o sisterna judicial.
0 tema da justi<;a tern acompanhado as muta<;6es da historia da humanidade e tern sido motivo d e reflexo no dominio da filosofia, da politica e do direito. Nao podendo ignorar-se que a Justi<;a e inerente ao funcionamento da sociedade humana, nos tempos modernos, a discussao sobre esse tema tern sido no essencial associada a propria no<;ao do Estado e a reforma do governo. De acordo corn a nossa Lei Fundamental, Portugal e urna Republica soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na constru<;ao de uma sociedade livre, justa e solidaria (art. 0 1). A fun<;ao jurisdicional e tambem recortada pela ideia de justi<;a, prescrevendo-se na nossa Constitui<;ao que os tribunais sao orgaos de soberania corn competencia para administrar a justi<;a em nome do povo. Podendo a lei institucionalizar instrumentos e formas de composi<;ao nao jurisdicional de conflitos (art. 0 202, n. 0 5 1 e 4). A propria Administra<;ao deve actuar segundo principios de justi<;a, sendo que os orgaos e agentes administrativos estao subordinados a Constitui<;ao e a lei e devem actuar no exercicio das suas fun<;6es corn respeito pelos principios da igualdade, da proporcionalidade, da justi<;a, da imparcialidade e da boa fe.
â&#x20AC;˘ Intervenc;ao na Uni versidade Lusiada de Lisboa em Dezembro de 2006. 0 presente texto pretende corresponder ao amavel convite que nos foi fonnulado pela Ex .ma Sr." Professora Ana Silva, para rescrever urn artigo sabre mediac;ao, a ser incluido em futura publicac;ao. Esperamos que a breve e singela abordagem aqui efectuada possa de algum modo contribuir para os objectivos em vista. 1 Professora Convidada da Universidade Lusiada de Lisboa. Secret<1ria Geral Adjunta do Agrupamento Europeu de Magistrados pela Mediac;ao e Presidente da Secc;ao Portuguesa. Juiza Desembargadora na Relac;ao do Porta.
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Nos modernos Estados de Direito o debate sobre a justi<;a tern-se centrado sobretudo, num conceito de justi<;a consu~stanciado essencialmente na Lei, decorrente das op<;6es do 6rgao legislativo e governo democratico. Como tern sido, porem, assinalado por varios autores e pela sociologia judiciaria, a epoca contemporanea produziu urn direito exemplar em termos dogmaticos, impecavel em termos formais, mas muitas vezes desligado do real e da vivencia dos homens. Os pr6prios aplicadores do direito sao bastantes vexes excelentes na interpreta<;ao das normas, mas, em muitos casos, deficientes na compreensao da realidade. Nao raramente se esquece que o direito existe para regular e disciplinar a sociedade de modo justo e nao para resolver equa<;6es te6ricas. Cada vezes mais se tera, assim, que entender que a fun<;ao jurisdicional nao se atem ao silogismo judiciario, o de dizer o direito, a Boca Lei, segundo a expressao de Montesquieu. 路 Sendo uma fun<;ao eminentemente humana, a fun<;ao jurisdicional deve ser desenvolvida, obviamente, no quadro dos prindpios e direitos fundamentais, mas onde, obviamente, tambem relevam as valora<;6es do proprio julgador, que de forma atenta, lucida, informada, crftica e construtiva deve buscar a realiza<;ao do direito e da justi<;a, sendo no essencial pelo exercicio do poder judicial que se afere a sua legitimidade. A legitima<;ao interna, jurfdica e formal das decisoes judiciais esta condicionada normativamente pelo valor das suas motiva<;6es de facto e direito residindo na verdade e justi<;a o valor de tais asser<;6es. As sociedades modernas produzem hoje inumeras rela<;6es jurfdicas que importa regular; por seu turno os cidadaos estao cada vez mais conscientes dos seus direitos e exigem resposta para os seus anseios e problemas concretos. 0 desenvolvimento das ciencias, da tecnologia, dos meios de comunica<;ao colocam a sociedade actual, cada vez mais globalizada e interdependente, novas questoes e novos desafios, o que se tern traduzido num crescimento explosivo da procura dos tribunais. Acresce que a sociedade contemporanea vive uma crise de valores, onde apesar de tudo nao inclufmos a justi<;a. Nao podemos ignorar que os nossos jufzes sao indiscutivelmente homens e mulheres de miios limpas, sendo elevado o fndice de confian<;a que neles depositam os seus co-cidadaos. 0 que se passa corn a justi<;a (enquanto sistema, nao e uma crise no sentido do normal do termo, mas antes uma crise de crescimento onde avultam not6rias dificuldades de funcionamento face as grandes mudan<;as ocorridas no mundo e nosso pafs nas ultimas decadas. Face a essa situa<;ao e em observancia dos compromissos internacionais assumidos pelo nosso pafs, encontram-se institufdas varias modalidades extrajudiciais de resolu<;ao de conflitos, onde se contam a media<;ao, a concilia<;ao
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Justi~a
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e a arbitragem. Os julgados de paz constituem tambem urn dos mecanismos de resolw;:ao alternativa de litigios. Trata-se da cria<;ao de urn novo modelo de administra<;ao de justi<;a que assenta na promo<;ao do acesso ao direito pelos cidadaos e que visa permitir que se ven<;am barreiras sociais, econ6micas, sociais e culturais que obstam a sua resolu<;ao. Como defini<;ao geral, na media<;ao as partes auxiliadas por urn terceiro encontram por si pr6prias uma solu<;ao negociada e amigavel para par fim ao litigio que entre elas emergiu. Este mecanismo tern como pressuposto que ambas as partes desejam solu<;6es que respeitem os interesses de ambas. E caracteristico do processo de media<;ao todo o sigilo em que o processo se desenvolve, devendo mediador ser credivel e gerar a confian<;a e o respeito para que o mediado nele confie e corn franqueza exponha os seus pantos de vista, as suas convic<;6es, os seus temores, as suas fraquezas, no convencimento de que nao serao utilizados contra si. Atraves da media<;ao a solu<;ao nunca e imposta as partes, pois sao estas que, por si pr6prias, irao descobrir, defender e harmonizar os seus interesses, sendo, por isso, o mediador urn terceiro neutro na descoberta desses interesses. Os cidadaos participam directamente na resolu<;ao do seu conflito. A par da concilia<;ao e da arbitragem, as experiencias em Portugal no ambito da media<;ao dizem respeito, sobretudo, a media<;ao familiar, a media<;ao prevista pela Lei Tutelar Educativa e a media<;ao desenvolvida nos julgados de paz. Encontram-se tambem previstas a media<;ao penal (em projecto de lei) e a media<;ao laboral em fase de arranque. No que concerne a media<;ao familiar foi apenas atraves do Despacho 12368/97, de 25 de Novembro que foi instituido urn gabinete destinado a assegurar a presta<;ao de urn servi<;o publico de media<;ao familiar em situa<;6es de div6rcio e de separa<;ao, circunscrito, embora, as situa<;6es de conflito parental. A media<;ao familiar pode ter lugar por determina<;ao do juiz no ambito da jurisdi<;ao de menores. Em qualquer estado da causa, designadamente, em processo de regula<;ao do exercicio do poder paternal, oficiosamente, corn o consentimento dos interessados ou a requerimento destes pode o juiz determinar a interven<;ao dos servi<;os ptiblicos ou privados de media<;ao. Obtido o acordo e o mesmo e homologado pelo juiz desde que satisfa<;ao interesses do menor. No dominio da Lei Tutelar Educativa (Lei 166/99, de 14.09), a media<;ao pode ser determinada pela competente autoridade judiciaria, sendo a media<;ao desenvolvida por entidades neutras e imparciais Instituto Reinser<;ao Social. No ambito do inquerito a media<;ao pode ser determinada pelo MP e consoante os resultados daquela podera originar a suspensao ou o arquivamento daquele. '
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Na fase jurisdicional a media<;ao pode ser ordenada pelo juiz, independentemente da vontade do menor, corn v!sta a obten<;ao de consenso no que concerne a aplica<;ao de medida nao institucional. A media<;ao surge como urn meio que contribuira para a educa<;ao do menor para o direito e para a sua inser<;ao de forma digna e responsavel na sociedade. Nos julgados de paz encontra-se institucionalizada a media<;ao. 56 a havera, porem, se nenhuma das partes a recusar, tendo lugar a pre-media<;ao para aquilatar da vontade das partes. Tratando-se de litigios da competencia dos julgados de paz, se as partes chegarem a acordo, sera o mesmo homologado pelo juiz, tendo valor de senten<;a. Caso nao tenha sido obtido acordo, sera tentada a concilia<;ao pelo juiz de paz e, frustrando-se esta, sera realizado 0 julgamento. E ainda de assinalar como muito relevante no sentido do incremento da media<;ao, que nos temos do art. 0 16, da Lei 78/01, de 13.07 (que criou os julgados de paz) se preve a possibilidade de a media<;ao ter lugar mesmo nos casos de litigios excluidos da competencia dos julgados de paz, salvo em materias que versem sobre direitos indisponiveis. A media<;ao laboral resultou de urn Protocolo promovido pelo Ministerio da Justi<;a e assinado pelas Confedera<;6es Patronais e Sindicais. Por via desse protocolo estao abrangidos os litigios laborais individuais, corn excep<;ao dos relativos aos acidentes de trabalho e a direitos indisponiveis. Estes, por terem na sua raiz interesses de ordem publica, por traduzirem urn patamar de civiliza<;ao minimo formado pela sociedade politica em determinado contexto hist6rico nao podem ser obviamente negociados. A ideia no ambito da media<;ao laboral e criar urn sistema, destituido de estrutura administrativa, atraves de urn Ponto de Contacto (D.G.A.E) do Ministerio da Justi<;a) e urn corpo de mediadores de conflitos especialistas em materia laboral. 0 limite temporal e de tres meses para a media<;ao que pode ser prorrogado por acordo entre as partes. Os efeitos do acordo obtido atraves da media<;ao nao ficam sujeitos a qualquer interven<;ao judicial. E o acordo obtido tern for<;a executiva. 0 mecanismo criado pretende resolver os conflitos de trabalho sem recurso ao tribunal, numa perspectiva dita preventiva relativamente a interven<;ao judiciaria. A media<;ao penal de adultos esta prevista no projecto de lei de inserida no ambito do processo penal e nao como urn instituto de alternativo de resolu<;ao de conflitos. Esta excluida a media<;ao penal quando o ofendido seja menor de 16 anos ou pessoa colectiva ou quando esteja em causa crime contra liberdade ou
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contra a liberdade a autodetermina<;:ao sexual, bem corn o nos casos de crimes em que o procedimento criminal depende de queixa e ainda nao tiver sido constitufdo arguido. Apenas esta prevista a media<;:ao directa ou face a face. 0 arguido e a vftima devem comparecer pessoalmente nao sendo possfvel fazer-se representar. No ambito dos crimes cujo procedimento nao depende de queixa o envio do "processo" para media<;:ao apenas ocorrera no final do inquerito e desde que o MP se conven<;:a que a media<;:ao pode responder as exigencias de preven<;:ao. 0 envio do processo para media<;:ao e decidido em exclusivo pelo MP, sem interven<;:ao do juiz, que nomeia de imediato urn mediador da lista oficial. E o mediador que obtem o consentimento faz partes para se realizar a media<;:ao. Caso se verifique o acordo no ambito da media<;:ao o MP determinara a suspensao provis6ria do processo sem que o juiz tenha interven<;:ao. No caso do procedimento criminal depender de queixa apresentada esta a MP remete logo os autos para media<;:ao. Em caso de acordo este equivale a desistencia de queixa, podendo em caso de incumprimento do acordo, ser renovado o procedimento criminal. Tambem aqui o juiz nao tern qualquer interven<;:ao. A media<;:ao penal surge como algo de novo no seio do sistema penal, fazendo-se apelo a participa<;:ao da vftima numa perspectiva de justi<;:a restaurativa e nao punitiva. Em toda as formas de medi<;:ao que se enunciaram assume papel destacado a figura do mediador, que deve observar o clever de imparcialidade, neutralidade, independencia, confidencialidade, e diligencia. Se porventura o arguido e ofendido nao chegarem a acordo por via da media<;:ao, esse facto nao constitui princfpio de culpa ou de presun<;:ao para efeitos de aprecia<;:ao da prova em julgamento. E o mediador nao pode ser testemunha. Finalizaria do seguinte modo: - A Justi<;:a e urn fen6meno social e urn BEM que deve estar ao alcance de todos, cabendo aos cidadaos escolher a meio para a atingir. - 0 novo modelo de administra<;:ao da justi<;:a constitufdo pelos meios extrajudiciais deve ser urn modelo integrado e convenientemente articulado corn a sistema judicial. Nao se ve qualquer razao para que nuns casos assim ocorra e noutros nao. 0 sistema de justi<;:a dito formal ou tradicional nao pode deixar de estar atento aos valores em que assentam os meios extrajudiciais proximidade, negocia<;:ao, auto-composi<;:ao, responsabiliza<;:ao, e participa<;:ao dos cidadaos - e devera' fazer urn esfor<;:o de renova<;:ao e de adapta-
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<;:ao para corresponder corn eficacia e justi<;:a aos problemas da sociedade actual. - A media<;:ao e urn instrumento de consagra<;:ao relativamente recente entre n6s, configurando-se, no entanto, coma urn mecanismo que pelas suas enormes virtualidades deve ser desenvolvido e aprofundado rio que toca, nomeadamente, a area familiar. - Impoe-se, para o efeito, uma maior divulga<;:ao da figura (media<;:ao) junto da opiniao publica, em particular, no que toca as possibilidades ja abertas corn a legisla<;:ao existente. - 0 sistema de media<;:ao em Portugat embora corn as especificidades que decorrem da respectiva area onde se aplica, nao representa, porem, urn todo coerente. A media<;:ao !aboral esta totalmente divorciada do sistema judicial sem que se vislumbre motivo para tal. A participa<;:ao do juiz atraves da homologa<;:ao judicial creio que se impoe, pois ao inves de menorizar as partes coma parece suposto, refor<;:a a sua legitima<;:ao e assegura a realiza<;:ao de urn acordo equilibrado numa rela<;:ao por si propria desigual como e a rela<;:ao laboral. A media<;:ao penal esta projectada de forma timida, pois deveria abarcar qualquer fase do processo penal como decorre da Decisao-Quadro da Uniao Europeia de 15.03.2001, sem que se vislumbre fundamento para que tal nao ocorra. Na Media<;:ao Penal rejeita-se a figura do Julgador sem qualquer justifica<;:ao. E urn dado cultural que a interven<;:ao do juiz ainda que meramente homologat6ria e sentida pelas partes, como alguem ja disse, como "uma cobertura de legalidade, de afirma<;:ao e reconhecimento dos direitos violados e da obrigatoriedade do cumprimento dos deveres acordado". -
Seria desejavel a consagra<;:ao do recurso facultativo a media<;:ao em sede do C6digo de Processo Civit como diploma adjectivo paradigmatico, a solicitar pelas partes ou a determinar pelo juiz em qualquer fase do processo. A lei tambem pode ensinar a mudar procedimentos. - Competente e continuada forma<;:ao deve ser exigida aos mediadores e aos diversos aparadores judiciarios. - As tecnicas de comunica<;:ao utilizadas na media<;:ao devem, tambem ser estudadas e apreendidas pelos magistrados, coma forma de melhor realizarem a sua fun<;:ao de julgar, onde saber comunicar se configura cada vez mais como essencial e, em concreto, no que toca a concilia<;:ao judiciaria, que encerra, coma e sabido, muitas potencialidades pacificadoras. As ultimas palavras sao de apelo a mudan<;:a das nossas mentalidades para que todos, corn determina<;:ao e sem preconceitos, possamos contribuir para unia melhor Justi<;:a e urn Mundo melhor para TODOS.
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VALORES, DIREITO E MEDIA<;AO
Ant6nio Jose Moreira
VALORES, DIREITO E MEDIA<::AO* Ant6nio Jose Moreira 1
SUMARIO: A Casa da Justit;a comum perdeu a capacidade de dar respos ta. Corn a mediat;ao estao em causa mentalidades, comportamentos e atitudes .
Tendo sido convidado para proferir uma breve palestra neste Col6quio Internacionat aceitei corn muito gosto o convite. A sua responsabilidade e da Senhora Juiza Desembargadora Dr." Albertina Pereira, Presidente da Sec\ao Portuguesa e Secretaria-Geral Adjunta da GEMME - Agrupamento Europeu de Magistrados pela Media<;ao. Agrade\O a distin\ao. Avisei, no entanto, V.Ex.a que sou urn leigo nas materias em debate, urn simples curioso, urn cidadao e urn espectador minimamente atento, corn a agravante de durante mais de dois lustres ter presidido, primeiro, a Comiss6es Corporativas e, mais tarde, a Comiss6es de Concilia<;ao e Julgamento nos distritos de Braga e do Porto. Vigorava, entao, a tentativa previa de concilia\ao, obrigat6ria e extra-judiciat nos litigios individuais de trabalho. Et pour cause pouco adiantarei. Muito obrigado pela amavel insistencia. Na sua pessoa, Senhora Juiza Desembargadora Dr.a Albertina Pereira, felicito a GEMME e a organiza\ao pela iniciativa, pelo tema. 0 Col6quio esta estruturado em termos do maior interesse, corn urn prudente doseamento de assuntos que o toma particularmente atractivo. 0 tema que me coube, como consta de programa, intitula-se VALORES, DIREITO E MEDIA(:AO, Tentarei nao invadir as areas tematicas dos distintos palestrantes que me antecederam, tarefa sempre dificil de cumprir quando, no alinhamento do programa, sou o ultimo a discorrer na materia. Corn a consciencia de que 0 tema e da moda, vejamos: 1. As sociedades em que vivemos, comunicacionais por excelencia, caracterizam-se, inter alia, pela pluralidade de valores e pela diversidade de vis6es da 路 Interven<;ao na Universidade Lusiada de Lisboa em Dezembro de 2006. 1 Professor Catedratico da Universidade Lusiada. Vice Chanceler das Universidades Lusiada. Vice Presidente do Conselho de Administra.;'ao da Funda.;ao Minerva.
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vida. E a ogiva e tao aberta que talvez seja redundante dizer que algumas delas quase que se demarcam pela esquizofrenia axiol6gica, pela etica da indiferen~a OU, ainda, 0 que e pior, pela revela(:iiO de valores tao diferenciados, porventura contra-valores, que e tarefa cicl6pica tao s6 prescruta-los. A vida e a morte nao tern a mesma valia em todas as latitudes? A liberdade nao e igual em todos os quadrantes? A integridade fisica e moral e diferente na terra do sol nascente e no ocidente?
1.1. 0 que sao os valores? 0 que e a etica?
As Religioes, tambem corn os seus mediadores, nao assumirao, a este nivel, papel muito relevante? E que dizer das Politicas, tambem corn os seus mediadares? Quanto a estas prolifera a ideia, porventura injusta, de, corn alguma frequencia, transformarem ou travestirem valores em contra-valores e, tambem, o inverso. 1.2. Os juristas romanos deixaram urn legado traduzido em tres grandes principios que aqui e agora poderao ser evocados: o honeste vivere, o alterum nom laedere e o, ja aristotelico, suum cuique tribuere. Tudo a fazer-nos lembrar, entre outras coisas, a tao decantada questao das semelhan~as e diferen~as entre o Direito, a Moral e a Religiao, e a concluir que nom omme quod licet honestum
est. JAMES WILSON, professor em Harvard, identifica urn valor universal: o amor dos pais para corn os filhos. Porem, e born lembra-lo, que hoje ninguem se atreveria a afirmar que os filhos devem pagar pelos erros dos pais, todos reprovando a transmissibilidade e comunicabilidade das penas e a ideia de que os castigos deveriam pagar juros (OST). E a memoria leva-nos aos Marqueses de Tavora ... E ]AMES WILSON da como exemplo de condutas reprovadas em todos os tempos e em todas as sociedades a crueldade gratuita, a mentira e a hipocrisia. Por sua vez JEAN FRAN<;:Ois Six, depois de discorrer sobre a guerra e a paz e sobre os belicistas e os pacifistas, condena o neutralismo como uma forma de cobardia, apela a media(:iiO pacifista e refere-se a evapora~ao dos conflitos como que por encantamento. E, no contexto, afirma que a media(:iio entre os beligerantes nao se confunde corn a justi(:a alternativa ja que os belicistas, corn a sua visao dicot6mica da vida, s6 vem o preto e o branco. Ora aquela pressupoe uma visao tricot6mica, uma triade ou uma trindade identificat6ria. 1.3. Ao nivel do tema que nos ocupa, e na filosofia dos valores imanentes, havera alguma influencia norte-americana? RENE GmARD identifica o puritanismo e a sua eficacia irradiante, nomeadamente ao nivel da cria~ao de
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c6digos morais ou de conduta o que leva, v.g., as empresas a terem objectivos de longo prazo, a nao se quedarem pelo lucro facil e com a esperan<;:a de vida de uma gera<;:iio. A Europa, por seu lado, sociedade do zapping, segundo GJLLES LIPOVETSKY, coma l6gica do efemero, do consumismo, das modas, nao tera factores influenciadores? Ha quem identifique a tolerancia que, todavia, ja motivou guerras religiosas. E }AN KERKHOFS interroga-se: ... a tolerancia, bastante rara .. . nao seria
capaz de levar a Europa a promover o respeito dos direitos humanos no mundo? 2. A sociedade em que vivemos, globalizada a sociedade comunicacional do nosso tempo, vulnera bens e valores fundamentais dos cidadaos, nomeadamente da sua esfera privada e, mesmo, da esfera mais intima de cada um, tudo desnudando na mais gelida linguagem orwelliana do big brother, E com a derrapagem dos poderes da Religiao, da Familia e da Escola, conjuntamente com as formas atipicas de mediar;ao que as acompanhavam, deifica-se uma comunica<;:iio social que ja no serve apenas para influenciar os cidadaos em epocas de campanhas eleitorais ou para controlar "democraticamente" (com a 16gica dos grandes grupos) o poder politico, mas que serve, sobretudo, para modelar a vida social, contribuindo decisivamente para a forma<;:iio da opiniao publica, definindo estilos de vida e contribuindo para a forma<;:iio da cultura. E esta veicula os valores que regem a sociedade hie et nunc. Anoto um exemplo: no dia 8 do corrente, sexta-feira, passada, em horario nobre, os diversos canais generalistas anunciaram a apresenta<;:iio dum livro, mediatico a ser feita no dia seguinte, de nome Eu, carolina. E entrevistaram a autora, ex-companheira dum conhecido dirigente desportivo. Qual a relevancia social do evento? Que tipo de media<;:iio e essa? Que valores estao cm causa? Um conhecido professor de direito e comentador televisivo disserta sobre passagens do livro na RTPI no passado dia 10. 0 Ministerio Publico anuncia o aprofundamento de investiga<;:6es em curso com base em revelar;i5es que o livro contem. Hoje mesmo foi anunciado que MARIA JosE MoRGADO iria liderar uma equipa multidisciplinar para investigar a corrup<;:iio desportiva, tornando conta do processo Apito Dourado, tudo para que os cidadaos nao desacreditem na Justi<;:a. Ao mesmo tempo e divulgada a reabertura de processos ja arquivados. 0 Ministro da Justi<;:a, que presidiu a Sessao de Abertura deste Col6quio internacional, e assediado no fim por uma multidao de jornalistas, com camaras a filmar. E, pasme-se, o Col6quio nao estava em causa. E nesta sociedade, que promove valores; muitas vezes, abaixo do zero, que situo esta exposi<;:iio. Quao longe vao os tempos de CHARLES LOUIS DE SECONDAT, BARAO DE LA BREDE ET DE MONTESQUTEU! Quao perto se esta da sociedade totalizante em que os media, nao legitimados por qualquer sufragio, tem a parte leonina ...
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3. A crise do Poder Judicial e generalizada. E sao multiplos os factores apontados ao estado ca6tico existente. Em sfntese, apontaria: -A tardia resoluc;ao das questoes. De facto, o arrastamento no tempo das acc;oes judiciais e urn dos principais responsaveis pela crise. Como bem diz o Conselheiro CARDONA FERREIRA, citando OuvEIRA MARTINS - Os Filhos de D. Joiio I- na carta que D. Pedro escreve ao rei D. Duarte, seu irmao, acerca da justic;a,
"aqueles que tarde vencem ficam vencidos". - Lembro a reintegrac;ao dum dirigente sindical madeirense ao fim de 18 anos; lembro urn ac6rdao do S.T.A. de 1989, anotado brilhantemente por GaMES CANOTILHO, de condenac;ao do Estado em responsabilidade civil extra-contratual pelo facto dum magistrado judicial, obrigado a preferir a sentenc;a ap6s o julgamento num curto lapso de tempo, nao o ter feito o que implicou, numa acc;ao em que estivera em causa o pagamento dos salarios intercalares entre o despedimento e a sentenc;a, que o empregador, condenado, tivesse que pagar uma importancia incomensuravelmente superior a devida se a sentenc;a tivesse sido proferida a tempo e horas. Porem, a ideia de uma justic;a demasiado rapida, imediata, tambem pode enfermar de alguns males, podendo nao permitir a necessaria elevac;ao acima do frente-a-frente das reivindicac;oes opostas. Lembramos os adagios populares: devagar se vai ao longe; e depressa e bem ha pouco quem. - Acresce a inseguranc;a jurfdica advinda da legal polution e as consequentes dificuldades estruturais da sua aplicac;ao. A esta soma-se a poluic;ao judicial Os tribunais caminham para o entupimento. CARDONA FERREIRA, citando Guv HAARSCHER, acrescenta: "empanturrados de liberdades (direitos) fundamentais acabamos por esquecer que semelhantes conquistas tern, por vezes, que ser defendidas". A crescimento explosivo referiu-se esta manha a Desembargadora ALBERTINA PEREIRA. E eu pergunto: mas esses factores nao serao o incentivo a rejormata9iio do Poder Judicial, a sua rejunda9iio? - Mas para o estado de crise contribui o surgimento de novas questoes e mais complexas: ambientais; culturais; polfticas. Acresce o maior grau de exigencia dos cidadaos. - Se a tudo isto aditarmos o excesso de formalismos, corn uma burocracia excessiva, e o encarecimento da justic;a ... Entao compreenderemos o encharcamento da Casa da Justic;a. A maquina judiciaria perdeu na capacidade de dar resposta. E neste contexto que se enquadra a media9iio. 4. A media9iio, na Europa e em Portugal nao brota ex nihilo, sem causalidade. As circunstancias referidas sao a entourage, o envolvimento, a causa das coisas. Oaf a pergunta: a mediac;ao visa salvar a Justic;a?
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4.1. A Lei 78/2001, de 13 de Julho, no art.16. 0 , que conh~m urn caminho por descobrir, reporta-se aos servic;os de mediac;ao, competentes para quaisquer litfgios desde que nao abranjam direitos indisponiveis. E o art. 26. 0 - 2 traduz uma perspectiva jusnaturalista do legislador ao possibilitar o julgamento nos julgados de paz "segundo juizos de equidade", promovendo, corn caracter limitado e certo a justic;a do caso concreto ex aequo et bono. No acordo politico-parlamentar, de 8 de Setembro ultimo, para a Reforma da Justic;a, celebrado entre o PS e o PSD, refere-se, inter alia, a mediac;ao penal. A Assembleia da Republica nao tern duvidas de que a Mediac;iio se insere no sistema de Justic;a e que ha que repensar, simultaneamente, a reforma do Poder Judicial e dos meios extra-judiciais de resoluc;ao de conflitos. Que a medic;ao esta associada area da justic;a isso resulta da Lei dos Julgados de Paz, que referi, assumir essa posic;ao sistematica e dogmatica. E a Uniao Europeia tambem considera que os processos de resoluc;ao alternativa ou extra-judicial de conflitos se integram nas politicas de melhoramento da Justic;a. 4.2. A mediac;iio nao visa apenas desbloquear o sistema judicial. 0 que esta em causa e mudar a atitude de confronto para uma outra de colaborac;ao e de co-responsabilizac;ao na prevenc;ao e resoluc;ao de conflitos. Corn a mediac;iio pretende-se auxiliar as partes a conseguir acordos corn base nos seus pr6prios interesses e necessidades, que ficam maximizados quando se vislumbram objectivos comuns. Fundamental e que o mediador os identifique corn rigor. A mediac;iio, sendo urn processo de autocomposic;ao entre as partes, concretiza-se por ser urn metodo de resoluc;ao, tendencialmente imediato, de conflitos em que prevalece a vontade das partes e que tern por objectivo a manutenc;ao posterior de relac;6es de confianc;a. 4.3. Em Portugat no contexto da resoluc;ao de conflitos atraves de processos extra-judiciais ou alternativos, estao consagrados a conciliac;ao, a mediac;iio e a arbitragem, de longa tradic;ao no Direito do Trabalho, nos termos dos artigos 583째 e seguintes do C6digo do Trabalho. E foi hoje aqui anunciado, primeiro pelo Ministro da Justic;a, e depois pelo Secretario de Estado, que no proximo dia 19 sera inaugurado o Sistema de Mediac;ao Labora! ao nivel dos litfgios individuais do trabalho, sendo que os acordos conseguidos terao forc;a executiva. Relembro que essa forc;a ja era atribuida aos acordos obtidos nas comiss6es corporativas e nas comiss6es de conciliac;ao e julgamento. Sera caso de dizer que se revisitam velhos mecanismos corn outro nomen iuris?! As diferenc;as essenciais entre elas reside no papel atribuido ao elemento neutro. Assim, e exemplificando, na arbitragem ha uma autentica tomada de posic;ao enquanto que na mediac;iio, como se disse ja, a decisao e consensual. E os objectivos residem:
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Ant6nio Jose Moreira
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no na na na
restabelecimento do dialogo; manuten<;:ao de rela<;:6es; realiza<;:ao da justi<;:a; restaura<;:ao da harmonia social.
Os objectivos sao, pois, preventivos e pedag6gicos, auxiliando as pessoas a compreenderem melhor as respectivas necessidades, os interesses pr6prios e dos outros intervenientes, salvaguardando as rela<;:6es e prevendo as necessidades futuras. A mediar;iio e, pois, urn processo de cooling-off celere e econ6mico, em que ambos saem vencedores. Nao e, pois, urn processo em que urn ganha e o outro perde, urn processo de adversarios, nem tao pouco urn processo em que ha cedencia de ambas as partes. Trata-se, antes, de urn processo colaborativo em que ambos trabalham o conflito tentando obter uma solu<;:ao que satisfa<;:a os interesses mutuos. Contra o sistema de Justi<;:a tradicional ou classico, visa-se terminar corn urn clima de desconfian<;:a, de disputa e ate de guerrilha. A mediar;iio traduz, pois, a passagem de urn cultura de confronta<;:ao a uma outra de comunica<;:ao. Dizia, esta manha, a Desembargadora ALBERTINA PEREIRA que a media<;:ao e urn processo de solu<;:ao negociado e amigavel atraves do auxflio de urn terceiro neutro em que a solu<;:ao nunca e imposta as partes mas por elas descoberta. Diria que na Media<;:ao ainda esta presente a ideia de EsQUILO nas Eumenides (As Benigna), tao bem retratada por FRAN<;:OIS OsT - 0 Tempo e o Direito, 153: A promessa e a capacidade de dar a palavra deforma dunivel, uma atitude que
pede, par parte do interlocutor, " ter fe ' em tal compromisso. A persuasiio e a arte de fazer valer as razoes que fitem sentido para a outra parte; e a atitude que pressupoe a capacidade de adoptar o panto de vista do outro. Em ambos os casos a interacr;iio desenvolve-se num meio de confianr;a ou fe partilhada. Como escreviamos em JUSTI~A E SOCIEDADE (2005), o juiz diz o direito para 0 passado enquanto que 0 legislador, inventivo ou nao, preparara 0 futuro, devendo reescrever o presente. No Processo Judicial olha-se, pois, para tras; no Procedimento de Mediar;iio olha-se para diante, tentando ver a situa<;:ao hoje e as projec<;:6es no futuro. Precisemos: Diz OsT que a Grecia, no seculo V a.C., ao inventar entre outras coisas, a democracia e a tragedia, permitiu pensar como desligar o tempo, libertar a memoria e dar assim uma segunda oportunidade ao passado. Passado revisitado, reordenado, reinterpretado, a fazer-nos lembrar o adagio popular de que e importante nao fazer tabua rasa do passado sem perfilharmos, longe disso, a ideia de que o passado niio perdoa. E as considera<;:6es que antecedem reconduzem-nos ao perdiio e ao esquecimento: aquele consiste em ultrapassar conscientemente o passado, corn conhecimento de causa; o esquecimento, pode ser uma deambular;iio soniimbula.
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Lusiada. Direito. Lisboa, n. 0 4/5 (2007)
Valores, Direito e Media~ao, p. 217-226
Apesar de tudo, o esquecimento e importante na memoria, como a noite para
o dia. A essencia da Media~ao nao passa pela declina~ao do passado, sendo acto de memoria e de aposta no futuro. Nao nascendo ex nihilo, como se disse ja, a Media~ao nao podera contribuir para o aggiornamento da sociedade, corn uma mudan~a. sem preconceitos? Eis a questao ... 5. As tecnicas alternativas ou extra-judiciais de resolu~ao de conflitos sao ancestrais noutras latitudes, como e o caso da China e da Asia em geral. Nos E.U.A. o ano de 1976 foi determinante pelo facto de se ter realizado uma
Conferencia sabre a
Insatisfa~iio
Publica para cam o Sistema de
Justi~a. FRANK
professor da Universidade de Harvard, apresentou urn projecto revolucionario, diria tipo Loja do Cidadiio, denominado muti-door courthouse onde, apos uma triagem especializada, era possivel encaminhar as quest6es, nomeadamente, para assistentes sociais, psicologos, mediadores, arbitros ... E o mediador nao funciona como 0 juiz, dizendo 0 que e certo, antes direccionando as partes de forma convergente, buscando a concordia ... SANDER,
Conclusiio Os sistemas judiciarios do passado, pequenos e descomplicados, tornaramse mastodonticos. 0 juiz nao pode ser, ao mesmo tempo, o gestor, o julgador, o estudioso e o assessor do caso. 0 que discutimos? A Reforma profunda do Sistema Judiciario ou a cria~ao de urn Novo Sistema? A Media~iio insere-se no primeiro ou anuncia vesperas importantes na forma de conceber o Poder Judicial? E quanto a forma~ao dos mediadores? Sao tudo quest6es de enorme envergadura e sobre as quais deve haver muito debate, grande transparencia e profundo consenso. A sociedade mediatica ea sociedade da incerteza em que vivemos reconduzem-nos para o campo da media~ao, ditando o colapso do sistema judicial? Pode falar-se de - Justi~a /ligth? - Justi~a alternativa? - Justi~a pseudoterapeutica? Ou so ha justi~a quando eia emana dos tribunais? E sendo a media~ao urn procedimento baseado na liberdade podera configurar uma nova sociedade baseada no respeito? Sera possivel uma sociedade alicer~ada na harmonia, num sao convivio, sem imposi~oes, sem repressao? A estrutura colaborativa poder-se-a impor a estrutura impositiva?
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Ant6nio Jose Moreira
Sera possivel sair das interroga<;6es sem cair na utopia anarquica? Ou tudo devera confluir num acasalamento perfeito, num casamento corn separa<;ao de bens? Minhas senhoras e meus senhores: Comecei por dizer que o tema e urn tema da moda. Esta, porem, muda rapidamente. Nao sei se a Mediar:;iio e como diz Gmo PARIS, urn grande filao para o seculo XXI. 0 que sei, e corn isto termino, e que estao em causa mentalidades, comportamentos e atitudes. E a sua modifica<;ao demora o seu tempo, muito tempo ... E entretanto, como escreve FERNANDO PESSOA sonhamos, temos mesmo o dever de sonhar, de sonhar sempre ate que uma flor possa brotar. E se for rosa, como diria Juuus VoN KmcHMANN em meados do seculo XIX, que desabroche como no paraiso Disse.
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Lusfada. Direito. Lisboa,
11.
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A EXPERIENCIA DA MEDIA~AO EM FRAN~A
Beatrice Blohern-Brenneur
A EXPERIENCIA DA MEDIA<;::AO EM FRAN(A * Beatrice Blohern-Brenneur 1
SUMARIO: Em Franc;a, a mediac;ao aplica-se em todas as materias. 0 juiz pode, sempre, corn o acordo das partes, ordenar que se realize diligencia de mediac;ao a cargo de urn terceiro.
Je voudrais d'abord remercier le Ministere de la Justice du Portugal, la section portugaise de GEMME, et particulierement Monsieur le president Cardona Ferreira, Mme Albertina Aveiro Pereira et toutes les autorites du Portugal qui ont permis la realisation de cette magnifique journee.
I. Historique de la mediation en France
Nous pensons .aujourd'hui que la mediation correspond a une conception moderne de la justice, voire futuriste. Et pourtant, l'histoire nous apprend que la mediation est ancienne. Au colloque de Valence de 2002 sur la mediation, Jacques Claviere-Sehiele2 nous a decrit comment en 1830 un juge de paix en Ardeche recourait deja a la mediation. En 1958, egalement une ordonnance de refere a designe un mediateur judiciaire a I' occasion de I' occupation des usines Citroen par Les grevistes. Dans les annees 1970 des mediations ont ete ordonnees clans les conflits collectifs du travail. Les juges ont fait application de !'article 21 du Nouveau code de procedure civile qui leur dorme mission de concilier les parties. La mediation divise le monde judiciaire et invite a repenser le role du juge: pour certains c'est de trancher le litige; pour d'autres, il a pour mission de denouer
'
Interv en~ao
na Universidade Lusiada de Lisboa em Dezembro de 2006. Presiden te de Sec~ao no Tribunal de Apela~ao de Grenoble (Fran~a), Secretaria Geral do Agrupamento Europeu de Magistrados pela Media~ao. 2 ÂŤResurgences de la mediation et pratiq~e de la cour d'appel de ParisÂť, Semaine Sociale Lamy; numero 100 du 2 decembre 2002, p.46. 1
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te conflit. Le juge n'est-il qu'un «mecamoen du droit» ou doit-il tenter de donner une solution pacificatrice au conflit? Tel est !'object du debat qui s'est instaure en France a compter de 1970 et qui s'arreta devant la Cour de cassation: Un arret de la chambre sociale du 26 juillet 1984 confirmait qu'un «expert» pouvait etre designe pour permettre aux parties de rechercher les causes du conflit dont !'occupation de l'usine n'etait qu'une des manifestations. Puis, la Haute juridiction, par un arret de la deuxieme chambre civile du 16 juin 1993, (bull II n. 0 211 p. 114, pourvoi n. 0 91-15.332) confirma la legalite de la mediation, "dont !'object (qui) est de proceder a la confrontation des pretentions respectives des parties en vue de parvenir a un accord propose par le mediateur, est une modalite d' application de l' article 21 du nouveau Code de procedure civile tendant au reglement amiable des litiges." Vous aurez done compris a travers cet apen;:u historique que les magistrats ne sont pas mediateurs en France; ils ont une mission de conciliation, mais audela de la conciliation, ils peuvent ordonner des mediations. Je dis «au-dela» car si la conciliation du juge permet de resoudre le litige, la mediation qui se deroule sur un temps beaucoup plus long permet d'aller plus au fond des choses, au nceud du probleme et de regler le conflit dont le litige juridique n'est que le resultat. Le legislateur a consacre la pratique de ces juges pionniers et c'est la loi du 6 fevrier 1995 et son decret d'application du 22 juillet 19963, qui ont introduit la mediation dans le Nouveau code de procedure civile (art 131-1 ets du NCPC). On peut dire qu' en France, la mediation est un outil supplementaire donne au juge et, selon Guy Canivet, Premier Presidente de la Cour de Cassation, <<Il n'y a pas de hierarchie ni de prevalence entre les divers modes de reglement des litiges. La mediation est un mode equivalent au jugement» 4
II. Domaine d'application de la mediation La mediation s'applique en toutes matieres. 11 est prevu que le juge peut, apres avoir recueilli l'accord des parties ordonner une mediation confiee a une tierce personne. Le caractere volontaire de la mediation est done le principe.
3
J.O. du 23 juillet 1996. Guy CANIVET, colloque de Valence <<Le juge et la recherche de la solution do conflit>>, Semaine Social Lamy, n. 0 1100 do 2 decembre 2002 p. 6 4
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En
maW~re
familiale
La loi fran<;aise prevoit que le divorce commence par une tentative de conciliation obligatoire devant le juge. Malheureusement en France, nous ne sommes pas suffisamment formes aux techniques de communication et cette phase de conciliation ne donne pas les resultats escomptes. Marc Juston, President du Tribunal de Tarascon, donne des chiffres alarmants demontrant que nos decisions judiciaires concernant les divorces et les droits de visite sont peu ou mal executees. 5 En matiere familiale, les lois du 4 mars 2002, relative a l'autorite parentale et du 26 mai 2004, relative au divorce, permettent au juge de faire injonction aux epoux de rencontrer un mediateur familial qui les informera sur 1'object et le deroulement de la procedure. En matiere familiale, le juge peut done contraindre les parties a aller se renseigner sur la mediation (et non pas a aller en mediation, dont la demarche reste volontaire). En appliquant la procedure d'injonction, Marc Juston a pu mettre en place une pratique de mediation en matiere familiale 6 . Environ 100 mediation sont ordonnees annuellement. D'autres experiences se mettent en place et font tache d'huile. Mais a part quelques experiences menees avec succes par des juges motives, il faut reconnaitre qu'en France, meme en matiere familiale, la mediation est peu pratiquee puisqu' elle ne represente pas 1% des affaires soumises aux J.A.F. J' ai pratique a us si «la nouvelle conciliation judiciaire», c' est-a-dire la mediation faite par le juge, bien que ce ne soit pas exactement de la mediation: Lorsque le divorce me parait relever de mediation, mais que les parties refusent d'y aller, j'ordonne la comparution personnelle des parties dans mon bureau. Je tente alors de les concilier en quelques heures. J'ai suivi une formation aux techniques de communication, ce qui m'aide beaucoup. Bien souvent, alors que les parties avaient refuse d'aller en mediation, je suis arrivee a les concilier. Mais, lorsque l'accord est trouve, je leur propose parfois d'etre accompagnees par un mediateur. J'ai en effet constate que des conciliations que je pensais merveilleusement reussies, se soldaient par un echec des que les parties se retrouvaient seules, car ce n' est pas en trois heures que 1' on app rend a se reparler. Il serait pourtant preferable que cette mediation ait lieu avant la saisine du juge. La question se pose de savoir s'il serait opportun de rendre la mediation obligatoire, des le debut du proces en divorce, au moins lorsqu'il y a des enfants. 5 Marc Juston, «la mediation familiale: une imperieuse necessite dans les tribunaux>>, gazette du palais 28 septembre 2004. 6 <<La mediation familiale: une imperieuse necessite dans les tribunaux>> , Gaz Pal. 26-26 sept 2004. Doct, p. 2, Jocelyne DAHAN, «La mediation familiale, mais comment>>, A.J.F. fevier 2003 7 Beatrice BLOHORN-BRENNEUR, «La mediation judiciaire: vers un nouvel spirit des lois dans les conflits individuels du travail>> Gaz Pal du 2 juillet 1998, doct. P. 1
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En matiere prud'homale 7
L'importance du taux d'appel des decisions des Conseils de Prud'hommes (environ 60%) demontre que la decision judiciaire n'est pas toujours acceptee. Il en resulte une attente pour que le conflit trouve sa solution definitive, ce qui ne permet pas toujours au salarie licencie de faire le deuil de la rupture et a 1' employeur de classer un dossier qui a parfois des repercussions sur 1' ambiance de 1' entreprise. Plusieurs experiences de mediation peuvent etre citees Celle de la chambre sociale de la Cour d' Appel de Grenoble est peut-etre la plus remarquable: 1000 mediations ordonnees en quelques annees avec un taux d'accord de 70%. Cette mesure a ete proposee clans 20% du contentieux de la chambre. La mediation est egalement pratiquee par les Cours d' Appel de Paris et de Lyon et par certains Conseils de Prud'hommes.
En matiere commerciale
En matiere commerciale, le ci'M affectif du conflit, s'il existe aussi, est moins exacerbe qu'en matiere familiale ou sociale. Mais la decision de justice montre aussi ses limites. Les parties peuvent avoir interet a eviter un proces qui donne une mauvaise image de l'entreprise et qui ne permet pas de garder des liens. Le plus grand nombre de mediations commerciales est aujourd'hui traite par le Centre de Mediation et d' Arbitrage de Paris (pres de 200 par an), en dehors de la saisine du juge, lors de mediations conventionnelles. Les Tribunaux de commerce de Paris, de Grenoble, de Saint-Etienne et d'autres se lancent clans des liens. En matiere civile, la mediation trouve a s'appliquer clans de nombreux domaines. Le domaine de predilection de la mediation est celui des successions et des troubles de voisinage. La mesure peut egalement s'appliquer clans d'autres contentieux, notamment, les baux, la copropriete ou la construction. Malheureusement les magistrats ne pensent pas encore a la proposer systematiquement. Il nous faudrait peut-etre commercer par le commencement, c'est-a-dire la formation des juges et des avocats. A l'Ecole Nationale de la Magistrature et clans les Centre de formation des Barreaux, l'accent devrait etre davantage mis sur la mediation comme un outil que les juges et les avocats ont a leur disposition pour regler les conflits. Les juges reclament cette formation. 11 est significatif de constater qu'en France, plusieurs cours d'appel ont demande a notre association GEMME de
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former les magistrats aux techniques de communication, la mediation.
a la
conciliation et
a
Ill. la mise en place de la mediation
La mediation ne s'est implantee que dans les juridictions ou les juges sont incitatifs et ou un partenariat s' est instaure entre les differents acteurs de la mediation: juges, avocats, mediateurs, greffiers. C'est pourquoi, a GEMME, bien que nous soyons une association essentiellement de magistrats, nous avons prevu la possibilite d'integrer, en qualite de membres associes, certains representants d'autres professions pour permettre des ÂŤpasserellesÂť et la mise en place de ce partenariat (avocats, mediateurs, professeurs d'universite) . La pratique d emontre que la place de l'avocat en mediation est tres important. Les juges ne pourront jamais mettre en place la m ediation sans le concours du Barreau. Un tiers des membres de la section fran<;aise de GEMME est constitue de personnalites importantes du monde de la m ediation. Nous avons tous besoin les uns des autres. Il doit tout d'abord conseiller son client sur la voie la plus adaptes pour resoudre son conflit : le proces ou la negociation. L'avocat a egalement un role a jouer dans l'accompagnement du client tout au long de ce processus. Des statistique demontrent que les mediateurs qui s'appuient sur les avocats en mediation ont de bien meilleurs resultats que ceux qui les excluent (art 131-5 du NCPC). Un decret du 2 decembre 2003 et l'arrete du 12 fevrier 2004 ont cree un diplome d'Etat de mediateur familial, prevoyant 560 heures de formation. Les juridictions qui pratiquent la mediation estiment que la formation du mediateur est essentielle et que la connaissance juridique est necessaire mais insuffisante. La remuneration Les couts des mediations sont tres differents selon les juridictions, la nature du litige et les lieux. Certains juges prevoient la remuneration du mediateur par reunion, d'autres lui donnent une somme forfaitaire. Une mediation en matiere sociale varie en moyenne entre 500 et 1000, dont la plus grande part est financee par l'entreprise. Les caisses d'allocations familiales subventionnent des associations de m ediation familiale ce qui permet de proposer des mediations a des tarifs tres interessants (entre 5 et 20 par personne et par reunion).
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3. La diversite des pratiques et les efforts d'harmonisation Chaque juge met en place une pratique specifique. C'est pourquoi en France le legislateur s'interesse a la mediation et il vient d'etre decide la creation d'un group d'etudes sur la mediation a 1' Assemblee Nationale et d'un Observatoire National de la Mediation. La diversite des pratiques existe aussi en Europe. Toutes ces raisons ont amene des juges europeens a se regrouper. Le 19 decembre 2003, une trentaine de magistrats europeens se sont retrouves a Paris a la Cour de Cassation pour creer le Groupement Europeen des Magistrats pour la Mediation (G.E.M.M.E.). Le Portugal y etait represente par Mme Concei<;ao OuvEIRA, avocate, que j' ai eu la chance de connaitre, alors qu'en qualite de Directrice de !'administration extrajudiciaire au Ministere de la Justice, elle avait organise un superbe colloque sur la mediation a Porto en 2001. GEMME a pour objectif de contribuer au developpement de la mediation et a !'harmonisation des procedures. Pour cela les juges ont decide de proceder a l'inventaire des bonnes pratiques, d'echanger les experiences, de participer a 1' elaboration des regles et apporter une aide materielle, intellectuelle et morale, a ceux qui veulent pratiquer ce Mode alternatif de reglement des conflits. L'accent est mis sur la formation des mediateurs certes, mais aussi sur celle des juges, soit dans leur mission de conciliateur, soit en tant que prescripteur de mediations. En creant GEMME, les juges ont aussi le souci d'eviter que la multiplication des initiatives personnelles n'aboutisse a une disparite de regimes nuisible a la mediation. C'est le but de ce colloque d'aujourd'hui et je felicite les autorites portugaises pour la reussite de cette organisation.
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LA MEDIATION ET LA CONCILIATION EN BELGIQUE: EN EVOLUTION, MAIS LENTE
Henri Funch
I
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LA MEDIATION ET LA CONCILIATION EN BELGIQUE: EN EVOLUTION, MAIS LENTE* Henri Funch 1
SUMARIO: Na Belgica, a media<;ao implica uma verdadeira revolu<;ao cultural e tal significa, naturalmente, dificuldade. E a confian<;a na auto-composi<;ao dos diferendos que esta em causa.
ÂŤRecevoir avec grace est peut-etre le plus beau des dons.>> (Ruth Bebemmeyer, citee par Marshall B. Rosenberg)
1. Deux lois en 2005 sur la mediation 1.1. Deux lois En 2005, le Parlement belge a vote deux loi qui ont fait entrer la mediation (en general) dans l'arsenal juridique de notre pays: -
la loi du 21 fevrier 2005 modifiant le Code judiciaire en ce qui concerne la mediation (civile), loi entree en vigueur le 30 septembre 2005; elle compte une vingtaine d' articles; - la loi du 22 juin 2005 introduisant des dispositions relatives a la mediation (penale) dans le Titre preliminaire du Code de procedure penale et dans le (Code d'instruction criminelle, loi entree en vigueur le 31 decembre 2005; elle compte 8 articles. Cette loi complete celle du 10 fevrier 1994 organisant une procedure de mediation penale. Une autre loi du 22 juin 2005 reintroduit le travail d'interet general dans le cadre de la mediation penale.
' 1
Interven~ii.o na Universidade Lusfada de Lisboa em Dezembro de 2006. President du Tribunal du Travail de Bruxelles (Presidente do Tribunal de Trabalho de Bruxelas).
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Henri Funch
1.2. La mediation civile
La loi du 21 fevrier 2005 ajoute un titre a notre Code de p rocedure civile en distinguant d'une part la mediation dite volontaire, hors procedure, et la mediation dite judiciaire, liee a une procedure 2â&#x20AC;˘ Elle etablit le principe que: ÂŤTout different susceptible d'etre regle par transaction peut faire l'object d'une mediationÂť. Elle n'autorise les personnes morales de droit public a etre parties a une m ediation que clans les cas prevus par la loi. Elle autorise les clauses de mediation prealable au proc?~s . Elle garantit la confidentialite et le caractere toujours volontaire de la mediation. Elle autorise une mediation sur une partie du litige. La loi fixe des criteres pour etre reconnu comme mediateur et institue une commission federale de mediation, chargee d'agreer les organes de formation des mediateurs ainsi que les m ediateurs eux-memes, et de veiller a la deontologie de ceux-ci. Cette commission est composee d'avocats, de notaires et d'autres professionnels, tiers. Trois sous-commissions sont plus specialement competentes en matiere familiale, en matiere civile et commerciale, et en matiere sociale. Au 30 septembre 2006, des m ediateurs ont ete agrees de maniere provisoire pour deux ans, en attendant que la commission federale ait fixe les exigences de la formation requise des m ediateurs. La loi prevoit la suspension du cours de la prescription de I' action afferente au droit en cause, pendant la mediation dite volontaire, et la suspension des mesures d e mise en etat de la cause pendant la mediation dite judiciaire. Elle regie le retour a !'audience en cas d'echee d e la mediation et en cas de succes de celle-ci, !'homologation de l'accord par le juge: ce dernier ne peut refuser !'homologation de l'accord que si celui-ci est contraire a l'ordre public ou si l'accord obtenu a l'issue d'une mediation familiale est contraire a l'interet des enfants mineurs. La loi prevoit que les frais et honoraires du mediateur, agissant soit clans une mediation judiciaire soit clans une mediation volontaire, peuvent faire partie de !'assistance judiciaire pour autant que le mediateur soit agree.
1.3. La mediation penale
La loi du 10 fevrier 1994 organisant une procedure de mediation penale avait permis au Procureur du Roi de proposer a l' auteur d'une infraction une transaction sur l'amende ou sur l'indemnisation, ou une peine alternative telle: 2 Ces expressions sont en realite inadequates car toute mediation est par essence volontaire, et la mediation judiciaire, on pe ut aussi entendre, comme au Canada, la mediation effec tuee par un juge.
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La mediation et la conciliation en Belgique: en evo lution, m a is lente, p . 235-243
-
un traitement medical ou tout autre therapie adequate lorsque l'auteur de !'infraction invoque comme cause de !'infraction la circonstance d'une maladie ou d'une assuetude a l'alcool ou aux stupefiants: - un travail d'interet general, ou a suivre une formation determinee d'une duree de 120 heures ai plus.
La travail d'interet general est effectue gratuitement par l'auteur de !'infraction pendant le temps laisse libre par ses eventuelles activites scolaires ou professionnelles: il ne peut etre effectue qu'aupres des services publies de l'Etat, des communes, des provinces, des communautes et des regions ou aupres d'associations sans but lucratif ou de fondations a but social, scientifique ou culture: il ne peut consister en un travail qui, dans le service public ou !'association designe, est generalement execute par des fonctionnaires ou salaries. Un assistant de justice charge de la mise en place et du suivi de !'execution du travail d'interet general. Il determine le contenu concret des travaux a realiser, sous le controle de la commission de probation qui d'office, sur requisition du ministere public ou a la demande de l'auteur de !'infraction, peut a tout moment le preciser et l' adapter. Le dommage eventuellement cause a autrui doit etre entierement repare avant que la transaction puisse etre proposee. Toutefois, elle pourra aussi etre proposee si l'auteur a reconnu par ecrit sa responsabilite civile pour le fait generateur du dommage, et produit la preuve de l'indemnisation de la fraction non contestee du dommage et des modalites de reglements de celui-ci. De puis, l'auteur de !'infraction doit au besoin s'engager a payer les frais d'expertise et d'analyse auxquels aurait donne lieu !'infraction et, lorsqu'une confiscation speciale peut etre appliquee, il doit s'engager a abandonner dans un delai determine les objets saisis qui lui appartiennent, ou a remettre a un endroit determine les biens qui n'auraient pas ete saisis. Lorsque l'auteur de !'infraction a satisfait a toutes les conditions, acceptees par lui, l'action publique est eteinte. L'extinction de l'action publique ne porte cependant pas prejudice aux droits des personnes subrogees dans les droits de la victime, ou des victimes, ou des victimes qui n'ont pas ete associees a la procedure: a leur egard, la faute de l'auteur de !'infraction est presumee de maniere irrefragable.
1.4. Points communs
La mediation civile et la mediation penale sont deux choses differentes. Neanmoins, elles se rejoignent: -
dans le besoin de garantir la confidentialite: l'article, y afferent, de la
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deuxieme loi citee est la copie conforme de la meme disposition dans la premiere loP; - dans la possibilite pour le juge de suggerer la mediation aux parties 4; - dans !'institution d'une commission dite de mediation ou de deontologie.
1.5. Differences
a) Curieusement, alors que la premiere loi ne definit pas ce qu'il faut entendre par «mediation>>, afin de ne pas se laisser enfermer dans l'une ou l'autre definition, la deuxieme loi mais peut-etre est-ce precisement parce qu'en matiere penale, la loi se doit d'etre tres precise - definit la mediation, comme suit: <<La mediation est un processus permettant aux personnes en conflit de participer activement, si elles y
consentent librement, et en toute confidentialite, ala resolution des difficultes resultant d'une infraction, avec l'aide d'un tiers neutre s'appuyant sur une methodologie determinee. Elle a pour objectif de faciliter la communication et les conditions permettant l'apaisement et la reparation>> . b) Les deux lois se distinguent fondamentalement par leur articulation avec le proces: - le projet devenu la loi du 21 fevrier 2005: - a exclu, malgre les demandes d'un group de magistrats membres de la section belge de GEMME, et malgre des rencontres avec les parlementaires et la ministre de la Justice, la mediation par le juge; celle-ci est en effet expressement reservee aux avocats, aux notaires et a des tiers tels que psychologues, consultants en ressources humaines, etc. Ces trois categories sont expressement prevues dans la composition d' une commission fed er ale de mediation, chargee d' agreer les candidats mediateurs; - La loi distingue expressement, ainsi qu'il a ete dit, la mediation dite volontaire, hors procedure, et la mediation dite judiciaire, liee a une procedure; - la loi du 22 juin 2005: - reserve expressement la possibilite de recourir a une mediation aux personnes avant un interet direct «dans le cadre d'une procedure judiciaire»: elle prevoit aussi la possibilite pour une partie de solliciter la mediation «dans chaque phase de la procedure penale et de l'execution de la peine>>: 3 C.J. art. 1728, C.J.C, art 555 ' C.J. art. 1734. C.J.C, art 553, § 2.
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- la loi prevoit aussi que: «Le ministere public, le juge d'instruction, les juridictions d'instruction et le juge veillent a ce que les parties impliquees clans une procedure judiciaire soient informees (de) la possibilite de demander une mediation>>; la mediation penale est done confiee a la bienveillance des magistrats. c) La commission de meditation en matiere civile a une competence generale pour agreer les organes de formation des mediateurs ainsi que les mediateurs eux-memes, et veiller a la deontologie de ceux-ci. Au contraire, la commission de deontologie en matiere de mediation penale n'a pour but, comme son nom l'indique, que de veiller a la deontologie 5 .
1.6.
Commentaires
L'exclusion des juges de la mediation civile a malheureusement conduit
a 1' arret d'une bonne pratique clans le res sort de la Cour d' appel d' Anvers. Le projet de «mediation judiciaire>> - lance, certes pour une duree determinee, avec l'appui de la Fondation Roi Baudouin - visait a offrir aux justiciables la possibilite d'un recours a la mediation a l'intervention d'un juge. Il etait directement inspire de la pratique au Canada, et en particulier de celle developpee par Madame Louise OTIS, chez qui les initiateurs du projet etaient alles se former. Le projet de «mediation judiciaire>>, applique a toutes les juridictions du ressort d' Anvers, avait rencontre un succes relatif: en deux ans, seulement 26 demandes ont ete introduites a la cour d'appel, mais sur ces 26, 17 soit 70% se sont terminees par un accord. On peut peut-etre expliquer le relatif insucces de ce projet (en volume d'affaires) par cela qu'il a ete lance par la magistrature sans concertation prealable avec le Barreau, alors que les avocats sont largement reticents voire pour certains opposes a un role trop actif du juge en cette matiere.
2. La pratique de la conciliation
La pratique de la conciliation peut etre un moyen de promouvoir la mediation. 2.1 - Tout d'abord, clans le Code de procedure civile, des dispositions fragmentaires permettent la conciliation, mais seulement a l'introduction et
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C.J. 1726: C.J.C. art. 554, § 2
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en premiere instance. C'est sur cette base qu'en particulier les juges de paix ont toujours agi, notamment en matiere familiale, en matiere de troubles de voisinage ou en matiere de conflit locatif. Devant le juge de paix, les parties comparaissent souvent en personne. Il est relativement facile de faire une visite des lieux, eventuellement avec !'assistance d'un «homme de l'art» (expert), et de tenter a cette occasion une conciliation. Les juges de paix obtiennent ainsi des resultats qui depassent tres largement tout ce qui se fait ailleurs. Ils developpent d'ailleurs une pratique qui consiste a se repartir les roles entre le juge titulaire et un juge suppleant, car ils se rendent compte aussi de ce qu'il n'est pas sain que le meme juge intervienne comme conciliateur et reprenne son role de juge en cas d'echee. 2.2- La conciliation utilisant les techniques de la mediation est par ailleurs disponible clans differents juridictions: a la cour d' appel et au tribunal de commerce de Bruxelles, au tribunal de premiere instance de Nivelles .. .. 2.3- Elle est particulierement developpee a la cour d'appel de Mons. Un conseiller y opere un tri parmi les affaires entrants, une lettre est envoyee aux parties et aux avocats pour leur suggerer une conciliation, et en cas d'accord pour la tenter, cette tentative est faite par un conseiller suppleant (la loi beige permet a des avocats d'etre conseiller suppleant a la cour d'appel: ils sont affectes a des chambres «de delestage» presidees par un magistrat professionnel, pour resorber l'arriere judiciaire). 120 affaires ont ainsi ete choisies, clans lesquelles une lettre de proposition de conciliation a ete adressee aux parties et a leurs avocats. Une conciliation a ete tentee clans 50 affaires et clans 40 un accord a ete conclu, soit un faux de reussite de 80%.
3. La conciliation/mediation
Permettez-moi d'evoquer une bonne pratique clans une juridiction que je connais bien: le tribunal du travail de Bruxelles. Depuis 2001, j'ai souhaite developper, en collaboration avec les collegues magistrats, le barreau et les organisations professionnelles d'employeurs et de travailleurs salaries, a la fois la conciliation par le tribunal (clans sa composition paritaire) et la mediation par une personne exterieure, le choix entre l'une et I'autre etant laisse aux parties. Nous avons ainsi constitue un groupe de travail quadripartie, qui a prepare un protocole d'accord, organise des formations et assure la promotion de la conciliation et de la mediation. Le protocole d'accord a ete signe le 20 octobre 2005. Je viens par ailleurs de terminer le rapport annuel de la juridiction. On constate depuis septembre 2004, et plus encore depuis septembre 2005, une
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augmentation croissante du nombre de conciliations: une trentaine de cas jusqu'a present, avec un taux de reussite de 80% (si l'on compte uniquement les cas clans lesquels une tentative de conciliation a reellement ete faite). Mais depuis de debut de l'annee 2005, le tribunal n'a designe de mediateur que clans deux causes. La promotion de cette voie nouvelle de reglement des litiges a ete facilitee par la mise en vigueur de la loi du 21 fevrier 2005. Elle se heurte neanmoins encore a de fortes reticences parmi les avocats - et parmi les representants patronaux et syndicaux. Des initiatives seront prises pour les sensibiliser davantage.
Conclusion La mediation au sens ou nous l'entendons entraine et implique une veritable revolution culturelle, et c'est la sans doute la difficulte de la promouvoir. Elle considere que les gens sont capables, avec l'aide d'un tiers mediateur, de resoudre par eux-memes leurs differends. Elle se fonde done sur la bienveillance et sur la confiance. Elle a par la un important fondement spirituel.
ÂŤPar dela les notions de bien et mal, il y a un champ. C'est la-bas que je te retrouveraiÂť Jala.l al-Oin Rumi, poete soufi.
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MOYENS ALTERNATIVES DE RESOLUTION DE CONFLITS: L'EXPERIENCE ITALIENNE
Maria Giuliana Civinini
MOYENS ALTERNATIVES DE RESOLUTION DE CONFLITS: L'EXPERIENCE ITALIENNE* Maria Giuliana Civininil
SUMARIO: A utilizac;ao da palavra "conciliac;ao" no processo dirigido pelo juiz no contencioso civil, familiar, comercial e !aboral. E " mediac;ao" especialmente no ambito familiar
1. La conciliation judiciaire dans le contentieux civil, social et commercial 1.1. Une mise au point linguistique L'expression «Modes alternatifs de resolution des conflits» decrit des instituts juridiques tres differents entre eaux: mediation, con ciliation, transaction, arbitrage. Pour indiquer te <<mode alternatif» caracterise par une solution trouvee par les meme parties dans une procedure dirigee par un tiers, ou utilise deux termes (qu elque fois comme synonymes, d'autre fois comme opposes): mediation et conciliation. Le legislateur fran<;:ais utilise la terme <<conciliation>> pour indiquer la resultat2 et <<mediation>> pour indiquer la procedure 3 • En ltalie la distinction est moins claire. On parle de <<conciliation» si la procedure est dirigee par un
na Universidade Lusiada de Lisboa em Dezembro de 2006. Referendaria do Tribunal da Cassa~ao de Italia. Antigo Membra do C.S.M. italiano. Vice Presidente do Agrupam ento Europeu de Magistrados pela Media~ao 2 Voir la Titre du CPC: «La mediation>>: Art. 127: <<Les parties peuvent se concilier.. .>>; Art. 129 <<Les parties peuvent toujo urs demander au juge de constater leur conciliation>> . 3 Voir le Titre - VI bis du CPC: <<La mediation>>; Art. 131-1 <<Le juge saisi d'un litige peut, apres a voir recueilli l' accord des parties, designer une tierce personn e afin d' entendre les parties et de confronter leur points de vu e pour leur permettre de trouver une solution au conflit qui les oppose>>; Art. 131-3: La duree initiale de la mediation ne peut exceder trois mois>>; art. 131-10; <<Le juge peut mettre fin, a tout moment, a la m ediation sur dem ande d'une partie ou a !'initiative du mediateur». ·
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juge et pour indiquer tant la procedure (tentative de conciliation) que la resultat (conciliation des parties; prod~s verbal de conciliation) mais ou utilise la meme terme pour la conciliation geree par au tiers neutre, qui ne fait pas partie du judiciaire, si la conflit a nature patrimoniale. On parle de «mediation» si le m ediateur est un tiers, l'objet des conflits n'est pas dans la plaine disponibilite des parties et il a un lien entre procE~S et mediation, te resultat de laquelle peut conditionner la decision du juge (4 mediation penale, mediation familiale). J'utiliserai le mot: <<CONCILIATION>> pour la procedure dirigee par te juge dans le contentieux civile, familiale, commerciale et du travail; <<MEDIATION» pour indiquer notamment la m ediation familiale. La «MEDIATION>> comme voie extrajudiciaire de reglementation de conflits5 restera hors de mon exposee.
1.2. Le cadre normatif En Italie on n'a pas une discipline generale de la conciliation et de la mediation mais plusieurs normes eparpillees dans les codes et des lois; on peut distinguer des procedures obligatoires (a, c, e) et facultatives (b, d, g, h); devant te juge (a. b, e, d) et devant une tierce personne (e. g): a) Tentative obligatoire de conciliation dans le contentieux social (art. 420, 1. 0 par Code de procedure civil) b) Tentative facultative de conciliation dans te prod$ civil (art. 183 CPC) 6 et en matiere commerciale (art. 12 D.Lgs. a. 51/ 003) c) Tentative obligatoire de conciliation dans les proces de separation et de divorce (art. 708 CPC) d) Conciliation judiciaire facultative dans le contentieux de compe tence du juge de paix, ad. 322 CPC) e) Tentative obligatoire de conciliation avant du proces (art. 5 loi n .0 108/ /1990: contestation de validite d'un licenciement; art. 410 CPC: avant 4
La premiere fois que la loi italienne a employe le terme «mediation>> a ete en matiere de competence penale des juges de paix. Le juge de paix peut suspendre le proces penal et envoyer la victime et !'accuse pres d'un centre de mediation pour favoriser soit un accord soit des actions de reparation. Precedemment, la «mediation>> dans la justice penale des mineurs c'etait developpe sur la base de !'art. 28° DPR a. 448/1988. Dans presque toutes les villes ou siege un Tribunal pour les mineurs, le Ministere de la Justice et les Municipalites locales ont prevu des centres de mediation pour rechercher des solutions dans l'interi"t de chacun (la responsabilisation du mineur et la sa tisfaction de la victime). 5 Dans ce sens, la mediation se definit comme «un mode de construction et de ges tion de la vie sociale grace a l'entremise d'un tiers neutre, independan t, sans autre pouvoir que l'a utorite que lui reconnaissent les mediants qu i l'auront choisi o u reconnu libremenb> (M. Guillaume-Hofnung, La mediation. Que sais-je? n. 0 2930, p. 74 6 La tentative de conciliation etait obliga toire jusqu'a le 1. 0 mars 2006.
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tons les prod~s du travail; Loi n. 0 192/1998: contestations entre subfournisseurs et commettants; Loi n. 0 421/1995 et loi a. 249/1997: contestations des usagers de la telephonie et de la television); si la tentative de conciliation n'a pas ete exploitee, on ne peut pas soumettre au juge ses pretentions et la demande est irrecevable. f) Tentative obligatoire de conciliation avant du prod~s par prevision du contrat (art. 40 D.Lgs. n. 0 5/2003); tentative de conciliation omis, te defendeur peux formuler une exception et le prod~s est suspendu. g) Procedure de conciliation devant les chambres de conciliation realisees par les Chambres de Commerce (Lei n. 0 580/1993) pour la resolution des conflits entre entreprises et entre entreprise et consommateurs ou usagers. h) Mediation familiale clans te prod~s de separation et divorce (art. 155 sexies CC introduit par la loi n. 0 54/2006): te juge, avec le consensus des parties, peut renvoyer la decision sur les enfants et la pension alimentaire pour permettre aux conjoints, avec l'aide des experts, d'experimenter une mediation pour rejoindre un accord, compte tenu de superieur interet des enfants.
1.3. Pourquoi concilier? Les raisons de l'interet de l'opinion publique, des legislateurs nationaux et des institutions europeennes pour le MAR sont bien connues (instrument d'acces a la justice, de promotion des droits, de deflation des juridictions, de recherche d'une solution des conflits non imposee par l'autorite mais trouvee avec la collaboration des parties et partagee entre eaux). L'idee que les MAR puissent etre na instrument de deflation du contentieux des tribunaux s'est revele jusqu'ici sans fondement. La vraie force et la vraie valeur de conciliation et mediation- en rapport a la juridiction - sont: La possibilite de realiser clans te proces une collaboration entre le juge et les parties pour ÂŤbatirÂť ensemble une solution partagee, tres proche aux reels interets des sujets en conflits: une telle solution garantie la collaboration clans 1'execution de 1' accord et previent les nouveaux conflits qui peuvent naitre d'une decision insatisfaisante. La reduction des temps du prod~s: en cas de succes de la conciliation le proces terminera clans l'espace d'une ou deux seances et le juge pourra mieux s'engager clans les proces plus complexes. La reduction du sentiment de frustration du juge devant les conflits qui ne peuvent pas etre resolus seulement avec !'application du droit: tous les juges ont ressenti quelques fois nu fort sens d'impuissance devant un litige
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entre parents qui cache vieilles querelles de famille qui ne sont pas tranchees avec la decision de la cause; ou devant deux epoux qui veulent utiliser le procE$ pour faire payer tout outrage re~u .pendant le mariage. Comprendre le vrai interet des parties et les aider a trouver la vraie solution c' est pour le juge une grande satisfaction professionnelle. Garantie de la paix sociale, augmentation de l'efficacite de la justice, du professionnalisme et de la satisfaction du juge: voila l'enjeu de la conciliation.
1.4. L'experience de la conciliation judiciaire. Le CPC du 1941 prevoyait le pouvoir du juge d'experimenter une tentative de conciliation dans te proces civil et le proces de separation dos conjoints mais par plusieurs annees les juges ont joue un role formel et pas actif. La reforme du proces du travail dans les annees 70 et surtout la reforme du proces civil dans les premieres annees 90 ont tout change. Ces deux refonnes ont renforce les pouvoirs da juge dons la gestion du proces interrogatoire libre dos parties, tentative de conciliation, mise eu lumiere des questions controverse sont devenues le coeur du proces. Les juges ont utilise les pouvoirs officieux conferes par la loi et de bonnes pratiques se sont diffusees. En fait : a) devant la crise de la justice civile la magistrature s'est chargee du probleme du delai du proces dans la conviction que un proces efficace demande des pouvoirs officieux bien exerces; b) le CSM 7 a mis eu place une intense action de formation 8 sur le proces et la conciliation (conditions, techniques, deontologie); c) le numero des proces definis avec conciliation est devenu statistiquement important. Ou a eu un
7 Le CS.M. <<est preside par le President de la Republique>> (art. 104, alinea 2 Cost.), qui est le girant de l'equilibre constituti01mel entre les pouvoirs de l'Etat; suite a la reforme de la loi du 24 mars 1958 n. 0 195 introduite par la loi du 28 mars 2002 n .0 44, il est compose par: le Premier President de la Cour de Cassation e le Procureur general de la Cour de Cassation, qui sont membres de droit; huit membres de nomination parlementaire, choisis parmi des professeurs ordinaires d'universite en matiere juridique et des avocats apres quinze annees d'exercice de la profession du barreau; seize membres elus par les magistrats. Le CSM est le garant de l'autonomie et de l'independance interne et externe des magistrats et c'est a lui que reviennent toutes les fonctions concernant le stntut du magistrat et, de fa~on plus generale, !'administration de la juridiction. 8 La CSM veille, depuis sou institution, a la formation theorique et pratique des auditeurs de justice et, depuis le debut des annees 70, des magistrats en fonction. Etant donne qu'une Ecole n'a pas jusqu'a present ete institue (elle est maintenant prevue par la loi de reforme de !'organisation judiciaire mais n'est pas encore ete realisee), le Conseil l'a cree au niveau pratique grace a une reglementation interne: il a mis en place une commission ad hoc, la Neuvieme Commission, consacree au stage et a la formation professionnelle, appuyee par un Comite scientifique compose de magistrats, de professeurs universitaires, de professeurs exer~ant l'activite d'avocat et a cree un reseau deconcentre de formateurs sur !'ensemble du territoire national.
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changement culturel qui a interesse une grande partie des juges civils, du travail et de la famille. L' experience (surtout de la formation a mis en lumiere les elements suivants. II y a dos typologies de differends qui ont ses racines dans de rapports plus larges et complexes du simple cas dont elles naissent; dans ces cas il est plus important (pour les litigantes) le maintien de rapport et de ses potentialites de developpement que la solution secundum jus du litige. Il s'agit des rapports de voisinage, des immeubles en copropriete, des rapports commerciaux continus. Dans ces cas (et autres) il est preferable (a la place d'un arret rendu par l'autorite d'un juge) une solution qui ne se limite pas a reparer une offense mais pose la base pour un possible futur de <<cohabitationÂť. Ce resultat peut etre rejoint avec la conciliation. Si le litige concerne nom seulement les parties mais aussi groups de personnes en conflits entre eaux (groups familiers, groups do nationalites ou religions differentes, groups do populations dans le cadre de la politique de la ville ou do l'environnement), il est incontournable- pour interrompre la spiral du conflit - trouver de solutions satisfaisantes en faisant recours a do bonnes techniques de composition de conflits. Dans le contentieux familial (surtout les proces de separation et divorce) le juge se trouve en contact avec des situations tres difficiles. Il doit appliquer de normes qui rappellent concepts (la faute des conjoints dans la crise de la famille) ou de valeurs (l'education des enfants, le role des epoux) qui ne sont pas (ou ne sont pas plus) partages par tout le monde. Il doit garantir la realisation de l'interet superieur de l'enfant. Ici le juge experimente l'impuissance d'une solution d'autorite; il comprend que les parents doivent reprendre un dialogue entre eaux et recuperer leur role et leur responsabilite vers les enfants et le conjoint. La conciliation peut faire beaucoup. S'il n'est pas possible concilier les epoux quand la communaute familiale est definitivement rompue, le juge pourra les aider a trouver un bon accord sur les questions patrimoniales ou sur le droit de visite des enfantes . C'est dans le secteur du droit de la famille et des mineurs que le juge a aussi experimentes de formes innovantes d'interaction entre le prod~s et la mediation extrajudiciaire. L' <<experienceÂť a ete realisee par la premiere fois par la Chambre Famille du Tribunal de Milan9 il y a une dizaine d'annees: Pendant les premieres phases du proces de separation ou de divorce (dans le cas plus problematique), le juge proposait aux parties de se rendre chez un mediateur familial; il leur expliquait: le role du mediateur (une tierce
9 A Milan, en 1986, naquit le premier centre de mediation familiale. Les differentes ecoles et methodes de mediation donne naissance a la Societe italienne de mediation familiale qui assure la formation initiale et continue des mediateurs familiaux italiens.
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personne neutre, avec une formation specifique, qui agit au fin que les parties trouvent par eaux meme un bon accorde de separation) et la finalite de la mediation (elaborer une «programme de separation» satisfaisante pour les epoux et pour les enfants), la raison du recours a la mediation (mettre en place une nouvelle forme de communication, reconnaitre ses responsabilites, valoriser leur rapports avec les enfants aussi dans la phase de rupture du mariage 10), le rapport entre mediation et proces (si la mediation reussit, les conjoints assistes par ses avocats en donnent les resultats aux juge). Si les deux parties etaient d'accord pour tenter la voie de la mediation, le juge disposait un renvoi da la seance par le delai necessaire. La mediation terminee, le juge tenait compte de l'accord entre les epoux pour etablir les conditions de la separation ou du divorce. Dans le cas d'accord global, on pouvait avoir la transformation de la separation ou du divorce judiciaire en separation ou divorce consensuel. Pou mieux gerer cet «envoi en mediation» de parties, le juges de Milan avaient instaure des rapports de collaboration «atypique» avec les associations specialisees en mediation familiale.d'etude et reflexion et la simulation des seances et des activites judiciaires principales (comme la conciliation). La simulation se realise avec !'assignation des roles da juge, des partes, des avocats, du greffier aux participants; lis doivent simuler (par ce que nous interesse) la tentative de conciliation, chacun en jouent sa partie; une fois terminees, le membre do group qui ont assiste a la simulation donnent leur commentaire (surtout sur la gestion de la conciliation mise en place par le «juge» ); il est utile repeter la meme action avec changement des roles (acteurs et spectateurs); finalement te group debat sur la conciliation, chacun peut exprimer ses reflexions, poser de questions, ecouter de reponses. De cette fa<;on le cas se transforme de simple his to ire en parcours pour 1' apprentissage theorique, pratique. Axiologique. La dramatisation des distincts moments du prod~s et des audiences fait surgir d'une fa<;on spontanee dans les participants demandes et reflexions sur le rapport avec les parties, les avocats, les greffiers, sur les comportements a assumer et ceux a evitel~ sur le point ou le juge peut se pousser dans la tentative de conciliation. Ainsi on peut se deplacer du plan juridique au plan deontologique avec in approfondissement qui ne passe pas seulement pour l'apprentissage theorique mais aussi pour !'experience reelle et les demandes qui a suscite. li s'agit d'un modele destine surtout a la formation des jeunes magistrats. La bonne preparation de la documentation et da dossier virtuel est de grande importance. 10
Selon la definition du Conseil Consultatif de la Mediation Familiale (F), <<La Mediation familiale est un processus de reconstruction du lien familial axe sur l'autonomie et la responsabilite des personnes concernees par des situations de rupture ou de separa tion clans lequel un tiers impartial, independant, qualifie et sans pouvoir de decision, le Mediateur Familial, favorise, a travers !'organisation d'entretiens confiden tiels, leur communications, la gestion de leur conflit clans le domaine familial entendu dansa sa diversite et clans son evolution. >>
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MEDIAc;AO PENAL
Maria Joao Machado
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MEDIA<::AO PENAL* Maria Joao Machado 1
SUMARIO: Ainda que o caminho seja longo, a implementa<;ao da media<;ao penal sera mais urn passo nesta caminhada.
0 conceito de "JUSTI<::A RESTAURATIVA", englobo formas participadas e nao violentas de sup era~ao de conflitos, nas quais a MEDIA<::AO PENAL, assume urn papel preponderante. 0 poder punitivo por parte do Estado, d6 lugar, neste novo conceito de justi~a, a urn enfoque do crime numa perspectivo dos danos causados pelo Infractor a vitima, permitindo-lhes, junto corn a comunidade em geral, encontrarem as solu~6es adequadas a restaura~ao do equilibrio afectado pelo delito e a pacifica~ao das situa~6es, promovendo 0 fortalecimento das rela~6es entre os individuos e a coesao social. Ficando assim afastada, a possibilidade de aplica~ao de "san~6es privativas de liberdade" a que eventualmente estaria sujeito o autor do crime no sistema judicial. 0 caracter flexfvel das praticas restaurativas, permite uma adapta~ao permanente as constantes muta~6es sociais bem como a multiculturolidade dos tempos modernos. Na Justi~a Restaurativa as necessidades da vitima sao colocadas no centra do sistema criminal de ju s ti~a, procurando encontrar solu~6es positivas para os danos produzidos pelo crime, incentivando o autor a encarar as suas ac~6es de face erguida, assumindo as suas responsabilidades pelos danos causados. no fundo e aquilo a que vulgarmente chamamos de "fazer as pazes" ou "repor da ordem quebrada" ou "reconcilia~ao consigo mesmo". Podemos entao dizer que a Media~ao Penal. E urn processo voluntario, confidencial e informal, atraves do qual, vitima e infractor, e, eventualmente, outras pessoas ou membros da comunidade afectados pelo crime, participam colectiva e activamente na resolu~ao dos problemas causados pelo crime,
路 Inte rven~ao na Universidade Lusiada de Lisboa em Dezembro de 2006. 1 Mediadora
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Maria Joao Machado
assistidos por urn terceiro - o Mediador, que promove a aproxima~ao entre as partes visando alcan~arem urn acordo que permita a repara~ao dos danos causados, contribuindo para o restabelecimento da paz social. No desempenho das suas fun~6es o Mediador esta obrigado a observar os deveres de imparcialidade e, neutralidade, independencia, confidencialidade e diligencia e fica vinculado ao segredo de justi~a. Existem tres limites para a
repara~ao
do dano:
___. nao pode resultar numa pena de prisao, ___. nao pode resultar num dever que ofenda a dignidade do arguido, ___. nao pode ser eterno ou tendencialmente longo. Os acordos podem traduzir-se em: ___. pagamento de uma quantia em dinheiro, ___. a tftulo de compensa~ao - o arguido pode comprometer-se a pagar a repara~ao daquilo que tenha destrufdo; ___. pode ser urn pedido de desculpas - o arguido pede desculpo por ter ofendido publica mente a vftima. ___. na repara~ao de alga que tenha sido danificado, ___. na reabilita~ao do arguido - por exemplo, atraves de urn compromisso por parte do arguido em realizar qualquer ac~ao de forma~ao. Deste modo, a Media~ao Penal ao centrar a questao nas vftimas e instaurando uma reac~ao social mais positiva para corn o delinquente, demonstra a aplica~ao pratico de uma nova racionalidade peno), a denominado Justi~a Restaurativa. Daqui resulto a enorme Importancia do papel das organiza~6es nao governamentais nesta materia. IMPLEMENTA<::AO DA MEDIA<::AO PENAL EM PORTUGAL A Media~ao Penal vai ser implementada no proximo ano de 2007, em resultado do cumprimento do Programa do Governo e de uma politica europeia de promo~ao destes mecanismos na area penal, operado atraves da Decisao-Quadro 2001/220/JAI, e de uma recomenda~ao do Conselh o da Europa. A Media~ao Penal Ira funcionar a tftulo experimental e por urn perfodo de 2 anos, atraves de urn projecto-piloto, em 2 a 4 comarcas. E ao Ministerio Publico a quem cabera o encargo de remeter o processo 00 Mediador, tendo a Media~ao que estar conclufdo em tres meses. Findo esse prazo sem que o Mediador tenha conseguido concluir a media~ao, o processo seguira os seus tramites pela via judicial. Se houver incumprimento do acordo, o processo retorna ao Ministerio Publico.
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Media~ao
Penal, p. 253-258
CRIMES QUE PODEM SER SUJEITOS A MEDIA~AO
Os crimes passiveis de serem remetidos para a Media<;ao, sao essencialmente os que se reterem a pequena e media criminalidade - crimes puniveis corn pena de prisao nao superior a cinco anos ou corn san<;ao diferente de prisao. Ficarao excluidos da media<;ao penal os crimes sexuais e aqueles que envolvam uma vitima de idade inferior a 16 anos. Alguns tipos de crimes abrangidos pelo processo de media<;ao penal: -
Injurias; Furto; Pano; Burla; Ofensa a integridade fisica simples.
PASSOS DA MEDIA~AO
0 processo de media<;ao vai depender do tipo de crime praticado. ___. Se for urn me particular I crime semi publico - depende da apresenta<;ao de uma queixa para que haja processo-crime, - podendo a vitima vir a desistir da queixa - os passos sao os seguintes: (1. 0 passo) - Recebida a queixa, o Ministerio Publico (MP) remete
o processo para o mediador. (2. 0 passo)- Este contacta as partes, esclarecendo-as sobre a m edia<;ao penal. (3. 0 passo) - Ambos tern de a aceitar, caso contrario o processo continua pela via judicial Se aceitarem: (4. passo) - Tern inicio as sessoes para a obten<;ao de urn acordo. (5. 0 passo) - Se o acordo for alcan<;ado, e comunicado ao MP, dai resultando a desistencia da queixa; se nao for alcan<;ado, o processo continua pela via judicial. (6. 0 passo)- Se o acordo nao for cumprido, o ofendido pode renovar queixa. 0
___. No caso de urn crime publico- casos que nao dependem c queixa - podendo o MP dar Inicio ao processo-crime sem que a vitima se manifeste - os passos sao ligeiramente diferentes: (1. 0 passo) -Se houver indicios de crime, findo o inquerito, o MP
reme processo para urn mediador.
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- Os passes 2, 3 e 4 sao Identicos. - No 5. 0 passo, quando o acordo e alcanc;ado, o Ministerio Publico suspende provisoriamente o processo; sendo arquivado se for cumprido.
Ha urn longo caminho a percorrer..., MAS SEM DlJVIDA QUE A IMPLEMENTAC::A.O DA MEDIAC::AO PENAL EM PORTUGAL, SERA MAIS UM PASSO NESTA LONGA CAMINHADA.
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MEDIA<;AO FAMILIAR. PERSPECTIVA DE FUTURO
Maria Saldanha Pinto Ribeiro
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MEDIAC::AO FAMILIAR. PERSPECTIVA DE FUTURO* Maria Saldanha Pinto Ribeiro 1
SUMARIO: No ambito dos problemas litigiosos familiares, sem o serv i~o de muito pouco do que se fa z jurisdicionalmente vale a pena.
media~ao,
Pediu-me a Dr.a Albertina Pereira que fizesse um breve resumo da evolw;ao da Media<;ao Familiar no nosso pais e que vos falasse das nossas inquieta<;6es face a falta de resposta por parte dos Tribunais no que se refere as questoes da familia no contexto da Regula<;ao Litigiosa do Exercicio do Poder Paternal. Infelizmente, embora haja ultimamente algum progresso, a incrementa<;ao da media<;ao familiar tem sido muito dificil no nosso pais. 0 Instituto Portugues de Media<;ao Familiar foi a primeira associa<;ao nesta area em Portugal. Ele resultou ha 16 anos de um esfor<;o comum. Do meu como psic6loga, a data a trabalhar no Tribunal de Familia de Lisboa e de um conjunto de varios magistrados, quer judiciais, quer do Ministerio Publico, que entao trabalhavam no mesmo Tribunal. A nossa forma<;ao no Canada e na America teve a sua origem na necessidade que esses magistrados sentiam em resolver de uma forma diferente, nova e melhor, os problemas que as familias lhes apresentavam. 0 Instituto desde entao, tem vindo, quer a dar forma<;ao, quer a propor altera<;6es de caracter legislativo em parceria com outras institui<;6es quer ainda divulgar a Media<;ao, a realizar encontros, etc., etc. Assim, conseguimos propor com a Associa<;ao das Mulheres Juristas atraves de um esfor<;o conjunto das deputadas dos diferentes partidos na Assembleia da Republica a introdu<;ao na nossa legisla<;ao do Exercicio Conjunto do Poder Paternal e dos direitos dos av6s neste mesmo contexto. Por outro lado, existe igualmente uma outra Associa<;ao (a assembleia nacional para a media<;ao Familiar), que, como n6s, trabalha no terreno e da igualmente forma<;ao. Estas duas associa<;6es estao ambas sedeadas em Lisboa.
路 Interven~ao na Universidade Lusfada de Lisboa em Dezembro de 2006. 1 Presidente do Institute Portugues de M e dia~ao Familiar
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Nao tenho conhecimento que existam outras no pais. A nivel estatal existe apenas urn gabinete de Media<;ao Familiar em Lisboa "ligado" aos Tribunais de Familia e outro em Coimbra em via de concretiza<;ao. Infelizmente, as necessidades prementes das crian<;as, numa fase de risco como e a da separa<;ao litigiosa, nao tern constituido uma preocupa<;ao para os nossos dirigentes. De qualquer forma, desde que existe esta direc<;ao na D.G.A.E., pressentimos que algo esta a mudar e que ha uma luz ao ÂŁundo do tunel. A D.G.A.E. - dirigida presentemente pelo Dr. Filipe Lobo d'Avila, Dr. Ant6nio Teixeira Duarte e outros esfor<;os como o do Sr. Dr. Cardona Ferreira - tern vindo a d ar urn apoio diferente e construtivo aos esfor<;os da socied ade civil. Nao s6 tern sido criado "n" centros de Julgados de paz, como tern incentivado outras alternativas d e resolu<;ao de conflitos. Tambem se tern juntado a n6s, promovendo connosco a realiza<;ao de encontros de media<;ao Familiar, quer aqui no continente, como na regiao aut6noma da Madeira. Este esfor<;o tern sido desenvolvido porque a nossa preocupa<;ao e grande, uma vez que continuamos a ach ar que, da forma como actuam os Tribunais e todos n6s profissionais destas areas, as nossas crian<;as e familias nao estao protegidas. 0 Instituto ja fonnou perto de 90 mediadores Familiares. Essas forma<;6es, em varias partes do pais, tiveram o m erito de quer no Norte, quer no Centro, quer no Alentejo, exis tirem delega<;6es do Instituto, existirem Mediadores familiares, o que nos vai permitir organizar como uma estrutura unica e em red e. 0 primeiro encontro dos Mediadores destas delega<;6es esta agendado para Maio, onde estarao presentes mediadores familiares dos mais diversos pantos do pais: que vao desde Mon<;ao, Braga, Porto, Viseu, Seia, Coimbra, Lisboa, Barreiro, Santiago do Cacem a Regiao Aut6noma da Madeira. Todo este trabalho foi e e feito pelo Instituto sem qualquer ajuda econ6mica, apenas corn esfor<;o voluntario e empenhado . Gostaria, depois desta breve sintese, de vos ÂŁalar do lugar da Media<;ao no contexto litigioso do exerdcio do Poder Paternal e da forma como ela se pode articular corn outros servi<;os igualmente muito necessarios, uma vez que a Media<;ao nao eo unico remedio, e nao e certamente panaceia universal. A Media<;ao s6 pode ser util no contexto litigioso quando conjugada e articulada corn outros servi<;os. Os Servi<;os de media<;ao articulados corn os Tribunais sao extremamente necessarios porque a pergunta chave nesta area deveria ser a de saber p ara que servem os Tribunais da Familia, que valor os deve orientar? Qual e o verdadeiro interesse da crian<;a quando os Pais se separam? Vou vos dizer que antigamente, quando trabalhava no Tribunal de Familia de Lisboa, dizia-se que o Interesse do Menor e urn conceito abstracto. Variavel
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de caso para caso, onde tudo cabe. Nada de mais err6neo. N6s profissionais nao podemos pensar assim. Porque na generalidade dos casos, o Interesse do menor e, muito muito claro. E ele e o de manter a sua familia nuclear e alargada e uma vida o mais parecida corn a que tinha anteriormente, salvo em casos especiais de grave violencia, psicol6gica ou fisica. Este e que e o Interesse de qualquer crian<;a. Ora, nesta 6ptica que servi<;os serao entao necessarios ao Magistrado do Tribunal de familia para defender estes ideais? Servi<;OS que infelizmente nao existem em Portugal e sem os quais nao e possfvel nenhum Tribunal trabalhar bem. Para que os Tribunais pudessem ajudar as crian<;as e as suas familias eram necessarios os seguintes servi<;os:
Servi<;o de Informa<;ao sobre o Tribunal As consequencias de uma op<;ao litigiosa E as consequencias para as crian<;as
/ Servi<;os de Media<;ao Aconselhada ou Ordenada
I
Magistrados
Servi<;os de Peritagem
Servi<;os de Seguimento das Senten<;as nas casas de fim-de-semana
Para que possam compreender como os Magistrados tern tanta falta de apoios - tao deficientes e demorados. E mais facil atraves de urn caso litigioso extremo dar-vos urn exemplo de como estes servi<;os se poderiam articular. Cada vez mais, no nosso consult6rio, aparecem casos qualificados de Sfndrome de Aliena<;ao Parental corn insinua<;5es ou mesmo acusa<;5es de assedio sexual geralmente perpetrados pelo Pai sobre a sua crian<;a. Sao casos terrfveis. Sabe-se hoje que a maioria destas insinua<;5es sao falsas quando inseridas num contexto litigioso de Regula<;ao do Poder Paternal. Trata-se de urn argumento poderosfssimo que, num timing ideal, perfeito, permite ao progenitor que tern a guarda alienar de uma forma rapida e definitiva a rela<;ao entre a crian<;a e o outro progenitor.
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0 que e curioso e que, geralmente, 0 objectivo de quem acusa nao e que se prove a acusa<;ao quando esta e falsa . 0 objectivo nestes casos e apenas e s6 interromper as visitas, anula-las, protelando ate que seja a propria crian<;a a nao querer ver mais o Pai e o afirme em Tribunal. Vejamos entao, como reagem os magistrados face a uma acusa<;ao ou apenas insinua<;ao deste teor, quando nao tern os servi<;os de apoio necessarios e competentes? A obriga<;ao de qualquer Magistrado ea de reunir a maior/melhor quantidade de informa<;ao para poder decidir. Mas, em Familia, nao basta decidir, e necessaria mediar e, simultaneamente, acompanhar. Presentemente, o Magistrado, perante uma insinua<;ao de assedio, age da seguinte forma: Em primeiro lugar, na duvida, nao sabendo quem fala verdade e pensando que protege a crian<;a, interrompe as visitas ou transforma-as em visitas vigiadas por urn tecnico. Em segundo luga1~ pede uma avalia<;ao a urn servi<;o de peritagem que pode demorar urn ou mais anos, havendo, de qualquer forma, dada a interrup<;ao da rela<;ao pai - crian<;a, uma desvaloriza<;ao da figura paterna que leva, ao fim de urn ano, a crian<;a a nao querer ver mais o seu pai. 0 facto de este magistrado nao ter servi<;os apropriados que o assessorem e quando ele interrompe as visitas ou as manda vigiar por urn tecnico, fa z corn que surja, inevitavelmente, a morte desta rela<;ao unica e preciosa entre o pai e a sua crian<;a. Entao, como e que o Tribunal, se tivesse servi<;os apropriados, podia fazer diferente? Vejamos como. A insinua<;ao de assedio o magistrado deve em 1. 0 lugar, antes de actuar fazer duas afirma<;6es e uma pergunta. Afirmar por urn lado e perguntar por outro. Deveria dizer a Mae que a acusa<;ao que foi feita e muito muito grave e que o deixa perante uma situa<;ao paradoxal - sem safda: ou o que ela diz tern consistencia e o pai abusa realmente da sua crian<;a, ou a sua afirma<;ao visa interromper a rela<;ao entre o Pai e a sua filha/ o, inserindo-se a actua<;ao num quadro de aliena<;ao parental e e ela a abusadora. Em qualquer dos casos, esta crian<;a esta em grande risco. 0 Magistrado deve explicar que o valor maxima do Tribunal de Familia e 0 interesse do menor. E o interesse de qualquer crian<;a e o de conviver corn o seu pai e a sua mae, corn os seus av6s e a sua familia chegada. 0 interesse de qualquer crian<;a e amar todos, sem problema. E dizer que ele, o Magistrado, e o gm路ante desse direito .
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E, em seguida, fazer uma pergunta muito simples que o vai ajudar: a crian<;:a tern av6s, tios, familia paterna? Porque enquanto esta sua acusa<;:ao/ /insinua<;:ao nao for avaliada, as visitas a familia paterna vao continuar. Nao ao Pai, mas a familia alargada. Perguntar se a Mae se da bem corn os sogros? Se gosta que a sua crian<;:a se de bem corn eles? Da resposta da mae, vai provavelmente depender posteriormente a atitude deste Magistrado. Porque se a insinua<;:ao for falsa, provavelmente, o progenitor que acusa percebe que o seu desejo de interromper as visitas nao vai ser assim tao facil. 0 magistrado sabe que, no ambito da regula<;:ao litigiosa do exerdcio do poder paternal, muitas vezes, estas acusa<;:6es sao falsas. E por isso ele testa a mae perguntando se ela acha que a crian<;:a necessitava dos av6s paternos. Se ela responder que nao quer essa rela<;:ao para a sua filha, existe uma grande probabilidade de a acusa<;:ao ser falsa. Se ela, ao inves, responder que nao ha inconveniente, que e born que a crian<;:a se de corn todos, existe uma muito maior probabilidade de a insinua<;:ao ser verdadeira. Depois de perguntar o Magistrado devia actuar. Como? Em 1. 0 lugar, convocando, perante uma insinua<;:ao tao grave - os av6s maternos e paternos ou outros elementos que tenham uma, rela<;:ao afectuosa corn a crian<;:a. Uma conversa corn todos e indispensavel ao juiz. Para sentir a famllia, saber quem a crian<;:a ama como e porque e amado. Em 2. 0 lugar deve enviar para o servi<;:o de peritagem a avalia<;:ao do caso corn a maior urgencia, porque, o que esta em jogo e a morte desta rela<;:ao unica entre o pai e a filha, pedindo uma avalia<;:ao sistemica no mais curto espa<;:o de tempo. Enquanto esta peritagem dura as visitas deveriam continuar a ser feitas em casa dos av6s, tios ou amigos paternos, sugeridos pelos servi<;:os do Tribunal. Muitos magistrados no estrangeiro chamam ao seu gabinete a familia alargada, av6s de urn lado e doutro, ou pessoas que tenham uma rela<;:ao forte e afectuosa corn a crian<;:a. Esta audi<;:ao da familia alargada e a analise da peritagem deveriam ser suficientes para o Magistrado decidir um Plano para a Familia. Porque as famllias nao necessitam de ser julgadas mas sim percebidas e acompanhadas. Nestes casos urn dos Pais e abusador. Ou e abusador fisico ou e abusador psicol6gico da crian<;:a. E a crian<;:a esta em perigo. E s6 corn urn servi<;:o de peritagem que avalia e corn urn servi<;:o de acompanhamento que acompanhe casas de fim-de-semana onde a Media<;:ao acontece e possivel ajudar estes pais e esta crian<;:a.
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Resumindo estes casos Podem ser casos de:
~
Inibi<;ao pura e simples
Interrup<;ao corn tratamento de urn dos progenitores
\~
Altera<;ao de Regula<;ao do Poder Paternal
1 Sempre corn acompanhamento e supervisionado pelos servi<;os do Tribunal
Media<;ao entre os Pais
1
Corn urn piano auto-elaborado pelas partes
Porque pode mesmo suceder que esta Mae vendo que o seu argumento falacioso nao "colhe", resolva mudar de opiniao. Nesses casos, o Magistrado pode enviar esses casos directamente para a Media<;ao. Ai os pais podem-se ouvir e quem sabe, talvez entenderem-se. Sem estes servi<;os, sem Media<;ao para os casos litigiosos, sem seguimento das senten<;as, sem acompanhar as familias, muito pouco do que se faz vale a pena. Podem acreditar que estas casas de fim-de-semana, os servi<;os de que falamos valem a pena. Implementa-los. Muito Obrigada
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MEDIA~AO NOS TRIBUNAlS DA ESCANDINA VIA
Oyvind Smukkestad
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MEDIAC::AO NOS TRIBUNAlS DA ESCANDINA VIA* Oyvind Smukkestad 1
SUMARIO: Em todos os paises escandinavos, os juizes tern uma certa forma<;ao para efeitos de se proceder a media<;ao. 0 juiz e desejado como mediador.
Mediation in the Scandinavian Courts In a quiet corner in the northern part of Europe we have the five Nordic countries. The population on Iceland is 300 000, in Finland 5, 2 million, in Denmark 5, 5 million, in Sweden 9 million and in Norway 4, 7 million. We are well-established democracies and we have a tradition as fairly equal societies. Sweden. Denmark and Norway are kingdoms and Finland and Iceland are republics - Iceland is the oldest republic in Europe. We have the common culture. In Denmark, Sweden and Norway we understand each others languages easily. We also have very similar court systems. We have the common courts in three instances in Iceland being the exception - here we have common courts only two instances. We have almost no specialised courts - but Sweden and Finland have special courts for administrative cases. All the civil cases and all the criminal cases are dealt with in the common courts. The first instance is a number of District Courts. We also have District Courts of Appeal and one Supreme Court in the capitals. Mediation is developing in all the five countries. In Norway we started drafting a project in mediation in 1993. The project started on the pt of January 1997 in seven District Courts and in one Court of Appeal. Today all the courts in the first and second instance take part in the pilot project. We also have a new act by the Parliament on mediation and procedure in civil cases. The new law will come into force on the pt of January 2008. These days we have a broad practise of mediation in the Norwegian courts. 路 Interven.;ao na Universidade Lusiada 'd e Lisboa em Dezembro de 2006. 1 Presidente do Tribunal de Trondhein (Noruega)
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In Denmark they started working on a project in 2000. They have now practiced mediation in one District Courts and in one District Court of Appeal. Two weeks ago they published a draft law about mediation. The draft will pass the Parliament nest year. When the draft law has been passed, mediation will be practised in all the courts in the first and second instance. In Finland the Parliament passed an act in August 2005. There were no pilot projects in instance and they have had some difficulties starting mediation. There is a lack of education, but they are now developing and I hope they will soon have a broader practice. Iceland will start a pilot project nest year. They have tried mediation in a few cases. They are planning a broad education program next spring and will then start to practice mediation in the courts. Sweden is very often in developing the society, but they are the last country to develop mediation. They have established a drafting committee, which will finish its work next spring.
Education In all the countries the judges starting with mediation have a certain education. We have at least a three days course, some have a five days course and some judges have education from abroad like workshops at The Harvard Law School. We also have had teachers from the United States participating in the education in our countries. In my opinion education is very import and it is important to establish a system of continuous education. It is also necessary to establish an academic branch at the law faculties. In Norway we have been working on this problem for a long time. In Denmark they have a professor in mediation at the Faculty of Law at The University of Copenhagen. They have a very good Master Degree program offered as a Post Graduate study. Next year we will start planning a common continuing education between Denmark and Norway and we hope the other countries will join as well.
Judges as mediators In the mediation practice described we use almost the same in all the Scandinavia countries. We practice what the Canadians call judicial mediation. In most cases the judges preparing the case act the mediator. It is also possible to use others as mediators, but Norway this very rarely happens - mainly because there are no other mediators to choose, The Lawyer's Association: has offered education and many lawyers have taken part in the education. Our experience is that the parties want the judge as a mediator. In Denmark project
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Media~ao
nos Tribunais da Escandimivia, p. 267-271
the lawyers have participate on a 50% basis and the newly published draft law it is suggested that the state pays the salary if one chooses a lawyer as mediator. In my court - Trondheim District Court - we are very eager to use mediation. We be have it is a better way to solve most of the civil cases. We now mediate approximately 50% of all the civil cases. We reach an agreement in almost 90% of the cases. In Norway we have the slogan "Mediation- faster, cheaper and friendlier" . We also mediate greater civil cases in the last mediation meeting we use on an average 90 days. We have a very speedy litigation process in the civil cases. In the cases decided by judgements we use on an average 150 days from the filing of the case to the judicial decision.
Family Mediation - Custody dispute For some years now we have been trying a special mediation model in family cases - custody disputes. The tradition litigation model is not very suitable for these cases. It increases the conflict level and destroys the communication between the parties. In these cases we use a psychologist as a eo-mediator and we spend more time handling the cases Lawyers usually represent the parents, but they have a more moderate role. We try to speak to the parents directly. The two main goals are to get the parents to take the responsibility for the well being of their children and to find out what is the bet solution for the children. We have the first meeting shortly after the case has been filed. During this first meeting we try to reach a preliminary agreement, which the parents can try out for two or there months. During this period the p sychologist might speak with the parents of the children if necessary. In the second meeting we sometimes reach an agreement. If this is not the case, we make a few adjustments to the agreement to the agreement and let the parents try out for another period of time. In most cases we reach an agreement in the third meeting. We are very satisfied with the results of this mediation. We resolve nearly 85% of the cases with an agreement between the parents. We are also satisfied with the fact that the cases very rarely are brought to the court again. We have a very practical solution when it comes to the enforcement of the agreement reached by mediation. The regulations allow the judge to decide to end the mediation with a court meeting if the parties wish to do so. An in court enforceable settlement is then written down.
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A MEDIA<;AO NOS JULGADOS DE PAZ PORTUGUESES
Paulo Brito
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A MEDIA<::AO NOS JULGADOS DE PAZ PORTUGUESES*
Paulo Brito 1
SUMARIO: Nos julgados de paz portugueses funciona urn servi~o de media~ao tendente a que os interessados superem o seu conflito.
Em torno do conceito de
media~ao
Nao nos iremos alongar em considerac;6es te6ricas sobre a mediac;ao. Diremos, para comec;ar, que esta pode ser definida como "urn processo, a maioria das vezes formal, pelo qual urn terceiro neutro tenta que as partes encontrem uma soluc;ao para o conflito, em encontros destinados ao confronto dos seus pantos de vista" 2 • E tambem pacifica entre a doutrina que se caracteriza por ser "confidencial, voluntaria, flexivel, criativa e concertada, rapida e econ6mica"3. Esta subjacente a ideia de que as partes irao, corn maior probabilidade, cumprir urn acordo a que chegaram motu proprio do que uma decisao exterior que lhes seja imposta, conclusao que, no fundo, radica tambem na analise de uma problematica mais abrangente, autonomia versus heteronomia, sobre a qual nao teceremos comentarios nesta sede. Certo pragmatismo, por vezes habitual na concepc;ao anglo-sax6nica, encara a mediac;ao como "fundamentalmente urn processo de negociac;ao assistida" 4, sendo, por conseguinte, importante a exisH~ncia de uma estrategia de negociac;ao por parte do mediador. A neutralidade deste nao implica passividade, cabendo-lhe, ao inves, urn papel
Interv en~ao na Universidade Lusiada de Lisboa em Dezembro de 2006. Juiz de Paz, Presidente da Associa~ao dos Jufzes de Paz Portugueses. Ph .D. (Univ. d e Bristol). Juiz Coordenador do Julgado de Paz do Porta. 2 J. Pedroso, C. Trincao, J.P. Dias, Par Caminhos da Refonna da Jus ti~a (Coimbra, Coimbra Editora, 2003), p. 33. 3 Z. Wilde, L.M. Gaibrois, 0 que e a media~iio (Ministerio da Justi~a, Direc~ao-Geral da Administra~ao Extrajudicial, 2003), pp . 64, 65. 4 Mat·cel, "Why We Teach Law Students to Mediate", 77 Journal of Dispute Resolution (1987).
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activo, tendo em vista o alcance de solw;6es 5 â&#x20AC;˘ Tambem nesse sentido apontam Wilde e Gaibrois quando escrevem "0 m ediador trabalha ... no sentido de desenvolver todas as op<;6es possiveis para solucionar o conflito, buscando acordos criativos para resolver o problema existente" 6 . Parece, assim, esbater-se a diferen<;a tradicionalmente apontada entre m ediador e conciliador, segundo a qual aquele "tenta que as partes obtenham por si pr6prias e s6 por si pr6prias uma solu<;ao para a desaven<;a que as op6e" 7, ao passo que competiria a este urn p apel mais activo, chegando a propor solu<;6es para ultrapassar a contenda. E neste contexto que se compreendem as palavras de Richard A. Posner, Juiz Presidente do U.S. Court of Appeals for the Seventh Circuit e Professor da University of Chicago Law School que interveio como m ediador em 1999 no processo Estados Unidos v. Microsoft Corp.: "uma das raz6es pela qual fui convidado para servir de mediador no caso Microsoft e que, enquanto juiz, partia-se do pressuposto que teria uma maior percep<;ao dos possiveis resultados judiciais no processo do que as partes e os respectivos advogados" 8 . Como e hoje vulgarmente aceite, pelo menos nos Estados Unidos, que o mediador pode fazer propostas de acordo, tern sido frequen te, nesse pais, o convite dirigido a juizes, reformados ou no activo, para servirem de mediadores em diversos processos. Reconhece-se, e reconhecem-no sobretudo as partes, que a experiencia desses juizes, enquanto decisores de ac<;6es similares, constitui uma mais valia fundamental para que se possam delinear os possiveis resultados judiciais para o culminar do processo e, desta feita, proceder a uma mais criteriosa avalia<;ao do risco inerente ao prosseguimento da via judicial contenciosa. No fundo, a importancia da media<;ao para as partes radica tambem na ajuda que podeni prestar para a escolha de uma melhor solu<;ao estrategica para a lide, decorrente de uma amilise custo-beneficio. Deste modo, e evidente que a interven<;ao de juizes, enquanto mediadores, em nada belisca as garantias das partes no ambito da media<;ao, designadamente a confidencialidade, porquanto, nos termos da lei americana, esse juiz nunca sera aquele a quem podera ser atribuido o processo. E, assim, clara e not6ria a separa<;ao das aguas: juiz enquanto mediador, por urn lado, e juiz da causa, por outro, sao Para urn maior desenvolvimento, cfr. A.S. Rau, E.F. Sherman, S.R. Peppet, Mediation and other non-binding ADR processes (New York, Foundation Press, 2002), p. 12. 6 Z. Wilde, L.M. Ga ibrois, 0 que ea mediafi'io (Ministerio da Jus ti~a, Direc~ao-Geral da Administra~ao Ex trajudicial, 2003), p 65. 7 Fernando Pereira Rodrigues da Silva, Arbitragem, m.ediafi'iO e justifa de proximidade: micro refonnas judicias (2006), p. 67, tese de Mestrado apresentada a Sec~ao Aut6noma de Ciencias Sociais, Juridicas e Politicas da Universidade de Aveiro, corn aprovac;ao, da qual fomos arguente nas provas publicas. 8 Richard A. Posner, "Mediation", American Bar Association Section of Dispute Resolution, 11 11' Annual Frank E.A. Sander Program: The 21' 1 Century Lawyer: Problem Solver or Case Processor? (July 8, 2000), citado por A.S. Rau, E.F. Sherman, S.R. Peppet, Mediation and other non-binding ADR processes (New York, Fo undation Press, 2002), p. 53. 5
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A Media<;ao nos nos julgados de pa z portugueses, p. 273-279
entidades processualmente distintas. Em consequencia, nos Estados Unidos, a importancia do movimento ADR (Alternative Dispute Resolution) e tal que ja constitui per se cadeira de estudo no Centro de Forma<;ao de Magistrados 9 â&#x20AC;˘ Esbatida a diferen<;a radical de papel atribuido ao mediador versus conciliador, em que somente a este se relegava urn papel activo de apresenta<;ao de propostas para solucionar o litigio, importa agora fazer uma referencia, ainda que breve, a concilia<;ao. No ambito do Direito processual civil portugues, ha uma obriga<;ao ex officio do juiz tentar conciliar as partes logo no inicio da audiencia de julgamento, seja no ambito do processo ordinaria, sumario (cfr. artigos 652. 0 , n. 0 2 e 791. 0 , n. 0 3 do C6digo de Processo Civil) ou sumarissimo (cfr. art. 0 796. 0 , n. 0 1 do C.P.C.). E o mesmo se diga, de forma especialmente acentuada, para os Juizes de Paz (cfr. art. 0 26. 0 , n. 0 1 da Lei n. 0 78/2001, de 13 de Julho - LJP). Como tern sido referido por varios autores 10, a concilia<;ao judicial encontra-se indissociavelmente ligada ao conceito de equidade, ou seja, o juiz, atraves de criterios de justi<;a, adapta ao caso concreto a norma preestabelecida e aplicavel, de modo a solucionar o litigio da forma que entende como mais justa. A promo<;ao do acordo entre as partes e, assim, vista como uma fun<;ao inerente ao exercicio do poder jurisdicional. Nos Estados Unidos, tern-se, por vezes, questionado se o papel activo, corn envolvimento pessoal, dos juizes na obten<;ao de urn acordo entre as partes se coaduna corn a imparcialidade que lhes e posteriormente reservada acaso desse esfor<;o nao se logre solu<;ao consensual. Tern-se colocado a hip6tese de haver juizes que conduziriam as audiencias de concilia<;ao (settlement conferences), mas que ulteriormente ja nao julgariam os processos em que intervinham corn esse estatuto 11 â&#x20AC;˘ Do nosso modesto ponto de vista, concorda-se que tal restri<;ao se deve impor ao juiz enquanto participante num processo de media<;ao, nao sendo, porem, necessariamente aplicavel ao juiz conciliador partindo-se do principio que este devera saber estabelecer os limites do seu envolvimento pessoal na tentativa de concilia<;ao, bem como estar consciente do seu papel de decisor, eventualmente incontornavel, acaso nao se logre acordo entre as partes. A concilia<;ao e o passo que leva a uma mais fina aplica<;ao do Direito, move-se na e alcan<;a a mais completa quadricula do ordenamento: e propria de urn juiz ass is tencial.
9 Refira-se, a titulo de exemplo, qu e o autor destas linhas frequ entou corn aproveitamento o curso de Dispute Resolution Skills no National Judicial College, Universidade de Nevada, Reno. 10 Cfr. J.O. Ascensao, 0 Direito, Jntrodu~iio e Teoria Geral (Coimbra, Almedina, 1993), p . 211, e A.M.P. Vaz, Direito Processual Civil, Do Antigo ao Novo C6digo (Coimbra, Almedina , 2002), pp . 267-270. 11 A.S. Rau, E.F. Sherman, S.R. Peppet, Mediation and other non-binding ADR processes (New York, Foundation Press, 2002), p. 223.
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Media~ao
nos Julgados de Paz
Existente em varios paises ha ja muitos,anos, em 2002 surgiu, pela primeira vez no nosso ordenamento juridico, a figura da media<;ao em consequencia da especial consagra<;ao que a Lei dos Julgados de Paz (LJP) lhe atribuiu. Nao importa analisar aqui as possiveis explica<;6es sociol6gicas para a existencia em Portugal de urn elevado racio ac<;6es propostas em Tribunal/popula<;ao existente nem para uma eventual maior propensao para a litigiosidade do que em outros paises europeus ainda que mais populosos. 0 recurso a figura da media<;ao representa uma forma de se tentar responder a esse problema social inquestionavel, procurando-se, antes de mais, que a solu<;ao para o conflito possa ser alcan<;ada pelas pr6prias partes. Entre n6s, a media<;ao e definida expressivamente como "uma modalidade extrajudicial de resolu<;ao de litigios, de caracter privado, informal, confidencial, voluntario e natureza nao contenciosa, em que as partes, corn a sua participa<;ao activa e directa, sao auxiliadas por urn mediador a encontrar, por si pr6prias, uma solu<;ao negociada e amigavel para o conflito que as op6e" (cfr. art. 0 35. 0 , n. 0 1 da LJP), tendo como "principal objectivo proporcionar as partes a possibilidade de resolverem as suas divergencias de forma amigavel e concertada" (cfr. art. 0 53. 0 , n. 0 1 da LJP). 0 mediador e encarado como urn terceiro neutro, nao intervencionista, tendo o legislador optado por atribuir aos litigantes per se, o poder de serem eles pr6prios a resolver o conflito. De algum modo em contraste corn a visao norte-americana, como pudemos constatar, o legislador foi, ao inves, notoriamente influenciado pelas escolas de media<;ao argentina e brasileira. A postura absolutamente neutral do mediador e, desde logo, decorrente dos n .os 2 e 3 do art. 0 35. 0 da LJP. A solu<;ao entendida como satisfat6ria para os litigantes podera muito bem nao corresponder aquela que, no seu intimo, o mediador considere como tal, mas o seu papel nao lhe permite que emita qualquer opiniao sobre a bondade da mesma. Dois outros aspectos a real<;ar sao a confidencialidade (cfr. artigos 35. 0 , 0 n. 1, 22. 0 , 52. 0 , da LJP), decorrente da natureza particular e consensual do processo de media<;ao (cfr. artigos 49. 0 , n.0 1, 50. 0 e 55. 0 da LJP). Na pre-media<;ao e explicado as partes em que consiste a media<;ao e, no caso destas aceitarem tentar urn acordo (o que, diga-se em abono da verdade, acontece na maioria das vezes), e de imediato marcada a primeira sessao de media<;ao (cfr. art. 0 50. 0 n. 0 1 e 2 da LJP) que se podera realizar logo de seguida desde que haja mediador disponivel. A pratica que tern vindo a ser adoptada em todos os Julgados de Paz consiste na realiza<;ao das sess6es de media<;ao imediatamente seguintes as sess6es de pre-media<;ao, o que se enquadra nos objectivos de simplicidade e economia processual que presidem a organiza<;ao e funcionamento dos Julgados de Paz. No desfecho da media<;ao ou se logra obter urn acordo que e entao submetido a imediata homologa<;ao pelo Juiz de Paz, passando a ter o valor de uma
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Lusiada. Direito. Lisboa, n .0 4/5 (2007)
A M edia~ao nos nos julgados de paz portugueses, p. 273-279
senten<;a (e a ser, consequentemente, urn titulo executivo sentencial) ou, na falta deste, e marcado dia para a audiencia de julgamento, do qual sao as partes notificadas (cfr. art. 0 56. 0 da LJP). Na hip6tese de ser realizado urn acordo, tudo se passa como se o processo tivesse terminado por transac<;ao extrajudicial, atraves da apresenta<;ao de urn documento nos termos e para os efeitos do disposto nos numeros 1 e 3 do art. 0 300. 0 do C.P.C., aplicavel ex vi art. 0 63. 0 da LJP. De acordo corn os elementos estatfsticos oficiais, ate 31 de Outubro de 2005, cerea de 30% dos processos entrados nos Julgados de Paz foram resolvidos por media<;ao, enquanto que, em igual perfodo, dos restantes que passaram para a fase de julgamento cerea de 43% foram-no devido a concilia<;ao obtida pelo Juiz de Paz 12 . Se a solu<;ao existente, de jure constituto, de urn modelo de media<;ao nao intervencionista, sem possibilidade de interven<;ao de jufzes enquanto mediadores, e ou nao a mais adequada s6 urn estudo aprofundado podera dizer, enquadrado numa reflexao mais alargada sobre esta problematica. Mas o controlo jurisdicional que resulta da Lei dos Julgados de Paz, ligando, sem duvidas, num unico modelo jurisdicionalista os artigos 300. 0 e 509. 0 , n. 0 3 do C.P.C., impoe a recusa da homologa<;ao de acordos contrarios a lei: a for<;a institucional, nestas circunstancias, sera muito maior e possibilitara p6r de lado as classicas reservas a uma justi<;a nao formal, a saber: (i) desequililirio da causa em favor da parte mais forte ou bem apetrechada; (ii) entorse dos prindpios do Estado de Direito, por edi<;ao de uma norma extraparlamentar reguladora do litlgio, isto e, estranha, em boa verdade, a representa<;ao popular.
12
J.T. Silveira, Prefacio, Colectanea de Coimbra Editora, 2006), p. 6.
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Legisla~iio
sabre Julgados de Paz, Algumas Reflexoes (Coimbra,
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I
A CAMINHO DO ENCERRAMENTO
J.O. Cardona Ferreira
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A CAMINHO DO ENCERRAMENTO J.O. Cardona Ferreira 1
Senhor Secretario de Estado da Justi<;a do Governo Portugues Excelencia Exm0 • Senhor Professor Doutor Martins da Cruz - Chanceler das Universidades Lusiada e Presidente do Conselho de Administra<;ao da Funda<;ao Minerva. Exm• Senhora Vice-Presidente de GEMME, Giuliana Civinini Exm• Senhora Secretaria Geral de GEMME, Beatrice Brenneur Exm" Senhora Secretaria Geral Adjunta de GEMME, Juiza Desembargadora Albertina Pereira Minhas Senhoras e meus Senhores
Tive o privilegio de dizer umas breves palavras no inicio deste col6quio. Tenho o privilegio - sou urn privilegiado - de dizer tambem umas brevissimas palavras na recta final deste col6quio. Porventura nao me ficara bem dizer isto mas, como membro da Sec<;ao Portuguesa do Agrupamento Europeu de Magistrados pela Media<;ao, sinto-me que foi feito o que podia e devia ser feito. Ao deitar maos ao trabalho, a Sec<;ao Portuguesa, presidida pela Juiza Desembargadora Albertina Pereira, tambem ilustre professora nesta Universidade, a Sec<;ao Portuguesa, dizia eu, nao pensou fazer algo melhor ou pior que qualquer outro col6quio. 0 que pensamos fazer foi o que fizemos: algo portugues, corn a prestimosa colabora<;ao de "experts" nao portugueses, e urn sentido claro de naturalidade, de convivio, de familiaridade. Penso permitam-me a ousadia de o dizer - que os objectivos estao a ser conseguidos. Oaf que me permita desejar, aos nossos amigos nao portugueses que, quando partirem de Portugal, tenham pena de ir embora e pensem em voltar! Sintam aquilo que e tao portugues: "Saudade". '
Interven~ao
na Universidade Lusfada de Lisboa em Dezembro d e 2006. Professor Convidado da Universidade Lusfada de Lisboa. Antigo Presidente do Supremo Trib unal de Justi~a. Vice Presidente do Agrupamento Europeu de Magistrados pela Media<;ao. 1
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J.O. Cardona Ferreira
Naturalmente, devo frisar o aplauso e o agradecimento devido a todos os conferencistas e assistentes, porque foram eles, todos, a darem o brilho que o col6quio possa ter tido. E ao lembrar as nacionalidades e as origens distantes de uns e outros conferencistas e assistentes, permitam-me que lembre o grande Poeta portugues Fernando Pessoa que, ah~m de brilhante poeta, era urn notavel pensador e que, na aurora do seculo XX, dizia, atraves do seu heter6nimo Alvaro de campos: "A Europa esta farta de nao existir ainda! Esta farta de ser apenas o arrabalde de si propria!". Podemos dizer hoje, naturalmente que ao nosso nivel: possa o nosso Agrupamento Europeu de Magistrados pela Media<;ao, corn persistente procura de uma Justi<;a de rosto humano, contribuir, corn estes encontros e outras diligencias, para o Grande Encontro de culturas europeias atraves de vectores e objectivos comuns como o da Justi<;a, sem a qual nao ha Encontro possivel. Em verdade, a media<;ao e desejavel como meio, mas o fim prosseguido e a justi<;a. Como Vice-presidente do Agrupamento, penso que as Sec<;6es nacionais - todas - estao contribuindo, positivamente, para a dimensao europeia dos valores que o Agrupamento tern defendido. E e esta dimensao que marca o trajecto para o grande Encontro cultural, sem o qual nao ha cimento que agregue gente de proveniencias diferentes, buscando, mais do que coexistencia, convivencia. Os Paises nao sao entidades abstractas. Sao as suas gentes concretas. E, se Justi<;a e cultura, cultura pode ser o factor de autentico Encontro da unidade na diversidade. Cremos, firmemente, nesse Encontro. Pode ser urn sonho, mas e possivel. E, como reflectiu outro escritor de lingua portuguesa, o mo<;ambicano Mia Couto (em 0 Outro Pe da Sereia), os sonhos sao a unica coisa que nenhum sistema pode encarcerar. Embora nao seja o momento de extrair conclus6es deste Col6quio, permitam-me referir, a titulo pessoal, que houve uma perspectiva que atravessou todo o Col6quio, a saber: Media<;ao e incontornavel nos tempos de hoje. Discuti-la seria inadequado e inlitil. Mas discute-se coma. E, neste ambito, e seguro que se deseja uma conjugar;iio entre Juizes e Advogados cam a mediar;iio. Advogados no procedimento de media<;ao; Juizes na homologa<;ao ou valida<;ao. E porque continua a nao me competir mais do que sublinhar o enquadramento deste evento, terminemos, para terminarmos. Renovo o agradecimento da Organiza<;ao a quem viabilizou esta realiza<;ao. 0 distinto Chanceler das Universidades Lusiada e Presidente do Conselho de Administra<;ao da Funda<;ao Minerva que, em nome desta Universidade, nao hesitou urn instante em proporcionar este col6quio, aqui. E, no que concerne ao apoio do Ministerio da Justi<;a, esse apoio foi estimulante e explicitado, desde o primeiro momento em que tal lhe foi exposto,
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A caminho do encerramento, p. 281-285
exactamente por sua Excelencia o Secretario de Estado da Justic;a, Mestre Joao Tiago Silveira, aqui presente, a quem satido corn respeito e, se me permite, corn amizade. Alias, e born que se diga que esta tematica, aquilo a que e comum chamarse meios alternativos e a que prefiro, ate por respeito, chamar sistemas extrajudiciais de Justic;a; esta tematica, dizia, no que concerne aos pelouros dos Membros do Governo Portugues, compete, justamente, a Sua Excelencia o Secretario de Estado da Justic;a. Para terminar, tal como disse de manha, seria impensavel "dar" a palavra aos oradores que vamos ouvir. Corn efeito, 0 Exm. 0 Senhor Professor Doutor Martins da Cruz, nao so pela sua posic;ao institucional e pessoal, como porque esta em sua casa, falara, pura e simplesmente, por direito proprio. E o Senhor Secretario de Estado, p01路que e quem e, obviamente falara tambem por direito proprio. 0 que compete aos Organizadores e agradecer-lhes a honra que nos dao, dirigindo-nos as suas palavras. E pedir a assistencia que ouc;amos, corn a atenc;ao que merecem, o Exm 0 . Senhor Prof. Doutor Martins da Cruz; e, depois, para encerrar, Sua Excelencia o Senhor Secretario de Estado da Justic;a do Governo Portugues, corn o nosso agradecimento.
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. ยง2 - OUTROS ARTIGOS
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COMERCIO ELECTRONICO Uma visao abrangente
Fernando Du arte Naves
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COMERCIO ELECTR6NICO Urna visao abrangente Fernando Duarte Naves 1
Preambulo
As cornunica<;6es electr6nicas trouxerarn grandes vantagens as Empresas e demais organiza<;6es. N6s, econornistas, ternos feito urn esfor<;o para compreender este fen6rneno, que muitos estudiosos e academicos se tern empenhado por qualificar e quantificm~ facilitando assirn a nossa tarefa. E como denominador comum das comunica<;6es electr6nicas detectarnos tres elementos considerados de utilidade fundamental: o e-mail, a Intranet e a Internet. 0 e-mail permite uma comunica<;ao rapida corn clientes, fornecedores, parceiros e dernais entidades que acedam ao aparato tecnol6gico. A Intranet podera ser usada corn grande eficiencia e eficacia nas cornunica<;6es internas da Empresa ou organiza<;ao. A Internet pode utilizar-se como urna fonte de Inforrna<;ao quase ilimitada e tambem como urn meio de efectuar vendas, compras, registos, marketing, publicidade. Havendo transac<;6es cornerciais existe comercio, que devido a base de sustenta<;ao, se designara por Comercio Electr6nico. Este artigo prop6e-se dar uma visao econornicista do Comercio Electr6nico, estando por isso condenado a ser urna obra incompleta. Alem das vantagens que as comunica<;6es electr6nicas trouxeram as organiza<;6es, tambern existem os efeitos prejudiciais. E estes passarn pelo desrespeito de elementares norrnas eticas de comportarnento, pela utiliza<;ao incorrecta dos rneios tecnol6gicos disponfveis ou pela perversao das transac<;6es cornerciais corn o fim de obter beneffcios inadequados ou provocar prejufzos a outrern. Falta a este estudo a visao jurfdica, qual complemento indispensavel para urna visao global do Comercio Electr6nico e seu impacto na sociedade actual.
' Economista. Professor na Universidade Lusiada.
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Fernando Duarte Naves
Cam este artigo abrimos a porta para uma sala de reflexao, cuja moldura exibe as potencialidades, beneficios e vantagens do uso do Comercio Electr6nico, porta essa que devera ser fechada por colegas, juristas, cientes da percep<;ao que os visitantes adquiriram dessa mesma moldura mas na parte que exibe as irregularidades, dificuldades, ilegalidades e penalidades que esse mesmo uso pode consentir. Comercio Electr6nico, uma visao abrangente Dados, Informa~ao, Conhecimento e Saber
A Informa<;ao tern os Dados coma materia-prima privilegiada, resultando do respectivo processamento . Quando uma pessoa declara a sua data de nascimento, por exemplo, 27 de Abril de 1974, esta a mencionar uma Dado, alga que quando guardado numa base de dados ficara imutavel, A idade desta pessoa sera a Informa<;ao, que resulta do processamento daquele Dado, e que e obtida ap6s a compara<;ao corn a data de hoje. A Informa<;ao existe quando o cerebra humano recebe urn conjunto de Dados e os utiliza coma entrada para algum tipo de processamento neural. Se nao houver esse processamento neural, o Dado nao se transforma em Informa<;ao, continua a ser Dado. A Informa<;ao e a compreensao do Dado, e a materia-prima da actividade cerebral. Assim se compreende urn dos mais preciosos axiomas aplicaveis aquando do uso dos Sistemas de Informa<;ao: "Armazenamos Dad os e nao Informa<;6es. Quando guardamos Informa<;6es, perdemos Informa<;6es ... " Podera parecer urn preciosismo, mas sentimos que e oportuno fazer uma sucinta distin<;ao entre Tecnologias de Informa<;ao e Sistemas de Informa<;ao, usando urn formulario simples, da responsabilidade do autor: Tecnologias de Informa~ao (TI) = hardware (HW) + software (SW), e Sistemas de Informa~ao (SI) = TI + pessoas
Este enquadramento podera ajudar-nos a compreender quando nos e proposto urn cenario especificamente tecnol6gico (TI) ou uma situa<;ao em que o envolvimento humano tern relevancia (SI). 0 processamento da Informa<;ao (atraves da interven<;ao de Sistemas de Informa<;ao, qual extensao da nossa actividade cerebral) e s6 urn dos passos num processo mais vasto chamado de Ciclo de Processamento da Informa<;ao. Este ciclo tern cinco fases: entrada (input), processamento, safda (output), armazenamento e distribui<;ao (os Dados podem ser impressos ou distribufdos localmente ou a distancia de urn computador para outro). 292
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Ja o Conhecimento e a Informa<;ao que muda algo ou alguem, quer por transformar-se em base para a ac<;ao, quer por fazer urn individuo ou uma organiza<;ao ser capaz de ac<;6es diferentes e mais efectivas. A Informa<;ao torna-se uma componente do Conhecimento quando muda o estado de Conhecimento de urn individuo ou de uma organiza<;ao quanto a sua capacidade de ac<;ao. 0 Conhecimento e o resultado de urn processo entre o Saber acumulado e a Informa<;ao adquirida e e diferenciado, devido as peculiaridades de cada urn [Dias Coelho, 2003].
Ouantidade
Figura 1 - 0 edificio do Conhecimento
A sequencia entre Dados, Informa<;ao, Conhecimento e Saber deve ser vista como representando urn continuo. Significa isto que, apesar de os Dados serem discretos, a progressao para a Informa<;ao e para o Conhecimento nao representa estadios isolados de Conhecimento. 0 Conhecimento existe dentro das pessoas e e gerado pelas pessoas, embora possa ser conservado em documentos ou atraves de praticas, por exemplo. Atraves da ac<;ao, os Dados transformam-se em Informa~ao e a Informa<;ao em Conhecimento.
A nova Economia e as novas Empresas
Nas Empresas tradicionais sao os activos fisicos que reflectem o sucesso; o conceito da nova Empresa neste inicio de seculo ja contempla os activos
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virtuais como factor predominante de sucesso; estamos a referir-nos aos dois principais elementos que se destacam nesses activos: a Informac;ao e o Conhecimento [Czerniawska e Potter, 2001] . A imersao nesta envolvente de nova Empresas, pedra avan<;:ada da nova Econornia, nao acontece par uma evolu<;:ao natural e continua. Foi visionada por Nikolas Kondratieff [Kondratieff, 1984] naquilo que ele charnou do Ciclo das Grandes Ondas, a partir do principio que a econornia e caracterizada por largas vagas de inova<;:ao que se desviarn da curva de crescirnento a longo prazo.
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Figura 2 -As ondas de Kondratieff
Caracterizou este novo periodo (que e aquele em que actualrnente nos encontramos), corno sendo equivalente a urna nova revolu<;:ao, corn uma nova econornia de rnercado, uma nova cornunidade global, urn novo estilo de vida, urn aurnento da perrnuta de Informa<;:ao, globaliza<;:ao dessa Inforrna<;:ao e por consequencia, globaliza<;:ao do cornercio. Kondratieff deu o norne de Revolu<;:ao Digital a este periodo. A caracteriza<;:ao desta nova era teve contributo de demais autores e que nos tern perrnitido uma percep<;:ao mais focada e uma rnaior compreensao de alguns fen6menos ernergentes quase desconhecidos poucos anos atras:
â&#x20AC;˘ George Gilder originou a Lei de Gilder: a largura de banda das telecornunica<;:6es triplica todos os anos. â&#x20AC;˘ Robert Metcalf criou a Lei de Metcalf: o valor de urna rede cresce exponencialmente corn o n. 0 de pessoas interligadas.
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• Cordon Moore criou a Lei de Moore: a potencia de processamento dos chips continuara a crescer exponencialmente por urn perfodo sustentado de tempo. • Peter Drucker argumentou que na nova economia o principal meio de produ~ao nao e 0 capital mas 0 intelecto. 0 poder deslocou-se das organiza~oes para os indivfduos. Tambem descreveu como as novas tecnologias na economia digital tern de ser 10 vezes melhores que as que pretendem substituir. • Stan Davis e Bill Davidson foram dos primeiros a descrever o conceito de urn segmento de mercado unitario • Alvin Toffler criou o termo 'prosumer', que descreve o consumidor que contribui para o processo de produ~ao colaborando corn o fornecedor. • Mark Weiser foi o primeiro a escrever sobre 'computa~ao ubfqua ou pervasiva'. • Paul Romer desenvolveu as teorias e modelos simples que descrevem a economia digital em termos academicos. • Paul Saffo sugeriu que se falasse sobre 'value web' em vez de 'value chain'. Tambem introduziu o termo 'disinteremediation' para descrever o facto de que as redes digitais alteraram a intermedia~ao, em vez de a eliminar. A enfase na epoca que antecedeu este perfodo tao rico de participa~oes era no modo como se utilizavam as TI, e nao como era explorada a Informa~ao que por elas era produzida. A tendencia que sobressai e a de que as Empresas corn sucesso explorarao essa Informa~ao e o Conhecimento que dela se possa extrair. Estamos na presen~a do paradigma das novas Empresas, em que a importancia da Informa~ao e do Conhecimento vai implicar em modifica~oes a todos os nfveis das Empresas, em sectores como: • lnvestiga~ao e Desenvolvimento • Produ~ao Industrial • Logfstica • Comunica~ao • Marketing e Vendas • Gestao Estas novas Empresas tern como meio envolvente a nova Economia, cujas tendencias se podem adivinhar. As Empresas industriais, e as Empresas em geral, partilharao a Informa~ao relevante. Muitas Empresas novas, e de pequena dimensao, aparecerao a utilizar a Informa~ao para competir corn as grandes Empresas, vendendo produtos espedficos directamente aos seus Clientes, a baixo custo, corn apoio nas TI a que agora passaram tambem a ter acesso de forma continuada.
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Fernando Duat·te Naves
A nipida difusao e o grande interesse no mundo da informatica, tern permitido a cria<;ao de TI particulares, tais como a Internet ea Web, ferramentas fundamentais para as redes de computadores e para os seus utilizadores, permitindo uma interconectividade e interoperabilidade muito mais simples e mais facil de abordar que antes. A Internet participa neste novo mercado que define a Revolw;ao Digital, a nova Economia, cujos recursos principais sao a Informa<;ao e as novas ideias fundamentadas, o Conhecimento . Os produtores, fornecedores de bens e servi<;os e utilizadores podem ter acesso a transmissao mundial de Informa<;ao, seja corn fins comerciais ou sociais. Esta abertura de mercados e fundamental para o rapido crescimento da utiliza<;ao de novos servi<;os e assimila<;ao de tecnologias inovadoras. 0 modelo das alian<;as mundiais e regionais mostra, que urn mercado desta natureza, que funciona dentro dum marco regulador, responde as oportunidades oferecidas pela livre concorrencia e pela liberaliza<;ao. Na pratica, as Empresas estao a usar intensamente a Internet como urn canal de vendas alternativo ou complementar, substituindo frequentemente as visitas pessoais, troca de correspondencia e pedidos por telefone, ja que a gestao dum pedido por Internet custa 5% menos que faze-lo atraves dos meios tradicionais [Vieira, 2003]. Permite alcan<;ar uma promo<;ao digital de produtos e servi<;os, corn catalogos electr6nicos susceptiveis de actualiza<;ao imediata e de acordo corn o sector do mercado escolhido. Nasce entao o Comercio Electr6nico, como uma alternativa de redu<;ao de despesas e uma ferramenta fundamental no desempenho Empresarial.
Caracteriza~ao
das Tecnologias de Comercio Electr6nico
Como ponto de partida, introduzimos uma cio Electr6nico (CE):
defini~ao
generica de Comer-
• Eo fornecimento relativo a produtos, servi~os ou pagamentos atraves de linhas telef6nicas, redes de computadores, ou outros meios de comunica~ao.
Outras defini<;6es nos serao consentidas, nao pelas visoes e interpreta<;6es de prestigiados autores, mas por diferentes 6pticas. Assim, poderemos definir CE: • Na 6ptica das Comunica<;6es, como sendo o acesso a Informa<;ao, produtos, servi<;os ou pagamentos atraves de linhas telef6nicas, redes informaticas ou outros meios de comunica<;ao; • Na 6ptica das Empresas, como sendo a aplica<;ao a automatiza<;ao de transac<;6es comerciais, ou fluxos de Informa<;ao Empresariais no sentido generico;
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• Na 6ptica dos Servic;os, como sendo uma ferramenta que permite as Empresas, e aos seus Clientes, a reduc;ao de custos de servic;os prestados, aumentando a qualidade dos produtos e a rapidez da prestac;ao de servic;os; A definic;ao proposta pela extinta Missao para a Sociedade da Informac;ao (actualmente UMIC, Agenda para a Sociedade do Conhecimento, do Ministerio da Ciencia, Tecnologia e Ensino Superior, criada pelo Decreto-Lei n. 0 16/2005, de 18 de Janeiro) e a seguinte: "0 comercio electr6nico e aqui entendido, em linha corn as recomendac;oes da OCDE (Organization for Economic Cooperation and Development), como referindo-se a todas as formas de transacc;6es comerciais que envolvam quer organizac;oes quer indivfduos e que sao baseadas no processamento e transmissao de dados por via electr6nica, incluindo texto, som e imagem. Contudo, no comercio electr6nico nao estao inclufdos servic;os que nao estabelec;am uma transacc;ao comercial."
Podemos entender o comercio electr6nico como a integrac;ao de telecomunicac;oes, gestao de dados e mecanismos de seguranc;a que permitem as organizac;oes a troca de Informac;ao sensfvel relacionada corn vendas de produtos e servic;os, constituindo-se uma rede s6lida, segura e fiavel. Garantindo nesta comunhao de interesses a viabilizac;ao de urn novo mercado - mercado global de indole digital, a Economia Digital. A abreviatura comum para designar Comercio Electr6nico - CE tambem pode surgir como E-com (de Electronic Commerce).
A evolw;ao hist6rica do Comercio Electr6nico
Os principais factores que permitiram o desenvolvimento do CE sao: • Econ6micos; • Comerciais e de Marketing; e • Tecnol6gicos
0 CE nasceu para satisfazer a necessidade de melhorar a interacc;ao corn os Clientes, os processos de Gestao e a troca de Informac;ao dentro das Empresas, e entre as Empresas. Nos anos 70, o EFT (Electronic Fund Transfer, a chamada rede SWIFT) entre bancos, e sabre redes privadas, mudou radicalmente os mercados financeiros. Tenhamos presente que SWIFT e o acr6nimo de Society for Worldwide Interbank Finantial TelecommunicationS', uma associac;ao de mais de 250 bancos europeus e americanos para desenvolver urn sistema especial de comunicac;oes.
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0 EFT optimiza os pagamentos electronicamente de acordo corn regras
de seguran<;a bem definidas. Por exemplo, a utiliza<;ao de cart6es de debito ou de credito atraves de terminais POS (Point of Sales ou ATM's), ou as transferencias entre bancos nacionais e internacionais. Segundo a EFTA (Electronic Funds Transfer Association) as aplica<;6es actuais do EFT distribuem-se da seguinte forma, por numero de transae<;:6es: â&#x20AC;˘ ATM (Autonuitic Teller Machines ou caixas Multibanco â&#x20AC;˘ POS (Point of Sales ou terminais de pagamento por cartao) â&#x20AC;˘ Outras aplica<;6es
43% 47% 10%
(Fonte: http:/ /www.ebtproject.ca.gov /library /November%202003% 20Bulletin.pdf em boletim de Novembro de 2003) 0 crescimento previsivel sera das transac<;6es em POS e das aplica<;6es
Internet. No final dos anos 70 e 80 surge urn novo conceito, o EDI (Electronic Data Interchange), que e urn procedimento que permite a transferencia de dados estruturados segundo uma sintaxe de mensagens predefinidas, atraves de redes de comunica<;6es. 0 conteudo e urn formato estandardizado pelas Na<;6es Unidas, o EIFACT, para facilitar 0 comercio mundial; 0 meio e composto por protocolos estandardizados de comunica<;6es (X.400, X.435, e outros), tendo este aparato a finalidade de reduzir os custos administrativos, permitir maior produtividade, melhoria da qualidade da Informa<;ao tratada, redu<;ao do tempo de processamento dos documentos e maior capacidade de resposta aos Clientes. 0 CE passou a assumir a forma de "mensagens electr6nicas" entre organiza<;6es atraves do EDI ou do correio electr6nico (e-mail). As "mensagens electr6nicas" reduzem os processos de Gestao, eliminando os circuitos manuais de papeis e aumentando a automatiza<;ao desses processos; o EDI apresentava-se sob uma forma estruturada e formal, enquanto que o correio electr6nico numa forma nao estruturada e informal. Contudo o EDI tambem revelou algumas desvantagens, tais como custos elevados, acessibilidade reduzida, necessidade de esquemas muito rigidos em termos de tecnologias subjacentes e em solu<;6es normalmente parciais e fechadas. Por consequencia assume urn formato Internet designado por Internet EDI, que mantem as mesmas caracteristicas que o EDI tradicional em termos de transmissao de documentos. Surgiu a necessidade da cria<;ao de standards Internet - EDI entre os varios Fornecedores destas tecnologias em termos de integridade, confidencialidade e assinatura digital. 0 resultado foi o cruzamento do EDI corn o XML (Extensible Markup Language) de forma a utilizar os formatos tradicionais do EDI, mas sem as desvantagens identificadas.
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0 Comercio Electr6nico e a Internet
Os factores que permitiram o desenvolvimento do CE foram a economia de escala (urn meio mais econ6mico de fazer comercio) e economia de ambito (maior diversidade de interven<;ao do comercio) Repare-se que as Pequenas e Medias Empresas (PME) podem agora competir corn as grandes Empresas; basta-lhes urn computador pessoat urn modem (para converter sinais digitais em anal6gicos pr6prios das linha telef6nicas, e reconversao dos sinais anal6gicos para digitais para processamento pelo computador), uma linha telef6nica e uma conta na Internet. A Internet e uma rede de redes em escala mundial de milh6es de computadores. Ao contrario do que se pensa comummente, Internet nao e sin6nimo de World Wide Web (WWW, tambem designada por Web). Esta e parte daquela, sendo a WWW, que utiliza hipermedia na sua forma<;ao basica, urn dos muitos servi<;os oferecidos na Internet. A Web e urn sistema de Informa<;ao muito mais recente que emprega a Internet como meio de transmissao. Corn inicial maiuscula, Internet significa a "rede das redes". Originalmente criada nos EUA, tornou-se uma associa<;ao mundial de redes interligadas, na globalidade dos pa:ises. Os computadores utilizam a arquitectura de protocolos de comunica<;ao TCP /IP, que foi originalmente desenvolvida para o exercito americano, e hoje e utilizada em grande parte para fins academicos e comerciais. Faculta transferencia de Informa<;ao, grandes volumes de Dados e Informa<;ao, activa<;ao (login) remota, correio electr6nico, not:icias (news) e outros servi<;os, entre os quais o proprio CE. A combina<;ao do CE corn a Internet teve varios factores de dinamiza<;ao: • A interactividade, atraves do correio electr6nico, da partilha de imagens, videos, voz, etc.; • A espontaneidade, pois nao sao necessarios procedimentos muito complexos para desencadear uma transac<;ao ou interac<;ao; • A difusao, pois ja existem inumeros potenciais utilizadores, individuais e institucionais; e • A cria<;ao de mercados, dado que a Internet e ao mesmo tempo urn mercado e urn ve:iculo de comunica<;ao. Era previsfvel o crescimento do CE associado a Internet atraves da cria<;ao de novos mercados para produtos ou servi<;os ja existentes, da cria<;ao de novos produtos concebidos especificamente para estes novos mercados e da abertura de mercados internacionais atraves do designado Mercado Electr6nico.
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Tipos de Comercio Electr6nico
0 CE pode apresentar-se em contextos distintos, permitindo a sua tipificac;ao de acordo corn os intervenientes, ou seja, Clientes, Empresas, organizac;6es de uma form a geral, cidadao, governo, etc. • Designa-se o CE entre Empresas pelo termo B2B (acr6nimo de Business to Business ); trata-se do relacionamento entre Empresas Clientes e Empresas Fornecedoras de produtos ou servic;os, aplicando-se tambem nos casos das ligac;6es de uma Empresa corn os seus canais de distribuic;ao; • Designa-se o CE entre Empresas e Clientes finais por B2C (Business to Consumer), situac;ao em que estamos na presenc;a d e uma venda a retalho electr6nica; • Designa-se o CE dentro das Empresas (Within Business), quando se destina a promover a troca e divulgac;ao de Informac;ao no seio das Empresas atraves da Internet, ou de uma rede do tipo Intranet. Tern sido apresentados estudos que incentivam a uma dinamizac;ao a este tipo de CE corn evidentes beneficios para as Empresas ou organizac;6es que o implementam [Alt et al, 2000]; • Designa-se o CE no relacionamento entre Empresas e Governo (Business Administration) para cobrir transacc;6es entre Empresas e as varias instil.ncias governamentais. • Designa-se urn outro tipo de CE que relaciona o Cliente, cidadao e o Governo (Consumer Administration) ja existente em Portugal, corn a possibilidade de entrega de declarac;6es e pagamento de impostos atraves da Internet, corn grandes perspectivas de expansao, pois ja se estendeu ao relacionamento corn a Administrac;ao Local.
0 Comercio Electr6nico e as Assinaturas Digitais
0 funcionamento da Internet associado ao CE b aseia-se na confianc;a, dado que podem nao se conhecer as entidades corn quem estabelecemos as transacc;6es virtuais. As Assinaturas Digitais (AD) asseguram que quem envia o documento e quem diz que e. As AD sao emitidas por Empresas ou entidades certificadoras reconhecidas como tal. Os elementos da AD sao: • • • •
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• Chave de encripta<;ao da Informa<;ao • AD da Empresa certificadora A AD no CE funciona da seguinte forma: • A entidade que pretende a AD dirige-se ao portal da Empresa certificadora e solicita uma AD; • A Empresa certificadora emite a AD e armazena-a no disco magnetico da entidade requisitante assim como a chave de encripta<;ao; • Quando a entidade acede a urn portal, ou envia uma mensagem de correio electr6nico, anexa a AD e a chave de encripta<;ao; • Quando o receptor da mensagem recebe a mensagem a chave de encripta<;ao e confrontada corn a que esta na AD para assegurar a sua veracidade 0
A lei que regulamenta as AD e o Decreto-Lei n. 290-D/99, de 2 de Setembro.
A lmporHincia estrategica do Comercio Electr6nico
0 valor para a organiza<;ao pode ser qualificado atraves da identifica<;ao dos factores que insinuam o valor acrescentado e definem as vantagens do seu uso. 0 CE permite: • uma significativa redu~ao de custos tanto na produ<;ao como na distribui<;ao de produtos ou servi<;os; introduz uma simplifica~ao de processos, pois em vez de circuitos de papeis permite processos simplificados corn circuitos automatizados de documentos electr6nicos; • faculta uma melhoria do servi~o ao Cliente, pois permite o seu acesso para consulta das transac<;6es em que esta envolvido; • promove a gera~ao de novos lucros atraves da venda de novos produtos e servi<;os exclusivos dos mercados electr6nicos e melhorias nas vendas dos outros produtos ou servi<;os; e • faculta melhor e mais rapida tomada de decisao atraves do acesso a Informa<;ao mais alargada e de acesso mais rapido para a Empresa.
As fases para
implementa~ao
do Comercio Electr6nico
Para quem pretenda aderir ou beneficiar do CE, devera ter consciencia que a implementa<;ao deste novo canal comercial devera estar sujeita a urn conjunto de procedimentos que poderao acautelar o sucesso da explora<;ao.
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Chamemos fases a esse conjunto de ac<;6es encadeadas, passando a identifica<;ao das mesmas, assim como uma aprecia<;ao aos resultados esperados: Fase 1 - Oar a conhecer o que e o Comercio Electr6nico
A compreensao das caracterfsticas do CE leva a cria<;ao de uma plataforma comum para a ac<;ao. Os gestores e os responsaveis das Empresas mais informados sao capazes de descobrir novas formas de implementa<;ao do CE, novas oportunidades e mesmo novos modelos de neg6cio. Quando os Clientes tern conhecimento da presen<;a da Empresa na Internet terao natural curiosidade para constatar tal presen<;a. Fase 2 - Rever os modelos actuais de comercializali:ao
Mudar o processo de cria<;ao de produtos ou servi<;os para uma configura<;ao mais adaptada ao CE. Confirmar a utiliza<;ao da Internet como uma das formas possfveis para comercializa<;ao dos produtos ou servi<;os da Empresa integrada na sua estrategia global. Seleccionar os canais de comercializa<;ao possfveis. Fase 3 - Compreender o que os Clientes e Fornecedores esperam da presenli:a da Empresa na Internet
Avaliar correctamente o nfvel de sofistica<;ao, seja organizacional e tecnol6gica, dos potenciais Clientes bem como da sua segmenta<;ao. Permitir o acesso de Clientes e Fornecedores em redes pr6prias, de acordo corn regras pr6prias, criando mercados electr6nicos espedficos. Analisar os ciclos ou processos de compra e venda e decidir sobre quais os produtos os servi<;os que deverao ser seleccionados para comercializa<;ao em CE Fase 4 - Estudar a forma de expandir os sistemas de Informali:ao da Empresa para o exterior
Analisar os objectivos a atingir, as funcionalidades e apresenta<;ao do portal Internet da Empresa. Integrar, sempre que necessaria, os sistemas internos da Empresa no portal da Empresa. Procurar compatibilidades, criar interfaces, dos sistemas de Informa<;ao da Empresa corn os dos seus parceiros de neg6cio electr6nicos.
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Fase 5 - Acornpanhar o que fazern os concorrentes
Verificar continuarnente os concorrentes da Ernpresa que vao irnplernentando o CE. Desenvolver estrategias cornpetitivas corn base na dinarnica dos rnercados digitais e na capacidade de inovac;ao da propria Ernpresa. Reavaliar periodicarnente o rnodelo de neg6cio da Ernpresa corn base na concorrencia. Fase 6 - Desenvolver politicas de Marketing na Internet e novas forrnas de relacionarnento corn os Clientes
Ter em atenc;ao as novas formas de Marketing proporcionadas pela Internet, e em particular o chamado Marketing Relacional, como uma nova forma de Gestao da Empresa centrada no Cliente. A Internet pode constituir uma componente tecnologicamente muito importante para a Empresa no contexto do relacionamento corn os Clientes geralmente designado por CRM (Customer Relationship Management). Fase 7 - lrnplernentar urn novo estilo de Gestao baseado nos novos mercados electr6nicos
Decidir sobre o novo estilo de Gestao corn base nas seguintes alternativas de mercados electr6nicos: • mercados que nao afectam o mercado tradicional da Empresa; • mercados que afectam o mercado tradicional da Empresa, e poderemos estar na presenc;a de problemas de conflitos de canais • mercados tradicionais que afectam os mercados electr6nicos, sendo o enfase em novas formas de apoio ao Cliente • mercados tradicionais que nao afectam os mercados electr6nicos, e • produtos antigos que, por motivos variados, nunca poderao ser comercializados atraves do CE A implementac;ao de uma estrutura de comercializac;ao baseada em CE devera enfrentar urn conjunto de obstaculos, entre os quais destacamos: • falta de integrac;ao corn o processo de neg6cio • falta de compreensao corn o seu valor potencial • a nao existencia ainda de modelos de neg6cios suficientemente testados para serem copiados • a nao existencia ainda de boas praticas documentadas • as dificuldades em calcular prec;os • os obstaculos que algumas estruturas organizacionais ainda possam colocar a mudanc;a
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• a falta eventual de pessoal especializado em numero suficiente na Empresa • dificuldade em prever o valor dos investimentos a realizar, e • conflitos entre canais Uma maneira de enfrentar tais obstaculos passaria pela aplica<;ao dos estudos de Michael Porter [Porter, 1991] atraves da compreensao e aplica<;ao da cadeia de valor ao CE, que pode ser caracterizada como a forma de organiza<;ao das actividades necessarias para conceber, produzir, promover, comercializar, entregar e suportar os produtos ou servi<;os de uma Empresa. Atraves da identifica<;ao das actividades primarias (identifica<;ao dos Clientes, concep<;ao dos produtos, aquisi<;ao de materiais e materias-primas, prodw;ao, comercializa<;ao e vendas, entrega e servi<;os de apoio ap6s venda) e das actividades de apoio (financeira, recursos humanos e desenvolvimento tecnol6gico), os gestores terao oportunidade de identificar uma diferen<;a de relevo entre a cadeia de valor tradicional e a cadeia de valor do CE, ou seja, a estrategia a seguir num caso ou noutro. 0 panto de partida da primeira sao as compeh~ncias internas (aquilo de que somas capazes) e na segunda sao as necessidades do Cliente (as metas que teremos de atingir), visoes distintas que influenciarao o tipo de ac<;6es a serem estabelecidas. N eg6cio Electr6nico Caracteriza~ao
0 primeiro conceito a reter e que Neg6cio Electr6nico (£-Business) e diferente do conceito de CE[Ferrao, 2000]. 0 CE (na Internet) diz respeito a transac<;6es comerciais conduzidas atraves da Internet. Neg6cio Electr6nico e uma expressao usada normalmente para descrever o conjunto de procedimentos e sistemas que tern de ser implementados para que a utiliza<;ao da Internet se tome uma competencia nuclear da Gestao de uma dada Empresa e uma caracteristica intrinseca de todas as suas cadeias de valor. 0 E-Business tern urn mandamento: "customer satisfaction is everything": s6 importa a satisfa~ao do Cliente! Existem autores que insinuam que o futuro pertencera as primeiras Empresas que realmente conseguirem entender o alcance desta maxima e agir em consequencia. Poderemos apresentar estas recentes abordagens (CE e £-Business) em termos de posicionamento relativo num grafico que esclare<;a a evolu<;ao destas aplica<;6es de Gestao, podendo caracterizar as fazes dessa evolu<;ao.
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VALOR
T-BUSINESS (TELEVISAO INTERACTIVA)
I-BUSINESS (NEG6CIO BASEADO NA INOVACAO)
M-BUSINESS (TRANSFORMACAO MULTI-DEVICE)
E-BUSINESS (TRANSFORMACAO INTERNET)
COMERCIO ELECTRONICO (INTERNET)
NOVAS ARQUITECTURAS
DEINFORMA9AO (SISTEMAS ERP)
INTEGRA9AO DE PROCESSOS (REENGENHARIA)
SISTEMAS DE INFORMA9AO (AU TOMATIZACAO)
TEMPO & AMBITO Figura 3 - Evolw;ao das aplica<;6es de Gestao [adaptado de Ferrao, 2004]
Fase 1 - Sistemas de Automatiza~ao
Sistemas de MIS)
Informa~ao
das tarefas operacionais de Gestao atraves dos chamados de Gestao - SIG (Management Information Systems -
Informa~ao
Fase 2 -
Integra~ao
de processos
Reformula~ao dos processos de Gestao recorrendo a reengenharia (Business Process Reengineering - BPR)
Fase 3 - Novas arquitecturas de
Informa~ao
Cria~ao ~ada s,
de novas estruturas de Informa~ao baseadas em tecnologias avanrecorrendo aos sistemas ERP (Enterprise Resource Planning)
Fase 4 - Comercio Electr6nico Fase 5 - E-Business
A caracteriza~ao e compreensao do Neg6cio Electr6nico (E-Business) podem ser feitas pela sua estratifica~ao em 4 niveis, nas quais a referencia as tecnologias ajudar-nos-a atraves da evoca~ao das respectivas caracteristicas:
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• No Nivell, em que a tecnologia se baseia no uso do correio electr6nico, e dominante o envio e recep<;:ao de mensagens electr6nicas; • No Nivel 2, corn o acesso ao WWW (World Wide Web) a relevancia vai para a difusao e acesso a Informa<;:ao; • No Nivel 3, era do Comercio Electr6nico, passa-se a compra e venda de produtos e servi<;:os; e • No Nivel 4, corn a tecnologia de Neg6cio Electr6nico, Fornecedores, Clientes para apoiar o relacionamento corn o Cliente. 0 impacto do Neg6cio Electr6nico e sensivel em duas areas distintas. Na primeira o Neg6cio Electr6nico reduz os custos operacionais, dado que 0 formato digital e mais barato para muitas aplica<;:6es, e as despesas de publicidade e promo<;:ao sao reduzidas atraves dos portais, permitindo atingir mercados globais; os custos das transac<;:6es comerciais, do processo de aquisi<;:ao de materiais e da logistica do neg6cio (produ<;:ao e entrega dos produtos e servi<;:os) serao substancialmente reduzidos. Na segunda area o Neg6cio Electr6nico permite aumentar as oportunidades de lucros atraves de novas formas de valor acrescentado para os parceiros de neg6cio (Clientes e Fornecedores). Fase 6 - M-Business
0 M-Business representa o conjunto de novas formas e modelos de neg6cio que assentam na convergencia do Neg6cio Electr6nico corn as comunica<;:6es sem fios (wireless communications). M-BUSINESS = PROCESSOS COMUNICA<;OES SEM FIOS
DE
GESTAO
+
E-BUSINESS
+
Urn dos pantos principais do M-Busines eo facto de o neg6cio poder ser gerido em qualquer momento (24 horas por dia nos 7 dias da semana) e em qualquer lugar para satisfazer as necessidades dos Clientes (Informa<;:ao e transac<;:6es), resolver problemas dos processos internos de Gestao de forma a aumentar a satisfa<;:ao dos Clientes, a produtividade da Empresa e reduzir custos [Kalakota, 2002]. Urn outro aspecto cm-responde principalmente a uma evolu<;:ao da utiliza<;:ao da Internet centrada no computador pessoal para uma utiliza<;:ao centrada no Cliente, independente do tempo e do lugar. As tendencias nos modelos de neg6cio M-Business assentam em tres pilares que sao apresentados dentro da ciencia da Gestao como verdadeiramente inovadores: 1. prioridades dos Clientes 2. inova<;:ao de infra-estruturas 3. inova<;:ao em hardware e equipamentos
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No que respeita as prioridades dos Clientes, sao abolidas as barreiras normalmente associadas aos aspectos demograficos, em que alguem e prejudicado por habitar numa comunidade mais afastada. A cria<;ao de uma sociedade em rede faculta grande rapidez de servi<;o, corn simplicidade e grande conveniencia (exemplo, a formaliza<;ao de urn neg6cio em que a comunica<;ao e sustentada a partir de urn telem6vel).
PRIORIDADES DOS CUENTES
l !VlODELOS f>1-BUSINESS
INOV AC;.Ao DE INFRA-ESTRUTURAS
INOV Af;_Ao Ef>1 HARDWARE E EQUIPAf>1ENTOS
Figura 4 -As tendencias do M-Business
Ja no que respeita a integra~ao de infra-estruturas, trata-se de encaixar urn ambiente tradicionalmente mais amplo numa nova situa<;ao em que a largura de banda e diferente, existe a necessidade de criar uma convergencia das tecnologias de redes (computadores a "falarem" entre si em wireless, ou telem6veis a serem considerados terminais de acesso a lnforma<;ao) ou a possibilidade de personalizar a largura de banda. Quanta a inova~ao em hardware e equipamentos 0 grande esfor<;o sera da miniaturiza<;ao, a integra<;ao de novos canais, convergencia das tecnologias dos equipamentos envolvidos e interfaces corn a voz (interpreta<;ao da voz humana e emissao de Informa<;ao falada pelo computador) Fase 7 - !-Business
Situa<;ao que se atingira corn a Empresa Virtual, corn outsourcing de todas as suas actividades operacionais gerindo apenas as suas marcas. A sua mais valia basear-se-a na sua estrategia, capacidade de inova<;ao e capital intelectual dos seus colaboradores.
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Fase 8 - T-Business Gra<;as ao evento SAPPHIRE, realizado em em Abril de 200t foi possivel a organiza<;ao SAP trazer a Lisboa o Pro( Ravi Kalakota cuja mensagem nao podia ter sido mais clara: a segunda gera~ao do Neg6cio Electr6nico ja come~ou!
De facto, enquanto a primeira vaga se estendeu de 1995 a 2000 e foi caracterizada pela experimenta<;ao em torno de projectos de B2C e B2B, a segunda vaga, corn inicio em 2001, caracteriza-se por urn maior rigor na concep<;ao e execu<;ao de projectos de Neg6cio Electr6nico em todas as suas novas vertentes: click-n-brick (combina<;ao de opera<;6es online e offline), m-business (mobile business) et-business (television business), em que se assume ser possivet corn base num sistema de televisao digital interactiva, ao telespectador, atraves do uso do comando da televisao, emitir ordens de compra (ou venda), promovendo assim transac<;6es comerciais. Enquanto a gera<;ao inicial acentuou a divulga<;ao dos conteudos, a segunda gera<;ao ira privilegiar a integra<;ao dos canais. Da orienta<;ao para o produto evoluir-se-a para a orienta<;ao para o Cliente, onde quer que ele esteja e como quer que ele deseje interagir corn o mundo a sua volta. Em termos praticos, isto significa nao s6 que a Internet sera acedida em cada vez mais plataformas, mas tambem que as mensagens e os produtos/ I servi<;os terao de estar cad a vez melhor harmonizados, para integrar as trocas de Informa<;ao nestas multiplas plataformas.
Modelos Iremos caracterizar os modelos de neg6cio atraves da arquitectura dos seus produtos, dos servi<;os e dos fluxos de Informa<;ao, o que permitira a inclusao dos varios parceiros de neg6cio e das suas interac<;6es, uma descri<;ao dos potenciais beneficios para esses parceiros e uma descri<;ao das fontes de rendimento envolvidas. 0 recurso as tecnologias em geral sera igualmente pertinente para caracterizar modelos de neg6cio electr6nico, desde as aplica<;6es Web m6veis (MCommerce) ao custo dos PDA (Personal Digital Assistant, ou seja, computadores de bolso) e telem6veis, alem da convergencia de infra-estruturas (voz, Dados e imagem) e de uma aprecia<;ao aos Fornecedores de tecnologia designados por ASP (Application Service Providers) [Kalakota, 2004].
Caracteristicas do Modelo de N eg6cio A combina<;ao da Informa<;ao corn os Sistemas e Tecnologias de Informa<;ao permitem uma grande variedade de Modelos de Neg6cio. 0 desenvolvimento tecnol6gico actual nao e o unico criteria de selec<;ao do Modelos de Neg6cio, 308
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podendo a orientac;ao para o desenvolvimento tecnol6gico poder vir da definic;ao de novos Modelos de Neg6cio [Ferrao, 2004]. Muito Modelos de Neg6cio, possfveis na Internet, ainda nao foram experimentados. Porem, o que os Modelos de Neg6cio tern de comum (aqueles ja validados e os outros a aguardarem uma aplicac;ao pratica) e o facto de permitirem que atraves do Neg6cio Electr6nico se atinja a integrac;ao de Clientes e Fornecedores no mesmo processo de neg6cio. Isto quer dizer que [Rodrigues, 2002]: • os servic;os tornam-se mais importantes que os produtos, pois urn portal da Internet permite a prestac;ao de servic;os espedficos para cada Cliente; • Clientes diferentes podem ser tratados de maneira diferente; • existe a possibilidade de cross-selling (vou comprar urn livro e acabo por adquirir alem do livro mais resmas de papel para a impressora, material de desenho e spray de limpeza de material electr6nico), ou up-selling (vou comprar uma agulha de costura e acabo por comprar uma maquina de costura electrica), e isto atraves de links (ligac;6es) controladas para outros sites (portais de entrada); • existe a possibilidade da extensao da cadeia de valor das Empresas aos seus Fornecedores e Clientes; e, • os prec;os dos produtos ou servic;os estarem mais ajustados a realidade dos mercados. Modelo de Neg6cio - Lojas Virtuais
E o modelo mais simples
de Neg6cio Electr6nico corn o simples objectivo de promoc;ao da Empresa e venda de produtos ou servic;os. Os beneffcios esperados para a Empresa resultam de mais encomendas e urn custo mais baixo de promoc;ao de vendas, da possibilidade de integrac;ao corn outras tecnologias como sejam o "Database Marketing" e o CRM, possibilidade de efectuar estudos de mercado mais dirigidos. Ja os beneffcios esperados para os Clientes gravitam a volta de prec;os mais baixos, maior possibilidade de escolha, melhor Informac;ao e apoio na selecc;ao e compra dos produtos ou servic;os, corn varias alternativas nas condic;6es de entrega. Modelo de Neg6cio - e-Leiloes
E o modelo onde se facultam leil6es electr6nicos promovidos por uma entidade. Apresenta a possibilidade de apresentac;ao multimedia dos produtos a leiloar e tern normalmente a possibilidade da integrac;ao completa de todo o processo do leilao, que inclui o contra to, os pagamentos ea entrega dos produtos. Lusiada. Direito. Lisboa, n. 0 4/5 (2007)
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Os beneficios esperados para a Empresa passam pela publicidade que esta presente em todas as fases do processo e pela venda da utiliza<;ao da plataforma tecnol6gica. Permite tambem urn calculo sobre as comiss6es das transac<;6es efectuadas. Ja para os Fornecedores dos produtos a leiloar existe uma maior eficiencia e diminui<;ao do tempo da transac<;ao alem da possibilidade de fornecer eventuais stocks excedentarios corn encargos de venda mais reduzidos. Os Clientes tambem beneficiarao de uma maior eficiencia e diminui<;ao do tempo da transac<;ao, de uma redu<;ao dos custos de aquisi<;ao dos produtos e da possibilidade de aquisi<;ao de pe<;as isoladas ou mesmo de quantidades menores Modelo de Neg6cio - e-Fornecedores (e-Procurement)
:E o modelo que e caracterizado pela pesquisa electr6nica de potenciais Fornecedores de produtos e servi<;os corn possibilidade de negocia<;ao e contrata<;ao electr6nica bem como de uma nova forma de colabora<;ao em termos de concep<;ao de novos produtos e servi<;os. Os beneficios esperados para a Empresa Fornecedoras passam por mais oportunidades de vendas e menor custo das propostas de vendas e pela presen<;a global em termos de potenciais mercados. As PME podem partilhar propostas corn outras grandes Empresas num contexto de colabora<;ao. Os Clientes beneficiarao de urn sem numero de aspectos tais como processo de compra mais rapido, custo mais baixo, mais variedade e eventualmente melhor qualidade dos produtos e servi<;os. Modelo de Neg6cio - Centros Comerciais Virtuais Trata-se de urn conjunto de lojas virtuais reunidas num unico local. Permite sinergias em termos de publicidade, de venda da utiliza<;ao da plataforma tecnol6gica, obrigando contudo a gerir a participa<;ao das lojas de presen<;a, dos valores a cobrar e de outros servi<;os prestados. As lojas virtuais poderao beneficiar da publicidade e da promo<;ao do centro comercial virtual, e permitir-lhes-a urn refor<;o das marcas que representem. Irao diminuir as dificuldades das respectivas presen<;as na Internet e poderao utilizar sistemas de pagamentos mais adequados e seguros. Urn centro comercial virtual proporciona urn valor acrescentado devido ao conj unto de lojas que se podem visitar. Modelo de Neg6cio - e-Mercados (e-Marketplaces) Podemos designar os Mercados de Neg6cio virtuais (e-Mercados) como privados ou publicos; quando uma Empresa reline os seus Clientes e os seus
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Fornecedores no contexto do seu portal estamos na presen<;:a de urn e-Mercado privado; quando a presta<;:ao de servi<;:os de marketing e comercializa<;:ao dos produtos e servi<;:os das Empresas aderentes (Clientes e Fornecedores) se aplica a mercados horizontais e verticais entao o e-Mercado e publico para varios compradores. Reengenharia do N eg6cio Electr6nico Haveni que ter algumas considera<;:6es estrategicas quando se pretende construir ou adaptar uma Empresa a vertente digital. Tal inten<;:ao devera passar por uma visao clara sabre as regras de neg6cio, os objectivos da Empresas e as respectivas restri<;:6es. 56 a partir desta primeira reflexao se podera partir para a defini<;:ao das infra-estruturas necessarias para a implementa<;:ao de uma arquitectura de neg6cio e tecnologia. Uma arquitectura de neg6cio e tecnologia ira incluir as politicas e os processos de neg6cio e as tecnologias que o suportam. Ha que ter presente que o Neg6cio electr6nico e essencialmente uma extensao do neg6cio, nao da tecnologia [Ferrao, 2004] A evolu<;:ao dos mercados digitais assenta na extensao da arquitectura de neg6cio e tecnologia interna da Empresa para uma arquitectura inter Empresas, que tern a ver corn os tipos de processos de Gestao de Cliente e dos sistemas e tecnologias que os suportam. Como paradigma deste come<;:o de seculo herdaram-se algumas obras inacabadas dos anos 90, que passam pela implementa<;: ao de conceitos, tais como: â&#x20AC;˘ uma melhoria dos processos de Gestao (reformular processos ou construir novas processos); â&#x20AC;˘ uma Gestao para a Qualidade Total (melhoria continua de processos); e â&#x20AC;˘ uma aplica<;:ao de conceitos emergentes de Gestao, seja numa Organiza<;:ao Receptiva a Aprendizagem (Learning Organization) ou numa Empresa Virtual (obten<;:ao de processos mais colaboradores, flexiveis e maior capacidade de adapta<;:ao) A adapta<;:ao ou cria<;:ao destes processos apoiam-se em tecnologias orientadas a cria<;:ao e transforma<;:ao daqueles processos assim como a cria<;:ao de urn novo relacionamento corn os Clientes. Estamos na presen<;:a de urn esfor<;:o de convergencia para o Neg6cio Electr6nico presente actualmente no posicionamento de urn grande numero de organiza<;:6es ou Empresas, sejam grandes grupos Empresariais ou PME. E urn esfor<;:o continua revelador de urn fen6meno emergente, ou seja, incluir na estrategia uma vertente de Neg6cio Electr6nico. A transforma<;:ao
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pode ser feita no sentido ascendente (Empresas que querem estender o seu neg6cio tradicional a Internet) ou descendente (Empresas que querem reformular a sua estrategia de Neg6cio, e passar de Neg6cios exclusivamente electr6nicos para os Neg6cios tradicionais, cara a cara corn os Clientes). 0 grande desafio passa naturalmente na adopc;ao de novos processos e conceitos. Por exemplo, para passar a considerar o Neg6cio Electr6nico na Empresa os passos a dar sao arduos: ha que identificar os processos de Gestao, identificar os processos criticos da Empresa, fazer uma primeira avaliac;ao a automatizac;ao dos processos de Gestao, analisar esses processos e fazer as simulac;oes adequadas (por exemplo, que acontece se o prazo medio de entrega passar para 5 dias?), analisar a opiniao dos Clientes, definir o resultado dos processos orientados aos Clientes corn uma analise individual e detalhada a cada processo. Resumindo, para a transformac;ao em Neg6cio Electr6nico, uma Empresa deve: • conhecer o seu Neg6cio atraves dos seus processos de Gestao, e do Conhecimento acumuladO (geral da Empresa e dos seus colaboradores); • permitir a circula~ao da Informa~ao tornando-a acessivel a quem dela necessitar, acrescentando valor para os Clientes; • manter estruturas flexfveis baseadas em tecnologias e ferramentas que utilizam a Internet, e • preparar urn piano de Neg6cios no contexto do E-Business.
Comercio Electr6nico e alguns mercados verticais Comercio Electr6nico nas Vendas a Retalho
Existe urn conjunto de considerac;oes que deverao ser tidas em conta, a comec;ar pelo facto de nem todos os produtos ou servic;os serem adaptaveis ao CE. Uma pergunta pertinente e "seni que se pode vender tudo na Internet?". A resposta a esta questao pode ser dada por qualquer urn de n6s, basta pensar urn pouco, sera que faz sentido vender morangos na Internet? Pensamos que nao. A nao ser que se possua uma rede de distribuic;ao porta a porta que possa entregar a encomenda em poucas horas. Isto levanta outra questao Sera que e viavel vender artigos de baixo prec;o? Urn exemplo disto ea venda rebuc;ados, ou pastilhas, corn a venda destes artigos s6 passadas algumas decadas e que comec;ariamos a ter retorno do investimento. E artigos de prec;o bastante elevado, como casas ou carros? Estes sem duvida alguma ja justificavam o investimento, mas o que acontece e que a maioria dos portais deste tipo, existentes na Internet nem sequer possibilitam transacc;oes. Servindo estes apenas como expositores estaticos, em que no caso
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da venda de casas mostram fotografias e breves descri~oes destas, mas muito dificilmente permitem efectuar a venda da casa logo "ali". Ou na compra de uma mistura de cafes em grao, a necessitarem uma participa~ao activa do Cliente so possivel numa boa loja de cafes, ou uma consulta corn urn medica especialista, sujeita a regras previstas no chamado acto medica? Ambas serao dificilmente adaptaveis, ainda que existam tentativas realistas, como por exemplo, para a venda de cafes em http:/ I www.reniza.com/receitas/info/vexaocafe.htm ou a para a medicina a propria telemedicina, em http:/ /www.cidadevirtual.pt/ adt/ , portal da Associa~ao para o Desenvolvimento da Telemedicina. Quest6es a ponderar sabre o CE nas vendas a retalho: • que tipo de produtos se adaptam melhor ao CE; • quais sao as caracteristicas do software de interface corn o utilizador que facilitara a compra; • que tipos de fases do processo de compra deverao estar no dialogo corn o Cliente; • quanta e que os Clientes estarao dispostos a pagar por este servi~o; • que esquemas de pagamento poderao ser utilizados pelos Clientes; e • que factores contribuem para uma nova dinamica no retalho. 0 CE nas vendas a retalho podera ser altamente atraente pelo excesso de oferta dos meios tradicionais de comercializa~ao. Tern tambem a seu favor as tendencias de mudan~as demograficas corn enfase nas faltas de tempo para consumo dos Clientes, nas mudan~as de comportamento dos Clientes ·corn enfase em pre~os mais baixos, e na necessidade de Informa~ao e d e outros servi~os da parte dos Clientes. 0 CE nas vendas a retalho traz novas desafios, a come~ar pela defini~ao de uma nova estrategia de actua~ao e relacionamento corn o Cliente, pela Gestao de eventuais conflitos entre canais (o tradicional vs. o on-line), pela aprendizagem do estabelecimento de pre~os, pela execu~ao de uma boa Gestao das marcas e por criar incentivos certos para os Clientes. Comercio Electr6nico na
Distribui~ao
A distribui<;ao integra cada vez mais a produ<;ao, a venda a retalho, os Clientes e os Fornecedores como uma organiza<;ao virtual. 0 enfase na distribui~ao e orientado mais para o Cliente do que para a propria Empresa, pois ha que compreender as necessidades dos Clientes, e entregar os produtos e servi~os que os satisfa~am de forma integrada corn a Internet e a Intranet. As fun~oes principais da Distribui~ao sao a Gestao da Informa~ao acerca dos pedidos dos Clientes e dos mercados, do fluxo de materiais dos Fornecedores
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da prodw;ao, do processo produtivo para assegurar custos baixos e dos fluxos financeiros entre Fornecedores e Clientes. As Tecnologias mais usadas sao a Internet para permitir a liga<;ao dos Clientes aos Distribuidores, do EDI na Internet para a troca de documentos entre as varias Empresas e da Intranet para o funcionamento interno das Empresas. Comercio Electr6nico e as Empresas Industriais
0 CE nas Empresas Industriais serve para, de uma forma eficaz e atempada, responder as respectivas necessidades, para se adaptarem a novas condi<;6es socio-econ6micas e para serem flexfveis o suficiente de modo a controlar as respectivos processos de Gestao, ou seja, a montante para os seus Fornecedores e a jusante p ara os seus Clientes. A cadeia logfstica estende-se para ah~m do modelo tradicional Fornecedor - Cliente constituindo o que se designa por Empresa Virtual englobando outras entidades para alem apenas dos Fornecedores e Clientes (normalmente os sistemas informaticos para implementar este modelo de Gestao sao designados por ERP - Enterprise Resource Planning) . A integra<;ao destes sistemas das varias Empresas faz-se sobretudo atraves das redes Intranet, Extranet e da propria Internet. Comercio Electr6nico na Banca
0 CE tern sido urn dos factores que mais tern contribufdo para uma maior competitividade na Banca, naquilo que soe designar-se por Acesso ao seu Banco a partir de Casa (Home Banking). Tern promovido uma mudan<;a do comportamento dos Clientes, gra<;as ao CE, mas tambem uma optimiza<;ao do funcionamento das agendas como forma de reduzir os custos, uma mudan<;a das tendencias demograficas e tern permitido a cria<;ao de novos mercados potenciais assim como de novos produtos financeiros. Os factores que tern contribufdo para o desenvolvimento actual do Home Banking sao encabe<;ados pelos conhecimentos tecnol6gicos dos Clientes, pela maior divulga<;ao dos servi<;os bancarios on-line, por uma base instalada de computadores p essoais na casa dos Clientes corn urn crescimento exponencial e pela constata<;ao que as outras alternativas tern custos elevados. Nao e pois de estranhar que ate neste segmento do Home Banking existe uma grande concorrencia entre as institui<;6es bancarias. Perversamente o CE trouxe urn novo problema, ou seja, a melhoria da presta<;ao de servi<;os aos Clientes por parte das institui<;6es bancarias corn suporte na tecnologia facilitou a "infidelidade" desses mesmo Clientes (F6rneas, 2003].
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Foi necessaria criar uma estrutura de apoio, ou seja, promover o desenvolvimento de sistemas de "back office" capazes de suportar a dinamica e a sofistica<;:ao das interfaces corn os Clientes. Mas note-se que o resultado foi na evolu<;:ao do modelo de funcionamentos das institui<;:6es bancarias de urn esquema rfgido, corn poucas op<;:6es, para urn modelo flexfvel, que proporciona o acesso a urn conjunto alargado de produtos e servi<;:os tais coma: Seguros, Gestao de Investimentos, Gestao de Patrim6nios, Planos de Poupan<;:a, Transferencias, Pagamentos de Servi<;:os e de Impostos, etc. Comercio Electr6nico na
Administra~ao
Publica
Decididamente que o grande passo tera estado na nova forma de encarar o cidadao mais coma Cliente - Cidadao. Mas existem outros factores que contribufram para o incremento do CE na Administra<;:ao Publica, a saber, a implementa<;:ao da dita "Sociedade de Informa<;:ao" corn todas as suas implica<;:6es em termos de divulga<;:ao da Internet e do CE, bem coma da presta<;:ao de novas servi<;:os ao cidadao. Esta materia e tanto mais pertinente quando em 12 de Janeiro de 2005 foi lan<;:ado o Portal de Compras da Administra<;:ao Publica, que pretende revolucionar o relacionamento entre o Estado e os seus Fornecedores, corn ganhos de eficiencia e transparencia, mas tambem de poupan<;:a financeira. As estimativas do Governo apontam para que em 2007, quando o programa nacional de compras electr6nicas estiver totalmente desenvolvido, o Estado possa poupar cerea de 30% da sua despesa em aquisi<;:6es de equipamentos e servi<;:os. Ou seja entre 129 a 267 milh6es de euros anuais, o equivalente a 3,5% do Or<;:amento do Estado. 0 lan<;:amento do portal interliga-se corn a consagra<;:ao em Decreto-Lei, em Novembro de 2004 ultimo, do chamado acto publico electr6nico. A partir daquela lei, o portal electr6nico sera assumido como o meio primordial do Estado para anunciar concursos publicos e realizar as suas compras. Todos os procedimentos relacionados corn os concursos publicos, desde o envio de documenta<;:ao e levantamento de cadernos de encargos ate aos leil6es propriamente ditos e a adjudica<;:ao serao realizados electronicamente, disse ao DN fonte da Unidade de Missao, Inova<;:ao e Conhecimento (UMIC), a entidade encarregue da implementa<;:ao do projecto ja previsto em Resolu<;:ao do Conselho de Ministros n. 0 36/2003 de 12 de Mar<;:o de 2003. Comercio Electr6nico e a Sociedade Portuguesa
0 Decreto-Lei n. 0 7/2004, de 7 de Janeiro, destina-se fundamentalmente a realizar a transposi<;:ao da Directiva n. 0 2000/31/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de Junho de 2000. Do respectivo preambulo extrafmos as considera<;:6es que se seguem.
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"A directiva sob re comercio electr6nico, nao obstante a designa<;:ao, nao regula todo o comercio electr6nico: deixa amplas zonas em aberto ou porque fazem parte do conteudo de outras directiv:as ou pm路que nao foram consideradas suficientemente consolidadas para uma harmoniza<;:ao comunitaria ou, ainda, pm路que nao carecem desta. Por outro lado, versa sobre materias como a contrata<;:ao electr6nica, que s6 tern sentido regular como materia de direito comum e nao apenas comercial. Na tarefa de transposi<;:ao, optou-se por afastar solu<;:6es mais amplas e ambiciosas para a regula<;:ao do sector em causa, tendo-se adoptado urn diploma cujo ambito e fundamentalmente o da directiva. Mesmo assim, aproveitouse a oportunidade para, lateralmente, versar alguns pontos carecidos de regula<;:ao na ordem juridica portuguesa que nao estao contemplados na directiva. Uma das finalidades principais da directiva e assegurar a liberdade de estabelecimento e de exercicio da presta<;:ao de servi<;:os da sociedade da Informa<;:ao na Uniao Europeia, embora corn as limita<;:6es que se assinalam. 0 esquema adoptado consiste na subordina<;:ao dos prestadores de servi<;:os a ordena<;:ao do Estado membro em que se encontram estabelecidos. Assim se fez, procurando esclarecer quanto possivel conceitos expressos em linguagem generalizada mas pouco precisa como <<servi<;:o da sociedade da Informa<;:ao禄. Este e entendido como urn servi<;:o prestado a distancia por via electr6nica, no ambito de uma actividade econ6mica, na sequencia de pedido individual do destinatario - o que exclui a radiodifusao sonora ou televisiva. A directiva regula tambem o que se designa como comunicaroes comerciais. Parece preferivel falar de <<comunica<;:6es publicitarias em rede禄, uma vez que e sempre e s6 a publicidade que esta em causa. A contrata<;:ao electr6nica representa o tema de maior delicadeza desta directiva. Esclarece-se expressamente que o preceituado abrange todo o tipo de contratos, sejam ou nao qualificaveis como comerciais. Procura tambem regular-se a chamada contrata<;:ao entre computadores, portanto a contrata<;:ao inteiramente automatizada, sem interven<;:ao humana. Estabelece-se que se regula pelas regras comuns enquanto estas nao pressupuserem justamente a actua<;:ao (humana)." A Lei do CE veio servir de referendal ao mercado portugues num segmento de funcionamento onde existiam lacunas, deficientes interpreta<;:6es e falta de sintonia corn a Uniao Europeia. Esta em curso urn esfor<;:o corn vista ao global esclarecimento da vertente fiscal. 0 comercio electr6nico internacionat em virtude das suas caracteristicas essenciais, coloca novos desafios ou amplia os desafios existentes nos sistemas
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fiscais actuais e respectivas pollticas. Os novos usos comerciais derivados das novas tecnologias de Informa<;ao e de comunica<;ao, corn a ajuda dos novos intermediarios no ambiente da Internet, criam ou agravam os problemas no que respeita a jurisdi<;ao, categoriza<;ao do rendimento ou transac<;6es e administra<;ao fiscal e cumprimento. Acresce que, as institui<;6es, em materia de tributa<;ao domestica ou internacional, sao na sua maioria nacionais e soberanas [Guerreiro, 2000]. No que con cerne ao CE, as politicas fiscais, a legisla<;ao fiscal ou interpreta<;6es e a sua adapta<;ao aos desafios especfficos desta actividade tern vindo, consequentemente, a ter lugar, a nfvel nacional, relevantes esfor<;os tendentes a promover urn esclarecimento social generalizado. Para tal tern contribufdo o dedicado esfor<;o de alguns academicos e profissionais (Professor Doutor Manuel Pires, Professor Doutor Rogerio Fernandes Ferreira, Prof. Dr. Miguel Pupo Correia, Dr. Mario Braz, Dr. Medina Carreira, Dr." Olga Esperan<;a, entre tantos outros). Urn novo meio, uma nova linguagem
Se saltarmos os anos 60, corn a Guerra Fria e os Beatles, nos anos em que a Arpanet e as Universidades deram acesso aos computadores aos seus alunos e muitos outros, se, saltarmos os anos 80 corn os seus yuppies e chegarmos ao HTML de Tim Berners-Lee e ao Mosaic de Marc Andreessen; poderemos entao passar aos anos 90, do seculo passado; a decada do verdadeiro arranque do CE. A decada em que a Internet se tornou em algo mais popular do que o Beatles e mais deslumbrante do que urn yuppie, corn sucesso na bolsa; em algo que e incontornavel, que faz parte da vida de milh6es de pessoas, e que tudo indica, fara parte do nosso dia a dia daqui para a ÂŁrente [Vasconcelos, 2000] . Agora neste come<;o do seculo XXI, as portas do CE via Internet, estao definitivamente abertas. Sejamos claros: no comercio electr6nico, nao se trata de distribuir bens e servi<;os de gra<;a, nem de ter urn papel importante no acesso a Informa<;ao, para a felicidade dos utilizadores. Nao. Essa e uma outra Internet, a qual existira sempre dentro de n6s, os que seguem e respeitam os princfpios da Netiqueta (Etica na Internet), os que, apesar de tudo, tambem usam e precisam da Internet comercial. Duas realidades na mesma rede das redes. 0 CE nao tern a ver corn a colabora<;ao, ou associa<;ao que caracterizou a Internet dos primeiros anos. 0 CE tern a ver corn neg6cio - puro e simples. Apenas o meio e diferente. E e diferente no modo como se anuncia e sobretudo como se informa sobre os bens, como trata, ou satisfaz o Cliente, no modo como processa o pagamento e resolve o envio da mercadoria, ou servi<;o, a quem comprou. E diferente no modo como se considera o Cliente! A diferen<;a entre comercio e CE esta pois na adapta<;ao, ao novo meio de comunica<;ao, das velhas tecnicas e regras de ganhar dinheiro.
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Antes de mais, e importante saber o que se vai vender e uma vez em pleno conhecimento dessa ideia come<;ar a organizar urn plano de ac<;ao. Para consultar relat6rios sobre o CE em Portugal, pode consultar os inqueritos da Unicre (em colabora<;ao corn a Vector XXI, responsavel pelo servi<;o Plano 21). E n ao deixe ainda de investigar o site de Jorge Nascimento Rodrigues, o Janela na Web . Em termos internacionais, pode explorar a sec<;ao eCommerce e eBusiness dos sites das big five, as Empresas multinacionais americanas de consultoria. Anderson Consulting - urn site totalmente virado para o cliente, corn especial enfase na disciplina do "Customer Relationship Management" . Ernst & Young - importancia ao comercio electr6nico logo a seguir ao imitil splash screen inicial e uma extensa e util biblioteca online. KPMG International - a KPMG e a Empresa de consultoria em que a Cisco Systems decidiu investir. McKinsey & Company - embora a home page do site nao seja promissora, a biblioteca de relat6rios e uma mina de informa<;6es. PricewaterhouseCoopers E-Business - forum sobre a prossecu<;ao de estrategias para neg6cios on-line, incluindo naturalmente o Comercio Electr6nico. Na Europa, a resposta as Big 5 americanas parece ser a Roland Berger & Partners, uma Empresa de consultoria b aseada na Alemanha. Aceda ao respectivo site, tecnicamente avan<;ado, e compare . Outros links a explorar: IBM, Sun, Gartner Group e Forrester Research .
Glossario ARPANET - (acr6nimo em ingles de Advanced Research Projects Agency Network) Rede de computadores criada em 69 pelo Departamento de Defesa norte-americano, interligando na altura institui<;6es militares; em m eados dos anos 70 varias grandes universidades americanas aderiram a rede, que deu lugar a actual Internet. ASP - (Application Service Provider) Empresas que gerem e distribuem servi<;os baseados em software para outras companhias distantes, pela Internet atraves de uma central; os ASPs permitem que as companhias poupem dinheiro, tempo e recursos. Assinatura digital - Em criptografia, a assinatura digital e urn m etodo de autentica<;ao de Informa<;ao digital tipicamente tratada, por vezes corn demasiada confian<;a, como analoga a assinatura flsica em papel. Embora existam analogias, tambem existem diferen<;as que podem ser importantes; o termo assinatura electr6nica, por vezes confundido, tern urn significado diferente: refere-se a qualquer mecanismo, nao
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necessariamente criptografico, para identificar o remetente de uma mensagem electr6nica. B2B - (Business to Business) 0 comercio de B2B e o comercio electr6nico feito directamente entre Empresas, via Internet, corn redw;ao de custos e uma consequente margem maior nas vendas e custo menor nas compras. B2C - (Business to Consumers) 0 chamado B2C e o comercio electr6nico efectuado directamente entre a Empresa produtora e o consumidor final; em geral o consumidor adquire os produtos a pre<;o mais competitivo pois evita o intermediario. BPR - (Business Process Reengineering) A Reengenharia de Processos de Neg6cios, bastiao da teoria organizacional do Racionalismo Radical, foi urn termo originalmente criado por Michael Hammer e James Champy, e que significa urn redesenho radical dos processos de neg6cios corn o objectivo de obter melhorias drasticas em tres areas: custos, servi<;os e tempo; e urn instrumento importante para conduzir as organiza<;6es no novo caminho; engloba urn programa de mudan<;a organizacional amplo e profundo. Computa~ao pervasiva- A ideia basica da computa<;ao pervasiva e disponibilizar acesso computacional de modo invisfvel, em todo lugar, o tempo todo. Invisfvel no sentido de que o utilizador nao precisa de se dar conta da tecnologia, pois ela pode estar embutida nos mais diversos dispositivos incluindo o computador pessoal, o PDA, o telem6vel, a propria roupa, qualquer acess6rio como o rel6gio ou 6culos. Computa~ao ubiqua - A computa<;ao ubfqua estende o conceito de computa<;ao pervasiva em direc<;ao a mobilidade, isto e, independente da nossa localiza<;ao temos acesso a todos os servi<;os e recursos corn pu tacionais. Conhecimento - 0 conhecimento inclui, mas nao esta limitado, as descri<;6es, hip6teses, conceitos, teorias, prindpios e procedimentos que sao ou uteis ou verdadeiros. 0 estudo do conhecimento e conhecido como epistemologia. CRM - (acr6nimo de origem inglesa Customer Relationship Management que significa em portugues Gestao do Relacionamento corn o Cliente) Designa<;ao de metodologias e software que permitem a uma Empresa melhorar a satisfa<;ao dos seus clientes e aumentar os seus resultados, corn base nomeadamente no conhecimento aprofundado das necessidades dos seus clientes, no tratamento privilegiado dos melhores clientes, na gestao mais eficiente de campanhas de marketing e na melhoria da gestao dos canais de vendas. Cross selling- Oferecer produtos complementares e/ ou agregados aquele que o consumidor adquiriu ou possui; ac<;ao sistematica e automatica em opera<;6es de base de dados de marketing.
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Dado - Representa<;ao de factos, conceitos ou instru<;6es de uma maneira formal e que seja apropriada para a sua comunica<;ao, interpreta<;ao ou processamento. Disinteremediation - Corn as novas tecnologias, poderia parecer que os intermediarios tradicionais estivessem a desaparecer (facto que em Portugues se poderia designar por algo parecido corn desintermediac;iio); mas este fen6meno, segundo o autor Paul Saffo e realmente uma miragem, pois e uma parte de estatica de urn processo maior em que a introdu<;ao dos novos de sistemas de Informa<;ao perturba o mercado ambiente, criando oportunidades para urn novo tipo de intermediarios cuja a presen<;a amea<;a os intermediarios classicos que podem desaparecer a nao ser que se adaptem as novas realidades do mercado; assim, o que parecia ser a extin<;ao de uma actividade e afinal urn fen6meno de maior dinamismo, que poderemos designar por desinteremediac;iio. Economia de escala - Redu<;ao de custo unitario corn a produ<;ao em grande escala que gera distribui<;ao de custos unitarios numa quantidade maior de unidades. EIFACT - Electronic Data Interchange for Administration, Commerce and
Transport das Na<;6es Unidas. ERP - (Enterprise Resource Planning) Aplica<;6es complexas utilizadas em
grandes Empresas para gerir inventarios e integrar processos Empresariais em varias divis6es, reduzindo barreiras organizacionais. Extranet- Pode ser definida corn urn conjunto de duas ou mais Intranets ligadas em rede. Geralmente, as Extranets sao criadas tendo como base a infra-estrutura da Internet e servem para ligar parceiros de neg6cio numa cadeia de valor. Hardware (HW) - Termo que indica todas as partes fisicas, electricas e mecanicas de urn computador. Em outras palavras, o equipamento. Hipermedia - Na acep<;ao mais vulgar do termo, trata-se de hipertexto enriquecido por elementos multimedia (imagens estaticas, imagens em movimento, sons, segmentos de video, etc.). Hipertexto - (Hypertext) Em computa<;ao, hiper texto e urn sistema para a visualiza<;ao de Informa<;ao cujos documentos contem referencias internas para outros documentos (chamadas de hiperlinks ou, simplesmente, links), e para a facil publica<;ao, actualiza<;ao e pesquisa de Informa<;ao. 0 sistema de hiper texto mais conhecido actualmente e a World Wide Web. Home Banking- Disponibiliza<;ao ou venda de produtos e servi<;os bancarios atraves de aplica<;6es disponiveis em computadores; atraves das comunica<;6es electr6nicas permitidas por urn computador o cliente pode aceder ao banco, e efectuar movimentos na sua conta
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bancaria, assim como adquirir produtos outer acesso a determinados servi<;:os. HTML - (Hypertext Markup Language) E uma linguagem de descri<;:ao de paginas de Informa<;:ao, standard no WWW; corn essa linguagem (que, para alem do texto, tern comandos para introdu<;:ao de imagens, formularios, altera<;:ao de fontes, etc.) pode-se definir paginas que contenham Informa<;:ao nos mais variados formatos: texto, som, imagens e anima<;:6es. Informa~ao - 0 significado que o homem da aos dados, por meio de conven<;:6es usadas para a sua representa<;:ao. Input - Alimenta<;:ao do sistema corn dados. Internet- E uma rede de redes em escala mundial de milhoes de computadores; Internet nao e sin6nimo de World Wide Web; esta e parte daquela, sendo a World Wide Web, que utiliza hipermedia na sua forma<;:ao basica, urn dos muitos servi<;:os oferecidos na Internet; a Web e urn sistema de Informa<;:ao mais recente que emprega a Internet como meio de transmissao. Intranet - E uma rede de computadores privativa que utiliza as mesmas tecnologias que sao utilizadas na Internet; o protocolo de transmissao de dados e o TCP /IP e sobre ele podemos encontrar varios tipos de servi<;:os de rede comuns na Internet, como por exemplo o e-mail, chat, grupo de noticias, HTTP, FTP entre outros. Learning organization - Criado por Chris Argyris, professor em Harvard, designa por learning organizations (organiza<;:ao em constante aprendizagem) as Empresas que aprendem a medida que os seus trabalhadores vao ganhando novos conhecimentos; 0 conceito e baseado na ideia de Argyris, chamada double-loop learning (quando os erros sao corrigidos por meio da altera<;:ao das normas empresariais que os causaram). Lei de Gilder - George Gilder refere-se a explosao da largura de banda, relativamente a quantidade de dados que podem ser transportados numa linha de comunica<;:6es. Lei de Metcalf - Robert Metcalf definiu a lei que pode ser aplicada a qualquer produto ou servi<;:o de tecnologia; de acordo corn a teoria, o valor de uma rede e igual ao ntimero de utilizadores ao quadrado; isto e, na nova economia o valor da rede e maior do que a da soma de seus integrantes. Lei de Moore- Cordon Moore, co-fundador da Intel, em 1965 previu que o ntimero de transistores num chip duplicaria a cada dois anos, algo que efectivamente tern ocorrido. Login - Identifica<;:ao de urn utilizador perante urn computador; fazer o login e o acto de dar a identifica<;:ao do utilizador ao computador.
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MIS - (Management Information System) Sistema de Gestao da Informa<;:ao, sistema de Informa<;:ao que integra dados de todos os departamentos que serve e que fornece as areas de opera<;:6es e de gestao da Empresa a Informa<;:ao de que elas necessitam. Netiqueta - E a etiqueta que se recomenda observar na Internet; tratase de recomenda<;:6es para que se evitem mal-entendidos em textos presentes na Internet (especialmente em e-mails, chats, listas de discuss6es, etc.), e tambem serve para disciplinar condutas em situa<;:6es espedficas (como, ao colocar-se a sinopse de urn livro na Internet, informar o que aquele texto cita; ou indicar o nome do portal ou autor de urn texto quando e copiado e colado noutro local - desde que o autor permita). Output - Saida de informa<;:6es ou sinais. Oposto ao input. Outsourcing - Trata-se de contratar uma entidade exterior a Empresa para executar servi<;:os nao estrategicos (que nao produzem valor acrescentado para os clientes), em vez de os produzir internamente; a grande vantagem reside na redu<;:ao de custos que tal op<;:ao implica; talvez ainda seja mais importante o facto de o outsourcing libertar mais tempo os executivos para se dedicarem mais as core competence (comp eh~ncias estrategicas) da Empresa. PME - Acr6nimo de Pequena e Media Empresa, que para permitir uma transi<;:ao fluida a nivel comunitario e nacional, tern uma nova defini<;:ao que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2005.
Categoria (inalterado) media empresa
Efectivos Neg6cios
Volume de
Total de Balan<;:o
< 250
:s; 50 milh6es de euros
:s; 43 milh6es de euros
pequena empresa
<50
:s; 10 milh6es de euros
:s; 10 milh6es de euros
micro empresa
< 10
:s; 2 milhoes de euros
:s; 2 milh6es de euros
Fonte: Servi<;:o de Imprensa da Comissao Europeia - IP/03/652, Bruxelas, 8 de Maio de 2003. Prosumer - E urn termo criado por Alvin Toffler, palavra composta pelas designa<;:6es "produtor (ou profissional" e "consumidor (em ingles, consumer)"; trata-se de urn mecanismo que permite oferecer uma vasta gama de produtos e servi<;:os, mas corn grande independencia das vagas de ÂŁundo da economia tradicional. Saber - Ter conhecimento, ciencia, Informa<;:ao ou noticia de. Sistema de Informa~ao (SI) - Urn sistema, automatizado ou manual, que compreende pessoas, maquinas, e/ ou metodos organizados para
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colectar, processar, transmitir e disseminar dados que representam Informa<;ao para o utilizador. Software (SW) - Sao os programas, dados e rotinas desenvolvidos para computadores e respectivos manuais. Os programas de software precisam ser instalados nos computadores para que eles passem a desempenhar determinadas fun<;6es. TCP/IP - (Transmission Control Protocol I Internet Protocol ou Protocolo de Controle de Transmissao I Protocolo da Internet) Os dois protocolos basicos da Internet, usados para viabilizar a transmissao e troca de dados de redes diferentes, permitindo assim que os computadores comuniquem entre si. Foi criado em 1970 pelo departamento de defesa americano. Tecnologia de Informa\aO (TI) - conjunto de recursos tecnol6gicos e computacionais para gera<;ao e uso da Informa<;ao; a TI esta fundamentada nos seguintes componentes: hardware e seus dispositivos perifericos. XML - (Extensible Markup Language, ou Linguagem de Marcas Extensive!) Especifica<;ao criada pelo W3C, desenvolvida especialmente para documentos da Web; permitira criar tags (liga<;6es) personalizadas corn funcionalidades nao disponiveis no HTML; a Microsoft pretende adoptar este padrao em futuras vers6es do Internet Explorer. Web- A World Wide Web -a Web, W3C ou WWW para encurtar- ("teia do tamanho do mundo", traduzindo literalmente) e uma rede de computadores na Internet que fornece Informa<;ao em forma de hiper texto; para ver a Informa<;ao, pode-se u sar urn software chamado navegador ("browser") para descarregar informa<;6es (chamadas "documentos" ou "paginas") de servidores de Internet (portais ou "sites") e mostra-los no ecra do utilizador do computador; esta designa<;ao foi primeiro dada por Sir Tim Benners-Lee do CERN Laborat6rio. Europeu de Fisica de Particulas, na Sui<;a em 1993. Wireless - Tecnologia que permite a conexao entre computadores e redes atraves da transmissao e recep<;ao de sinais de radio.
Bibliografia
Alt, R., Reichmayr, C., Zurmiihlen, R. [2000L "Developing eCommerce within Business Networks- The Case of ETA SA], Klein, S., Gricar, L Pucihar, A. (Eds .): Global Networked Organizations, Bled, Slovenia, 19.06.2000, Moderna Organizcija, Kranj, 2000, pp. 182 - 199. http:/ /verdi.unisg.ch/ org/iwi/iwi_pub.nsf/wwwPublRecentEng/ D11989304C3A90BBC1256E40005D01C8
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MIDIA, PODER E CONSTITUIC::AO
Fernando Luiz Ximenes Rocha
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A sociabilidade e indiscutivelmente insita a natureza humana. Corn efeito, o homem nao se contenta simplesmente em viver corn os demais, ele carece, acima de tudo, de conviver corn seus semelhantes, ou seja, as pessoas precisam estabelecer algo em comum, compartilhando valores, interesses e cren<;:as no seio do grupo social. Neste sentido e que a comunica<;:ao surge como o veiculo, segundo Xifra-Heras, "que permite aos homens participarem mutuamente de seus
estados subjetivos e fazerem o interctimbio de suas ideias e sentimentos." 2
E proprio, ainda, dessa sua natureza gregaria a necessidade de obter informa<;:ao, para que o homem consiga desenvolver-se socialmente, conhecendo de maneira mais ampla e adequada seu ambiente e seus pares, de modo que possa ordenar sua vida, seu comportamento individual e coletivo, objetivando firmar urn intercambio corn os outros seres humanos, compartindo urn destino comum, evitando qualquer tipo de isolamento, o que e antinatural, ao tempo em que busca fortalecer a solidariedade humana, essencial para enfrentar os desafios do mundo contemporanea. A informa<;:ao desponta, por conseguinte, como urn direito fundamental, o qual se manifesta em seu duplo aspecto: o primeiro, atinente a tradicional liberdade de imprensa ou de expressao, compreendida como urn direito ativo, que se coloca do lado de quem tern algo a comunicar e exige urn abstencionismo por parte do Estado, para o fim de viabilizar, sem a incidencia de impedimentos ou restri<;:6es, a ampla e diversificada divulga<;:ao de ideias e noticias no seio da sociedade. 0 segundo e 0 moderno direito a informa<;:ao, que se apresenta como urn direito passivo, que nao exige apenas uma postura negativa do poder estatal, mas igualmente uma concessao positiva do proprio poder, de modo a satisfazer a tendencia natural do homem de estar informado, a fim de que ele possa efetivamente participar das decis6es politicas mais relevantes para o Desembargador do Tribunal de Justi~ a do Ceanl. Professor de Direito Constitucional da UFC. Mestre em Direito pela UFC. 2 XrFRA-HERAS, Jorge. A Informnt;iio- amilise de uma liberdade fru stada. Trad. GoM ES, Gastao Jacinto. Sao Paulo: Editora Universidade de Sao Paulo, 1975, p. 7. 1
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destino de seu pais, contribuindo para a forma<;ao da opiniao publica corn vistas ao born funcionamento da democracia, porquanto, consoante ensina Konrad Hesse, somente o cidadao informado esta em condi<;6es de formar urn juizo proprio e de cooperar, de acordo corn a Constitui<;ao, no processo democratico.3 Desse modo, o direito de acesso a informa<;ao e de comunica<;ao nao se encerra no direito de ser cientificado sabre o que acontece na sociedade e de divulgar as noticias, compreendendo, mais do que isso, o direito de obter e de veicular a informa<;ao veridica. Nesse contexto, percebe-se porque a liberdade de comunica<;ao, erigida ao patamar de direito constitucional, nao pode ser limitada pela abominavel figura da censura previa, presente nos govemos ditatoriais coma medida inibidora de manifesta<;6es politicas e sociais oponentes a ideologia de tais govemos e impeditiva da veicula<;ao da verdadeira estrutura do poder instaurado, producente, nao raras vezes, de arbitrariedades, persegui<;6es aos adversarios e favoritismos aos bajuladores das tiranias. Alias, no principio, a prote<;ao da liberdade de imprensa visava garantir aos individuos a livre manifesta<;ao de expressao e opiniao em face do Estado. No entendimento liberal classico, coma assevera Vital Moreira, "a liberdade de
criar;iio de jornais e a competi(:Cio entre eles asseguravam a verdade e o pluralismo da informafiiO e proporcionavam veiculos de expressiio par via da imprensa a todas correntes e pantos de vista." 4 Corn o passar do tempo, entretanto, a imprensa revelou-se ser tambem urn poder social, coma tal passivel de afetar direitos de particulares, coma a honra, a intimidade, a reputa<;ao, a imagem, etc., alem do que se tomou cada vez menos urn direito pertencente a maioria do povo, para ser cada vez mais privilegio de uma minoria. Hoje em dia, ja nao se pode conceber os meios de comunica<;ao coma simples emana<;ao da opiniao autonoma dos cidadaos, haja vista a sua concentra<;ao nas maos de grupos capitalistas, comprometidos corn interesses comerciais e ideol6gicos de grandes organiza<;6es empresariais, razao pela qual a informa<;ao tern assumido a fei<;ao de mercadoria, e, enquanto tal, sujeita-se as leis do mercado, sem qualquer compromisso corn a verdade e a etica. Destarte, hodiemamente, consoante preconiza Vital Moreira, "torna-se
necessaria defender niio s6 a liberdade da imprensa mas tambem a liberdade face a imprensa. Na verdade, niio carecem menos de prote9iio os direitos dos cidadiios perante a imprensa do que as garantias da liberdade da imprensa contra o Estado."5
3 Cf. Elementos de direito constitucional da Republica Federal da Alemanha. Trad . H ECK, Luis Afonso. Porta Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 305. 4 Cf. Direito de resposta na comunicariio social. Coimbra: Coimbra Editora, 1994, p . 9. 5 Idem, ibidem.
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Talvez por isso e que Jose Paulo Cavalcante Filho nos chama aten<;ao para o paradoxo presente entre dais principios aparentemente contradit6rios e nao obstante reais: o de que nao ha. democracia sem imprensa livre, nem ha. democracia corn imprensa livre, pelo que afirma ser indispensavel o estabelecimento de controles democraticos ao poder brutal que as corpora<;6es de comunica<;ao acumulam atualmente, notadamente no Brasil, uma vez que a ampla liberdade de informar deve ter por contrapartida uma ampla responsabilidade corn o exercicio dessa liberdade. 6 De outra banda, nao podemos perder de vista que a liberdade de comunica<;ao social e, sobretudo, a imunidade a censura constituem urn direito fundamental do homem. Por consequencia, a sua titularidade nao reside nas empresas de comunica<;ao, que apenas tern a sua frui<;ao imediata, devendo exerce-la em name da sociedade que, coma bem assinalam Eras Roberto Grau e Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, e a real titular da garantia de tal imunidade, que se destina, se gun do suas palavras, "a tolher niio apenas o contra le da informar;iio
pelo Estado, mas, em especial entre n6s, a distorr;iio da informar;iio promovida pelo propriettirio do veiculo de informar;iio, pelo redator-chefe, pelo editorialista, pelo rep6rter." 7 E insistem que devemos ensinar que "o titular da liberdade de imprensa niio e 0 jornal, a emissora de radio ou televisiio, mas 0 povo." 8 Outra nao e a coloca<;ao de Jose Paulo Cavalcanti Filho, quando diz que "em uma sociedade verdadeiramente democratica, a liberdade de imprensa niio pertence aos meios de comunicar;iio, nem aos jornalistas. A liberdade de imprensa e do povo, coma o ceu e do condor." 9 Nessa linha de raciocinio, alerta Jose Afonso da Silva que os donos das empresas e os jornalistas tern o direito de exercer suas atividades, informando ao publico os acontecimentos e ideias, mas, igualmente, "o dever de informar
a coletividade
de tais acontecimentos e ideias, objetivamente, sem alterar-lhes a verdade ou esvaziar-lhes o sentido original, do contrario, se tera niio informar;iio, mas deformar;iio" .10
A liberdade de comunica<;ao social nao pode, assim, ser concebida coma urn valor absoluto, legitimado a impor-se e a sobrepor-se aos demais direitos constitucionalmente protegidos, atributo este que, em definitivo, a ordem jurfdica realmente democratica nao reconhece a nenhum tipo de direito, nem mesmo ao mais sublime deles, que e 0 direito a vida. Isso porque, coma dito, nenhum direito fundamental e absoluto, estando sua existencia limitada, de modo inexoravel, a de outro direito tambem assim Cf. 0 mel eo feZ. Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 93. Cf. "Direito e midia, no Brasil". In FIOCCA, Demian & GRAU, Eros Roberto. Debate sabre a Constitui(:iio de 1988. Sao Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 108. 8 Idem, ibidem. 9 Op. cit., p. 98. 10 Cf. Curso de direito constitucional, 24." ed., Sao Paulo: Malheiros, 2005, p. 247. 6
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considerado, em razao do que sempre e preciso ter em conta que a delimita<;ao do ambito dos direitos fundamentais do homem e uma variavel, sendo impossivel prestar o mesmo valor e resguardar a uma s6 vez a tutela de todos elesY Ja se observa, nesse contexto, que a tao decantada liberdade de expressao e comunica<;ao, como toda e qualquer especie de liberdade, ha de ser exercida corn responsabilidade e dentro de determinados limites, pois ser livre, como ensina Ana Lucia Menezes Vieira, "significa ser responsavel e, no momento em
que tal liberdade e exigida e na medida em que se a exige, o individuo assume o peso da responsabilidade que a essa liberdade corresponde",l 2 sob pena de transformala em arbitrio. Essa associa<;ao, presente no bin6mio liberdade-responsabilidade, remonta a Declara<;ao dos Direitos do Homem e do Cidadao, de 1789 13, estando presente, de forma mais explicita, no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Politicos, de 1966 14, e na Conven<;ao Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de Sao Jose da Costa Rica), de 1969 15 â&#x20AC;˘ No direito patrio, a Carta Magna estabelece, em seu art. 220, caput e paragrafo primeiro, restri<;6es a publica<;ao de fatos e noticias pelos 6rgaos de divulga<;ao de massa, entre as quais merece relevo a veda<;ao ao anonimato,
11 Nesse sentido, Norberto Bobbio leciona: "Na maioria das situaroes em que estti em causa um direito do homem, ao contrario, ocorre que dais direitos igualmente fundamentais se enfrentem, e niio se pode proteger incondicionalmente um deles sem tornar o outro inoperante. Basta pensar, para ficarmos num exemplo, no direito a liberdade de expressiio, par um !ado, e no direito de niio ser enganado, excitado, escandalizado, injuriado, difamado, vilipendiado par outro." (In A Era dos direitos. Trad. CouTINHO, Carlos Nelson. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 42). 12 Cf. Processo penal e midia. Sao Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 43. 13 "Art. 11. A livre manifestariio do pensamento e das opiniOes e um dos direitos mais preciosos do homem: todo cidadiio pode, portanto,falar, escrever e imprimir livremente, aexceriio do abuso dessa liberdade pelo qual devera responder nos casos determinados par lei." 14 "Art. 19. [... ] [... ] 2. Toda e qualquer pessoa tera direito a liberdade de expressiio; esse direito incluira a liberdade de procurar, receber e difundir informaroes e ideias de toda especie, sem considerariio de fronteiras, sob forma escrita ou oral, impressa ou artistica, ou par qualquer outro meio a sua escolha. 3. 0 exercicio das liberdades previstas no paragrafo 2 do presente artigo comporta deveres e responsabilidades especiais. Pode, em conseqiiencia, ser submetido a certas restriroes, as quais, todavia, devem ser expressamente previstas em lei e ser necessarias para: a) garantir o respeito dos direitos ou da reputariio dos outros;". 15 "Art. 13. [... ] 1. Toda pessoa tem direito aliberdade de pensamento e de expressiio. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informaroes e ideias de toda natureza, sem considerariio de fronteiras, verbalmente ou par escrito, ou em forma impressa ou artistica, ou par qualquer outro meio de sua esco/ha. 2. 0 exercicio do direito previsto no inciso precedente niio pode estar sujeito a censura previa, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessarias para assegurar: a) o respeito aos direitos ou a reputariio das demais pessoas;".
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o direito de resposta, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas (art. 5. 0 , incisos IV, V e X). 16 Eis a conclusao de que nao pode a liberdade de comunica<;ao ser invocada para conspurcar a honra alheia, violar a imagem, a intimidade ea vida privada das pessoas; nao pode, enfim, servir de instrumento de agressao a dignidade humana. Impende, ainda, enfatizar que, nos dias atuais, quando falamos em liberdade de imprensa e informa<;ao, estamo-nos reportando a todos os meios de comunica<;ao, nomeadamente os audiovisuais, pois jornal, radio e televisao encontram-se interligados, funcionando em cadeia, uns repetindo os outros. De feito, e preciso entender que a liberdade de comunica<;ao nao se situa mais apenas no campo dos direitos fundamentais, porem, como ja se disse, ela assume tambem, sobretudo a audiovisual, o carater de poder. De conseguinte, como leciona Jorge Miranda, "par imperativo de Estado de Direito e de regime demo-
cratico pluralista, esse poder deve ser dividido e nem pode ser absorvido pelo poder politico de conjuntura (o do governo em jun9oes), nem par qualquer poder social (designadamente, o econ6mico)." 17 Lamentavelmente, na pratica, nao tern prevalecido a lucida li<;ao do mestre lusitano, pois cada vez mais e patente a concentra<;ao dos meios de comunica<;ao nas maos de grandes grupos economicos, corn forte tendencia ao monop6lio da informa<;ao, transmitida atraves de redes, onde todos os 6rgao de imprensa afirmam a mesma coisa sobre urn determinado acontecimento, sacrificando a liberdade do receptor de formar o seu proprio convencimento sobre o fato em questao. Pois, se nao existe pluralismo de correntes ou de opini6es, como pode o cidadao fazer seu juizo critico a respeito daquilo que esta sendo veiculado pelos jornais, radio e televisao de modo uniforme? Ele tende, diante dessa situa<;ao, a acreditar como sendo verdadeiro aquilo que a midia diz que o e, muito embora possa nao o ser. Ora, como acentua Ignacio Ramonet, "o {mica meio de que dispoe um cidadiio
para verijicar Se uma injorma9fi0 e verdadeira e conjrontar OS diSCUYSOS dos dijerentes meios de comunica9iio. Entiio, se todos afirmam a mesma coisa, niio resta mais do que
16 Sabre o tema, Edilsom Farias pontifica: "A Constituiriio reconhece a plena liberdade de informariio jornalistica em qualquer veiculo de comunicariio social, mas detennina expressamente a observancia da honra, da intimidade, da vida privada e da imagem da s pessoas (art. 220, 搂 1. 0 ). Os direitos personalfssimos mencionados estiio, indubitavelmente, entre as mais significativas restriroes aliberdade de expressiio e comunicariio e a liberdade de comunicariio social. A importilncia desses direitos coma restriroes dec01路re da colisiio, assaz freqiiente, entre eles e essas liberdades no plana da pratica social." (Op. cit., p . 249-250). Quanta ao direito
de resposta, este tambem constitui urn limite a liberdade de imprensa, tendo par objetivo defender os cidadaos, na medida em que a imprensa, coma afirma Vital Moreira, "se perfilha coma um poder susceptivel de atentar contra os direitos e interess~s dos cidadiios". (In Direito de resposta na comunicariio social. Coimbra: Coimbra Editora, 1994, p. 20). 17 Manual de Direito Constitucional. 2." edi<;ao. Coimbra: Editora Coimbra, 1993, tomo IV, p. 400.
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admitir esse discurso unico." 18 E o chamado nivelamento produzido pela sociedade de massas de que nos fala Xifra-Heras, o qual nao equivale, segundo ensina, "a igualdade de todos em tudo, mas a dissolu9iio e mobilidade do individuo, totalmente imerso no way of life imposto pelo 'sistema' e alimentado pelos meios de comunica9iio." 19 0 homem acaba se tornando, consoante proclama o publicista espanhol, urn ser "heterodirigido", no sentido de submeter sua conduta aos limites uniformizadores proclamados pelos meios de informac;ao e coletivamente aceitos. Dai enfatizar a necessidade de os poderes publicos se preocuparem corn a informac;ao e a formac;ao dos cidadaos, para que eles possam orientar-se e tomar posic;ao em face de uma opiniao publica que pode estar condicionada pelos meios de comunicac;ao e por press6es economicas competitivas.20 E o mais grave e que, na era da globalizac;ao neoliberal, que caminha celere sem observar qualquer parametro etico ou juridico e sem nenhuma preocupac;ao corn a promoc;ao do homem, corn o seu bem-estar material e espiritual, estamos a assistir, no mundo inteiro, a concentrac;ao brutal dos meios de comunicac;ao nas maos dos empresarios capitalistas, fazendo corn que a imprensa escrita e audiovisual seja dominada pelo pensamento de mercado, amesquinhando a nobre profissao de jornalista, cada vez mais fragilizada pelo medo do desemprego, o que a coloca a servic;o do capitaP1 Nessa contextura, as empresas de comunicac;ao, corn o natural objetivo de defender seus interesses financeiros e economicos, buscam ampliar sua influencia e seu poder sobre a sociedade e os governos contemporaneos. E nessa busca incessante, a midia, estruturada sob a forma capitalista, nao consegue exercer, como dizem Eros Grau e Belluzzo, "cam integridade sua fun9iio original de vigiar e criticar os
grupos que controlam o Estado." 22 Na atualidade, o conflito entre a imprensa e o poder toma dimensao inedita, conforme ensina Romanet, porque o poder nao e mais identificado s6 como poder politico e porque a imprensa, os meios de comunicac;ao de massa nao se encontram mais, automaticamente, em relac;ao de dependencia corn o poder politico; o inverso e o que quase sempre ocorre. 23 Neste ambiente, o poder se encontra em crise e disperso, estamos passando, segundo o citado autor, de urn poder vertical, hierarquico e autoritario, para urn poder horizontal, reticular e consensual, consenso este obtido, precisamente, pelas manipulac;oes da midia, a qual, por sua vez, perde sua missao civica de julgar e aferir os tres
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Cf. A Tirania da comunica~iio. 2." edi<;ao. Petr6polis, Editora Vozes, 2001, p. 45. Op. cit., p. 48. Op. cit., p. 299 A esse respeito, cf. RAMONET, Ignacio. Op. cit., p . 41 Op. cit., p. 111. Op. cit., p. 39.
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poderes politicos tradicionais concebidos por Montesquieu (Legislativo, Executivo e Judiciario ). Assim, embora se reconhe<;a que a comunica<;ao de massa e indispensavel a urn governo que se pretenda democratico, pois ninguem nega que a informa<;ao continua sendo essencial a uma sociedade livre e pluralista, tendo em vista nao haver real democracia nem homens livres sem uma boa rede de comunica<;ao e de informa<;6es descomprometidas, o que se percebe e a existencia de uma confusao entre a midia dominante e o poder politico, a ponto de criar nos cidadaos uma suspeita: se a fun<;ao critica da imprensa e, nos tempos atuais, de fato cumprida. A midia tern interferido profundamente na a<;ao dos poderes politicos, principalmente no Executivo e no Legislativo. 0 primeiro, altamente comprometido em suas prerrogativas pela ascensao do poder econ6mico e financeiro, no qual se inserem os detentores das grandes empresas de comunica<;ao. 0 segundo e talvez o mais midiatico dos poderes, a influencia da midia em suas atua<;6es e decis6es e uma realidade incontestavel. Porem, a midia nao se contenta unicamente corn sua poderosa influencia nos dois citados poderes politicos, ela igualmente tenta interferir nas decis6es do Poder Judiciario, o que representa urn grave risco para a democracia, para a garantia do resguardo dos direitos fundamentais da p essoa humana e para a propria liberdade. Pe<;o licen<;a, pois, para me estender urn pouco mais nesse aspecto, em especial no que toca ao processo penal/4 no qual tern sido comum os meios de comunica<;ao condenarem antecipadamente seres humanos, num verdadeiro linchamento, em total afronta aos principios constitucionais da presun<;ao de inocencia, do devido processo legal, do contradit6rio e da ampla defesa, quando n ao lhes invadem, sem qualquer escrupulo, a privacidade, ofendendo-lhes os sagrados direitos a intimidade, a ima gem e a honra, assegurados constitucionalmente.25 E o que e pior, contando, na maioria das vezes, corn a colabora<;ao
24
A respeito do tema vede o nosso "Midia, processo penal e dignidade hum ana". Boletim IBCCrim, ana 11, edi<;ao especial, out./2003, p . 2-3. Consultar, igualmente, "Liberdade de comunicac;ao e dignidade humana", in RoCHA, Fernando Luiz Ximenes & MoRAES, Filomeno. Direito constitucional contemporanea - Estudo em homenagem ao professor Paulo Bonavides. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 159-172. 25 A esse prop6sito, eloqi.ientes sao palavras proferidas par Antonio Magalhaes Gam es Filho, em seu discurso de posse coma professor titular da Faculdade de Direito da USP, quando, em certo trecho, afirma: "A cena judiciaria e deslocada do ambiente sereno da sala de audiencias - em que a verdade processual eestabelecida racionalmente par meio das provas e ap6s o debate contradit6rio entre as partes - para espafOS dos meios de comunicafiiO onde se apresenta ao leitor ou telespectador uma verdade imediata e emocional. 0 juiz independente e imparcial, que precisa explicar na mo tiva~iio das senten~as as suas razoes de decidir, e substituido pelo jornalista, s6 comprometido cam a repercussiio do caso" . (Apud ToRON, Alberta Zacharias. lnviolabilidade penal dos vereadores. Sao Paulo: Saraiva, 2004, p. 67).
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do Ministerio Publico e de delegados e, nao raro, de magistrados, os quais tern 0 clever profissional de nao expor a imprensa suspeitos e acusados. Alias, essa pratica odiosa tern ido mais alem, pois e corriqueiro presenciarmos, ainda na fase da investiga<;ao criminal, quando sequer existe urn processo penal instaurado, meros suspeitos serem submetidos a toda sorte de humilha<;ao pelos 6rgaos de imprensa, em especial nos programas sensacionalistas da televisao, violando escancaradamente, como registra Adauto Suannes, "o constitucionalmente prometido respeito a dignidade da pessoa humana". 26 Ao mesmo tempo esquecem que, como pontua o citado autor, "a
finalidade do inquerito policial niio e nem pode ser a de causar vexames a pessoas, donde deve a autoridade policial agir cam 0 maxima de discri~iio, pais tudo 0 que ela tern em miios e uma hip6tese de trabalho, uma classifica~iio provis6ria (seja quanta ao enquadramento dos fatos, seja quanta ao possivel autor deles) que somente ap6s o crivo do Ministerio Publico e a concordancia do Poder Judiciario justificara os inconvenientes de um processo judicial". 27 Nao foram poucos os inocentes que "nessa era do escandalo", de que fala o publicitario Mario Rosa/8 se viram destruidos, vitimas desses atentados, que provocam efeitos tao devastadores quanta irreversiveis sobre os bens juridicos pessoais atingidos. 29 De fato, temo-nos defrontado, no cotidiano, corn urn paradoxo curioso para o qual nos chama aten<;ao Marcio Thomaz Bastos: de urn lado, os 6rgaos de comunica<;ao de massa cobram, de maneira implacavel, etica da sociedade e de seus atores; de outra banda, no anseio do furo e da divulga<;ao de materia sensacionalista, agem corn pouca ou nenhuma etica,30 difamando pessoas, sem medir as conseqtiencias de seus atos, olvidando que tais abusos nao servem aos fins da informa<;ao, a qual, segundo ensina Gilberto Haddad Jabur, "deve
acrescentar, educar, desvendar, elucidar e esclarecer, e niio ferir, ofender, vulgarizar, saciar a indiscri~iio alheia ou o desejo sovina de tantos" _31 Chega-se ao ponto em que, consoante enfatiza Luigi Ferrajoli, "a san~iio mais temida na maior parte dos processos penais niio e a pena - quase sempre leve
26
Cf. Os fundamentos eticos do devido processo penal. Sao Paulo: Revista dos Tribunais, 1999,
p. 159. 27
Idem, p. 158. A respeito desses casos expostos na midia de forma sensacionalista, vede RosA, Mario. Era do esciindalo. 3.' edi<;ao. Sao Paulo: Gera<;ao Editorial, 2004. 29 Entre esses inumeros casos, tornou-se emblematico o da Escola Basica de Sao Paulo, em que professores foram acusadas de abuso sexual contra crian<;as. A midia, sem esperar pelos resultados das investiga<;6es, condenou antecipadamente tais pessoas, que, ao final, concluiu-se tratar-se de cidadaos inocentes, os quais ainda hoje amargam a pena da execra<;ao publica e exclusao social que lhes foi imposta pelos meios de comunica<;ao e pelos policiais encarregados da apura<;ao dos fatos. 3 째Cf. "Juri e midia". In TucCI, Rogerio Lauria. Tribunal do juri- Estudo sabre a mais democnitica ins titui~iio juridica brasileira. Sao Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 114. 31 Op. cit., p. 189. 28
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ou nii.o aplicada -, mas a difama(ii.o publica do imputado, que tem nii.o s6 a sua honra irreparavelmente ofendida mas, tambem, as condi9oes e perspectivas de vida e de trabalho; e se hoje pode-se Jalar de um valor simb6lico e exemplar do direito penal, ele deve ser associado nii.o tanto a pena mas, verdadeiramente, ao processo e mais exatamente a acusa9ii.o e a amplifica(ii.O operada sem possibilidade de defesa pela imprensa e televisii.o. Desta forma retomou-se nos nossos dias a antiga fun(ii.O infamante da interven9ii.o penal que caracterizou o direito penal pre-moderno, onde a pena era publica e o processo corria em segredo. Apenas que a berlinda e colar de ferro hoje foram substituidos pela exibi9ii.o publica do acusado nas primeiras paginas dos jornais ou na televisii.o, e isto nii.o ap6s sua condena(ii.O mas ap6s a sua incrimina(ii.O ainda quando 0 imputado e presumido inocente". 32 I
Nao se pode negar, por outro lado, que os jufzes, na qualidade de integrantes do ambiente social em que vivem, padecendo de vfcios e virtudes como seres humanos que sao, sofrem influencia dos meios de comunica<;:ao de massa, sendo quase impossfvel pretender-se que aquela serenidade absoluta que se espera dos magistrados no exercfcio de sua sagrada fun<;:ao de julgar nao seja abalada diante da a<;:ao poderosa da mfdia. A esse prop6sito, interessante e a coloca<;:ao feita pelo Desembargador Ranulfo de Melo Freire, em seu discurso de despedida do hoje extinto Tribunal de Al<;:ada Criminal de Sao Paulo, oportunamente lembrada por Sergio Salomao Shecaira, em artigo publicado sob o tftulo "Mfdia e crime", verbis: "Pais em que
e incipiente a Jorma(ii.O de uma sociedade de estrutura democratica (37 e 64, antes de exce(ii.O, Jiguram apenas coma momentos expressivos de um regime de arbitrio) nii.o e Jacil o ministerio de julgar. Com o ouvido e a vista empanados de som e imagens (radio e canal de televisii.o) pregando o exterminio indiscriminado do marginal, nii.o sei com que armas o meu Tribunal de Al9ada Criminal (nii.o s6 agora mas desde a gera9ii.o de juizes que integram o Tribunal de Justi(a) p6de e pode travar a luta pela consecu(ii.o do devido processo legal. E ja se observou que a medida que cresciam a violencia e o arbitrio, o TACRIM - sem se dar conta, talvez - ampliava, nos julgamentos, os mecanismos de defesa". 33 Em verdade, nao e incomum assistirmos a edi<;:ao de decretos de prisao preventiva ou temporarias, ou a decis6es denegat6rias de liberdade provis6ria fundadas tao-somente na repercussao dada ao fato criminal pelos 6rgaos de comunica<;:ao social, sem que seja demonstrada, corn base nos elementos constantes dos autos, a real necessidade da ado<;:ao da medida extrema da segrega<;:ao cautelar. 34 32 Cf. Direito e raziio: Teoria do garantismo penal. Trad. ZOMER, Ana Paula et al. Sao Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 588. 33 Cf. "Midia e crime". In SHECAIRA, Sergio Salomao. Estudos criminais em homenagem a Evandro Lins e Silva - Criminalista do seculo. Sao Paulo: Editora Metodo, 2001, p. 362. 34 Sobre o assunto, confira o nosso "A Constitui~ao ea prisao penal ca utelar", In Revista dos Tribunais, a. 87, v. 749, mar~o de 1998, p. 502-519.
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Todavia, essa nao deve ser a postura do magistrado, sob pena de abdicar de sua independencia e imparcialidade, ensejando o descn?dito no Poder Judiciario como institui<;ao promovente e restauradora da paz social. Logo, e preciso ter a coragem de nao se contaminar, na sua atividade jurisdicionat pelo chamado "clamor publico", orquestrado por campanha ruidosa encetada pela midia sobre determinado caso criminal.35 Deveras, a garantia dos direitos fundamentais, para que nao passem de meras abstra<;6es, ha de ser confiada a juizes e tribunais independentes, pois, como preconiza Cappelletti, "as proclama96es (nacionais ou supranacionais) dos
direitos fundamentais cessam de ser meras declara9oes filos6ficas no momento em que sua atua9iio e confiada, em concreto, aos tribunais ... ". 36 Entretanto, dita assertiva nao pode ser tomada por verdadeira se o Judiciario nao corresponder
a confian<;a nele depositada, por indigencia de preparo ou de comprometimento corn a relevante missao que lhe e reservada, a qual exige do magistrado muita humildade, serenidade e, acima de tudo, bastante coragem, pois, consoante acentua Augusto Duque: "Nenhum homem, se pensasse no que e necessaria para julgar outro homem, aceitaria ser juiz". 37 Ou, em outras palavras, como dizia Eduardo Couture, "no dia em que o juiz tiver medo, nenhum cidadiio podera dormir
tranqiiilo ." Impende, por conseguinte, manter viva a celebre frase "M tribunais em Berlim", o que significa, no dizer de Luigi Ferrajoli, que "tem de haver um juiz independente que possa vir para reparar as injusti9as sofridas, para tutelar o individuo mesmo quando a maioria e ate a totalidade dos outros se coligam contra ele, para absolver, no caso de falta de provas, mesmo quando a opiniiio publica exige a condena9iio, ou para condenar, havendo prova, quando a mesma opiniiio publica e favoravel a absolvi9iio". 38
A esse respeito, assevera Ana Lucia Menezes Vieira o seguinte: "uma campanha feita pela imprensa sabre um caso criminalniio deve, par si s6, influir negativamente no animo do juiz togado, atingindo sua imparcialidade. Cabe a ele, coma tecnico, cam formariio profissional voltada para a decisiio de conflitos, a coragem de subtrair-se ao estrepito midiatico e niio se deixar levar, no seu mister, pelos impetos alimentados no clamor popular, pelas paixoes contidas no eco da voz corrente da opiniiio publica, a qual se sustenta par impressoes pe1junct6rias que lhe transmitiu a imprensa". (Op. cit., p. 180). 36 Mauro Cappelletti, Juizes legis/adores? Trad. OuvEIRA, Carlos Alberta Alvaro de. Porto Alegre: 35
Sergio Antonio Fabris Editor, 1993, p . 66. 37 Apud BIITENCOURT, Edgar de Moura. 0 Juiz. 3." ed i~ao. Campinas: Millennium, 2002, p. 88. 38 Apud FRANCO, Alberta Silva. "0 Juiz eo modelo garantista". In Boletim JBCCrim n. 0 56, jul./ /1997, p. 2. Sobre esse ponto, recomendamos, ainda, a leitura de pertinente artigo de Rogerio Lauria Tucci, no qual prestigia a corajosa atua~ao de urn jovem magistrado que, indiferente a pressao da midia, negou pedido de prisao preventiva a acusado da pnitica de crime de natureza tributaria, mostrando, no dizer do autor "invejtivel independencia, louvtivel seguranra e firme consciencia jurfdica, ao expressar, corn a conseqiiente naturalidade, os argumentos detenninantes da conclusiio negativa". Cf. "Liberdade, opiniao pt'tblica e independenc ia do juiz" . Boletim IBCCrim n. 0 59, out./1997, p. 15.
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Realmente, na condi<;ao de 6rgao indispensavel a efetiva<;ao dos direitos fundamentais, o magistrado deve estar, diuturnamente, cioso do clever funcional de preserva<;ao da dignidade das partes e demais sujeitos processuais presentes na demanda, independentemente da pressao exercida pela "mass media". Semelhante incumbencia, sabemos, nao e de facil concretiza<;ao, mas quando bem desempenhada, alem de realizar no plano pratico os valores constitucionais, enaltece o Poder Judiciario, conferindo-lhe prestfgio popular como entidade geradora de justi<;a e restauradora da ordem e pacifica<;ao social. E nesse afa de bem exercer a fun<;ao jurisdicionat coibindo ou anulando os efeitos da indevida intromissao da midia nos trabalhos judiciais, deve o juiz utilizar-se de todos os instrumentos processuais colocados a sua disposi<;ao, atuando corn firmeza e independencia, de modo a inibir a forte influencia exercida pelos veiculos de comunica<;ao de massa, que, na maioria das vezes, exige, indevidamente, a tomada de decis6es sumarias e atentat6rias as garantias processuais,39 conquistas das quais nao podemos abrir mao, sob pena de estarmos, como enfatizam Eros Roberto Grau e Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, a tecer a corda que nos enforcara, e, agindo assim, acentuam: "a mfdia 'analfabetiza' o povo, incapaz de construir os espar;os publicos indispensaveis ao exerdcio
da praxis democratica." 40 Nesse panorama de ideias, facil e perceber que nao estamos a nos colocar contra o direito de bem informar e a liberdade de comunica<;ao. Muito pelo contrario, por forma<;ao, sempre fomos urn intransigente defensor desses postulados democraticos; somos daqueles que, como Thomas Jefferson, entendemos ser preferivel "jornais sem um governo a um governo sem jornais". 41 A divulga<;ao operada pelos meios de comunica<;ao, corn certeza, exerce papel de fundamental importancia numa sociedade livre e pluralista, pelo que a liberdade de expressao e comunica<;ao constitui principio impostergavel num Estado que se pretenda democratico e de direito, p01路quanto e exatamente na
39 Sobre o tema, Ant6nio Magalhaes Gomes Filho leciona: "[ .. .]a obrigatoriedade de apresentariio das razoes da decisiio representa, ecerto, um forte estfmulo aefetiva imparcialidade e ao exercicio independente da funriio judiciaria, impedindo escolhas subjetivas ou que constituam resultado de eventuais pressoes extemas. E. a exigi!ncia de explicitariio do iter decis6rio que induz a que nele apenas sejam considerados dados objetivos, ate porque e sempre dificil dissimular escolhas que foram resultado de motivos espurios ou de meros fatores subjetivos". (In A motivariio das decisoes penais. Sao Paulo: RT, 2001, p.99).
No mesmo sentido, Ana Lucia Menezes Vieira ressalta: "A fundamenta~ao dos atos judiciais constitui, sem duvida, uma seguranc;:a para o acusado que esta expos to, e, por vezes, prejulgado pelo rumor popular; para a acusac;:ao ea defesa que terao igual tratamento na produc;:ao e avaliac;:ao das provas; e porque nao dizer, para a opiniao publica - tambem destinataria das razoes que levaram o juiz a decidir -, a qual podera exercer o controle do poder estatal por meio dos julgamentos." (Op. cit., p. 185). 40 Op. cit., p . 108. 41 Cf. "Escritos politicos" . Trad. CARVALHO, Le6nidas Gontijo de. In Os Pensadores. Sao Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 41.
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imprensa que sao elaboradas e difundidas opini6es, de modo que ela, como assinala Konrad Hesse, "e urn fat or essencial na jorma9iio da opiniiio publica. Em
conexiio corn isso, a imprensa e urn dos meios_ mais importantes de critica e controle publico permanente." 42 0 que nao podemos aceitar e essa pnitica desrespeitosa
a dignidade humana, vista que ninguem perde a qualidade de ser digno por haver cometido urn delito, por mais horrendo que este possa ser, tampouco pela infelicidade de encontrar-se segregado. Nao se pode, igualmente, contemporizar corn a influencia nefasta que a midia possa ter na investiga<;ao criminal ou na propria instru<;ao processual e no julgamento efetuados pelos orgaos do Poder Judiciario, mediante pressao que venha a comprometer a independencia funcional dos agentes pti.blicos encarregados do exercicio dessas atividades, prejudicando o objetivo maior da persecw;ao penal, consistente na apura<;ao da verdade real, pois, desse modo, estar-se-ia sacrificando nao so a justi<;:a como tambem a liberdade. A guisa de conclusao, reiteramos a importancia de os poderes pti.blicos investir na informa<;:ao e na forma<;:ao dos cidadaos, de maneira que estes possam firmar sua propria opiniao em rela<;:ao a determinado fato, sem a necessidade de se tornarem refens da midia, e assim, tenham condi<;:6es de contribuir corn o processo democratico, nos termos da Constitui<;:ao. A midia, por sua vez, nao pode colocar-se acima da lei, alem do que, deve fazer sua propria critica e aceitar a critica alheia, nao olvidando ser imperiosa a ado<;:ao de urn posicionamento etico tal como ela exige da sociedade e de seus agentes. E preciso, ainda, estabelecer controles democraticos sabre a poderosa a<;:ao da midia, nao esquecendo que os meios de comunica<;:ao audiovisuais sao concess6es do poder publico, por isso mesmo, hao de ser regulados, sem que isso implique qualquer especie de censura, o que e inaceitavel no regime democratico. Por outro lado, impende nao perder de vista que a liberdade de imprensa nao pertence aos orgaos de comunica<;:ao, nem aos jornalistas, porem ao povo. Por igual, a imprensa nao deve afastar-se de seu compromisso corn a informa<;:ao verdadeira, para prestigiar tao-so aquela interessante ao mercado, que dita a conduta dos meios de comunica<;:ao, estruturados sob a forma capitalista, sacrificando sua missao democt路atica e republicana de bem informar ao povo, fonte legitima de todo e qualquer expressao de poder. Igualmente, nao podem ficar os membros dos tres Poderes do Estado submissos a a<;:ao vigorosa da midia, mormente os que comp6em o Judiciario, pois, se assim procederem, as proclama<;:6es (nacionais e supranacionais) dos direitos fundamentais nao passarao de meras declara<;:6es retoricas ou de simples cartas de boas inten<;:6es, despidas de qualquer efetividade. 42
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Op. cit., p.305.
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E fundamental, ademais, que a Polfcia, o Ministerio Publico e a Magistratura se conscientizem de que nao podem transigir corn a exposi<;ao publica de simples suspeitos e acusados, os quais se encontram devidamente protegidos pela garantia constitucional da presun<;ao de inocencia. Por tudo isso, urge repensar o papel da comunica<;ao social, porquanto, a permanecer a situa<;ao atual, continuaremos todos, como diz Jose Paulo Cavalcanti Filho, "a ser vitimas impotentes e indefesas, reus infelizes perante o Grande Tribunal onisciente e onipotente da midia." 43 E mister, portanto, que os profissionais da area e as empresas de divulga<;ao de massa tenham o cuidado para nao transformar o remedio em veneno, destruindo a propria liberdade de imprensa, e nao esque<;am tambem de que, consoante li<;ao de Roger Pinto, "a liberdade criou a imprensa. E a imprensa niio deve se transformar na madrasta da liberdade". 44
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Op. cit., p. 96. Apud BAsTOs, Marcio Thoma z. Op. cit., p. 116.
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SUBSIDIOS PARA 0 ESTUDO DO DIREITO PROCESSUAL RECURSORIO NA AREA JUDICIAL COM ESPECIAL ENFASE NO PROCESSO CIVIL
J.O. Cardona Ferreira
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SUBSIDIOS PARA 0 ESTUDO DO DIREITO PROCESSUAL RECURSORIO NA AREA JUDICIAL COM ESPECIAL ENFASE NO PROCESSO CIVIL J.O. Cardona Ferreira 1
SUMARIO: 0 Direito Processual Recurs6rio, mormente o Civil, necessita de uma verdadeira simplifica<;ao, nao de simples aperfei<;oamentos. 0 monismo recurs6rio e a base de uma reforma. A recorribilidade e o acesso ao S.T.J. sao temas incontornaveis.
I.INTRODUC::AO 1.1. No momento em que este texto e escrito, esta em marcha urn debate publico, acerca da reforma do sistema de recursos judiciais, algo redutoramente centrado nas areas civel e penal, decorrente ate ao fim de 2005, corn sess6es de trabalho em varias Universidades e que, tanto quanto sabemos, tiveram a seguinte programa<;ao inicial, todas em 2005: -
17 07 22 21 15
de de de de de
Maio: Universidade Nova de Lisboa; Julho: Universidade do Minho; Setembro: Universidade do Porto; Outubro 2 : Universidade de Coimbra; Dezembro: Universidade de Lisboa.
A estas Universidades, juntou-se, em boa hora, a Universidade Lusiada de Lisboa, corn urn col6quio marcado para 22 de Novembro. Corn estes apontamentos, pretendi dar urn contributo para a pondera<;ao da referida tematica. Consequentemente, este texto serviu-me de guiao na interven<;ao que tive na sessao de debate na Universidade Lusfada de Lisboa. 1 Professor Convidado da Universidade Lusiada de Lisboa, Juiz Conselheiro Ex-Presidente do Supremo Tribunal de Justi~a, Presidente do Conselho de Acompanhamento dos Julgados de Paz. 2 Esta data acabou por ser alterada para outra posterior. 3 Embora ja nao esteja Juiz
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Mas, quer por forma<;iio, quer por deformar;iio funcional, este meu texto nao tern a dimensao cientifica que os audit6rios mereceriam. Corn efeito, natural e que, dedicado a Judicatura durante dezenas de anos, sendo ainda, essencialmente, Juiz 3, me tenha habituado a sentir, a pensar, a decidir, os casos concretos, e a procurar uma linguagem directa que nao s6 contivesse fundamenta<;ao mas, mais do que isso, a tornasse, tanto quanto possivel, simples, clara, acessivel a todos, sem grandes divaga<;6es. E e assim que continua a dedicar-me e a escrever sobre Justi<;a e Direito, mesmo quando abordo quest6es mais dificeis ou menos claras. I.2. 0 que eu possa dizer, sobre Direito Recurs6rio, sera, na linha que referi, quase esquematico. N a circunstancia, mais ainda do que por for<;a do modo habitual de escrever, acontece que, conforme ja reflecti, estes apontamentos nao sao mais do que isso e, destinando-se, tambem, a interven<;6es em col6quios, tern de ser concretos, directos e de dimensao tao reduzida quanto baste, face aos limites temporais de que e usual dispor-se. Como assim, de entre a multiplicidade de quest6es que poderia referenciar, focarei, apenas seis 4, quatro de caracter geral, duas especificas, naturalmente a partir de linhas orientadoras do livro sobre a materia que elaborei para efeitos academicos 5 : 1. 2. 3. 4. 5. 6.
Porque uma reforma do Direito recurs6rio; As diversidades recurs6rias judiciais; 0 dualismo ou o monismo recurs6rio; A recorribilidade; A interposi<;ao de recurso e as alega<;6es; A chamada uniformiza<;ao de Jurisprudencia.
Antes de abordar estas quest6es, devo frisar que, tendo feito parte de uma Comissao de Reforma do Processo Civil, sei que, basicamente, qualquer reforma depende dos principios que sejam assumidos. Se os principios forem claros, as solu<;6es casuisticas acabarao por aparecer corn principio, meio e fim. Dai a grande importancia que dou ao que chamo quest6es de caracter geral, mais rigorosamente principios. Mesmo as quest6es que rotulei sob n. 05 5 e 6 e que coloco em grupo de quest6es especificas, acabam por ter muito a ver corn principios. E, antes de concretizar, ainda urn esclarecimento. Sei, antecipadamente, que aquilo que defendo nao e tudo, igualmente, susceptivel de motivar decisao favoravel. Mas o que procuro parece-me possivel e desejavel. Embora, coma diria Pirandello, para cada urn, sua verdade. 4
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Alias e pelas ra z6es referidas, esquematicamente, mais coma alertas do que outra coisa. J.O. Cardona Ferreira, Guia de Recursos em Processo Civil, 3. 0 edi~ao, Coimbra Editora.
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II. PORQUE UMA REFORMA DO DIREITO RECURS6RIO ILl. Vale a pena? que quem anda, realmente, pelos Tribunais Judiciais, sabe que os problemas nao come<;am, nem se situam, principalmente, nas fases recurs6rias. Os maiores problemas - todos as praticos forenses o sabem - estao na l.a instancia, em termos processuais, corn regulamentarismo e burocracismo exagerados, principalmente na area civilfstica, corn leis organizativas a precisarem de reconsidera<;ao, corn toda a estrutura a necessitar de refunda~iio. E que isto do Direito vivido e algo que, por defini<;ao, s6 na vida se realiza verdadeiramente. E, em Portugal, reformas, mais ou menos parcelares, dispersas, minis e, ate, contradit6rias, tern havido muitas; mas, verdadeira refunda(:iio, que abarque as varias vertentes estruturais do foro judicial, em 9 seculos de Hist6ria, s6 houve uma, no seculo XIX, ap6s o triunfo do Liberalismo, gra<;as a uns poucos homens de genio. Mas, se e verdade que os maiores problemas estao na fase da primeira instancia- niio obstante o muito que, ali, se trabalha- a isso, acrescem as delongas, quantas vezes injustificadas, das fases recurs6rias, ja de si complexas, e dos expedientes e abusos a que se prestam.
E certo
Logo, as fases recurs6rias devem ser revistas e simplificadas, tanto quanta passive/, mesmo que, simultaneamente, o niio sejam as fases da 1" instancia. Tudo releva - tambem, ou principalmente, aqui - dos principios de que se parta, conforme aflorei. E nao podemos esquecer, para sermos realistas que, desde logo nestas materias, ha principios que nascem contradit6rios mas que, na vida real, tern de ser harmonizados. Refiro-me, basicamente, a duas ideias que, hoje, reluzem em todos os textos pertinentes tantas vezes apresentadas como modernas e que, em rigor, vem de sempre, embora, na actualidade, tenham, efectivamente, urn vigor incontornavel:
- o principio do processo equitativo; - 0 principio do prazo razoavel. - Alias, a meu ver, este e urn corolario daquele. E, isto, significa que a harmoniza<;ao e desejavel, possfvel e 16gica. Embora por outras palavras, permita-se-me que recorde 6 que, ja nos alvores do seculo XV, o Infante D. Pedro 7 escrevia, de Bruges, a seu irmao D. Duarte, que viria a ser Rei, e lhe dava conta dos males da Justi<;a centrados
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Como tantas vezes tenho feito. 0 que a "vilanagem" viria a matar na batalha de Alfarrobeira.
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em dois p6los: o rigor e a oportunidade, ou, alias, a falta de urn e de outro, naquele tempo. Corn efeito, do mesmo passo que frisava dtividas sobre o rigor material, terminava essas observa<;6es corn a impressiva expressao: " ... aquelles que tarde vencem ficam vencidos" 8 . Hoje, os principios do processo equitativo e do prazo razoavel sao expressos por relevantes textos legislativos internacionais9 e nacionais 10 e pela Doutrina 11 , como pela Jurisprudencia. Que tern isto a ver corn recursos? Tern tudo porque, a meu ver, o principio da equidade - ou seja, a aten<;ao ao equilfbrio das posi<;6es das partes e a viabiliza<;ao de correctas decis6es dos casos concretos, quer em termos pessoais, quer em termos sociais - implica que as decis6es, porque humanamente faliveis, sejam passfveis de recurso, isto e, de reconsidera<;ao; mas o sentido do prazo razoavel motiva que as dtividas se nao eternizem, as reconsidera<;6es sejam tao celebres quanto possfvel, e nao mais que as indispensaveis. Caso contrario, em vez de urn, porque nao dois ou tres, ou quatro, ou vinte recursos, etc., etc? 0 direito a segunda opiniao nao deve confundir-se corn a inseguran<;a na defini<;ao de direitos e obriga<;6es que, substancialmente, se traduziria, no fundo, por denega<;ao de Justi<;a. Sem necessidade de mais considera<;6es, basta pensar que nada asseguraria que, ao 20. 0 recurso, a causa ficasse melhor decidida do que atraves da senten<;a inicial, mormente num sistema como o portugues, sabido que e, fundamentalmente, nos Jactos que as causas se clarificam e e hem mais seguro ver Jalar (como na 1.â&#x20AC;˘ instancia) do que ouvir o que se falou .
Conclusiio: recursos, sim; demasiados, niio. Donde, uma reforma que tenda a reformular os sistemas recurs6rios na base
dos dais principios que Jicam aflorados tera, sempre, toda a
justifica~iio.
Ill. AS DIVERSIDADES RECURSORIAS JUDICIAIS Embora, desde pouco depois de 1974, os Tribunais Judiciais nao incluam s6 os cfveis e os criminais mas, tambem, os laborais, transitados que foram do ultrapassado mundo dito corporativo 12 , hoje corn competencia especializada 8
J.P. Oliveira Martins, Os Filhos de D. Joao I, 396. Designadamente, Declara.;ao Universal dos Direitos do Homem, de 1948 (art. 0 10.0 ), Conven.;ao Europeia dos Direitos do Homem, de 1950 (art. 0 6. 0 ), Tratado Constitucional da Uniao Europeia de 2004 que, ratificado ou nao, nao impede a subsistencia da Carta dos Direitos Fundamentais, Parte II do referido Tratado, art. 0 107; 10 Art.0 20. 0 da Constitui<;ao da Republica Portuguesa. 11 V.g. Lebre de Freitas, Introdu.;ao Ao Processo Civil, 95. 12 Veja-se, v.g. a Lei n. 0 82/77, de 06.12 (arts. 56, 65 e sgs.) e, dando urn salto no tempo, a Lei 0 n. 3/99 (arts. 78 e 85 e sgs.) 9
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tripartida (dvel, contravencional e contra-ordenacional) e claro reflexo nas tres Sess6es basicas dos Tribunais Superiores (Civeis, Penais e Sociais), as vezes continua a expressar-se, redutoramente, o mundo judicial apenas bi-partido em dvel e criminal. Todavia, e seguro que o luxo normativo portugues vai ao ponto de haver c6digos de Direito Processual diferentes para os sectores dveis, criminais e laborais, corn regras pr6prias e, quantas vezes, desnecessariamente divergentes. A meu ver, ressalvando a ponderac;ao do que, inevitavelmente, provoque nuances normativas, posto que o Direito processual e instrumental do substantivo, penso que uma das apostas convenientes deve ser no sentido de, tanto
quanta possfvel, ainda que nem sempre seja facil, se deve caminhar para a identijica9iio dos tres Direitos fudiciais Recurs6rios, coma embriiio de um futuro C6digo de Direito Processual Judicial . Algo como a extrapolac;ao daquilo a que o C.P.T. ja vai chamando "Direito Processual Comum" 13 . Estou a pensar, brevitatis causa, por exemplo, no regime monista existente no Direito Processual Penal, e na simultaneidade da interposic;ao alegac;6es ja existente no Direito Processual PenaP 4 e no Direito Processual LaboraP 5 â&#x20AC;˘ Mas, no Direito Processual Civil que tern teimado em ser, dos tres, o mais conservador e de recurso e de apresentac;ao de avesso a evoluir realmente, continua a vigorar o regime dualista e ainda existem momentos diferenciados para interpor recurso e para alegar 16 . Adiante voltarei a estas quest6es. E o que e mais curioso - negativamente! - e que o Direito Processual Civil, sendo o mais formalizado e passadista, e o paradigma, aquele que continua a assumir-se como o subsidiario dos outros 17 ! Ora a - a meu ver, desejavel e possivel - aproximac;ao dos tres Direitos Processuais Judiciais deve ser feita corn objectivo simplificador. 0 que vale por dizer que as linhas de rumo poderao (deverao) advir, em grande parte, do Direito Processual Penal e do Direito Processual Laboral. 0 que nao e mais possivel e pensar-se que e possivel modificar o Direito Processual Civile o Direito Processual Penal sem se considerarem as implicac;6es que isso tera no Direito Processual Laboral; e, mais, sem se ponderar o que ja acontece no Direito Processual Laboral, melhor do que no Direito Processual Civil. Dou, ainda, dois tipos de exemplos, para alem do que referi quanta a simultaneidade de interposic;ao de recurso e de alegac;ao, que ja acontece no foro laboral, mas nao no civil.
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Art." 1." n." 2 e) do C.P.T. Art." 411." n." 3 do C.P.P. 15 Art." 81 n." 1 do C.P.T. 16 Por exemplo, arts. 676." n." 2 e 698." n." 2 do C.P.C. 17 Art." 4." do C.P.P., art." 1 n." 2 a) do C.P.T. 14
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Por urn lado, o Laboral sofre o reflexo, a meu ver negativo, do regime dualista, vigente no Processual CiviP 8â&#x20AC;˘ Por outro lado, o CPT resolve de uma forma muito mais simples e clara do que o CPC a questao do efeito de recursos ainda ditos de apela<;:ao ou agravo 19 . Outrossim, nao pode esquecer-se a importancia social do Direito Processual Laboral, na vida das pessoas singulares e das empresas, mormente em epoca de "vacas magras" como e a actual. Ha que assumir, na vida real, que o Direito e, em especial, o Direito do Trabalho, efundamental para a Economia 20 â&#x20AC;˘ 0 que tambem e verdade em sede recurs6ria. Donde, coma poder esquecer, para efeitos da reforma em estudo, o que respeite ao Direito Processual Laboral? Obviamente, simplifica<;:6es nao sao o mesmo que facilitismos. Mas ha que assumir que a simplifica<;:ao, bebida ora num, ora noutro dos tres campos judiciais, tern seguras causas-finais, mormente duas que considero incontroversas: Por urn lado, deve legislar-se, tanto quanta possivel, para os cidadiios comuns compreenderem aquilo que podem e devem fazer, e nao apenas os peritos da normatividade, nao s6 para que os cidadaos comuns saibam coma podem ou devem agir ou pode ou deve agir-se em seu name, de forma a ter-se bem no<;:ao dos limites de uma velha maxima do tempo em que as Leis eram muito menos e pouco abrangentes - "a ignorancia da Lei nao aproveita a ninguem" - para cuja razoabilidade ha que ter, quantas vezes, tanta actua<;:ao cum grana salis; e, outrossim, mais facilmente compreenderem o que decide quem tern de decidir casuistic amen te. E, por outro lado, quanta menos se formalizar a normatividade, mais se podera deixar margem a Justi<;:a do caso concreto, no fundo a criatividade decis6ria, porque siio os casos concretos que mais falam as pessoas em cujo name os Juizes julgam21, nao o sao tanto as abstrac<;:6es normativas.
Sintetizando: deve aproximar-se, tanto quanta possivel, a normatividade recurs6ria em todos os campos judiciais, simplificando-a; sem esquecer que o campo laboral recebe influencia do civel e do penal, principalmente daquele, mas que tambem pode e deve influenciar as op<;:6es, corn a sua especial vertente de patente interven<;:ao social, mormente quando a interdisciplinaridade entre o
Direito e o mundo social, quer humano, quer empresarial, coma acontece no nosso tempo e no nosso espaf:O.
e um
dado incontroverso
V.g. art. 0 80. 0 do C.P.T. Art." 83." do C.P.T. e, v.g., arts. 693. 0 e sgs. do C.P.C. 20 Ainda que tantas vezes se esque~a que o mundo da Economia tambem influencia o Judicial. Quanto pior aquela, mais dificuldades neste. E a interactividade social. 21 Os Jufzes julgam em nome do Povo art. 0 202 n. 0 1 da CRP logo, em nome dos Cidadaos. 18
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IV. 0 DUALISMO E 0 MONISMO RECURSORIO Comecei por abordar algumas linhas de orienta<;ao, alias sem deixar de referir, logo, algum apontamento sobre consequencias concretas. E, na questao que, agora, abordarei, mais se acentuara a concretiza<;ao da basica orienta<;ao que sigo . Reconhe<;o que tenho, ainda mais nesta materia, alguma forma<;ao e, porventura, o que podera ser considerado uma deforma<;ao, como flui do que, inicialmente, referi. E que, depois de primeiros trabalhos genericos por meados dos anos 70 do seculo XX, aconteceu que, nos anos 80, tive o privilegio de muito aprender e, ja agora, de muito trabalhar, durante alguns anos, como elemento de uma Comissao de Reforma do Processo Civil, de cujos trabalhos sairam a chamada Reforma Intercalar22 - verdadeiramente essencial para se ajudar a impedir a ruptura do sistema judicial que, ja entao, estava iminente e - 0 que e, geralmente, ignorado - saiu urn Projecto completo de novo C6digo de Processo Civil, entregue ao, entao, Ministro da Justi<;a, em 1990 (depois de urn Anteprojecto publicado em 1988), que o Ministerio da Justi<;a veio a publicar, depois de muitas insistencias, ainda sob o titulo Anteprojecto, em 199323â&#x20AC;˘ Era urn texto discutivel, eu proprio o considerava, e considero, necessitado de reanalise, mas era 16gico, completo e uma relevante base de trabalho. Tudo isto vem ao caso, neste momento concreto destes apontamentos porque, entao, tudo come<;ava por se definirem principios, sem os quais se correria o risco de acabar desordenado; e, no concreto que, aqui e agora, importa, ja nessa altura se prop6s (embora sem exito) o termo do ultrapassado, complicado e complicativo regime civel recurs6rio dualista, optando-se, abertamente, pelo regime monista de recursos no Direito Processual Civel, corn reflexos, desde logo, no Direito Processual LaboraF 4â&#x20AC;˘ 0 que vem a ser isto? Decerto, todos o sabem. 22
DL 11. 0 242/85, de 07.07 Decerto esse Projecto de novo C.P.C. de 1990 (1993) justificava reconsidera<;ao, mas tinha muito de Lttil. Par exemplo, assumia, claramente, uma ruptura a favor do registo da prova que veio a dar origem, alias, redutoramente, ao DL n. 0 39/95, de 15.02, anterior o que, as vezes, parece esquecer-se a chamada reforma de 1995/1996 (DL n. 0 329-A/95, de 12.1 2, e DL n. 0 180/96, de 25.09) . Aquele grupo de trabalho era, todavia, uma Comissao porventura demasiado grande, o que clava origem a empenhadas e ex tensas discussoes. Todas as 108 ae tas estao, transp arentemente, publicadas nos Boletins do Ministerio da Justi<;a e, apenas, as primeiras 26 mereceram as honras de uma publica<;ao aut6noma em 1996. Refiro isto porque sao subsfdios relevantes para os estudos das tentativas de reforma do Direito Processual Civil que, apesar de recentes, parecem esquecidos. 24 Devido, em grande parte, a imagina<;ao fulgurante do Conselheiro Campos Costa, com qu em tive o gosto de trabalhar estreitamente, e a quem rendo a minha homenagem. 23
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Para simplificar uma materia desnecessariamente complexa, o regime dualista leva a que, nos recursos civeis ordinarios, passemos a vida a pensar se cabe apelac;ao ou agravo de l.a instancia 25, ou se cabe revista ou agravo de 2." instancia 26; e, o que e, normalmente, esquecido, ate nos recursos civeis extraordinarios, ha que saber se cabe revisao ou oposic;ao de terceiro (ainda que o "terceiro" possa nao ser terceiro, e apesar de a oposic;ao de terceiro levar, tambem, a uma revisao) 27 . 0 luxo recurs6rio civel e imenso! Devo reconhecer que, no Projecto de 1990 (1993) assumia-se o monismo quanta aos recursos dveis ordinarios, mas mantinha-se o dualismo nos dveis extraordinarios 28 , talvez porque a raridade destes lhes nao dava grande relevancia. Sintetizando ideias, continua a penar que o CPP esta no caminho certo e o niio estiio o CPC e o CPT. Nem se diga que nao e possivel e desejavel o regime monista. Se o e no campo penal, tambem o sera nos outros campos judiciais. Alias, o Projecto de novo CPC - embora aperfeic;oavel - apresentado em 1990, e publicado em 1993, demonstra, insofismavelmente, tal possibilidade. Corn o regime monista acabar-se-ia toda a controversia sabre objecto de recursos de apelac;ao, ou de revista, ou de agravo, que pode ser muito querida ao labor mental, mas e francamente ma em termos de vida real e de acesso civico ao Direito. De resto, deixem-me acrescentar alga que gostaria de nao empolar, mas que e patente. Se procurarmos, no extensissimo relat6rio do DL n. 0 329-A/95, de 12 de Dezembro, qualquer justificac;ao para nao se ter seguido o regime monista gizado em 1990, o que, verdadeiramente, se encontra e a assunc;ao de que isso, sim, seria uma reformula(:iio e nao urn simples acerto de pormenores e seria dificil. Dificil ou nao, sendo util, creio que o caminho e por ai. Nao releva acerto de pormenores mas, sim, refundac;ao, que seja ruptura se conveniente a necessaria simplificac;ao processual. Pais, neste campo 29 , o Direito anterior as Ordenac;oes que, nestas, se reflectiu, nao diferenciava, por exemplo, apelac;oes e agravos; o que fazia era, em termos de linguagem corrente, expressar-se no sentido de apela(:iio do agravado, isto e, nao diferenciando tipos de recursos, considerava, ao inves, a situac;ao do "agravado", ou seja, do prejudicado, para lhe viabilizar que "apelasse"30. Mas a distinc;ao formal entre sentenc;as ditas "definitivas" e, por outro 25
Arts. 691." e 733." do CPC Arts. 721." e 754." do CPC 27 Arts. 771." e 778." do CPC 28 Arts. 549." n." 2 do Projecto de 1990 (1993): "Os recursos dizem-se ordinarios ou extraordinarios; sao ordimirios a apela~ao e a revista; sao extraordinarios a revisao e a oposi~ao de terceiro". 29 Coma, por exemplo, no do assunto dos sistemas hoje ditos alternativos ou extrajudiciais. 30 V.g. Ordena~6es Afonsinas, Livro Primeiro, Titulos 38 e 108. 26
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lado, "interlocut6rias" veio a desembocar na complexidade de distin<;ao entre "apelo" e "agravo" e em consequente expressao popular que fez o seu tempo, e continua a fazer. E tempo, agora, mas de retornar a urn regime simples mais eficaz, mais uniforme: o monista. Ou por outras palavras e em conclusao deste ponto: ha que reformular o Direito Recurs6rio Judicial na base do regime monista, na linha do que se reflecte no CPP31 . E isto e, igualmente, valido para os recursos extraordinarios em que, a meu ver, se nao justifica distin<;ao entre revisao e oposi<;ao de terceiro porque uma coisa e a recorribilidade e, outra, a legitimidade recurs6ria 32 â&#x20AC;˘ E, em termos de pormenor, nao faz sentido o regime complicativo da aut6noma ac<;ao de simula<;ao (art. 0 779. 0 n. 0 1 do CPC) no recurso de oposi<;ao de terceiros, mais complexo do que na versao do CPC de 1939 (art. 0 780).
V. RECORRIBILIDADE V.l. 0 que vou dizer a seguir e controverso e, tendo duas sub-quest6es, reconhe<;o que podem parecer contradit6rias. Mas nao sao. Como ja reflecti, uma reforma deve decm-rer de prindpios claros. Ora, neste plano essencial, a que chamo recorribilidade, estou a pensar num principio que tern duas faces. Como digo num livro que escrevi sobre Recursos 33, o Direito Recurs6rio tern de conjugar exactidiio corn eficiencia, o que vale dizer que deve haver recorribilidade que viabilize uma segunda opiniiio, como na medicina, mas nao demasiadas opini6es, que fa<;am perder em eficiencia o eventual ganho de exactidao. Tudo isto sem esquecer que exactidiio pode ganhar-se ou nao. Mas, eficiencia, perde -se, sempre, mais ou menos, corn delonga. Aqui, penso nos avan<;os do CPP e, de certo modo, do CPT, em contraponto corn a redutora norma do n.0 1 do art. 0 678. 0 do CPC. 0 que significa isto? Simplificando raz6es: Aprendi, no primeiro julgamento dvel a que procedi, que as quest6es forenses podem ser mais ou menos juridicamente dificeis ou faceis. Mas, para quem as vive e sofre, cada causa, tenha o valor material que tiver, e a mais importante. E, outrossim, para tantos cidadaos, 100 euros podem ser mais importantes do que dez mil ou cem mil para outros. 31 32
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V.g. Arts. 399.0 e segs. do CPP Arts. 771. 0 e 778. 0 do CPC Gu ia de Recursos em Processo Civil, 3."
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Por outro lado, e exacto que a Constitui<;ao da Republica Portuguesa nao imp6e corn seguran<;a que haja recurso em todas as causas civeis34 . Mas nao e menos verdade que as raz6es constitucionais que apontam no sentido da recorribilidade 35 nao tern excep<;6es. Se, a isto, juntarmos que o valor Justi<;a nao e quantificavel, e uma certa abrangencia de fundo do principio da igualdade (art. 0 13. 0 da CRP), facilmente concluimos que todas as causas judiciarias deveriam ser recorrfveis - diria em urn grau. Ainda que em termos genericos mas acerca da relevancia do principio da igualdade, "carregado de sentido"; Maria da Gl6ria Garcia, Estudos sobre o Prindpio da Igualdade. Alias, os CPP 36 e CPT37 apontam neste sentido, mais aquele do que este, nao totalmente autonomizado . E, se virmos bem, o controverso art. 0 669 n. 0 2 do CPC, a pretexto de pretensas nulidades, 0 que faz e, na essencia, viabilizar impugna<;ao de decis6es, designadamente, em processos nao passfveis de recursos ordinarios, obrigando porem a invoca<;ao de graves erros do Juiz. Vem ao caso referir que o Direito Processual Civil espanhol s6 preve recurso de apela9iio da l. a para a 2. 3 instancia; mas tambem admite o chamado recurso de "reposici6n ante el mismo tribunal que dict6 la resoluci6n recurrida" "contra todas las providencias y autos no definitivos dictados por qualquer tribunal civil" (art 451. 0 da lei de Enjuicimento Civil). Ou seja, a Lei espanhola e mais aberta, mais frontal e mais geral que a regra de pretensas nulidades do n. 0 2 art. 0 669 do CPC, que vem a viabilizar recurso "de reposi6n" meio envergonhado. Diria que, do mal, o menos: antes recurso, sempre, para o Juiz recorrido, por decisao interlocut6ria, do que o sistema portugues. Mas penso que, embora cam o regime da reparabilidade a que se reporta o
art. o 744 do CPC, as decisoes jurisdicionais, par principio, deveriam admitir, sempre, recurso para Tribunal de 2." instancia, susceptiveis, necessariamente, de decisiio singular do Relator, nos termos do art. o 705 do CPC, quando de valor inferior a al9ada da 1" instancia. Mas sem reclama9iio, ate porque, se a l.a instancia decide singularmente, por maioria de razao o deve poder fazer, realmente, a segunda 38 â&#x20AC;˘
0 que tern permitido a considera<;ao jurisdicional da nao inconstitucionalidade do n. 0 1 do art. 678. 0 do CPC, ou seja, por razao negativa: a da nao imposi<;ao do contr<irio. V.g. Ac. do T.C. 360/ /2005, in D.R., 2." Serie, de 03.11.2005 35 Mormente o direito a processo equitativo (art.0 20. 0 n. 0 4 da CRP) e a piramide jurisdicional 0 [art. 209. 0 n. 0 1 a) e b) da CRP]. 36 V.g. art." 399. 0 do CPP 0 0 37 V.g. art. 79. do CPT 38 Ideia que ja ouvi defendida por ilustre Colega . 34
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Enfim, o que proponho e que, por regra, niio haja decisi5es jurisdicionais irrecorriveis39 ; interlocut6rias ou, por maioria de razao, finais e que, para tanto, se aproximem todos os Direitos recurs6rios judiciais, alterando substancialmente e em especial o art. 0 678 do CPC. Tenha-se, porem, desejo, proponho, em muita atenr;;iio, o que refiro na nota final destes apontamentos porque, se apoio uma reforma efectiva do Direito Processual Recurs6rio, tal sera injustificado se nao for acompanhado ou precedido de reforma organica e funcional que viabilize, efectivamente, meios humanos e materiais para que os Tribunais Superiores, mormente os de 2. a instancia, realizem o seu trabalho. V.2. Disse que a problematica da recorribilidade tern duas vertentes. Uma, ja abordada, a da recorrilidade em um grau que, a meu ver, deve ser geral. Outra, a da recorribilidade para o STJ, que, ao inves, deve ser restringida. 0 nosso Direito Processual, mormente o civel, enferma de dois extremos - ou quase extremos - creio que, ambos carentes de modifica<;:ao: por urn lado, imensas causas irrecorriveis, outras, em que se podem interpor recursos excessivos. Vejamos esta ultima questao. Quem esteve anos no STJ, como eu - e em fun<;:6es especiais - sabe que o STJ esta inundado de processos cuja subida ao Mais Alto Tribunal do Pais nao tern justifica<;:ao. 0 problema, alias, niio se resolve cam simples aumento da alr;;ada da 2. a instancia,
embora deva comer;;ar-se par ai. Penso que ja existe, no foro comum portugues, embora nao judicial, o principio que deve ser levado para o foro judicial, ate porque, se e exacto que os Direitos Processuais Judiciais devem ser aproximados, nao podemos esquecermo-nos de que o nosso luxo processual nao se limita aos Judiciais, estendese aos Comuns, como os Administrativos e Fiscais. Ora, o art 150 do C6digo de Processo dos Tribunais Administrativos, designadamente, admite que haja " ...excepcionalmente, revista para o S.T.A. quando esteja em causa a aprecia<;:ao de uma questao que, pela sua relevancia juridica ou social, se revista de importancia fundamental ou quando a admissao do recurso seja claramente necessaria para uma melhor aplica<;:ao do Direito". A analise dos pressupostos do n. 0 1 do art.o 150 do CPTA depende, em cada caso concreto, de uma aprecia<;:ao preliminar sumaria por 3 Juizes de entre os mais antigos da Sec<;:ao do Contencioso Administrativo.
39 Salvo, naturalmente, despachos de mero expediente ou proferidos no uso legal de poder discriciom'irio (art.0 679 do CPC)
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Penso que urn sistema deste tipo deve ser transposto para o foro judicial, mormente civel, e para o S.T.J., colocando a analise preliminar, que deve ser
irrecorrivel, a cargo de um colegio constituido pelos Presidentes das Seq;:oes Civeis, Social e Penais do S.T.J. 40 , que ja sao os mais antigos de cada uma dessas Sec<;6es41 â&#x20AC;˘ A prop6sito, ha que acabar corn a errada ideia que, estranhamente, ainda ha quem defenda, segundo a qual as fun<;6es dos Presidentes de sec<;ao nao passariam de formais ou burocraticas.
VI. INTERPOSI(AO E ALEGA(OES Na recta final destas notas, entro em dois aspectos particulares que continuam seguindo a linha de rumo que ea minha, designadamente, em materia recurs6ria: a harmoniza~;iio possivel entre o valor que deve ser reconhecido aos recursos e outrossim, o pragmatismo de que deve revestir-se a tramita~;iio. Escolho as duas quest6es que vou abordar, alias sinteticamente, como exemplares de outras sobre as quais poderiamos reflectir. Desde ja, a que considero, hoje menos justificavel e, portanto, mais facil de resolver, basicamente, a luz do principio basilar sobre 0 qual ja me pronunciei, isto e, a procura de urn Direito Processual Judicial tao uniforme quanto possivel. Ora, acontece que, tanto no Direito Recurs6rio Penal 42, como no Laboral43, as alega<;6es ou motiva<;ao, por principio, devem acompanhar a interposi<;ao de recurso. 56 no regulamentarismo do Direito Processual Civil assim nao e. Nao tern sentido. E isto e assim, principalmente, no sistema dualista 44 , que ainda vigora entre n6s, mas tambem o e no sistema monista que defendo e sem o qual nao ha, a meu ver, reforma significativa. E que, ao recorrer-se, deve saber-se porque e, isto, e uma forma de defender a efica sem a qual niio ha Direito. 0 recurso "cautelar" - recorre-se e, depois, logo
se ve - e protelante, anti-etico, injustificado, rejeitavel. Ao recorre1~ o recorrente deve dizer porque e concluir. Enfim, motivar a sua conduta. Tenho este ponto por tao elementarmente insusceptivel de duvidas, que fico por aqui nesta questao, limitando-me a enfatizar a conveniente sintonia entre o CPC, o CPP e o CPT, tanto quanto possivel. 0 que estan1, p erfeitamente, em harmonia corn a Recomenda~ao N. 0 -R (1995) 5, de 07.02.1995, do Comite de Ministros do Conselho da Europa. 1 ' Art. 0 46." n .0 1 da L.O.F.J. (Lei 11. 0 3/99, de 13.01) 42 Art. 0 411. 0 11. 0 3 do CPP 0 4 81. 0 n. 0 1 do CPT 3 Art. 44 Lembremo-nos das chamadas "convola~5es" face ao confronto entre o que e alegado e concluido e o recurso interposto: v.g. art. 0 702. 0 do CPC '0
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A queshio de prazos nao vejo que seja susceptivel de grandes dtividas. Optaria por algo como 15 dias em qualquer dos recursos judiciais45 â&#x20AC;˘ E vamos a ultima questao.
VII. UNIFORMIZA<:;:AO DE JURISPRUDENCIA Ja disse - ainda que agora o repita - que deve caminhar-se para a, tanto quanto possivel, unidade de urn sistema recurs6rio judicial. E isso deve fazer-se comparando os nossos divergentes Direitos recurs6rios judiciais e optando pelos melhores caminhos. Salvo o devido respeito por qualquer outra opiniao, nao foi o que se fez quanto a problematica da chamada uniformiza\aO de Jurisprudencia ... que nada, juridicamente, uniformiza. Nao vou entrar na polemica sobre constitucionalidade ou inconstitucionalidade dos velhos Assentos. Todavia, tenho para mim que exacta era a tese do Tribunal Constitucional que, algumas vezes, foi invocada, distorcidamente. 0 que o Tribunal Constitucional considerou inconstitucional foi, apenas, o segmento geral do, entao, art 2 do C6digo Civil 46, o que vale por dizer que, assim sendo, os Assentos poderiam, sem obstaculo constitucional, ser vinculativos na ordem judicial, isto e, na linha hierarquica dos respectivos Tribunais 47, como conviria a luz da ideia de seguran\a que e uma das vertentes da Justi\a, posto que se tratava de interpretar a ordem juridica e nao de a criar. Os Assentos tinham, efectivamente, a grande vantagem de conferir seguran\a na interpreta\ao juridica. 0 que era necessaria era reduzir a sua divergencia, simplificar processado e viabilizar altera\ao pelo proprio S.T.J. 48 Toda a simplifica\ao, inclusive a elimina\ao do recurso para o Pleno, foi objecto do Projecto de 1990. As pr6prias express6es "revista ampliada" e "uniformiza\ao de Jurisprudencia" e dai que veem. 56 que, na reforma de 1995/ I 6 acresceu-lhe a elimina\ao da vincula\ao na ordem judicial, o que amputou o
sistema de alga muito importante. Ou seja, juridicamente, temos hoje uma imensa tramita\ao, corn grande enfase verbal, e uma "uniformiza\ao" ... Que nada uniformiza, salvo se os Juizes das insh1ncias tal quiserem assumir.
45
Hoje, vem ao caso, v. g., art. 0 411 do CPP e art. 0 80 do CPT Ac6rdao 743/96, de 28.05.1996 (D.R. 1" serie, de 18.07.1996) 47 Cfr. Ac6rdao 1197/96, do T.C., de 21.11 .1996 D.R., 2" serie, de 24.02.1997 48 Coma acontecia, alias, no CPC, versao de 1939 (art. 0 769. 0 ) e s6 deixou de ser assim em 1961, corn a nova versao do CPC (DL n. 0 44129, de 28.12.1961). 46
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Por outro lado, e curioso o argumento (que ja ouvi) segundo o qual a vincula<;ao judicial coartaria a liberdade decisoria. Se isto fosse para entender assim, entao seria inconstitucional (!) a vincula<;ao dos Juizes a propria lei49 , o que seria absurdo. 0 que e mais estranhamente curioso e que, ao tempo da reforma processual civil de 1995 /6, vigorava, no Direito Processual Penal, regra semelhante a propugnada no Projecto de CPC de 1990, de obrigatoriedade da uniformiza<;ao na ordem judicial, como se disse, de acordo corn a doutrina do Tribunal Constitucional,5° Isso ea niio expressividade da reforma processual civil de 1995/6, permitiu -me 51 defender, a luz de uma desejavel unidade do Direito Recursorio Judicial que, tambem no Direito Processual Civil, se deveria entender que a chamada uniformiza<;ao de Jurisprudencia, para se-lo, vinculava na ordem judicial. Perante estas duvidas, a orienta<;ao legiferante foi no sentido da uniformizar;iio negativa, isto e, eliminando a obrigatoriedade judicial da chamad a uniforrniza<;ao do proprio CPP52 â&#x20AC;˘ .E claro que, perante isto, passei a reconhecer que nao ha, hoje, qualquer duvida de que, jure constituto, a "uniformiza<;ao" da Jurisprudencia nao vincula quem quer que seja 53 . E nao deixa de ser interessante constatar que a proclamada reforma processual civil de 1995/6 atribuiu a chamada "uniformiza<;ao" a algo que ja, anteriormente, existia e que a mesma reforma eliminou: o julgamento conjunto a que se reportava o n. 0 3 do art. 0 728 do CPC, que a dita reforma revogou. Enfim, historias da historia judiciaria. Entretanto e tal como tudo se encontra, para alem de uma "uniformiza<;ao" que, juridicamente nao uniformiza, alargaram-se de tal modo os recursos qu e, alguns, embora nao tenham nascido ampliados, tendem a passar a ampliados no STJ, o que contribui para urn excesso de tramita<;ao. 54 Em conclusao, o que proponho que se pondere e que, para haver efectiva seguran<;a normativa 55 por parte dos Cidadaos, a uniformiza<;ao ... uniformize vinculadamente, mas apenas, relativamente aos pertinentes Tribunais, o que ate sera conforme a respectiva hierarquia 56 e constituira uma abstrac<;ao sempre Art. 0 203.0 da CRP Entao art.0 445.0 do CPP. Ha que reconhecer qu e a expressao "quaisquer Tribunais", constante do art. 0 â&#x20AC;˘ 600 do Projecto de CPC de 1990, deveria ser interpretada e clarificada corn referenda a Tribunais Judiciais. 51 Num livro escrito em co-autoria corn Ant6nio Pais de Sousa, Processo Civil, ano de 1997. 52 Lei n.0 59/98, de 25.08 53 Salvo, naturalmente, na medida do julgamento do caso concreto em causa, o que nada tern a ver corn uniformiza~ao de jurisprudencia. 54 Cfr. actuais arts. 678. 0 n. 0 4 e 754. 0 n. 0 2 do CPC. 55 Quando se legisla tanto e cada vez mais, as vezes dissonantemente. 56 Arts. 209. 0 11.0 1 a) e 210. 0 n. 0 1 da CRP, art. 0 4 n. 0 2 da Lei 11. 0 3/99, de 13.01 e art. 0 4 n. 0 1 d a Lei n .0 21/85, d e 30.07. Note-se que, obviamente, hierarquia de Tribunais nada tern a ver corn inexistente hierarquia entre Juizes. 49
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inconfundfvel corn qualquer decisao sobre caso concreto que nao seja, somente, aquele onde a uniformiza<;ao tiver ocorrido. Isto e, perfeitamente, compagimivel corn a possibilidade, que defendo, de o STJ poder alterar a sua propria uniformiza~ao e, ainda, de poder haver recurso ordinaria, designadamente per saltum, mas directamente, para o STJ, quando urn interessado pretenda fazer alterar a precedente uniformiza<;ao. Em sfntese: ou se da urn sentido real a "uniformiza<;ao"; ou mais vale acabar corn ela, porque simples alcance aconselhador ou orientador ja o devem ter os Ac6rdaos normais do S.T.J. 0 que existe e, injustificadamente, fruto de urn desmesurado trabalho e de desnecessaria perda de tempo.
VIII. CONCLUINDO
E minha convic<;ao que o Direito Processual, mormente o Civil, necessita de uma profunda reforma: uma verdadeira refunda<;ao. Para isto, tem de haver rupturas. Que se simplifique o Direito Recurs6rio, muito bem. Mas que se simplifique e nao apenas se aperfei~oe, tecnicamente, aqui ou ali. A simplifica~ao longe de desrespeitar os direitos fundamentais, e uma forma de os garantir, ate porque nao podemos esquecer o art. 0 20 da CRP e, designadamente, o direito a processo equitativo decidido em prazo razoavel. Porem, tenho de acrescentar uma nota que nao e s6 fruto da minha experiencia de dezenas de anos nos Tribunais Judiciais, inclusive de Presidente de Rela<;ao e do S.T.J. mas, tambem, do que vou sabendo como cidadao interessado. 0 mundo da Jus ti~a e uma unidade. Reformular o Direito Processual e necessaria. Mas tal s6 tera eficacia, s6
passara, significativamente, do papel, se for acompanhado de reforma orgtinica e funcional . Reformular o Direito Processual Recurs6rio, mormente, o Civel, e necessaria. Mas tal s6 tera sentido se for acompanhado ou precedido de reforma orgtinica e funcional que viabilize condi~i5es de trabalho aos Juizes - e aos outros profissionais dos Tribunais Judiciais - que lhes permitam realizar o seu trabalho. Se defendo a recorribilidade generalizada a bem dos Cidadaos, a quem o Estado deve Justi<;a, nao posso deixar de alertar para a absoluta necessidade de se garantir a possibilidade de resposta. A contingenta~ao processual, o apoio de funcionarios aos Jufzes, os meios informaticos, que devem ser proporcionados a cada Juiz, designadamente das Rela<;6es, constituem factores sine qua non de qualquer reforma digna desse nome. Eu sei que sou idealista. Mas ser idealista e uma coisa. Ser irrealista seria outra. Quando, ainda ha poucos dias li, num jornal que, num dos Tribunais de 2." instancia deste Pais - ainda por cima, do unico Distrito Judicial em que
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esta instalado urn outro Tribunal tambem de 2." instancia - ha centenas de recursos parados, nao porque se nao trabalhe, mas por falta de Juizes, de Funcionarios e de meios, especialmente, informaticos - dei comigo a pensar o que aconteceria se nao se trabalhasse tanto como, em geral, se trabalha. Quando se sabe que estamos no seculo XXI, e a realiza~ao efectiva de Justi~a e factor sine qua non da Democracia e da confian~a, inclusive do mundo econ6mico, nao e pensavel a falta de apoio humano e material- vale dizer, em especial, de Funcionarios e de meios informaticos - coma algo absolutamente natural ao exercfcio da fun~ao jurisdicional. Fa~;a-se uma reforma processual. Aceito que se comece pelas fases recurs6rias. Mas que tal seja acompanhado ou, mesmo, precedido, de reconsidera<;iio organica e funcional , ate pm路que a reformula~;iio organica e funciona l ja e necessaria no contexto vigente. Penso, mesmo, que e mais necessaria esta reformula~ao do que a processual. E tudo isto - note-se! - a bem dos Cidadiios carentes de Ju sti~;a. A razao de ser de qualquer reforma nunca pode estar no interesse dos Juizes ou dos Advogados ou de quaisquer outros intervenientes processuais. 0 centra de interesse de qualquer reforma tem de ser, sempre e apenas, o cidadiio comum. E em nome do Povo que os Tribunais decidem.57 Lisboa, Novembro de 2005
5?
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Art. 0 202. 0 n. 0 1 da CRP
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A LEI N.o 52-A/2005 E OS DIREITOS DOS TITULARES DOS "ORGAOS DE GOVERNO PROPRIO" DA REGIAO AUTONOMA DA MADEIRA Parecer de Direito Constitucional
Jorge Bacelar Gouveia
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I
A LEI N. 0 52-A/2005 E OS DIREITOS DOS TITULARES DOS "ORGAOS DE GOVERNO PROPRIO" DA REGIAO AUTONOMA DA MADEIRA Parecer de Direito Constitucional Jorge Bacelar Gouveia*
SUMARIO CONSULTA
I - INTRODU<;Ao 1. 0 tema do presente parecer. 2. As quest6es a considerar 11 - OS DIREITOS DOS TITULARES DOS "ORGAOS DE GOVERNO PROPRIO" DA REGIAO AUTONOMA DA MADEIRA 3. 0 Estatuto Politico-
-Administrativo da Regiao Autonoma da Madeira em geral. 4. A sede estatutaria dos direitos dos titulares dos "orgaos de governo proprio" da Regiao Autonoma da Madeira Ill - A NAO APLICA<;AO SUBJECTIVA DA LEI N. 0 52-A/2005 AOS
TITULARES DOS "ORGAOS DE GOVERNO PROPRIO" DAS REGIOES AUTONOMAS 5. A Lei n. 0 52-A/2005, de 10 de Outubro - sentido geral. 6. 0 ambito subjectivo de aplica~ao aos titulares de cargos politicos nao regionais.
7. A nao aplica~ao subjectiva aos titulares dos "orgaos de governo proprio" das Regioes Autonomas. 8. A natureza material da remissao estatutaria para o regime geral dos direitos dos titulares de cargos politicos nao regionais IV - A RESERVA DE ESTATUTO POLITICO-ADMINISTRATIVO NA DEFINI<;AO DOS DIREITOS DOS TITULARES DOS "ORGAOS DE GOVERNO PROPRIO" DAS REGIOES AUTONOMAS 9. A importancia dos
estatutos politico-administrativos para a
organiza~ao
e o funcionamento das
*Professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Doutor e Mestre em Direito.
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Regioes Autonomas e dos respectivos "orgaos de governo proprio". 10. A inclusao da defini<;ao dos direitos dos titulares dos "orgaos de governo proprio" na reserva de lei estatutaria regional. 11. A temporaria suspensao da reserva de iniciativa legislativa em materia de leis eleitorais e a eventual revisao dos direitos dos titulares dos "orgaos de governo proprio" das Regioes Autonomas V - CONCLUSOES 12. Enunciado das conclus6es
CONSULTA
Funchal, 7 de Dezembro de 2005 Exm. 0 Senhor Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia Ilustre Jurisconsulto Venho por este seio solicitar os elevados prestimos de V. Ex.a no sentido de me habilitar corn o seu douto entendimento relativamente as seguintes duas quest6es: 1) Pretende-se a confirma<;ao de que os regimes remuneratorios e da cumula<;ao de fun<;6es inerentes ao exercfcio de actividade pelos titulares de orgaos de governo proprio da Regiao nao foram, de alguma forma, afectados, designadamente por for<;a da publica<;ao da Lei n. 0 52-A/2005, de 10 de Outubro; 2) Pretende-se ainda saber se se manH~m em vigor as disposi<;6es do Estatuto Politico-Administrativo que conferem aos titulares de orgaos de governo proprio da Regiao a possibilidade de auferirem subven<;6es vitalicias ou subsidios de reintegra<;ao, nos termos ali previstos, nao obstante a entrada em vigor do diploma acima referenciado. Corn os meus melhores cumprimentos.
0 Presidente da Assembleia Legislativa da Regiao Autonoma da Madeira Dr. Jose Miguel Jardim d'Olival de Mendon<;a
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I. INTRODU<;AO 1. 0 tema do presente parecer
I. A consulta que nos foi formulada por S. Ex." o Presidente da Assembleia Legislativa da Regiao Autonoma da Madeira 1 delimita corn absoluta clareza o problema que se pretende ver solucionado no ambito do presente parecer juridico: saber que consequencias se projectam sob re os direitos dos titulares dos "orgaos de governo proprio" da Regiao Autonoma da Madeira em resultado da publica<;:ao da Lei n. 0 52-A/2005, de 10 de Outubro. Como se compreende, trata-se de uma questao de Direito ConstitucionaF, no qual se imp6e a necessidade de, aluz da Constitui<;:ao da Republica Portuguesa (CRP), de 2 de Abril de 1976 e ja por sete vezes revista 3, articular a produ<;:ao de uma lei estadual- a Lei n. 0 52-A/2005- corn as autonomias e os estatutos politico-administrativos regionais.
11. Nao obstante o pedido ter sido formulado por urn orgao legislativo da Regiao Autonoma da Madeira, eis uma questao de Direito Constitucional que nao se reduz, na sua utilidade pratica, apenas ao ambito daquela unidade politico-legislativa, antes tendo do mesmo modo interesse para a Regiao Autonoma dos A<;:ores e respectivos orgaos. Assim e, desde logo, porque o paradigma constitucional e essencialmente igualitario na organiza<;:ao e no funcionamento de cada uma dessas Regi6es Autonomas, o que se pode atestar por uma semelhante estrutura<;:ao organica e por uma semelhante intensidade nas atribui<;:6es e competencias atribuidas. Assim e, noutra perspectiva, pelo facto de o regime dos direitos dos titulares dos" orgaos de governo proprio" das Regi6es Autonomas dos A<;:ores e da Madeira constar, em ambos os casos, dos respectivos estatutos politico-administrativos, ainda que corn formula<;:6es ligeiramente diferenciadas: a Lei n. 0 39/80, de 5 de Agosto, como o Estatuto Politico-Administrativo da Regiao Autonoma dos A<;:ores, ea Lei n. 0 13/91, de 5 de Junho, como o Estatuto Politico-Administrativo da Regiao Autonoma da Madeira. 1
E que tivemos o cuidado de reproduzir no inicio do presente parecer. Para urn enquadramento sob re a ex ten sao regulativa do Direito Constitucional, v. JoRGE BACELAR GouvE JA, Manual de Dire ita Constitucional, I, Coimbra, 2005, pp. 29 e ss. 3 Sabre a evoluc;ao do texto constitucional portugues ao longo das sete revisoes que ja sofreu desde a sua versao primitiva de 2 deAbril de 1976, v., por todos,JoRGEBACELAR GouvEIA, Manual..., I, pp. 492 e ss. 2
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Ill. Coma quer que seja, a despeito da validade mais geral que se possa desprender das nossas reflex6es, focaremos toda a aten<;ao nao so no Estatuto Politico-Administrativo da Regiao Autonoma da Madeira (EPARAM) coma na Lei n. 0 52-A/2005, desse jeito se caminhando na anc1lise a levar a cabo. Naturalmente que a nossa perspectiva, dentro de uma aprecia<;ao que e tributaria da Ciencia do Direito Constitucional, se deve cingir as op<;6es juridico-positivas, se bem que alguns possam discutir as solu<;6es em vigm~ numa concep<;ao de iure condendo, mas que nao pode ter aqui qualquer cabimento. Por outro lado, identicamente devemos questionar a aplica<;ao da CRP, nos caminhos que porventura surjam eivados de inconstitucionalidades, atraves da formula<;ao de outras conjuga<;6es teoricamente possiveis, na busca de novas respostas ao mesmo problema inicialmente formulado.
2. As questoes a considerar I. Feita a delimita<;ao do problema a tratar por este parecer de Direito Constitucional, e altura de explicitar o iter do respectivo desenvolvimento, considerando as diversas perspectivas que se colocam nesta materia. Depois de efectuado o correspondente estudo, cumpre, a final, sintetizar as conclus6es quer tiverem sido obtidas ao longo do presente texto.
11. A primeira parte do parecer sera reservada ao enquadramento da materia dos direitos dos titulares dos "orgaos de governo proprio" da Regiao Autonoma da Madeira, sendo certo que ja pre-existia a publica<;ao da Lei n. 0 52-A/2005 urn regime juridico especificamente aplicavel, constante do EPARAM. E nossa preocupa<;ao fazer a sua apresenta<;ao, sem qualquer inten<;ao de exaustividade, assim se facilitando a compreensao das op<;6es que foram feitas por aquele recente diploma legislativo estadual. Sem o conhecimento previa das diversas modalidades de situa<;6es juridicas activas, coma sao os direitos e as regalias, ali contemplados, nunca seria possivel tra<;ar, corn a exactidao exigivel, o alcance das altera<;6es drasticas trazidas pela Lei n. 0 52-A/2005, designadamente saber da sua projec<;ao sabre a realidade regional. Ill. A segunda parte do parecer focalizar-se-a no estudo das modifica<;6es introduzidas pela Lei n. 0 52-A/2005, uma vez mais nao se pretendendo o seu estudo exaustivo, mas apenas frisar o que pode interessar para a sua articula<;ao corn os direitos dos titulares dos "orgaos de governo proprio" da Regiao Autonoma da Madeira, tal coma eles resultam do EPARAM. Neste topico, estara essencialmente em causa determinar o ambito subjectivo de aplica<;ao da Lei n. 0 52-A/2005, sendo seguro que sao diversas as categorias de orgaos juridico-publicos cujos titulares ficam abrangidos pelas novas
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regras revogatorias e modificativas promanadas por aquele acto legislativo d a Assembleia da Republica. Mas essa nao pode ser uma analise que se limite a avaliar os silencios de tal diploma, mas igualmente se privilegiani urn tratamento pela positiva, encontrando os fundamentos constitucionais da n ao aplica<;ao subj ec tiva da Lei n.0 52-A/2005 aos titulares dos "orgaos de governo proprio" da Regiao Autonoma da Madeira. Do mesmo modo se deve analisar a relevancia das altera<;6es feitas pela Lei n. 0 52-A/2005 sobre o EPARAM, em aten<;ao a norma remissiva que este contem a respeito do regime dos direitos dos titulares dos cargos politicos regionais. IV. A terceira p arte do parecer dedicar-se-a ao estudo do s termos, for-
mulados de modo hipotetico, em que os direitos dos titulares dos "orgaos de governo proprio" da Regiao Autonoma da Madeira podem vir a ser alterados. Eis urn domfnio que interessa observar, porquanto a altera<;ao daquele regime de direitos, n ao tendo sido protagonizada pela Lei n. 0 52-A/200~, nao d eixara de colocar-se a ocasiao, sendo certo que cumpre conhecer as regras aplicaveis. E que nesse ponto a CRP nao deixa de ser bastante incisiva, versando directamente o modo como o Estado esta autorizado a legislar em materia da defini<;ao dos direitos que integram o estatuto dos titulares dos "orgaos de governo proprio" da Regiao Autonoma da Madeira.
Il. OS DIREITOS DOS TITULARES DOS "ORGAOS DE GOVERNO PROPRIO" DA REGIAO AUTONOMA DA MADEIRA
3. 0 Estatuto Politico-Administrativo da Regiiio Autonoma da Madeira em geral I. E no Estatuto Politico-Administrativo da Regiao Autonoma da Madeira que podemos encontrar os fundamentos gerais da organiza<;ao e da actividade dessa Regiao Autonoma 4, em complemento do que consta da propria CRP, que e a lei suprema do Estado e que na sua Parte Ill dedica o Titulo VII precisamente as "Regioes Autonomas". 4 Sobre a actual configura~ao juridico-constitucional das Regioes Aut6nomas Portuguesas, v. JoRGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, III, 5." ed., Coimbra, 2004, pp. 296 e ss.; JoRGE BACELAR GouvEIA, 0 regionalismo politico-legislativo portugues: em busca da pe!fei~ao, in AAVV, Estudos em Homenagem ao Prof Do1ttor Armando M. Marques Guedes, Coimbra, 1994, pp. 59 e ss., e Manual de Direito Constitucional, Il, Coimbra, 2005, pp. 965 e ss.; RICARDO LEITE PINTO, JosE DE MATOS CORREIAe FERNANDO ROBOREDO 5EARA, Ciencia Polltica e Direito Constitucional, 3." ed., Lisboa, 2005, pp. 180 e ss.
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56 que nao deixa de se curioso assinalar que, de certa sorte, o EPARAM, no caso da Regiao Aut6noma da Madeira, acaba por funcionar como uma "sub-Constitui<;ao", particularizando nesse especifico contexto normas e principios fundamentais, assim densificando o Direito Regional 5 â&#x20AC;˘ 11. 0 EPARAM foi elaborado em 1991 e por estes cinco Titulos:
-
Titulo Titulo Titulo Titulo Titulo
conh~m
154 artigos, distribuidos
I - Principios fundamentais II - 6rgCios de governo proprio e administrac;Cio publica regional Ill - Relac;oes entre o Estado e a RegiCio IV - Do regime financeiro, econ6mico e fiscal V - Disposic;oes finais e transit6rias
Ill. A importancia do EPARAM mede-se pela sua fun<;ao parametrica em rela<;ao tanto a legisla<;ao estadual como a legisla<;ao regional, assim se evidenciando 0 seu caracter refor<;ado. Quer isso dizer que a importancia do conteudo corresponde uma importancia da sua fun<;ao, que se vai depois consumar na possibilidade de sindicar a legalidade de actos legislativos que contrariem aquele estatuto politico-administrativo, permitindo ao Tribunal Constitucional exercer uma especifica actividade de fiscaliza<;ao da legalidade de certos actos legislativos 6 â&#x20AC;˘ E assim que ocorre uma das principais aplica<;6es praticas do conceito de lei de valor refor<;ado 7, que os estatutos politico-administrativos indiscutivelmente possuem, correspondendo ao respectivo conceito constitucional: "Tern valor refor<;ado, alem das leis organicas, as leis que carecem de aprova<;ao por maioria de dois ter<;os, bem coma aquelas que, por for<;a da Constitui<;ao, sejam pressuposto normativo necessaria de outras leis ou que por outras devam ser respeitadas" 8 .
4. A sede estatut<iria dos direitos dos titulares dos "6rgaos de governo proprio" da Regiao Aut6noma da Madeira I. Uma das materias de assinalavel peso e a do regime dos direitos dos titulares dos "6rgaos de governo proprio" da Regiao Aut6noma da Madeira, a qual e especificamente versada no EPARAM, no Titulo II do respectivo EPARAM. 5 Sobre a importancia ea fun~ao dos estatutos politico-administrativos regionais, v. JoRGE BACELAR GouvEIA, 0 regionalismo ... , pp. 63 e ss., e Manual ... , II, p. 1224. 6 Cfr. os arts. 280.0 , n." 2, als. b) e c), e 281. 0 , n. 0 1, als . c) e d), da CRP, respectivamente, para a fiscaliza<;ao concreta e para a fiscaliza~ao abstracta da legalidade. 7 Sobre o conceito de lei de valor refor~ado, v. JoRGEBACELAR GouvEIA, Manual ... , II, pp. 1221 e ss. 8 Art. 112.", n." 3, da CRP.
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Mas a distribui<;iio das diversas modalidades de situa<;6es funcionais faz-se separadamente para cada urn dos orgaos regionais 9 : - da Assembleia Legislativa Regional, atraves da sec<;ao II do capitula I, dedicado ao "Estatuto dos Deputados" 10; - do Governo Regional, atraves da sec<;iio II do capitula II, dedicado ao "Estatuto dos membros do Governo Regional" 11 â&#x20AC;˘ 11. Nao obstante a separa<;ao que se efectiva entre estes dois orgaos regionais, bem coma os respectivos titulares, a verdade que e que o EPARAM igualmente con tern disposi<;6es, que se concentram num so artigo, integrado no Capitula Ill do Titulo II do EPARAM, no qual se apresenta uma listagem dos beneficios remuneratorios dos diversos cargos regionais 12 . Oaf que a formula<;iio dos direitos dos titulares de cargos regionais assente numa multiplicidade de disposi<;6es estatutarias, ora levando em considera<;iio a qualidade do orgao, ora colocando a questao ao nfvel mais geral do conceito de cargo politico regional. Estas situa<;6es funcionais assentam em fundamentos multiplos, como decerto serao os da necessidade da boa governa<;ao na eficiencia que permitem emprestar ao exerdcio dos cargos publicos em causa, ou tambem o prop6sito de propiciarem a protec<;iio do exerdcio livre dessas mesmas fun<;6es. Ill. Todavia, importa notar que a tecnica legislativa utilizada por aquela extenso artigo 75.0 do EPARAM definindo o estatuto remuneratorio dos titulares de cargos politicos regionais nem sempre e igual, assinalando-se duas modalidades de norma<;iio jurfdica:
- uma norma9iio juridica directa, em que no proprio EPARAM se definem, quantificadamente, as remunera<;6es dos diversos cargos politicos regionais; - uma norma9iio juridica indirecta, feita por remissao para outra legisla<;iio, e que nao constando no EPARAM nao quer dizer que sobre ela nao se tenha acolhido o sentido ordenador de outros diplomas legislativos aplicaveis. IV. A tecnica da norma<;ao jurfdica indirecta nao e, por seu lado, sempre unfvoca, porquanto tanto ha remiss6es gerais como remiss6es espedficas para outros diplomas, que assim passam a ser parte integrante do proprio EPARAM: 9
Sob re as situac;6es funcionais em geral, v., por todos, JoRGE BACELAR GouvEIA, Manual ... , II, pp. 1019
e 1020.
°Cfr. os arts. 20.
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e ss. do EPARAM. "Cfr. os arts. 64. do EPARAM. 12 No seu art. 75. 0 do EPARAM. 0
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- a norma9iio juridica indirecta geral: aquela que se refere a outros actos legislativos, mas sem os individualizar;
- a norma9iio juridica indirecta especifica: aquela que ocorre corn a individualiza<;ao de certo diploma legislativo. V. 0 problema que esta subjacente a consulta do presente parecer faz concentrar toda a aten<;ao nesta ultima modalidade de norma<;ao juridica indirecta, que e assim espedfica. Trata-se de uma das ultimas disposi<;6es do mencionado art. 75. do EPARAM, mas nem por isso pouco importante, no qual se diz o seguinte: "0 regime constante do Titulo II da Lei n. 0 4/85, de 9 de Abril, corn as altera<;6es introduzidas pelas Leis n. 0 16/87, de 1 de Junho, 102/88, de 25 de Agosto, e 26/ /95, de 18 de Agosto, aplica-se aos deputados aAssembleia Legislativa Regional e aos membros do Governo Regional" 13 â&#x20AC;˘ Por for<;a desta disposi<;ao do EPARAM, a lei estatutaria regional, ao definir estes direitos dos titulares de cargos regionais remissivamente para aquele espedfico diploma, faz seu aquele regime, como se estivesse a legislar directamente nessa materia: embora nao estando no EPARAM, o sentido juridico 6bvio desta norma estatutaria remissiva eo do acolhimento, na propria lei estatutaria e dela fa zendo parte integrante, do respectivo regime, que assim vale identicamente no contexto regional, nao sendo necessaria repetir, em termos normativos, todas aquelas disposi<;6es. 0 natural enfoque a atribuir a este preceito explica-se por ter sido precisamente aquele Titulo II da Lei n.0 4/85 objecto de drasticas normas revogat6rias e modificativas, praticamente eliminando todos os direitos dos titulares dos cargos politicos para alem dos de natureza directamente remunerat6ria, como as subven<;6es vitalicias e os subsidios de reintegra<;ao. 0
III.
A NAO APLICA<;AO SUBJECTIVA DA LEI N . o 52 -A / 2005 AOS TITULARES DOS "ORGAOS DE GOVERNO PROPRIO" DAS REGIOES AUTONOMAS 5. A Lei n. o 52-A/2005, de 10 de Outubro - sentido geral I. Corn a publica<;ao da Lei n. 0 52-A/2005, de 10 de Outubro, foi substan-
cialmente alterado o regime relativo a pens6es e subven<;6es dos titulares de cargos politicos, bem como o regime remunerat6rio dos titulares de cargos executivos das autarquias locais 14 â&#x20AC;˘ 13 14
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Art. 75.",n .0 19,doEPARAM. Assim o disp6e a epigrafe preliminar da Lei n." 52-A/2005, de 10 de Outubro.
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A edi<;:ao deste diploma da Assembleia da Republica veio implicar uma geral redu<;:ao dessas regalias, revogando ou modificando preceitos de diversas leis, de que cumpre evidenciar: 0
- da Lei n. 4/85, de 9 de Abril, atinente ao Estatuto Remunerat6rio dos Titulares dos Cargos Politicos em geraP 5; - da Lei n. 0 29 I 87, de 30 de Junho, atinente ao Estatuto dos Eleitos Locais 16; - da Lei n. 0 9/91, de 9 de Abril, atinente ao Estatuto do Provedor de Justi<;:a 17; - da Lei n. 0 7/93, de 1 de Mar<;:o, atinente ao Estatuto dos Deputados a Assembleia da Republica 18; - do Decreto-Lei n. 0 252/92, de19 de Novembro, atinente ao Estatuto dos Governadores e Vice-Governadores Civis 19 . 11. No plano das altera<;:6es introduzidas na Lei n. 0 4/85, de 9 de Abril, ap6s a entrada em vigor da Lei n. 0 52-A/2005, assinala-se a revoga<;:ao massiva de muitos dos seus preceitos, tal como os mesmos incorporavam o Titulo II daquele diploma legislativo, corn a epigrafe "Subven<;:6es dos titulares dos cargos politicos"20. A unica subven<;:ao que permanece em vigor e a que se destina a proteger os titulares de cargos politicos em situa<;:ao de incapacidade, tal como se disp6e no respectivo preceito: "Quando, no decurso do exerdcio das fun<;:6es referidas no artigo 1. 0 , ou por causa delas, o titular do cargo se incapacitar fisica ou psiquicamente para o mesmo exerdcio tern direito a uma subven<;:ao mensal correspondente a 50% do vencimento do respectivo cargo enquanto durar a incapacidade, desde que o incapacitado nao aufira, por continuar titular do cargo, ou por o ter sido, nos termos deste decreto, vencimento ou subsidio superiores aquela subven<;:ao" 21 . Ill. Todavia, a Lei n. 0 52-A/2005 nao se limitou a elimina<;:ao das subven<;:6es vitalicias ou as subven<;:6es de reintegra<;:ao na actividade profissional, uma vez que do mesmo modo estabeleceu limita<;:6es fortes no tocante a acumula<;:ao de remunera<;:6es e de pens6es ou quaisquer ganhos pecuniarios publicos em geral. Para o efeito, assume relevo fundamental o preceito que tern por epigrafe "Limites as cumula<;:6es": "Nos casos em que os titulares de cargos politicos em
Cfr. o art. 1. 0 da Lei n. 0 52-A/2005. Cfr. o art. 2. 0 da Lei n .0 52-A/2005 . 17 Cfr. o art. 3. 0 da Lei n. 0 52-A/2005. 18 Cfr. o art. 4. 0 da Lei n .0 52-A/2005. 19 Cfr. o art. 5. 0 da Lei n. 0 52-A/2005. 2 째Cfr. os arts. 24. 0 a 28. 0 , 30.0 e 31. 0 da Lei n ." 4/85, de 9 de Abril, revogados pela Lei n. 0 52-A/2005. 21 Art. 29. 0 da Lei n." 52-A/2005. 15
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exercicio de fun~oes se encontrem na condi~ao de aposentados, pensionistas, reformados ou reservistas, independentemente do regime publico ou privado que lhes seja aplicavel, e-lhes mantida a pensao de aposenta~ao, de reforma ou a remunera~ao na reserva, sendo-lhes abonada uma ter~a parte da remunera~ao base que competir a essas fun~oes, ou, em alternativa, mantida a remunera~ao devida pelo exercicio efectivo do cargo, acrescida de uma ter~a parte da pensao de aposenta~ao, de reforma ou da remunera~ao na reserva que lhes seja devida" 22 â&#x20AC;˘
6. 0 ambito subjectivo de regionais
aplica~ao
aos titulares de cargos politicos nao
I. Corn vista a facilitar a compreensao das 0
n. 52-A/2005 operou ainda a legislativos alterados:
republica~ao
altera~oes
introduzidas, a Lei dos dois principais diploma s
- a Lei n.0 4/85, de 9 de Abril, que define o Estatuto Remunerat6rio dos Titulares de Cargos Politicos 23; - a Lei n. 0 29/87, de 30 de Junho, que define o Estatuto dos Eleitos Locais 24 . Porem, apenas interessa agora averiguar do ambito subjectivo de aplica~ao da primeira lei, depois de a mesma ter sido alterada pela edi~ao da Lei n. 0 52-A/ /2005. 11. 0 ambito subjectivo de aplica~ao da mencionada Lei n. 0 52-A/2005 e directamente definido, apresentando-se o seguinte elenco de "cargos politicos", assim tipologicamente se preenchendo o respectivo conceito:
a) b) c) d) e) ÂŁ) g) h)
Os Deputados a Assembleia da Republica; Os membros do Governo; Os Representantes da Republica; 0 Provedor de Jus ti~a; Os governadores e vice-governadores civis; Os eleitos locais em regime de tempo inteiro; Os deputados ao Parlamento Europeu; Os juizes do Tribunal Constitucional que nao sejam magistrados de carreira 25 .
Art. 9. 0 , n. 0 1, da Lei n. 0 52-A/2005. Anexo I a Lei n. 0 52-A/2005. 24 Anexo II a Lei n." 52-A/2005. 25 Cfr. o art. 10. 0 da Lei n. 0 52-A/2005. 22
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Eis urn conceito de "cargo politico" restrito, dado que se apresenta direccionado aos efeitos revogat6rios e limitativos que os preceitos da Lei n. 0 52-A/ /2005 produziram, como eo caso dos limites a cumula<;ao de remunera<;6es ou a elimina<;ao das subven<;6es vitalicias. Ill. Da leitura desta tipologia de cargos politicos, para os mencionados efeitos remunerat6rios, percebe-se bem que se excluem os 6rgaos regionais fundados em legitimidade democratica regional, directa ou indirecta: a Assembleia Legislativa e o Governo Regional. Se os titulares destes dois 6rgaos das Regi6es Aut6nomas estivessem abrangidos, teriam de ser ali inclufdos. Mas a verdade e que nao o foram, pelo que nao fazem parte de tal conceito, sendo esta tipologia, obviamente, de natureza ta xa tiva. Nem sequer se pode alegar uma eventual lacuna do legislador ordinaria porque o problema nao deixou de ser equacionado, ate porque se faz uma alusao a urn 6rgao corn projec<;ao nas Regi6es Aut6nomas, mas que nao e urn 6rgao regional, antes urn 6rgao do Estado: o Representante da Republica, urn para cada Regiao Aut6noma. 0 legislador da Lei n. 0 52-A/2005 teve decerto bem presente a realidade polltico-legislativa regional: mas simplesmente entendeu nao proceder a introdu<;ao de qualquer altera<;ao no regime existente, nao incluindo assim os deputados das Assembleias Legislativas ou os membros dos Governos Regionais no conceito legal de cargo politico, p ara os espedficos efeitos remunerat6rios e de outras regalias que teve em mente. E fez muito bem! 26
IV. Contudo, a propria Lei n .0 4/85, de 9 de Abril, mesmo depois de alterada e rep ublicada pela Lei n. 0 52-A/2005, trabalha corn urn outro conceito, algo diverso, de cargo politico, integrando os seguintes tipos27 : a) b) c) d) e)
0 Presidente da Republica; Os membros do Governo; Os Deputados a Assembleia da Republica; Os Representantes da Republica nas Regi6es Aut6nomas; Os membros do Conselho de Estado.
De acordo ainda corn outro preceito deste mesmo diploma, "Sao equiparados a titulares de cargos pollticos para os efeitos da presente lei os juizes do Tribunal Constitucional" 28 â&#x20AC;˘ 26 Por razoes que adiante serao explicitadas e que se prendem com a inconstitucion alidade organizat6ria de se proceder a altera~6es nesse regime fora do quadro constitu cionalmente estabelecido para se alterar os estatutos politico-administrativos das Regioes Aut6nomas, onde tal regime se encontra radicado, tanto para os A~ores como para a Madeira. 27 Cfr. o art. 1.", n." 2, da Lei 11. 0 4/85. 28 Art. 1.0 , 11. 0 3, da Lei n. 0 4/85, depois da versao introduzida pela Lei n. 0 52-A/2005.
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A razao de ser para a manuten<;ao desta outra lista de cargos politicos para efeitos remuneratorios prende-se corn o facto de ela se encontrar ao servi<;o das normas que ja estavam inclufdas neste diploma legislativo de 1985, a alguns destes cargos- como e manifestamente o caso do Presidente da Republica- nao se pretendendo aplicar as drasticas redu<;6es operadas pela Lei n. 0 52-A/2005. Mesmo nesta outra tipologia de cargos politicos, e que tern sido a tipologia originat desde que a Lei n. 0 4/85 foi elaborada, os orgaos das Regioes Autonomas, como se percebe pela sua ausencia, persistem em nao se encontram abrangidos. Numa palavra: uma vez mais o legislador ordinaria reiterou o born entendimento de manter fora do conceito de cargo politico, nos seus planos de defini<;ao de urn estatuto remuneratorio, os titulares de cargos regionais, noutro lugar tal materia sendo equacionada.
7. A nao aplica~ao subjectiva aos titulares dos "6rgaos de governo proprio" das Regioes Aut6nomas I. Mas a nossa resposta ao problema formulado nao pode cingir-se a uma verifica<;ao meramente omissiva, uma vez que interessa ainda construir o conceito de cargo politico no contexto espedfico da organiza<;ao politica das Regioes Autonomas. E nesse contexto que se afigura constitucionalmente relevante o conceito de "orgao de governo proprio", e naturalmente os respectivos titulares, em varios passos o texto constitucional ao mesmo se referindo:
- "Os orgaos de soberania asseguram, em coopera<;ao corn os orgaos de governo proprio, o desenvolvimento economico e social das regioes autonomas, visando, em especiat a correc<;ao das desigualdades derivadas da insularidade" 29 ; - "Sao orgaos de governo proprio de cada regiao autonoma a Assembleia Legislativa e o Governo Regional" 30; - "Dissolu<;ao e demissao dos orgaos de governo proprio" como epfgrafe de urn dos preceitos constitucionais integrados no Titulo VII da Parte Ill da CRP, sabre o estatuto das Regioes Autonomas 31 â&#x20AC;˘ II. Destes diversos passos, percebe-se que a organiza<;ao regional decisoria
nao enfrenta qualquer duvida na qualifica<;ao dos respectivos orgaos publicos como integrando a qualidade de "orgaos de governo proprio":
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Art. 229. 0 , n. 0 1, da CRP. Art. 231. 0 , n. 0 1, da CRP. 31 Cfr. a epigrafe do art. 234. 0 da CRP. 30
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- a Assembleia Legislativa, que e um orgao colegial de tipo parlamentar, cujos deputados sao eleitos com base em sufragio directo e universal pelos cidadaos portugueses residentes nos territorios insulares, para um mandato de 4 anos; e - o Governo Regional, que e um orgao colegial de tipo governativo, escolhido na base da confian~a polftica nele depositada pela Assembleia Legislativa, de acordo com a maioria politica que nela se formar, sendo perante ela politicamente responsavel. Dai que se esteja perante a afirma~ao positiva da exclusao dos titulares destes orgaos de governo proprio- sejam deputados das Assembleias Legislativas, sejam membros dos Governos Regionais - do conceito legal de cargos politicos, nos termos em que ao mesmo aludem a Lei n. 0 52-A/2005 ea Lei n. 0 4/85. Ill. Claro que daqui nao se pode inferir a conclusao - que seria profundamente absurda- de nao considerar aqueles referidos cargos regionais como cargos politicos lata sensu, sendo certo que naquelas duas leis se colocam nesse conceito tipos de cargos estaduais e locais, correspondendo a dois dos niveis do exerdcio do poder publico que o texto constitucional portugues conhece. Os cargos que os titulares dos "orgaos de governo proprio" das Regioes Autonomas desempenham tem tambem de ser considerados como cargos politicos numa sua acep~ao ampla, pois que dizem respeito ao exerdcio de fun~oes publicas, de indole polltica, legislativa e administrativa, dos respectivos orgaos 32 , ate com maior relevancia do que alguns dos cargos politicos stricto sensu, sejam nacionais ou locais, dada a amplitude dos respectivos poderes funcionais. Simplesmente, o facto dos os cargos regionais dos titulares dos "orgaos de governo proprio" serem cargos politicos nao significa que o regime das suas situa~oes funcionais- a come~ar pelos seus direitos e regalias- seja definido por aqueles dois diplomas, antes encontrando a sua sede normativa noutro lugar, pelo que podemos pensar na existencia, pelo menos, de duas modalidades de cargos politicos para efeitos de defini~ao daquele regime de direitos e regalias:
- os cargos politicos stricto sensu, cujo regime se encontra definido pelas leis ordinarias; - os cargos politicos regionais, cujo regime se encontra desenhado nos estatutos polltico-administrativos regionais.
"Para uma caracteriza~ao do tipo das fun~6es juridico-publicas atribuidas as Regi6es Aut6nomas Portuguesas, v., por todos, JoRGE BACELAR GouvEIA, Manual ... , ll, pp. 965 e ss.
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8. A natureza material da remissao estatutaria para o regime geral dos direitos dos titulares de cargos politicos nao regionais I. Se nao foi dificil perceber que a Lei n. 0 52-A/2005, par si s6, numa
delimitac;ao tanto positiva coma negativa, nao bole corn os direitos dos titulares dos "6rgaos de governo proprio" das Regioes Aut6nomas, a m esma linearidade porventura nao se pode obter imediatamente na interpretac;ao do alcance das revogac;oes operadas no Titulo II da Lei n. 0 4/85 sabre o EPARAM. Pergunta-se muito justamente: o facto de os direitos previstos no Titulo 11 da Lei n. 4/85 terem sido quase todos revogados, e sendo certo que tais direitos tambem p ertenciam aos titulares dos cargos politicos regionais par forc;a da norma remissiva do art. 75. 0 , n. 0 19, do EPARAM, implica que estes tambem deixaram de usufruir desses direitos, exactamente nos mesmos moldes em que tal sucedeu para os cargos politicos nao regionais, definidos pela Lei n .0 52-A72005? 0
11. A nossa resposta e negativa, surgindo logo como primeiro argumento o facto de a norma remissiva, inserta no EPARAM e acolhendo a Lei n. 0 4/85, ter operado a sua incorporac;ao na lei estatutaria regional, coma se a tivesse reproduzido integralmente. Estamos assim em face de uma remissao normativa material, que se define par o acolhimento da lei para que se remete se cristalizar no momento do infcio da vigen cia da norma remissiva, mantendo-se tal qual era nesse momento, nao obstante a lei, no futuro, poder sofrer alterac;oes, as quais nunca afectarao aquele regime, que naquele momento se consolidou. E verdade que as remissoes normativas nao tern sempre de possuir esta natureza, pais que podem ser formais, no sentido de se acolher pela norma remissiva, nao o regime regulado, mas a fonte de poder que, em cada momento, gera novas normas. Nao e esse o caso: o legislador estatutario do EPARAM nao estava a p ensar, abstractamente, no regime geral dos direitos dos titulares dos cargos politicos nao r egionais, mas p elo contrario tinha em mente urn regime concreto e determinado, precisamente nas mencionadas versoes da Lei n. 0 4/85. Ill. Mas ha outro argumento tao forte quanta este e que se p rende corn os termos par que a CRP admite a alterac;ao dos estatutos politico-administrativos das Regioes Aut6nomas. E que se fosse aceitavel a conclusao de que corn a Lei n. 0 52-A/2005 teria ocorrido a alterac;ao do regime aplicavel aos direitos dos titulares dos cargos politicos regionais, indirectamente teria havido urn alterac;ao do EPARAM. Ora, do panto de vista constitucional, a alterac;ao dos estatutos politico-administrativos das Regioes Aut6nomas - e o EPARAM nao e, certamente,
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qualquer excep<;;ao - nao se pode fazer senao pelas regras espedficas que sao assinaladas pela CRP. Tal nunca aconteceria validamente neste caso, uma vez que a feitura da Lei n. 0 52-A/2005, que alterou a Lei n. 0 4/85, ocorreu em condi<;;oes diferentes daquelas que se impoem no caminho a percorrer para constitucionalmente se alterar os estatutos politico-administrativos. Se esta pretensa conclusao pudesse vingar, enfrentariamos uma altera<;;ao "selvagem" ou na "sombra" dos estatutos politico-administrativos, algo que constitucionalmente se revelaria sempre inadmissfvel.
IV.
A RESERVA DE ESTATUTO POLITICO-ADMINISTRATIVO NA DEFINI~AO DOS DIREITOS DOS TITULARES DOS "ORGAOS DE GOVERNO PROPRIO" DAS REGIOES AUTONOMAS 9. A importancia dos estatutos politico-administrativos para a organiza~ao e o funcionamento das Regioes Aut6nomas e dos respectivos "6rgaos de governo proprio" I. Se pela primeira via da promana<;;ao da Lei n. 0 52-A/2005, de 10 de
Outubro, nao se suscitaram duvidas a respeito da sua nao aplica<;;ao subjectiva aos titulares dos "6rgaos de governo proprio" da Regiao Aut6noma da Madeira, resta agora saber em que termos tal modifica<;;ao pode vir a ser executada, designadamente saber quem tern a competencia para tal no futuro, sendo certo que o EPARAM inclui uma remissao material nesse domfnio, que se cristalizou no momento da sua edi<;;ao. Nao e que se queira que essa altera<;;ao ocorra, mas pretende saber-se quais os caminhos que tern de ser percorridos para que essa mudan<;;a possa vir a suceder, sem ferir a CRP e assim se prevenindo a sua garantia. Contudo, antes de ser dada uma resposta directa a essa interroga<;;ao, importa perceber a imporhl.ncia do estatuto politico-administrativo para cada Regiao Aut6noma, sendo certo que esta lei significa o eixo central da organiza<;;ao e funcionamento daquelas unidades politico-territoriais. 11. A CRP nao contem uma defini<;;ao fechada do sentido constitucional dos estatutos politico-administrativos, mas percebe-se por algumas das suas normas que ha materias que necessariamente se incluem nos estatutos politico-administrativos regionais. Ha, desde logo, uma defini<;;ao material que se prende corn a fun<;;ao que tais estatutos polltico-administrativos desempenham na actividade e na na estrutura<;;ao da Regiao Aut6noma, pelo que por af se percebe que ha materias inevitavelmente inclufdas no respectivo conteudo: "As regioes aut6nomas sao
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pessoas colectivas territoriais e tern os seguintes poderes, a definir nos respectivos estatutos ... " 33 . Ha, noutra perspectiva, a indica<;ao espedfica de que certas materias sao obrigatoriamente perten<;a dos estatutos politico-administrativos, como sucede corn a defini<;ao das materias nas quais a Regiao Aut6noma pode livremente legislar: "A autonomia legislativa das regi6es aut6nomas incide sob re as materias enunciadas no respectivo estatuto politico-administrativo que nao estejam reservadas aos 6rgaos de soberania" 34 . Ill. A importancia dos estatutos politico-administrativos igualmente se afere pelo procedimento de elabora<;ao, sendo concebido como uma lei da Assembleia da Republica que incorpora urn regime especial por compara<;ao corn as outras leis. Nao obstante a decisao final deliberativa competir aos 6rgaos de soberania, pela aprova<;ao pela Assembleia da Republica, pela promulga<;ao presidencial e pela referenda ministerial, o certo e que se assinalam dua s importantes particularidades nas duas primeiras fases do respectivo procedimento35 : - na fase de iniciativa, sucede que as altera<;6es aos estatutos politico-administrativos se submetem a uma reserva de iniciativa legislativa regional, pelo que a abertura de urn procedimento legislativo na materia nao se permite sem o consentimento do 6rgao regional competente, que e a Assembleia Legislativa; - na fase da instru<;ao, a vontade de introduzir emendas a proposta externa apresentada na fase da iniciativa, sujeita-se sempre a urn sub-procedimento de consulta ao 6rgao legislativo propulsor, a fim de este poder emitir urn parecer, favoravel ou desfavoravel, conquanto nao vinculativo quanta as suas conclus6es, em rela<;ao as altera<;6es alvitradas no seio da Assembleia da Republica. IV. A importancia dos estatutos politico-administrativos afere-se finalmente pela fun<;ao parametrica que lhes esta atribuida, dado que certas leis - tanto nacionais como regionais - lhe devem obediencia, apesar de nao haver entre eles qualquer desnivel hierarquico. Dai que tambem os estatutos politico-administrativos sejam leis decisivas na constru<;ao da fiscaliza<;ao da legalidade dos actos juridico-publicos que
Art. 227. 0 , n. 0 1, proemio, da CRP. Art. 228. 0 , n. 0 1, da CRP. 35 Quanto as particularidades do procedimento legislativo de aprova.;ao e de altera.;ao dos estatutos politico-administrativos regionais, v. JoRGE BACELARGouvEIA, 0 regionalismo ... , pp. 64 e 65, e Manual .. ., II, pp. 1283 e 1284. 33
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contrariem a autonomia polftico-legislativa regional, que ganha uma protec<;:ao acrescida pela cristaliza<;:ao das suas conquistas naquela modalidade de actos legislativo. Nem sequer parece errado dizer que os estatutos polftico-administrativos estao para as regi6es autonomas assim como as Constitui<;:6es estao para os Estados: os estatutos politico-administrativos sao, vendo bem, "mini-Constitui<;:6es", que organizam e estruturam uma boa parte a actividade de cada Regiao Autonoma, complementarmente aquilo que disp6e a Constitui<;:ao do Estado em que se inserem.
10. A inclusao da defini~ao dos direitos dos titulares dos "6rgaos de governo proprio" na reserva de lei estatutaria regional I. Depois de genericamente definida a importancia dos estatutos polftico-administrativos na organiza<;:ao e no funcionamento das Regioes Autonomas, e o momento de responder directamente a pergunta formulada e saber se os direitos dos titulares dos "orgaos de governo proprio" dele fazem parte integrante. A nossa resposta e evidentemente positiva, pois que a CRP o afirma sem margem para duvidas, ainda que a interpreta<;:ao desse preceito deva fazer-se acompanhar da interpreta<;:ao de outro preceito, bem menos claro e que parcialmente se sobrep6e a esta materia.
11. No regime que a CRP estabelece a respeito dos "orgaos de governo proprio" das Regi6es Autonomas, a certo passo o texto constitucional afirma que "0 estatuto dos titulares dos orgaos de governo proprio das regioes autonomas e definido nos respectivos estatutos polftico-administrativos" 36 â&#x20AC;˘ Eis uma das poucas disposi<;:6es que explicitam o conteudo possfvel dos estatutos polftico-administrativos, que assim podem ser decerto bem preenchidos corn a incorpora<;:ao desta materia: a defini<;:ao dos direitos dos titulares dos "orgaos de governo proprio" das Regioes Autonomas. E repare-se que essa e uma alusao abrangente, porquanto nao se especifica uma qualquer parte desse estatuto, estatuto que e assim globalmente considerado. Ill. So que esta certeza interpretativa e parcialmente abalada pelo facto de haver outro preceito constitucional que se sobrep6e a este regime, num concurso de normas que tern de ser resolvido.
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Trata-se de uma das materias que sao da reserva absoluta de competencia legislativa da Assembleia da Republica, na qual se afirma o seguinte: "E da competencia exclusiva da Assembleia da Republica legislar sobre as seguintes materias: (... ) Estatuto dos titulares dos orgaos de soberania e do poder local, bem como dos restantes orgaos constitucionais ou eleitos por sufragio directo e universal" 37 . Nao e dificil perceber a razao por que os direitos dos titulares dos "orgaos de governo proprio" se integram na previsao desta norma constitucional: e que aqueles orgaos - a Assembleia Legislativa e o Governo Regional - sao orgaos constitucionais ao serem consagrados no texto constitucionaP 8, para alem de a Assembleia Legislativa ser ainda urn orgao eleito por sufragio directo e universal. IV. Contudo, em que ponto consiste verdadeiramente o concurso d e tftulos de habilita<;ao de competencia legislativa, sendo certo que tanto os estatutos politico-administrativos como as leis de reserva absoluta de comp etencia legislativa sao sempre da competencia da Assembleia da Republica, em regime de competencia indelegavel? Na verdade, sobre uma mesma materia que e abrangida por disposi<;6es constitucionais distintas, regista-se que as leis que sao produzidas no ambito daquela listagem sao leis comuns, ao passo que as leis de aprova<;ao ou d e altera<;ao dos estatutos politico-administrativos sao leis refor<;adas, refor<;o que se assinala nao apenas pela fun<;ao como tambem pelo procedimento.
11 . A temporaria suspensao da reserva de iniciativa legislativa em materia de leis eleitorais e a eventual revisao dos direitos dos titulares dos "6rgaos de governo proprio" das Regioes Aut6nomas I. Tendo-se chegado a conclu sao de que a defini<;ao - bem como, naturalmente, a su a altera<;ao posterior - dos direitos dos titulares dos "orgaos d e governo proprio" das Regi6es Autonomas e uma materia reservada aos respectivos estatutos politico-administrativos, resta ainda apreciar as consequencias que derivam do facto de ter sido aprovada uma disposi<;ao constitucional transit6ria suspendendo a exclusividade da iniciativa legislativa regional em materia de leis eleitorais. Vem esta a ser a disposi<;ao que consta das Disposi<;6es Finais e Transitorias da Lei Constitucional n. 0 1/2004, de 24 de Julho de 2004, preceituando o seguinte: "A reserva da iniciativa legislativa em materia de leis eleitorais para as Assem-
A rt. 164. 0 , al. m), d a CRP. ao con ceito de 6rgao con stitucional, na sua rela~ao corn os 6rgaos do Estado e os 6rgaos de soberania, v. JoRGE BACELAR GouvEIA, Manual ... , II, pp. 1153 e ss. 37
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bleias Legislativas, prevista no n. 0 1 do artigo 266. 0 e na allnea e) do n .0 1 do artigo 227. 0 , depende da aprova<;ao das altera<;6es as referidas leis nos seis meses subsequentes as primeiras elei<;6es regionais realizadas apos a entrada em vigor da presente lei constitucional"39 . Nao obstante a diferen<;as das materias em causa- uma coisa sao as quest6es eleitorais e outra bem diversa ea do estatuto dos titulares dos orgaos de governo proprio -, a verdade e que se sente a sua hipotetica interconexao pela circunstancia de uma e outra constarem, ate a data, do mesmo texto legislativo, que ea lei estatut<iria regional. 11. A boa resposta, porem, so pode ser a da irrelevancia da mencionada disposi<;ao constitucional transitoria, apesar de as materias eleitorais terem sido inclufdas - a nosso ver, mal - nos estatutos polftico-administrativos regionais. E que a suspensao da reserva de iniciativa legislativa de que se cura apenas diz respeito as materias eleitorais, que corn a revisao constitucional de 2004 definitivamente foram consideradas como estando exclufdas do ambito material dos estatutos polftico-administrativos, nesse sentido tendo ja muito antes caminhado a doutrina constitucional portuguesa. A possibilidade de o Estado, atraves dos seus orgaos legislativos, aceder a iniciativa legislativa em materia de leis eleitorais regionais apos o transcurso dos 6 meses seguintes a realiza<;ao das ultimas elei<;6es regionais apenas se destina a permitir a interven<;ao legislativa nesse domfnio contra uma eventual nao vontade propulsora dos orgaos regionais, caso pretendessem obstaculizar essa reforma da legisla<;ao eleitoral pertinente. Nao so eo proprio art. 47. 0 da Lei Constitucional n. 0 1/2004 a individualizar somente as materias da legisla<;ao eleitoral como se assinala tambem a distin<;ao, que agora passou a ser clara, entre 0 ambito da lei estatutaria regional e 0 ambito da lei eleitoral regional. Ill. Claro que se poderia sempre pensar na seguinte hipotese: enquanto a legisla<;ao eleitoral nao fosse expurgada das leis estatutarias regionais, sempre se permitiria ao Estado beneficiar daquele alargamento de iniciativa legislativa e este ate aproveitar o ensejo para abrir urn procedimento legislativo que simultaneamente extravasasse daquele ambito, tocando noutras materias, como as verdadeiramente relacionadas corn os direitos dos titulares dos "orgaos de governo proprio" das Regioes Autonomas. E seguro que ha em geral uma distin<;ao entre a iniciativa do procedimento legislativo ea fase deliberativa do mesmo, no caso do procedimento de altera<;ao estatutaria cabendo as Assembleias Legislativas aquela ea Assembleia da Repu-
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blica esta, nao tendo a Assembleia da Republica de ficar vinculada ao parecer favoravel dos parlamentos regionais no caso de pretender aprovar normas diversas das que tinham sido propostas . . Simplesmente, o caso que se apresenta como mero raciocinio hipotetico nem sequer pode legitimamente configurar uma valida abertura de iniciativa legislativa de altera<;ao estatutaria porque o Estado nao passou a te-la corn a disposi<;ao transit6ria do art. 47. 0 da Lei Constitucional: o que o Estado passou a ter, perante uma eventual inercia regional nos seis meses referidos, foi tao-somente a faculdade de abrir urn procedimento legislativo de altera<;ao da lei eleitoral e nao de altera<;ao da lei estatutaria regional, mesmo considerando que as normas eleitorais ainda constam daquela lei estatutaria. Se, acaso, isso viesse a suceder, e o Estado aproveitasse o ensejo para, tendo como ponto de partida a altera<;ao da legisla<;ao eleitoral, alterar outras materias verdadeiramente estatutarias, como a dos direitos dos titulares dos 6rgaos de governo regional, naturalmente que o resultado s6 poderia ser o da produ<;ao de uma lei procedimentalmente inconstitucional 40, uma vez que se aproveitaria o regime do procedimento de altera<;ao da lei eleitoral para se chegar ao procedimento de altera<;ao da lei estatutaria, sendo certo que a mencionada disposi<;ao final do art. 47. apenas fala em legisla<;ao eleitoral e nunca em legisla<;ao estatutaria ... 0
V. CONCLUSOES
12. Enunciado das conclusoes Do exposto, podemos sintetizar as seguintes conclus6es: a. Os direitos dos titulares dos "6rgaos de governo proprio" da Regiao Aut6noma da Madeira, a semelhan<;a do que sucede corn a hom6loga Regiao Aut6noma dos A<;ores, constam do Estatuto Polltico-Administrativo da Regiao Aut6noma da Madeira, no seu Titulo II; b. Do elenco das diversas posi<;6es juridicas ai consagradas, evidenciam-se os direitos atribuidos pelo Titulo II da Lei n. 0 4/85, que sao remissivamente acolhidos pelo art. 75. 0 do EPARAM; c. A Lei n. 0 52-A/2005, corn o intuito de drasticamente eliminar os direitos a subven<;ao vitalicia e a reintegra<;ao profissional ap6s 0 termo de fun<;6es, s6 se aplica aos cargos publicos expressamente referidos, de indole nacional e local, considerando-se que a ausencia de uma indica<;ao sobre
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Sob reo conceito da inconstitucionalidade procedimental, v., por todos, JoRGE BACELARGouvETA,
Manual ... , I!, p. 1304.
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os cargos publicos dos "orgaos de governo proprio" so pode implicar que neles subjectivamente nao se aplica tal diploma legislativo; Assim tambem tern de se concluir, numa delimita<;ao positiva da questao, considerando que os cargos politicos regionais se inscrevem numa categoria constitucional propria dada pela locu<;ao "orgaos de governo proprio", para a qual a CRP conferiu urn regime especial no plano da competencia legislativa, bem como na configura<;ao m aterial de algumas das suas op<;6es; Cumpre ainda referir que a remissao efectuada pelo EPARAM para a Lei n .0 4/85 e de indole material, pelo que o regime dos direitos existentes aquando da aprova<;ao do EPARAM se consolidou e se manteve fixo, nao obstante as altera<;6es posteriores daquela Lei n .0 4/85, mesmo a situa<;ao mais drastica de terem aqueles direitos sido revogados ou alterados, pelo que a altera<;ao daquele nunca pode ser aceite porque sempre configuraria uma altera<;ao "selvagem" de urn estatuto politico-administrativo regional; Noutra perspectiva, a nao aplica<;ao subjectiva da Lei n. 0 52-A/2005 aos titulares dos "orgaos de governo proprio" das Regioes Autonomas ainda se compreende p elo facto de tal materia pertencer a reserva de estatuto politico-administrativo region al, so podendo ser legislada dentro desse contexto, em que se estabelece urn procedimento especial, e nunca atraves de uma lei que nao tenha a natureza de estatuto politico-administrativo; Dai que tambem deva ser objecto de interpreta<;ao restritiva a amplitude corn que a CRP concede a Assembleia da Republica a faculdade de legislar sobre os estatutos dos titulares dos orgaos constitucionais, dele for<;osamente devendo sair os orgaos regionais- que sao tambem orgaos constitucionais - porque beneficiam de uma disposi<;ao especial, conferindo urn regime diverso de legifera<;ao nessa mesma materia atraves da sua inclusao no estatuto politico-administrativo regional; Nem sequer faz qualquer sentido invocar o livre acesso que o art. 47. 0 da Lei Constitucional n. 0 1/2004 conferiu ao Estado em materia de abertura do procedimento legislativo porque o mesmo so diz respeito a legisla<;ao eleitoral, e nao as materias verdadeiramente estatutarias, como e decerto 0 caso da defini<;ao dos direitos dos titulares dos u orgaos d e governo proprio", nao obstante ate a data as normas eleitorais estarem insertas nos estatutos politico-administrativos.
Tal e, salvo melhor opiniao, o parecer de
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DIREITO EUROPEU E IDENTIDADE EUROPEIA
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DIREITO EUROPEU E IDENTIDADE EUROPEIA *
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§1. Direito europeu e Europa
1.1. Come<;:aremos por frisar que as reflex6es em seguida enunciadas nao foram pensadas na dependencia do direito da Uniao Europeia, tornado como o quadro juridico vigente comum aos respectivos membros 2• Nao obstante este direito dispor ja de urn historial, a respectiva genese nao se encontra suficientemente distanciada no tempo, para o direito comunitario poder ser olhado corn a objectividade que convem a uma visao integrada pela componente hist6rica. Tao pouco e ja possivel ter uma ideia definida da evolu<;:ao dos factos normativos que lhe estao associados, impreciso que esta o proprio futuro politico da Uniiio ap6s a rejei<;:ao da Constituir;:iio Europeia por alguns membros 3 • Por tudo isto, sem prejuizo do relacionamento que se mostrar conveniente em cada momento, e fora da dependencia estrita do respectivo quadro positivo que as reflex6es serao em geral desenvolvidas. 1.2. Em segundo lugar julgamos util clarificar a utiliza<;:ao da expressao
direito europeu, preferida em detrimento da expressao direitos europeus. A clarifica<;:ao e desejavel, desde logo porque nao e o mesmo pensar em multiplos ordenamentos ou num ordenamento unico, ainda que integrado por diversas componentes. · 0 presente texto foi publicado autonomamente na Universidade Lusfada (2007), para aos alunos da disciplina de Fundamentos do Direito Europeu e de Filosofia do Direito. 1 Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e da Faculdade de Direito da Universidade Lusfada de Lisboa. 2 Sobre o direito da Uniao Europeia, Fausto de Quadros, Direito da Uniiio Europeia ... ; Joao Mota de Campos, Manual de Direito Comuniliirio .... ; Maria Lufsa Duarte, Direito da Uniiio Europeia .... Na bibliografia estrangeira, a par de muitos outras, L. Constantinescu, Das recht der europaischen .. .. 3 Numa posi~ao crftica em rela~ao a nfveis elevados de integra~ao, Paulo de Pitta e Cunha, disponibiliza~a o
A
integra~iio
europeia ... ; A crise da
Constitui~iio
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Europeia ... ; Reservas
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Mas, e tambem conveniente porquanto o conceito, mesmo utilizado no singular, e compativel corn diferentes conteudos ou acep<;:6es. Pode, na verdade, dirigir-se a urn entendimento especulativo do direito, configuravel como conjunto de principios e valores reveladores de uma certa forma de o pensar na Europa, independentemente de se concretizarem em regras vigentes em determinado momento; pode recair sobre a compara<;:ao do direito dos diversos Estados europeus, ou dos grandes sistemas jurfdicos vigentes neste espa<;:o; pode ter urn sentido prospectivo, como antevisao de urn sistema jurfdico europeu por detras do qual esteja urn nfvel elevado de integra<;:ao, maxime do tipo federal; pode corresponder ao somat6rio dos sistemas jurfdicos dos varios espa<;:os regionais 4; pode eventualmente ter ainda outros alcances. A clarifica<;:ao do postulado enunciado em primeiro lugar decorrera naturalmente das reflexoes sucessivamente entretecidas. Nao se justifica por isso entrar nele agora ex professo. Ja quanto aos diferentes conteudos e acep<;:6es justifica-se alguma aten<;:ao. Na respectiva clarifica<;:ao, como ponto de partida, convem nao esquecer que todos pm路tem de uma perspectiva actualista no modo de perceber o conceito de direito europeu. A agrega<;:ao de elementos retirados do passado, designadamente respeitantes aos antecedentes, visa alargar e completar a visao subjacente, decorrendo da inten <;:ao mais ampla que motivou inicialmente estas linhas5 . Como e born de ver, s6 em rela<;:ao a tais elementos cabe reflectir em termos hist6rico-jur1dicos, independentemente de se concluir pela respectiva inser<;:ao numa linha evolutiva comum, ou em varias, distintas, face a realidade multifacetada hoj e existente. Em tudo o mais a reflexao decorre essencialmente da realidade hodierna. A primeira acep<;:ao aproximar-se-ia do conceito de pensamento juridico, pelo que o direito europ eu dela emergente corresponderia ao modo d e pensar o direito no espa<;:o politico e geografico subjacente: a reflexao jus-hist6rica reconduzir-se-ia ao estudo da evolu<;:ao, no tempo, de tal modo d e pensar. A segunda apontaria para urn direito comparado a escala europeia e a reflexao hist6rica' apontaria para uma compara<;:ao de sistemas a luz da respectiva genese. A terceira pressupoe urn caminho ainda a trilhar e equaciona o direito em fun<;:ao desse caminho: a reflexao hist6rica teria dificuldade em se ajustar a uma visao deste tipo, por carencia de sentido, a menos que incidisse sobre a procura, no passado, dos fundamentos de tal futuro . A quarta olharia para a realidade hodierna corn urn certo pragmatismo, numa 6ptica proxima a que esta por detras das realidades jurfdicas nacionais, ainda que podendo valorizar 4
Fausto de Quadros, ob. cif, p. 21 e s. Convem nao esquecer que as reflex6es contidas no texto agora publica do foram autonomizadas de urn texto mais amp lo orientado para a jus tifica~ao de uma disciplina em projecto, a qua l se designaria Hist6ria do Direito Europeu (Provas de agrega~ao na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em 18 de Maio de 2006). 5
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preferentemente vertentes normativas ou institucionais: a reflexao hist6rica a ela subordinada, ao ter em conta tais patrimonios, procuraria relaciona-los corn percursos anteriores eventualmente comuns, sendo esse, nas linhas gerais, o seu conteudo. E a ultima acep~ao que consideramos mais proxima da clarifica~ao preliminar do alcance que queremos dar ao conceito de direito europeu. Preliminar todavia, no verdadeiro sentido, porque aponta apenas para linhas de for~a. De facto, embora talvez corn menor intensidade em rela~ao a primeira 6, todas mantem pontes entre si, as quais e desvantajoso cortar. Na nossa perspectiva seria ate contraproducente tentar faze-lo, podendo facilmente compreender-se o risco inerente, tomando como exemplo a terceira acep~ao, dada a dimensao prospectiva nela fnsita quanto ao conceito de direito europeu. Falar neste caso de futuro, sem o alicer~ar na realidade subjacente a todas as demais - independentemente de serem olhadas como presente ou como passado -, seria, na verdade, absurdo. Todas possu~m pois, valia propria, pelo que os respectivos contributos devem ser vistos como complementares. Quando se coloca a alternativa entre direito europeu e direitos europeus, para alem de uma interroga~ao sobre conteudos e tambem a valoriza<;ao de uma base normativa comum passive! de ser percebida, que esta a ser equacionada. Preferir a segunda expressao, suporia p01-tanto, a recusa d essa base, pelo menos a nfvel suficientemente valorizado para permitir um olhar abrangente sobre a realidade jurfdica europeia, pois todas aquelas acep~6es tern em comum um enfoque orientado para a unidade em detrimento da diversidade. A recusa teria talvez m enos consequencias - pode admitir-se - no que respeita a primeira, ja que a facilidade corn que o pensamento jurfdico se articula corn o pensamento filo sofico (jurfdico ou nao ), sem questionar o es treito contacto entre os varios espa~os politicos europeus, permitiria, talvez encontrar sem esfor~o excessivo, em torno de pensadores individualizados ou de escolas espacialmente conectaveis, denominadores comuns, sem os diluir necessariamente numa globalidade. Teria mais intensidade quanto as demais acep~6es, em especial a ultima, pela evidente maior facilidade que o Estado, ou a entidade que mais dele se aproxime na actual realidade comunitaria, tern, em condicionar a vigencia de normas e institutos, favorecendo-se assim uma visao unitaria. A op~ao por direitos europeus conduziria, por isso, a manter o estudo de cada direito europeu no ambito do seu proprio percurso evolutivo e o resultado n ao se afastaria muito do que se verifica actualmente n a jurishistoriografia
6 Em abs tracto poderia ser inclufd a numa acep<;ao ampla de Hist6ria do Direito Europeu, mas geralmente tern-se distinguido entre Hist6ria do Pensamento Jur fdico e Hist6ria do Direito propriamente dita.
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europeia, geralmente limitada a concatena<;:ao circunstancial de dados oriundos de diferentes ordenamentos nacionais. Dito de outro modo, se a admissibilidade de urn direito europeu, na vertente que mais nos sensibiliza, ou seja na normativa e institucional, e ainda assim passive! de debate - nao o recusamos - a orienta<;:ao no sentido de direitos europeus, face a multiplos elementos existentes, ao menos quando olhada sob uma 6ptica extrema nao se afiguraria de todo credivel. Desde logo, face a inquestionavel existencia de tra<;:os comuns entre a generalidade dos ordenamentos vigentes no territ6rio europeu, heran<;:a evidente de realidades anteriores que a todos afectaram, ainda que em tempos e graus diferentes. Mas tambem face a inquestionavel proximidade entre os percursos formais na cria<;:ao do direito, em numerosas regioes da Europa, evidencia que, alias nem sequer exige recurso a especialistas, bastando espirito de observa<;:ao e senso comum. Nao e, em qualquer caso, entre posi<;:6es extremas que colocamos a op<;:ao, ou seja entre a desvaloriza<;:ao do comum, enquanto suporte de uma ideia de unidade e a desvaloriza<;:ao absoluta da diversidade, enquanto evidencia. Nenhuma seria defensavel e poucos as assumiriam. De facto, a op<;:ao colocamo-la tao-somente no plano da presen<;:a de factores comuns corn intensidade suficiente para levar a preferir urn conceito de direito europeu, valido quer como instrumento essencial da europeidade no plano da realidade, quer como conceito justificante, no plano hist6rico, de reflexoes dedicadas. E aqui que a nossa preferencia vai claramente para a segunda, tanto mais que qualquer eventual duvida em a perfilhar, nao levaria necessariamente a considerar como unica alternativa, ao menos no plano hist6rico, uma configura<;:ao final constituida por tantas visoes jurishistoriograficas do direito quantos os ordenamentos nacionais ou estaduais existentes na Europa. Apenas se nao fosse, de todo, possivel encontrar relevantes pontos de contacto, tudo tenderia a permanecer como hoje. Como esta hip6tese, mesmo no quadro de uma posi<;:ao moderada, s6 remotamente seria defensavel - ja o dissemos -, subsistiria sempre a possibilidade de se falar de uma visao hist6rica do direito europeu, ainda que distribuida por tantos segmentos verticais ou horizontais, quantas as realidades parcelares concatenaveis, detectaveis no espa<;:o geografico que lhe corresponde. Trata-se alias, de urn modelo que no piano nacional tern sido utilizado na historiografia juridica em certos paises, como e o caso de Espanha, por facilmente adaptavel a Estados plurinacionais e e manifesto que mesmo em tais situ<;:6es nao tern implicado a recusa de uma visao unitaria. Em sintese, diriamos pois, que o debate poderia ser equacionado em dois momentos. Num primeiro, optando entre urn conceito comparavel a urn tronco comum do qual saem as especificidades nacionais ou estaduais, e urn conceito comparavel a uma multiplicidade de troncos principais de caracter nacional
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ou estadual, cuja base, ainda que remotamente comum, por distante ou esbatida nao justifica tratamento unitaxio. Esta indaga<;ao estaria orientada para a formula<;ao da op<;ao inicial entre direito europeu e direitos europeus. Figurativamente, a segunda alternativa corresponderia a uma floresta de especies completamente diferentes. Como dissemos, por dificilmente defensavel, afastamo-la. Restando a primeira, haveria entao que verificar se comporta sub-alternativas possiveis ou aceitaveis. Em abstracto admitimos que sim. Seria o caso se figurativamente associasse uma base comum visivel, impossivel de ignorar, a troncos dela emergentes corn diferentes graus de proximidade entre si, correspondentes a ordenamentos estaduais ou nacionais igualmente impossiveis de ignorar na sua especificidade. Saber se esta sub-alternativa deve ser preferentemente aproximada da primeira ou da segunda alternativa principal, seria problema ainda a resolver, embora menor, pois a op<;ao nao se perfilaria entre hip6teses radicalmente opostas. Porque a segunda nos parece, em si, menos credivel, a nossa tendencia vai no sentido de a aproximar da primeira, olhando-a como uma variante. A qual estaria ja reflectida na propria terminologia preferida, a qual, ao apontar para direito europeu, supoe ja na base algo mais do que uma simples referencia geografica, manifestamente insuficiente, por potencial ausencia de alcance juridico. A nao ser assim, os direitos chines ou indiano - para tomar exemplos cuja base geografica esta afastada da Europa - enquanto aplicaveis em territ6rio geograficamente europeu, mas nacional porque correspondente as respectivas embaixadas, caberiam neste conceito. Por excessivamente amplo, tal conceito seria inconsequente. Em suma, na visao unitaria identificavel corn a primeira alternativa, a observa<;ao da materia parte da ideia primordial de coesao para buscar a diversidade. Na variante referida a ideia de diversidade e ja dominante, partindo-se dela para a busca de tra<;os comuns. Sendo possivel lidar corn niveis de coesao diferenciados, correspondentes na pior das hip6teses a paises, ou na melhor a grupos de paises, haveria essencialmente apenas que fazer reflectir esses niveis na sistematiza<;ao adoptada. 1.3. Em terceiro lugar parece-nos interessante associar a problematica da historiografia do direito europeu a ideia de Europa e a ideia de identidade europeia, enquanto conceitos uteis ao seu enquadramento. Na sequencia a seguir, reconhecendo-os como pr6ximos, preferimos olhar primeiro a ideia de Europa e em seguida a de identidade europeia. Intencional, a escolha funda-se na maior plausibilidade de a identidade europeia, a existir, ser consequencia da ideia de Europa - esta necessariamente existente, ainda que de contornos discutiveis - do que admitir o contrario 7 â&#x20AC;˘ 'Admitindo-se o entendimento diverso, ou seja, a coloca~ao da ideia de Europa na dependencia de factores identitiirios europeus, o factor geografico seria quase negligenciavel.
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Preliminarmente uma breve justifica\ao sobre o chamamento destes conceitos. Falar de urn direito europeu no quadro anteriormente aflorado, e pensar, antes de mais, no direito como complexo de normas e institui\6es. Olha-lo historicamente e admitir urn devir no qual ocupa lugar de relevo na liga\ao entre passado e presente. Sup6e ainda urn conceito adjectivante, o qual serve justamente para o caracterizar. Em situa\6es similares tal caracteriza\ao e feita corn recurso ao nome do Estado a que o direito principalmente se liga. Nao sendo manifestamente o caso, pois a Europa nao e urn Estado, esse nome devera corresponder, ao menos, a uma realidade capaz de ocupar posi\ao analoga, ainda que os respectivos contornos sejam de diversa natureza. Sendo assim a ideia de Europa - seja ela qual for - e indispensavel para se falar de urn direito europeu. Quanta a identidade europeia trata-se de urn conceito cujos elementos essenciais se movem exclusivamente no plano das figura\6es abstractas 8 . Entronca na cultura em sentido amplo, embora absorva apenas parte dela como ulteriormente diremos. Podera ser de defini\ao complexa. Podera mesmo ser impossivel resolver duvidas essenciais que a envolvem, quais sejam as relativas a propria existencia ou ao interesse em a admitir, mas ao contrario da ideia de Europa, facilmente se conclui que, existindo identidade, independentemente dos respectivos contornos nao se seguiria automatica ou necessariamente a existencia de urn direito europeu. Tal como nao se verificaria a conclusao inversa, ja que a inexistencia de identidade nao implicaria a recusa de urn direito corn a denomina\aO de europeu. Em sfntese, nao e indispensavel a defesa que nos propomos. Tera, apesar disso, interesse olhar em conjunto, direito europeu e identidade europeia? Julgamos que sim. Nao obstante, enquanto conceitos, poderem ser olhados em separado, nao so estao proximos pelo adjectivo que os une, como em conjunto sao ambos relevantes no quadro das reflex6es que nos ocupam. 0 primeiro, porque subordina o direito a urn nome e os nomes nao sao aleatorios, mas significantes. 0 segundo, porque, se existir contribuira seguramente para a configura\ao do primeiro, de modo nao despiciendo. Trata-se, e certo, de uma relevancia possivel, provavel talvez, mas nao necessaria. Abre em qualquer caso diversas pistas. Ou a identidade corresponde a algo corn rafzes no passado ou interpretavel a sua luz, e nessa circunstancia dificilmente nao se interligara corn as raizes do proprio direito; ou corresponde a algo ainda inexistente que se intenta construir, e se assim for sobredeterminara o direito em forma\ao; ou simplesmente nao ocupa nem uma nem outra posi\ao, restando ve-la como componente da ideia de Europa, ou como excrescencia destinada a ocupar paginas inuteis. 8
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ยง2. Ideia de Europa 2.1. A ideia de Europa como urn todo, nao obstante os desenvolvimentos que o seculo XX permitiu, reflecte ainda hoje a fluidez que sempre lhe esteve associada. Por sobre urn sentido geografico de fundo - o unico que admite consensos mais alargados e que para muitos foi o primeiro em que a Europa se reviu 9 comporta outros alcances parcelares 10 . Tern-no revelado implicitamente variados autores quando, ao recordarem o passado, ao olharem o presente ou ao anteciparem o futuro, a reconduzem ao plano hist6rico, polltico, econ6mico, religioso ou outro, como se se tratasse de uma ideia naturalmente compartimentavel em sectores corn for~a propria suficiente para valer desligado dos demais, mas incapazes de definirem em conjunto uma matriz comum11 . Ou, como algo que s6 segmentado se justifica ser olhado, numa especie de tributo a urn minimo que, de pragmatico, nao implica maiores riscos. Uma Europa essencialmente de cunho geografico tao evanescente quanto o esbatimento de uma base humana europeia o permite, ou multiplas Europas sectoriais, a luz de tantas vertentes quanta as detentoras de potencialidades aut6nomas, eis o quadro que frequentemente se nao pode ignorar, face a uma realidade que, falha de coerencia polltica global e de certo modo for~a animica, se encontrou quase permanentemente ao longo da Hist6ria num limbo entre o que se sabe nao poder ser e o que alguns gostariam que fosse 12 . Paradoxalmente, a despeito da abstrac~ao pouco consistente a que tais acep~6es fragmentarias conduzem, contra todas nunca deixaram de se levantar objec~6es 13 , a cada afirma~ao de especificidade europeia se opondo uma critica desvalorizadora, como se nem a uma identidade fragmentaria tivesse jus. Numa atitude de impotencia fac e a nacionalismos enraizados no seu seio, duvidou-se da possibilidade da existencia de uma Europa capaz de ultrapassar
Fausto de Quadros, Direito da Uniiio Europeia ... , p . 23. Ao pensamento politico portugues sobre o tema e indisp ensavel o estudo de Martim de Albuquerque, Primeiro ensaio sob re... , na qual se oferece uma visao sob re o modo como a ideia foi sendo observada e assimilada em Portugal. Todas as na~6es europeias tiveram, em maior ou menor grau, receptividade ao tema. Na impossibilidade de fa zer uma resenha, na~ao a na~ao, para alem de trabalhos que em cada momento possam ser indicados, assinalam-se exemplificativamente, na segunda metade do sec ulo XX, B. Voyenne, Histoire de /'idee europeene ... ; Jean Baptiste Duroselle, Europa ... , e L'idee d'Europe... ; Raimond Aron, Defesa da Europa decadente ...; Denis de Rougemont, Vingt huit siecles d'Europe...; Andre-Jean Arnaud, 0 pensamento jurfdico europeu.... ; N. Davies, Europe. A history ...,; Jdentidade europeia e multiculturalismo ... ; Maria Manuela Ribeiro, A ideia de Europa. Uma perspectiva hist6rica.... 11 Gon zague de Reynold, L'Europe tragique.. , p. 398 e s (ap. Martim de Albuquerque, ob. cit. p. 255). 12 Ocasionalmente pode surgir como urn todo no qual mais de uma vertente se conjugam. Mas logo as nacionalidades cobram os seus direitos como obstaculos naturais a uma visao homogenea . 13 Idem, idem, p. 256 e s. 9
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a mera abstrac<;ao laboratorial. Face a incapacidade atavica em apagar a fronteira corn o vizinho, qual sombra insinuada em costuras mal cerzidas que logo o transforma em inimigo, recusou-se uma identidade europeia. Face ao medo latente em acentuar clivagens, hoje multiplicado pelo confronto corn novas realidades de origem externa, em nome de urn relativismo cultural recusou-se uma cultura europeia. A ideia de Europa move-se pois, de ha muito em ambiguidades e contradi<;6es. Entre na<;6es que a veem como objecto-sfmbolo a atingir e na<;6es que lhe op6em o seu proprio nacionalismo. Entre na<;6es que tentam superar-se e na<;6es que se acomodam a interesses proprios. Entre crentes num futuro europeu e crentes num futuro decalcado sobre o passado. Entre os que em nome do mfnimo denominador a veem apenas como corpo economico, mesmo que sem alma, e os que em nome de urn maxima denominador se empenham em encontrar nela uma alma, ainda que desligada de urn corpo. Contradi<;6es e ambiguidades em suma, entre a valia atribufda pelos europeus a sua propria existencia colectiva. E todavia, a despeito da fluidez a Europa existiu e existe. Existira tambem, queremos acreditar, se ate ao limiar do futuro proximo se compreender que so urn profunda investimento na sua propria identidade lhe permitira ultrapassar as insuficiencias. 2.2. Reconhecendo embora dificuldades, descremos das posi<;6es mais cepticas sobre a Europa, principalmente fruto da escassa convic<;ao na capacidade de superar duradouramente contradi<;6es de percurso, do que de evidencias sobre a sua impossibilidade. Em face dos dados aflorados coloca-se, em qualquer caso, hoje como sempre uma questao essencial. Existira uma Europa para alem da que decorre do sentido geografico, capaz de se projectar no futuro como na<;ao quando os impedimentos forem removidos? Antecipando a resposta, admitimos que sim. Talvez mais do que uma constata<;ao factual, trata-se de uma cren<;a ou de uma intui<;ao. Move-se por isso em estreitos limites, mas conta corn algum suporte. 0 ponto de partida pode ser colocado na propria visao fragmentaria da Europa. Olhando a multiplicidade de vertentes possfveis, facilmente se constata que, ao valorizarem domfnios indissociaveis da presen<;a humana remetem para algo mais do que uma abstrac<;ao meramente ideal construfda por eruditos para uso erudito. Para alem da visao subjectiva incorporada em cada uma, remetem para agregados humanos que, a despeito de parcelares, constituem bases capazes de sublimar diferen<;as comportamentais no sentido de uma realidade de grau superior. Como se as nacionalidades se tivessem naturalmente esbatido nessas vertentes, em beneflcio de ideias, por vezes de projectos que, por relevantes, superaram clivagens de multipla natureza, assim se criando uma base dispo-
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nfvel para tal realidade. S6 assim puderam falar de uma Europa da ciencia, da polftica, da economia ou do direito. A despeito da segmenta<;ao ha pois, subjacente, ao menos na mente de quem assim a pensou, disponibilidade para admitir a presen<;a de factores que se sobrepoem aos nacionalismos. Como o futuro e inelutavelmente passado, a visao fnsita e simultaneamente hist6rica mesmo quando tal dimensao pare<;a estar arredada. 2.3. Coma panto de partida pode ser suficiente. Coma panto de chegada e. Se a segmenta<;ao, por mais que aponte para a supera<;ao de clivagens, nao se apoiar em domfnios que atravessem transversalmente a sociedade, sera sempre pobre para dela se retirarem argumentos. Mais ainda, interessa saber se nesses domfnios se podem encontrar elementos ou factores corn consistencia suficiente para suportar duradoura e globalmente, para alem do mero plana geografico, uma ideia possfvel de Europa-na<;ao e nao apenas de Europa de na<;6es. Se assim for, mesmo que possua contornos imprecisos ou incipientes estaremos perante factores decisivos, alguns dos quais serao identitarios, ou porque ja 0 eram ou porque passaram a se-lo. Ha portanto, uma busca a realizar e para tal poderia ter utilidade partir de urn conceito de base no qual essa ideia pudesse ser subsumida. Vale pais, arriscar urn esbo<;o capaz de servir de guiao. Sem pretensao de fixar contornos precisos, tarefa alias, muito para alem das nossas for<;as, esse conceito poderia, em sfntese, ser imaginado coma um nao
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territ6rio continente de populac;oes cuja vivencia tem elementos culturais e civilizacionais comuns suficientemente significativos para criar disponibilidade para reconhecimento ou aceitac;ao nnitua 14 . Despretensioso e, de certo modo, banal porque apenas orientado para componentes muito gerais, serve para reflectir sabre elementos mfnimos capazes de suportar uma Europa-na<;ao, uma Europa meta-geografica ainda que dispersa por entidades nacionais, tendo por convic<;ao que a ideia de na<;ao nao e incompatfvel corn a ideia de Europa por se encontrarem em pianos distintos. a) 0 elemento territorial aponta para urn espa<;o ffsico nao necessariamente preciso ou contfnuo, correspondente todavia, em parte, a urn espa<;o ideal conceptualmente uno. 14 Num breve desenvolvimento do lexico utilizado, territ6rio, aponta para um espa<;o ffsico nao necessariamente preciso ou continuo, correspondente, ao menos em parte, a um espa<;o ideal conceptualmente uno; popula9iJes, aponta para grupos humanos nao necessariamente cultural ou geneticamente pr6ximos; vive11cia aponta para figura<;6es e comportamentos, culturais e civilizacionais, presentes no dia a dia; significfincia identifica relevancia; disponibilidade identifica atitude de compreensao da significancia; reconhecimento aponta para um grau elevado de compreensao; aceita9iio aponta para urn grau minimo de compreensao compativel com a ideia de tolerancia.
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Supomos nao ser hoje viavel conceber uma realidade nacional actuante sem uma base fisica, ainda que a passagem a Estado nao seja configurada 15 . A existencia desta base seria portanto, essencial a uma Europa-na~ao. Nao estando na mao dos povos criar territ6rios a medida, resta saber se nas circunstancias actuais existira uma Europa geografica minimamente adequavel. Tudo leva a crer que sim. A Europa e hoje uma realidade geografica relativamente bem definida, ao menos na essencia 16 . Pode discutir-se a inclusao de certas franjas no seu territ6rio, mas ninguem questionara a abrangencia da Hispania, da Galia, da Britania, da Italica, da Germania ou da Dalmacia, para citar apenas algumas das que tinham nome ja desde Roma antiga 17 . 0 trabalho de fixa~ao de limites, embora sem raizes num passado longinquo, em qualquer caso penetra ja suficientemente fundo no tempo para deles se ter uma perspectiva estabilizada. De facto, ainda que exista Europa desde a antiguidade, a sua acep~ao foi demasiado vaga durante muito tempo para permitir uma identifica~ao rigorosa. Se se distinguir entre a ideia geografica da Europa e a no~ao dos seus limites geograficos, percebe-se que a primeira se fixou corn alguma anterioridade, coma foi o caso, no seculo XVI, da conhecida alegoria representando a Europa coma uma virgem coroada, na qual a Espanha era a cabe~a, o corpo a Fran~a e a Alemanha, os bra~os a Italia e a as ilhas Britanicas, ficando o resto da roupagem para as planicies da Russia. Na essencia era ja proxima da actual embora a Escandinavia nao estivesse ainda incluida 18 â&#x20AC;˘ Sob re esta imagem trabalhariam muitos autores, atribuindo, por exemplo Cam6es, a Portugal, o papel de coroa da Europa 19 e mais tarde Francisco Manuel de Melo, na Visita das Fontes, o de melhor parte da Europa 20 â&#x20AC;˘ 15
Todavia tal pressuposto nao e de todo inquestiomivel. 0 factor geografico tende a nao ser decisivo na construc;ao natural de agregados humanos participados de vectores culturais e civilizacionais comuns. 0 motivo relaciona-se, desde logo, corn a subalternizac;ao do elemento territorial em relac;ao ao elemento humano, nas fases mais antigas. Tera, pelo contrario, papel relevante na construc;ao de agregados humanos por via exclusivamente politica ou militar, por, enquanto factor, ser frequentemente colocado ao seu servic;o. Em qualquer caso, a posteriori, mesmo na primeira situac;ao, pode ter papel agregador sabre uma populac;ao, por servir de limite territorial ao exerdcio de urn poder politico comum. 16 Jean Carpentier (et alii), Histoire de L'europe ... , p. 16 e s. 17 Ninguem questionara e, obviamente, uma forc;a de expressao. Significa apenas que ninguem imbuido de razoabilidade questionara. Nao se desconhece o pressuposto islamico de que todas as parcelas territoriais que pertenceram alguma vez a umma, pertencem por direito ao califado, sendo uma necessidade absoluta a sua reintegrac;ao. Seria o caso de parte da Hispania, de parte da Russia, do Caucaso, de parte da Europa oriental e central, eventualmente da Sicilia. Ao sentido geografico, uma acepc;ao deste tipo tenderia a sobrepor uma acepc;ao pollitico-religiosa que a tornaria absolutamente irrelevante. 18
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Martim de Albuquerque, Primeiro ensaio ... , cit., p. 280. Idem, idem, p. 288 .
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Em abstracto, a ideia geografica da Europa e, pois, percepcionada ha tempo suficiente para nao suscitar duvidas, alcance que serve de pano de fundo a qualquer indaga<;ao 21 â&#x20AC;˘ Questao diferente e a atribui<;ao de limites geograficos precisos a ideia anteriormente referida, os quais s6 tardiamente adquiriram nitidez tendencial no espirito dos europeus. De facto, muito tempo depois daquela alegoria ter feito carreira, ainda no seculo XVII quando no Grand Dessein o Duque de Sully falava de urn Conselho da Europa 22, nao incluia nele a Russia. Montesquieu, no seculo seguinte fazia-a ja parar no Volga, e Voltaire, regredindo urn pouco, aludia entao a urn continente artico do Baltico a China 23 . Ainda que a generalidade das duvidas sobre os limites geograficos estejam hoje aplanadas, pelo menos a partir do momento em que a fronteira oriental foi pela primeira vez simbolicamente delimitada nos Urais, em placa colocada ao lado dos carris do transiberiano, nem todas se encontram superadas 24 â&#x20AC;˘ Em qualquer caso as dificuldades sao minimizaveis, nao s6 por nao serem verdadeiramente relevantes como por, nao se tratando a Europa de urn Estado, os limites interessarem apenas para fixar genericamente urn espa<;o ideal dentro do qual popula<;oes corn vivencias comuns se possam sentir habitantes por direito proprio. b) Em qualquer caso o territ6rio nao chega. Continuando em dialogo corn o conceito de base enunciado, ao seu lado sobressai o elemento populacional, identificavel atraves de grupos humanos nele presentes nao necessariamente sobrepostos no plano cultural ou genetico. Objectivamente a presen<;a deste elemento e inquestionaveF5 . A Europa e alias, destino natural de popula<;oes desde ha muito. Foi-o desde sempre e 21 Na o deixa de ser interessa nte qu e, nao obstante a fixa~ao de uma Europa em sentido geografico desde relativam ente cedo, poucas vezes o territ6rio que !he era imp utado foi globalmente releva nte, enquanto tal, na de fini~ao de comportamentos politicos. A raziio esteve provavelmente no facto de a respectiva vastidao o colocar fora do alcance razoavel d e grupos organizados, por fortes qu e se sentissem, porque quando assim nao foi, tendeu a afirmar-se como esp a~ o natural de expansao ao ser v i~o d e uma ideia, ainda que nem sempre uma boa ideia. Nao foi o caso imperial romano, cujos limites, essencialmente econ6micos, se ajustaram a realidade do ten¡eno, sendo certo que por ter incluido a maior parte da actual Europa, por via da romani za ~ ii o e d a c ri s tiani za ~ ao , teriam repercuss6es no futuro. Nao foi o caso do Sacro-Imperio que tinha por referencia abstracta o territ6rio imperial romano, embora na pratica apenas o ocidental. Do mesmo modo o Imperio dos Habsburgos, igualmente restrito a partes da Europa. Como excep~6es apenas o Imperio Napole6nico eo III Reich, qu e parecem ter pretendido efectivamente uma ocupa~ao da Europa. 22 Maximilien de Bethune. 23 Jean Carpentier (et alii), Histoire de L'europe.... ioc. cit. 2 ' Quanto a certos pontos do Ca ucaso ha ainda po si~ 6es divergentes sobre o que deve ser considerado Europa. 25 H a popula~ao estavel na Europa, mantida sem rupturas desde a entrada d o homem de Cro-Magnon vinda do Medio Oriente e antes, prova velmente de Afri ca . Como e sabido existia desde momentos anteriores o homem de Neanderthal, mas neste caso ocorreu a sua ex tin ~a o na Peninsula
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continua a se-lo. Embora hoje seja facil interpretar o fen6meno recorrendo a factores econ6micos, basta recuar urn pouco no tempo -ea escala do continente dois seculos sao irrelevantes- para tal motiya<;ao nao ser significante. E todavia, as migra<;6es ocorreram quase continuamente no periodo antigo, sempre que a fluidez das fronteira s dos Estados existentes no territ6rio o permitia, algumas vezes aproveitando brechas naturalmente abertas, outras for<;ando-as violentamente. E interessante ainda constatar que, sem prejuizo de movimentos internos de sentido diferente causados por raz6es circunstanciais, quando se olha o territ6rio que costuma ser adjudicado a Europa, ou seja entre os Urais e o Atlantico as migra<;6es internas tenderam a ser quase sempre de Este para Oeste, de tal modo que o ocidente ultimo passivel de ser atingido por meios naturais foi o destino final de muitas franjas de povos que sentiam a pressao inelutavel de avan<;ar26 . Obviamente ha casos inversos, mas em menor escala 27 â&#x20AC;˘ Porque razao seria este ocidente atractivo quando nada aparentemente o justificaria, tanto mais que na antiguidade as civiliza<;6es mais desenvolvidas estiveram frequentemente a Este? Tera sido para alguns o simples desejo de liberdade, potenciado justamente a custa de urn maior distanciamento dos poderes constituidos nessas civiliza<;6es? E questao ainda mal compreendida, mas nao e absurdo admitir que o proprio movimento aparente solar tenha sido motivante na suges tao do caminho a seguir, na persegui<;ao de urn factor de vida e simbolo religioso ou magico 28 .
lberica, urn pouco antes de 20.000 anos a.C. A eventual miscigeniza~ao deste homo corn o de CroMagnon, relanc;ada corn a descoberta da crian~a do Lapedo, o que significaria a sua nao ex tin~ao no plano genetico, n ao esta esclarecida, parecendo toda via pouco segura. 26 Apenas alguns exemplos. A expansao da agricultura fez-se a partir de 10.000 a. C. do orien te (Medio Oriente) para o ocidente. Os Celtas deslocam-se em vagas sucessivas a partir do segundo milenio a.C. das estepes da Eurasia para o ocidente. Os Germanos aguardam pacientemente ate em 506 o Reno, gelado, lhes permitir entrar em massa rumo ao ocidente. 0 Hunos ja o haviam feito, encontrando os Germanos pela frente. Os Normandos tiveram no ocidente o seu campo principal de expansao. Os Mong6is fariam depois o mesmo. Os Ciganos oriundos da antiga India, e para o ocidente que se dirigem. Enfim, urn nao acabar de exemplos. 27 Alguns Germanos irao para oriente dar origem a parte da populac;ao russa; mas a maioria veio para ocidente. Algu ns (Godos) que inicialmente tinham tido o desejo do oriente, rapidamente invertem caminho rumo ao ocidente. Estes movimentos migrat6rios nem sempre arrastavam todo urn povo, podendo restringir-se apenas a parcelas. Mas, quase todos os povos pre-romanos tiveram grupos disponiveis para a viagem, transformando o ocidente da Europa numa amalgama de sobreposic;oes. 0 derradeiro ocidente europeu via vel era a Hispania. Nao e por isso de estranhar que aqui existam vestigios da fixac;ao de parcelas de intimeros povos que tinham o seu habitat de origem noutras regi6es da Europa. Alguns deixaram o nome gravado em cidades hoje existentes, duplicando outras fundada s nos locais de origem Lix(bona) - Bonn (em muitos locais da Alemanha e resto da Europa); Viana- Wien; Evora/6bidos- Eburi (Sui ~a); Braga/ Bragan~a - Bracari (Suic;a) 28 0 sol era vida colocada pelos deuses a disposi~ao dos homens. Segui-lo era seguir a vita lidade suprema, era ten tar prolongar idealmente esse contacto. Seguir para ocidente era cumprir
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Qualquer que tenha sido o motivo existem pois, desde tempos imemoriais, popula<;6es estaveis dentro desse territ6rio, cumprindo-se o segundo elemento. c) Mas, deve reconhecer-se, isoladamente os dois factores pouco significam. Constituem apenas um minima que s6 adquire sentido util se puder ser superado atraves de elementos de outra natureza. Entram entao em jogo a vivencia e a signifidmcia tal como referidas, bem mais complexas porque se movem no plano das representa<;6es intelectuais. Ao nivel do grupo conduzem no sentido da na<;ao se o grupo for suficientemente coeso para assim poder ser entendido. Afloram par isso, para alguns, o plano do diabolizavel quando se pensa a Europa 29 . Aproximam-se tambem do plano da identidade pelo que serao · retomadas em momento subsequente. A vivencia aponta para figura<;6es e comportamentos presentes no dia a dia. Identifica · dad os culturais, ou seja figura<;6es intelectuais sob re temas, e simultaneamente atitudes civilizacionais. Em suma, tomportamentos que traduzem interesse na melhoria das condi<;6es de yida ou na subida a estadios evolutivos de. maior perfei<;ao 30 • Dados culturais podem ser linguas, tradi<;6es, religioes, cren<;as ou outras. Dados civiliz;acionais tem a ver com estruturas sociais, tecnicas e meios de sobrevivencia .ou atitudes orientadas para outras vantagens. E porem, apenas a vivencia significativa que interessa, ou seja, aquela a qual e tributada aten<;ao relevante e dessa vivencia releva .apenas a que e partilhada , com outros grupos. Asignifidincia move-se em diferentes sentidos. Tem como ponto de partida a sua valoriza<;ao dentro do grupo de origem31 e serve como padrao de aceita<;ao do outro, se para ele a mesma signifidl.ncia for igualmente valiosa. Ha reconheciruento porque, colectivamente, a empatia gerada e directamente proporcional a significdncia. Existe entao como que assimila<;ao natural ao grupo de o caminho que o sol seguia, no fundo era cumprir o seu proprio destino. Poderia outra causa ter motivado esse desejo comum a tantos de atingir o ocidente, que so o mar fazia parar? A palavra Europa, para alguns e de matriz indo-europeia e tem origem pre-helenica (hirib ou hirip) e teria o significado de local de repouso ou decanso. Qui~a, do sol, quotidianamente. Deve em qualquer caso notar-se que quando se toma a Eurasia como ponto de partida as migra~6es ocorreram ja com maior frequencia para ·Oriente. Parte dos povos indo-europeus dirigem-se it India; a maioria p01·em vira para ocidente. 0 caso dos Arabes e um pouco diferente pois en tram na Europa pelo sui depois de terem feito o perc.urso do oddente pelo norte de Africa, mas por raz6es apenas circunstanciais pois nao haviam logrado ultrap,assar a barreira bizantina na caminhada para o ocidente. Mais tarde tenta ~·ao segunda investida de novo sobre o ocidente, parada its portas de Viena. Em qualquer caso e inegavel que, tai como os indo-europeus, a sua progressao se fe z nos dois sentidos. Quando se toma Asia cei1tral e do sui como ponto de partida, o caminho do Oriente ton1a-se, pelo contrario o mais usual. Veja-se o caso dos indios americanos a partir da China ou Mongolia, dos polinesios a partir .da Formosa ou regioes circumvizinhas, dos Ainos no Japao qui~a a partir de algures na Asia central. 29 A na~ao .c omo factor-chave responsavel pela guerra qua se permanente viv ida na Europa ao longo dos seculos (infra). 30 Polis.. , vb' Civilii arao e Cultura. 31 0 grupo de origem significa aqui apenas o grupo a partir do qual a observa~ao se processa.
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origem. Se a valoriza<;ao da signifidmcia e menor por parte do outro, a empatia tende a ser menor tambem, podendo todavia, canter-se dentro dos limites do aceitavel. Ha nesse caso aceita<;ao no sentido de mera tolerancia. 2.4. A partir do esquisso feito sobre o conceito-base facilmente se constata estar a ideia de Europa condicionada por factores objectivos e subjectivos. Os objectivos - territorio e popula<;ao - nao obstante terem valia propria configuram-se como condi<;6es de acesso a urn conceito de nfvel mais elevado. Os subjectivos - vivencia e significancia - orientados para o plano cultural e passfveis de desdobramento em multiplos aspectos, nao possuem valia propria desligados dos anteriores, mas acrescentam-lhes algo que aqueles nao comportam. 0 conceito de base ocupa pois, dois nfveis. 0 primeiro, constitufdo pelos factores objectivos orienta para uma ideia de Europa descomprometida de uma visao na qual o contributo humano seja determinante. 0 futuro sera em larga medida aquele que for determinado por factores naturais. Resultara de uma especie de evolu<;ao social darwiniana, nunca totalmente a margem da interven<;ao humana, e certo, mas ainda assim urn entre muitos de modela<;ao dificilmente controlavel. 0 segundo, moldado por factores culturais acrescenta algo ao anterior. Acrescenta-lhe o sentir humano que o torna unico. Nao se coloca portanto, como alternativa ao primeiro, mas como complemento. Representa todavia, a pedra de toque que permite imaginar uma Europa-na<;ao na qual a contingencia da nao-Europa ou da Europa das na<;6es possa ser superada. Poderia entender-se que os factores objectivos sao, ate certo ponto, negligenciaveis. Estando para alem da vontade humana nao seriam verdadeiramente relevantes. Nao e contudo o caso, pois em ultima instancia sem a respectiva presen<;a a ideia claudicaria. Nao podendo tais factores inexistir, pode aceitar-se que a partir deles se formara sempre uma certa ideia tambem objectiva de Europa, a qual apenas correra o risco de desaparecer se alguma vez a globaliza<;ao se cumprir totalmente. 2.5. Ainda assim, esta ideia, a qual se poderia chamar pre-ideia se se quisesse entender que so a outra e plenamente valiosa, contem algo que transcende a mera objectividade. Conclui-se isso da presen<;a do nome e da sua invoca<;ao desde o tempo em que nada apontava ainda para estadios politicos concretos de supera<;ao de nacionalidades, revelando contudo alguma consciencia de uma realidade para alem do grupo, ou seja da na<;ao, se acaso o grupo a constitufa ja, e de expectativas quanta a urn futuro dentro dos seus limites. De facto, a Europa tern uma historia que na fase mais antiga anda frequentemente confundida corn a historia do proprio nome, em torno de tradi<;6es corn pendor humano e geografico. Algumas traduzem em forma poetica,
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seguramente a hist6ria de migra<;6es para a Europa a partir do Medio oriente, corn o ocidente por destino, recordadas por terem como protagonistas povos ja corn capacidade para as registar por escrito ou para as associar a momentos culturalmente relevantes. Ainda que nao tenham necessariamente os Helenos como protagonistas, e frequentemente em torno da sua mitologia que podem ser perscrutadas, em vers6es mtiltiplas, em parte pr6ximas mas nem sempre coincidentes. Em comum revelam consciencia de urn ocidente capaz de preencher o imaginario num tempo em que a terra ainda era partilhada por deuses e her6is 32, urn ocidente suficientemente atraente para, em sociedades dominadas pelo homem, receber figura feminina. 0 mito era portanto, aprazivel. A mitologia pura e a Hist6ria que vive de mitos, conheceram pois, a Europa e tiveram-na como uma evidencia, identificando-a sensivelmente corn territ6rios que hoje podem levar o mesmo nome. Mas tambem a outra Hist6ria a conheceu e perfilhou. Deste ponto de vista, atraves da pena de Her6doto a antiguidade identificou-a, ao lado da Asia e da Lfbia - a forma antiga de designar a Africa conhecida - como uma das tres partes em que o mundo se dividia, correspondendo genericamente ao que hoje e a Europa 33 . Estrabao refere-a na sua Geografia. Esta depois presente em escritos de Beda o Veneravel e em cr6nicas ligadas ao ciclo de Carlos Martel e da sua resistencia ao avan<;o mu<;ulmano em terras francas . Ao tempo de Carlos Magno fala-se na Europa occidentalis aparentemente pretendendo significar o Imperio Romano do Ocidente. A coroa<;ao de Otao Ill teriam estado presentes "povos de toda a Europa" 34 â&#x20AC;˘ Morta a Respublica Christiana, nem por isso a ideia de Europa morreu. Paradoxalmente, quanta mais as na<;6es se afirmavam na cena europeia, na sua autonomia e no desejo de conquista, mais a presen<;a da ideia se refor<;ava na literatura, polftica e nao s6. E assim pela pena de autores como Emeric Cruce35 ,
32 Numa tradi~ao profana a Europa e identificada corn uma mulher de estirpe regia, filha do rei de Tiro, Agenor ou Fenix, raptada por Zeus disfar~ado de touro, dando origem ao mito do rapto da Europa tao celebrado por escritores e pintores ao longo dos seculos. Levada para Creta ou Tebas, a sombra de uma arvore cujas folhas nunca caiam, ai teria gerado os seus filhos, entre os quais o rei Minos da lenda cretense. Noutra tradi~ao e ela propria transformada em touro pelo mesmo Zeus, atraves de urn encantamento. Em outros momentos surge identificada como umas das ninfas Oceanides, nos escritos de Hesiodo. Na tradi~ao crista vertida parS. Jer6nimo e S. Ambr6sio, enquadrada pelo mito biblico do Genesis, a Europa foi dada a Japhet, urn dos filhos de Noe, que corn ela criou descendencia. A esta tradi~ao ligou a patristica a ideia de superioridade religiosa e moral, assimilada por arrastamento a Europa geografica, devido a esta ter sido o campo natural de expansao do cristianismo. 33 Mas sem incluir, ao que parece, as ilhas do Egeu. 34 ]. Baptiste Duroselle, Europa ... , p. 18; Andre Arnaud, 0 pensamento .. , p. 43. 35 Le nouveau Cym!e (1624).
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William Penn36 o abad e de S. Pierre 37, os ja referidos Montesquieu e Voltaire, Kant38 ou Bentham 39 , sem diferen<;as significativas entre a Europa da centralidade e a da excentricidade, como Jarzebosky e outros na Pol6nia 40 , ou os ja citados Cam6es, Francisco Manuel de Melo ou Luis de Fr6is em Portugal. No nosso pais, como demonstrou Martim d e Albuquerque 41, detecta-se alias, uma sequencia ininterrup ta de alus6es desde a Cr6nica Geral de Espanha no seculo XIV, ate ao seculo XIX quando a ideia de unifica<;ao europeia reganhava f6lego. Como se, nostalgica de um passado que se nao cumprira, muitas mentes europeias, em unfssono, vibrassem com a certeza de que poderiam la chegar. 2.6. Na actualidade a ideia adquiriu nova objectividade quando a vertente polftica tendeu a superiorizar-se, estendendo sobre as demais, em maior ou menor grau, um manto protector. Pensando na Uniao Europeia, e evidente que esta teve na base o pensamento de homens para os quais a ideia de Europa era relevante. Se hoje se continua a assumir como europeia e porque tal caracterfstica foi assimilada pelas gera<;6es subsequentes, mesmo por muitos dos que podiam nao a perfilhar na altura. A componente subjectiva objectivou-se, porque de somat6rio de vis6es individuais se transformou numa visao colectiva com um certo grau de homogeneidade, nao total, mas compreendendo uma base significativa. A utiliza<;ao de uma ideia com conteudo fortemente politico p ara enquadrar um substrato humano, ou pressup6e correspondencia a algo social e culturalmente existente ou aceite, ou visa p romover a sua propria objectiva<;ao atraves de efeitos induzidos. Vingando, por aceita<;ao voluntaria 路ou tacita, deixa de dep ender totalmente de representa<;6es individuais incompatfveis, adquirindo estabilidade e perdurabilidade. No caso, a forma mais sugestiva de ver a questao e talvez primeira, embora a segunda bastasse. Se nao existisse convic<;ao de que a ideia es tava presente na mente de muitos, ou pudesse ser aceite enquanto tal, entao o nome teria sido inicialmente um equfvoco. Ter-se-ia preferido provavelmente apenas Comunidade ou Uniao por ausencia de sentido do adjectivo. E esse o quadro em q~e preferentem~nte nos reveinos, embora tenha sido provavelmente indissociavel da inten<;ao de potenciar um resultado atraves da ideia. . Relevante e tambem a adjectiva<;ao. Os adjectivos identificam caracterfsticas ligadas a conceitos abstractos dos quais derivai:n. No caso da Comunidade a caracteriz'a<;ao ao ser feita como europeia remete para a caraderfstica abstracta da e~~op~idade. Saber se es.t~, em si, . identifica ja um s1,tbstantivo 36 37 3s
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Essay towards the present and路 the future 'pence 'of Eu7路ope (1693). Projet de paix perpetuelle (171 3). Zum ewigen Frieden (1795). Principles of intenational /mu (1789) . Marcos Maciejewsji, As concep~oes polacas da unidade europeia.
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possuindo valor absoluto e vida propria, ou se apenas remete para a ideia de Europa, nao pode ser facilmente dilucidado. Por enquanto e talvez mais prudente aceitar a predominancia da segunda alternativa, tanto mais que para a compreender basta o territ6rio, ou a base humana, ou as duas em conjunto. Podera algum destes elem entos ser dominante? No plano puramente especulativo, o territorial parece reunir maiores possibilidades. Inicialmente e bem possivel que a ideia de povos europeus tivesse estado presente no espirito de alguns dos pais fundadores. Rapidamente, porem, a Europa tornou-se globalmente urn destino massi~o de imigra~ao e hoje o mosaico humano europeu, muito diferente do que existia na altura, contem uma percentagem nao negligenciavel de popula~ao oriunda de fora, corn dificuldade ou falta de vontade em assirnilar formas de estar e pensar que se queriam associadas a ideia de Europa. Muitos sao ja cidadaos de algum pais europeu e por isso a europeidade, vista naquela vertente nao tern o significado que pode ter tido. Talvez por isso, o acento t6nico da denomina~ao politica esteja hoje em Uniao, muito mais neutro do ponto de vista da origem . Uniao aponta para sociedade, remete para acto volitivo. Comunidade remete para origem natural 42 â&#x20AC;˘ A vertente territorial porem, e sensivelmente a mesma hoje como ha meio seculo, pois a Comunidade esta assente em territ6rio ao qual a denomina~ao assiste naturalmente, tal como assentava no inicio. Os Estados que sucessivamente aderiram existem em territ6rio corn o qual o nome e compativel e embora se perfile a possibilidade de assim nao su ceder a medio prazo, e ainda incerto se tal evolu~ao se confirmara. Tudo isto leva a pensar que o sentido dominante tera, por enquanto, forte componente territorial, do qual derivaria a ideia de que a Comunidade e europeia porque essencialmente existe na Europa geografica. E tambem uma op~ao c6moda porque evita levantar a questao da identidade, sendo por isso politicamente a mais correcta quando a questao e aflorada. 2.7. Correspondera a Europa tambem a urn conceito de contornos subjectivos? Corn componente cultural, esta vertente e mais fluida e dificil de interpretar. A possibilidade s6 se coloca se for admissive! que uma parte da popula~ao actualmente habitante da Europa geografica, maxime da Comunidade, se sinta subjectivamente europeia independentemente do que tal possa significar, independemente da entidade politica a que se encontra directamente vinculada. Como pressuposto, a condi~ao e inquestionavel. Ja nao e porem, seguro se a resposta deva ser necessariamente afirmativa, bem coma, nesse caso, se o factor relevante e apenas o sentimento de cidadania ou tambem o sen timento 41 42
Martim de Albuquerque, Primeiro ensaio .. .. , passim. Tonnies, Gemeinschaft ..., passim.
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de perten<;a a uma comunidade de origem, de destino, ou das duas em simultaneo. 0 nosso ponto de vista vai, em qualquer caso, em sentido afirmativo quanta a primeira interroga<;ao, sem prejuizo de se ter consciencia de que, por enquanto, o entendimento contni.rio e significativo. Pela positiva, porque a esse sentimento e atribuido algum conteudo e pela negativa porque consegue ser distinguido de outros conceitos similiares sem passar pela compara<;ao na<;ao a na<;ao. Na falta de dados estatisticos, a cren<;a de que se apoia numa base humana quantitativamente relevante apoia-se na participa<;ao politica em actos comuns, em certos casos expressiva 43 â&#x20AC;˘ Ja quanta ao factor determinante do sentimento, e inegavel que nao e 0 mesmo para todos, distribuindo-se entre a ideia de perten<;a a urn grupo corn algo em comum corn outros, portanto algo partilhado, e a simples percep<;ao de que existe uma rela<;ao politica corn uma entidade colocada no plano estadual e atraves dela corn outra situada num plano diferente, correspondentes uma e outra a urn espa<;o onde o percurso de vida encontra continuidade corn custos sociais e pessoais aceitaveis, ou mesmo corn vantagens interessantes. 0 mesmo e dizer, a urn espa<;o onde nao custa admitir ser possivel viver, sentindo-se bem. No primeiro caso urn sentimento permeado essencialmente por componentes culturais e civilizacionais44 â&#x20AC;˘ No segundo, sem recusar componentes culturais, permeado por outras essencialmente utilitarias 45 â&#x20AC;˘ E no balan<;o entre estas diferentes realidades que a Europa vive e define o seu futuro. Embora hoje nao possam ser ainda tipificadas todas as alternativas, consoante o grau de transigencia ou a op<;ao face as hip6teses disponiveis, o seu futuro variara. Ao menos sobre isso nao pode existir duvida. Tudo isto conduz a identidade europeia.
43 Embora subsista nebulosidade na interpreta~ao dos dados, a participa~ao em referendos, designadamente em alguns dos relacionados corn a Constitui~ao Europeia, foi interessante. 44 Na pan6plia de componentes potencialmente integrantes podem constar, entre outras, convic~oes ligadas a cren~a na capacidade de inte gra~ao, a convic~ao de nao rejei~ao social ou de urn nfvel de rejei~ao passive! de ser ultrapassado corn alguma facilidade, a expectativa de ver asseguradas salvaguardas em rela~ao a cren~as sociais e religiosas, ao respeito por aspectos ligados a dignidade do indivfduo e essencialmente a convic~ao de que tais componentes tern valor fundamental para a vida. 45 Frequentemente corn marcada carga econ6mica, associada a componentes culturais desvalorizadoras dos factores valiosos para a outra concep~ao em tudo o que ultrapasse a protec~ao da propria diferen~a.
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ยง3. Identidade europeia 3.1. Sugerimos paginas antes que a identidade europeia nao era de todo indispensavel a urn direito europeu, mas que, existindo, nao deveria ser ignorada. Antes de mais, como se podera preencher este conceito? Tal como a identidade individual46 se constroi atraves de representa<;6es intelectuais sobrepostas ao indivfduo, sendo composta por cren<;as e ideias, comportamentos e modos de ser que fazem de cada urn, urn indivfduo unico e irrepetfvel, a identidade colectiva devera aproximar-se deste modelo no piano do conjunto. A identidade europeia representara apenas uma visao particular da mesma constru<;ao, moldada a luz de referenciais ligados ao contexto europeu, em sintonia corn uma ideia de Europa eventualmente observavel a partir do conceito de base anteriormente proposto. A identidade de urn povo ou de urn grupo resulta do somatorio das identidades individuais, na parte que se pode exprimir colectivamente. Ocorrendo de modo perceptive!, configurara urn ser social unico e irrepetfvel tal como resultava da personalidade singular. Nem todos os elementos da identidade singular se podendo manifestar neste plano, as representa<;6es percebidas junto de segmentos significativos da base humana podem ser tomadas como pontos de partida, desde que lhes assista permanencia no tempo e potencialidade para moldar comportamentos. A identidade move-se no plano cultural 47, mas so sera relevante se existir consciencia da sua dimensiio de futuro 48 , ou seja, se o grupo sentir que os factores que a integram se projectam para alem do presente, como realidades importantes para a sua configura<;ao. Estando dependente da consciencia, comporta margem de variabilidade, nao apenas de grupo para grupo, mas dentro do proprio grupo, em fun<;ao das modifica<;6es da propria consciencia colectiva. E portanto urn conceito dinamico . Na perspectiva europeia - a que nos interessa - justifica-se reflectir sobre a sua rela<;ao corn conceitos proximos e corn a comunidade, sobre os elementos que a podem integrar e sobre a valia do conceito. Em momento subsequente procurar-se-a saber se, entre os factores potenciais que a integram, existem alguns que mais directamente se aproximem do tema e em que medida. 3.2. Sendo as sociedades organismos complexos e reflectindo-se a complexidade de modo tanto mais intenso quanto a base humana e maior, a Polis ... , vb. Identidade. Quaisquer considera<;5es a este nivel terao portanto, de afastar crih~rios de natureza fisica ou n1cica, hoje rejeitados por destituidos de bases cientificas. 48 Friedrich Wolf, Identidade europeia e memoria colectiva, in "Identidade Europeia.Identidades na Europa. Col6quio lnternaciona"l. 46 47
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expressao da identidade colectiva nao pode deixar de estar ligada a coesao entre os individuos que comp6em o substrata. Identidade e coesao vivem pois, de paredes meias. Sera possivel atribuir prioridade a alguma? Em ultima analise podem estar de tal forma imbrincadas corn a coesao, que seja dificil determinar prioridades . Por raz6es l6gicas e admissivel que a coesao possa anteceder a identidade, ainda que posteriormente esta venha a sobredeterminar aquela. De facto, a identidade colectiva e indissociavel da vida em conjunto e esta pode emergir, ou naturalmente, ou por acto de vontade sobreposto a vontade dos que integrarao o ente colectivo, criando o grupo. Estabelecida a coesao, gerado esta o impulso inicial para a emergencia da identidade. Esta pode todavia, nao surgir, se subsistirem dentro do grupo assim estruturado pre-identidades incapazes de abdicarem da sua autonomia. Sera o caso quando o grupo resulta da agrega<;:ao de outros anteriores, ja detentores de coesao propria. Existindo factores identitarios comuns podem quando muito aceitar conviver, mas tal sera sempre o resultado de urn acto de vontade e por isso potencialmente instavel, a menos que evoluam decisivamente para uma identidade de nivel superior a das pre-identidades49 . Coesao e identidade articulam-se pois segundo diferentes alternativas, consoante a interven<;:ao humana presente no seu afei<;:oamento. E identificar-se-ao necessariamente identidade e cultura, ou seja, sera a identidade colectiva a expressao da cultura do grupo? Sem questionar a rela<;:ao da identidade corn o plano cultural, ja antes aflorada, a necessidade de uma dimensiio de Juturo 50 em rela<;:ao aos factores que a integram torna a identidade mais exigente. Aponta portanto, para factores relevantes dentro dos factores culturais gerais, estando a relevancia ligada a ideia de prolongamento do grupo no tempo, na forma como se reconhece usualmente a si mesmo. Porem, nao implica necessariamente a totalidade dos factores corn essa dimensao potencial, bastando alguns tornados como especialmente significantes, sem os quais o grupo nao se reve como sendo o mesmo. Esta significancia, que ate certo ponto permite distinguir o que e identitario do que e apenas cultural, relegando-o para urn nivel menor, nao se imp6e inelutavelmente ao grupo, embora parta de factores pre-existentes. Pode ser afei<;:oada, desenvolvida no born sentido se os factores refor<;:ados estiverem em sintonia corn valores superiores individuais ou colectivos, ou no mau sentido se visarem objectivos inferiores ou distorcidos. Pode ser deixada ao sabor das circunstancias, evoluindo aleatoriamente ou de acordo corn press6es subterra-
49 A s itua ~ao verifica-se potencialmente em sociedades plurinacionais que tentam evoluir para niveis de coesao mais elevados. Pode ser observada sob diferentes perspectivas em torno da Europa comunitaria. SD Friedrich Wolf, idem, idem.
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neas, ou ser sujeita a fon:;as destrutivas e desvalorizantes, em nome de raz6es compreensiveis ou invias. Que tipo de factores poderao integrar o conceito? Em abstracto os de natureza cultural. Todavia, nem todos sao suficientemente relevantes para, de facto, nele se inserirem ou ocuparem posic,;ao de relevo. Sera a consciencia do grupo a desencadear o processo de delimitac,;ao desse circulo, sabre cujo conteudo, a posteriori ou concomitantemente, podem ser desenvolvidas intervenc,;oes. Compete a doutrina precisa-lo. E admissivel que num primeiro momento factores basicos ligados a idiossincrasia do grupo dele fac,;am parte. Sera talvez o caso de elementos linguisticos, religiosos, ou outros, tal como de comportamentos recebidos hereditariamente. Serao provavelmente mais relevantes nas comunidades, mas tambem as sociedades os podem ter em conta. E tambem razoavel admitir que o nl"1mero de factores deste tipo esteja na relac,;ao inversa da extensao da base humana que constitui o grupo, ate se restringirem a urn nucleo limitado, nos grandes grupos. Todavia, a primeira vista nao e isto 0 que se deveria passar. A medida que o grupo ganha amplitude, o conjunto de factores potencialmente relevantes devia tornar-se mais variado e extenso. E perante esta realidade mais complexa que tern sentido a intervenc,;ao intencional a partir do exterior ou do proprio grupo, instilando o ajustamento da consciencia colectiva ao que verdadeiramente tern dimensiio de futuro, distinguindo-o daquilo que nao 0 tern, ou e secundario, sob pena de face a tal amplitude a identidade se tornar difusa. A propria consciencia de grupo pode tornar-se mais auto-exigente, impondo restric,;oes. A intervenc,;ao e especialmente relevante no sentido de conduzir a uma identidade colectiva de grau superior, quando se esta perante grupos suficientemente amplos para abrigarem dentro deles, outros detentores de pre-identidades, pela dificuldade em as articular corn a variedade de factores que a pluralidade potencia. 3.3. Entre multiplos factores, alguns podem justificar especial atenc,;ao como exemplos ilustrativos de parte do que foi dito. Aludiremos a factores linguisticos, religiosos e juridicos. 0 enfoque e o do grupo amplo integrado por grupos menores corn identidades proprias. E o que nos parece importante, ja que, ao fim e ao cabo, e na sua esteira que se encontra o paradigma por detras da recusa ou do desinteresse em valorizar a existencia de uma identidade europeia. a) A linguagem, aparentemente de pleno direito, faz parte do elenco de factores identitarios ao nivel do grupo integrado. Obviamente tambem o sera ao nivel do grupo integrante, mas neste caso na dependencia da realidade anterior. Por parecer assumir posic,;ao fundamental, conclusao possivel seria admitila como obstaculo de monta a integrac,;ao do grupo num outro mais amplo.
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Constituiria portanto, urn obstckulo a emergencia de uma identidade compativel corn esse nivel mais elevado. Todavia, olhando a realidade, facilmente se verifica que uma populac;ao aceita substituir ou partilhar a sua linguagem, sinal de que a dimensiio de futuro de tal factor nao tao e tao intensa como poderia parecer. E certo que em circunstancias concretas a substituic;ao nao ocorreria, provavelmente, sem interferencia de impulsos externos, nem de urn dia para o outro, mas o processo nao e necessariamente traumatico 51 . Como alias, em geral sucede corn outros factores de natureza instrumental, ou seja corn factores a que nao correspondam valores tidos por absolutos. A identidade colectiva, nao podendo passar sem linguagem, pode portanto ultrapassar a eventual existencia de diversas linguagens junto de grupos internos. Em abstracto este dado traduz a sua acomodac;ao a emergencia de uma identidade colectiva de nivel superior ligada ao grupo mais amplo. b) Os factores de natureza religiosa, tais como os linguisticos, a primeira vista ocuparao tambem posic;ao na primeira linha no nucleo a ter em conta. 0 ponto de partida sera o mesmo, embora neste caso a situac;ao seja bem mais complexa, porque tratando-se de factores que remetem para o dominio da fe, sao tendencialmente absolutizantes e por isso, aparentemente insusceptiveis de serem desligados de aguda consciencia da sua dimensiio de futuro, por parte do grupo 52 . Esta constatac;ao tern implicac;6es. Ao mesmo tempo que, aparentemente, lhe imputa significancia decisiva para integrar a identidade colectiva, reconhece-lhe dimensao contraproducente potencialmente exclusiva de outras pre-identidades nas quais o factor religioso seja igualmente determinante, mas tenha conteudo diverso. Reconhece-lhe p01路tanto a condic;ao de factor de risco. Em face da diversidade religiosa europeia, este reconhecimento daria, de certo modo, razao aos que nao vislumbram vantagem na defesa de uma identidade europeia. A questao nao e p01路em, tao clara. Na realidade nao pode ser vista desligada da essencia doutrinaria que esta subjacente ao concreto factor religioso, ja que em certas circunstancias a emergencia de quadros compativeis corn a diversidade e, nao s6 possivel, como natural, enquanto em outras nao. Factores religiosos, subjacentes aos quais esteja urn quadro doutrinario permeado de valores como a tolerancia, o respeito pela liberdade, dignidade e vida, ou o reconhecimento da igualdade entre os seres humanos, para referir
51 Tome-se o exemplo da lingua inglesa que tern vindo a ser adoptada por muitos povos sem causar problemas identitarios. Veja-se o caso do portugues em Timor, ou o caso do castelhano em Espanha. Na Uniao Europeia o ingles e cada vez mais, sem traumas, a lingua comum, sem que as linguas nacionais deixem de ser faladas . 52 Por natureza as religi6es apontam para o metafisico e para a vida post mortem, pelo que o futuro e delas indissociavel.
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apenas alguns, em nome do caracter absoluto desses mesmos valores, facilmente induzirao condi<;6es de respeito, tolerancia e convivencia, junto de grupos em cujas pre-identidades existam factores religiosos diversos. Bastara urn esfor<;o minima no sentido de tornar visiveis tais valores naturalmente insitos, para o grupo os aceitar. Na aparencia o resultado parecera apontar para uma relativiza<;ao de valores e da propria dimensiio de futuro do factor. Na realidade esse efeito sera apenas aparente, decorrendo do facto de se levar as ultimas consequencias a sua propria essencia. A identidade colectiva, parecendo negligencia-lo estaria na realidade a integrar elementos dele decorrentes. Invisivel, o factor religioso sera entao potencialmente decisivo para consolidar uma identidade colectiva permeada pela tolerancia. Nos casos em que os factores religiosos nao comportem, na sua essencia, urn pensamento compativel corn tais vertentes, a situa<;ao sera a contraria. Assumidos como identitarios enquanto portadores de uma dimensiio de futuro, o efeito sera urn quadro de intolerancia e de rejei<;ao face a outras identidades integradas por factores religiosos diversos. Em suma, os factores religiosos tendem a ter dimensao identitaria relevante por estarem associados a valores absolutos, embora consoante o conteudo doutrinario na essencia de cada urn, possam ter ou nao papel aceitavel na constru<;ao da identidade colectiva a nivel do grupo mais amplo. Trata-se portanto de materia que exige profunda aten<;ao, sendo fundamental a interven<;ao da doutrina e da sociedade na defini<;ao dos limites que em caso algum podem ser transpostos, no caso de estarem em jogo quadros antinomicos. A recusa da relativiza<;ao e neste caso condi<;ao de sobrcvivencia do grupo, nao havendo margem para posi<;6es neutras, pois a neutralidade implica sempre a prazo o fim da posi<;ao compativel corn a tolerancia. c) Factores de natureza jurfdica, por fim, colocam problemas igualmente complexos. Por remeteram para o direito, incorporam valores intemporais e nessa medida tendem a fazer parte do elenco identitario corn dimensiio de futuro, em especial nas areas em que a prova da intemporalidade foi feita atraves da razao ou da longa vigencia no tempo. 0 que, no segundo caso nao implica necessariamentc que valha para todo urn ordenamento, dado que a rela<;ao entre a regra e a intemporalidade nao se coloca do mesmo modo face a todas. A tecnicidade que o caracteriza tende porem, a mante-lo na posi<;ao de factor oculto em rela<;:ao a outros mais visiveis, sendo talvez excep<;ao as regras arrastadas para o campo da constitucionalidadc que, desse modo, adquirem visibilidade e notoriedade. Nao sendo o direito materia de fe, mas de razao, de consenso ou de poder, trata-se de urn dominio no qual a possibilidade de existirem pantos de contacto entre factores juridicos insitos em diferentes pre-identidades, e forte, ao menos
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no dominio do consenso e da razao. Sendo por outro lado estruturante em relac;ao a sociedade, a vantagem em o utilizar como elemento de uma identidade colectiva a nivel do grupo mais amplo, e grande, embora dada a sua tecnicidade possa passar despercebido ao profano. Mas assim nao sera em relac;ao ao detentor do poder. d) Deste breve excurso podem retirar-se sugest6es. A identidade colectiva nao sendo indispensavel para justificar urn direito europeu, pode estar associada a sua presenc;a. Existindo, sobredetermina a coesao em face de eventuais preidentidades. Pode porem, assim nao ocorrer, mantendo-se essas pre-identidades plenamente operacionais, inclusivamente como veiculos de dissoluc;ao do grupo mais vasto. Nem todos os factores culturais sao identitarios por lhes faltar dimensiio de futuro. Os religiosos tendem a ter tal dimensao, sendo porem, diferentes, as situac;oes associadas aqueles em que a doutrina subjacente e compativel corn a superac;ao dos riscos da identidade e os que o nao sao. Por fim, o direito encontra facilmente caminhos de sintonia entre as pre-identidades, sendo subliminarmente factor de relevo no plano da identidade do grupo alargado. 3.4. Para alem da problematica dos factores identitarios, e tambem importante reflectir sobre a valia da identidade colectiva, maxime no plano europeu, ja que e deste que se parte. Procuraremos nao a misturar corn a ideia de cidadania 53 . Em abstracto julgamos que tal valia existe, embora o tema seja contraverso. Depende em ultima analise do nivel de coesao a que se aspire para a Europa, ou da vontade em ultrapassar as barreiras naturais constituidas pelos grupos menores. E possivel viver em conjunto corn alguma coesao e corn escassa identidade. Basta que aquela esteja apenas balizada pelo curto prazo. Sera contudo, necessaria maior nivel identitario para a coesao poder subsistir naturalmente, por escassa que seja, sem urn permanente e desgastante esforc;o politico de avivamento. Nisto consiste a sobredeterminac;ao a que se aludiu. A valia tern dividido os autores, sendo expressa em posic;oes dispares. Pronunciam-se alguns contra o interesse do conceito ou a sua utilidade em termos da construc;ao de uma realidade europeia comum. Outros favoravelmente, no sentido de que a Europa e ininteligivel sem ter em conta uma identidade construida em sintonia corn elementos culturais relevantes 54 . De modo pragmatico ou apaixonado pronunciam-se uns por urn minimo de identidade toleravel e outros por urn maximo desejavel, entendendo-a como intrinsecamente ma ou boa. Provavelmente, tambem os cidadaos comuns terao posic;oes
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Ralf Dahrendorf, Os cidadiios da Europa .... " Manuel Braga da Cruz, A Europa e inintelegfvel sem uma cultura europeia, in "Identidade Europeia. Identidades na Europa. Col6quio Internacional ... ". Vd. Josep Ratzinger, Fede, veritti, tolleranza.....
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divergentes, desde a total ausencia de consciencia do problema ate uma aguda percep<;ao da sua importancia55 . Sendo embora instrumental para a reflexao que constitui o nosso objectivo, nao e de todo possivel ignorar as linhas essenciais do tema. Recentemente, em conferencia realizada em Lisboa 56, as posi<;6es mostraram-se relativamente extremadas 57 . Por paradigmaticas recordam-se algumas interven<;6es, cujo mote foi dado pelas palavras inaugurais antes referidas 58 â&#x20AC;˘ Proferidas num quadro que, embora orientado para o plano comunit<irio nem por isso deixava de postular uma visao de fundo sobre a identidade colectiva, foi esta entao caracterizada como palavra perigosa, porque susceptivel de gerar violencia 59, palavra horrivel s6 pela negativa compreensivel face a constru<;ao de uma Europa erigida contra as suas identidades60 . Nao existiria uma cultura europeia, postulou-se, por ser a Europa a patria da diversidade etnica, religiosa e cultural. Da inexistencia de uma cultura seria corolario a inexistencia de uma identidade comum. Ninguem nasce europeu, todos se fazem europeus 61 â&#x20AC;˘ Seguido o mote pela generalidade dos demais intervenientes nos paineis virados ao tema 62 , corn escassas exep<;6es 63 , pelas palavras inaugurais passou Alguns valorizam as diferen~as culturais com relevo para o quadro religioso. A Europa tcrmina onde come~a o Islao e ate eventualmente a cristandade ordodoxa. 0 europeu terminara onde o influxo destas realidadcs come~a, marcando essa hcran~a a identidade europeia (Samuel Huttington, o Clwque de Civilizafi5es ... ; Bernard Lcwis, 0 que correu mal ... ). Outros apontam para valores nos quais avultam o individualismo, a ideia de na~ao, o modelo capitalista na combina~ao de ciencia e tecnologia, a propria ideia de democracia representativa (Henry Mondrasse); outros pragmaticamente ligam-na a adesao a principios constitucionais que garantam as liberdades e garantias fundamentais do indivfduo (Jurgen Habermas) 56 Identidade Europeia. Identidades 1111 Europa. Co/6quio Intcrnaciona/ (Universidade Catolica de Lisboa, 6 e 7 de Dezembro de 2004). 57 Nao se tratou de uma iniciativa inedita. No pais e fora dele o debate tem existido e deparado corn a mesma ausencia de acordo, ainda que o negativismo, mais facil de assimilar politicamente, tenda a dominar. Outras conferencias recentes sobre a tematica foram As Novas Fronteiras da Europa (Funda~ao Calouste Gulbenkian, Lisboa, 26 e 27 de Outubro de 2004) e Fomm Viver a Europa. Uma ConstituifiiO pam os Europeus (Instituto de Estudos Estrategicos e Internacionais, Lisboa, 4 e 5 de Novembro de 2004). 58 As interven~6es proferidas nao foram oficialmente publicadas, pelo que a par de alguns rcsumos na altura distribufdos, de outras apenas guardamos memorias e apontamentos na altura recolhidos. 59
"Pm¡que identificadora de
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lema que s6 a/guns povos conseguem discutir par palavms, preferindo
os demais faze-la cam as metralhadoms", foi o enquadramento aproximado de tais palavras. 60 Porque situada na soleira do identitatarismo, tal como J?afiio em rela~ao a nacionalismo. 61 Ilustrado corn a expressao atribuida a Erasmo "minha plitria eonde me sinto bem ",a lembrar a outra atribuida a Socrates "niio sou atenienese nem grego, mas cidadiio do mundo". 62 Philipe Moreau Defarges (Institut d'Etudes Politiques de Paris), Andreas Staab (European Policy Information Centre) e Jose Pacheco Pereira (ISCTE). 63 Corn excep~ao do terceiro, menos ceptico, talvez por antes de politico ser historiador e do moderador Manuel 13raga da Cruz, que partia da posi~ao contraria.
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a descren<;a ou ate o repudio de alga ao qual pudesse ser chamado europeu para alem do politicamente pragmatico 64 e do basicamente econ6mico. Porque razao se aflora aqui este col6quio. Essencialmente porque as interven<;6es a que se aludiu reflectem, provavelmente, a mais comum atitude na doutrina. E sem duvida a politicamente menos arriscada, a que, por permitir evitar encarar problemas de frente, envolve menos riscos. Mas e eventualmente a mais esteril do panto de vista de conteudo e provavelmente do panto de vista do futuro da Europa. Coma panto de partida pode pegar-se nas palavras do Presidente da Comissao: a perigosidade do conceito. A afirma<;ao nao pode deixar de suscitar perplexidade por parecer incorporar a cren<;a de que a perigosidade e atributo natural de certas palavras e nao no uso que delas e feito. Palavras que em ultima analise poderiam conduzir as virtualidades do crivo vocabular, coma forma de minimiza<;ao do risco dos pensamentos potencialmente perigosos. Nao foi certamente esse o entendimento subjacente. Por detras es teve ainda o eco de reflex6es sabre uma Europa desmoronada pela guerra mais violenta que alguma vez conheceu no seu solo, na qual milh5es de seres foram deliberadamente exterminados em name de preconceitos culturais, raciais e religiosos. Esteve, corn certeza o receio de p ensamentos capazes de abrir frinchas numa muralha politica defensiva, por tenues que sejam. Nada em que Kant nao tivesse pensado quando acreditou que a paz perpetua da Europa podia ser conseguida fora do cemiterio que omava a tabuleta da estalagem, no qual todos os europeus jazessem, que Ortega y Gasset nao tenha sentido ao esconjurar os nacionalismos perante uma Berlim desfeita em cinzas depois da segunda Guerra Mundiat ou que os pais fundadores da Comunidade nao tenham imaginado quando pensaram na sua Europa renascida das cinzas e do 6dio. Nelas esta portanto, insito o medo de urn pensamento de risco. Medo latente por se saber que tais factos, especialmente visiveis no contexto elll路opeu da epoca, tiveram antecedentes menos bem conhecidos apenas porque historicamente mais recuados e tiveram continuidade no tempo 65 . Medo que se afasta tentando blinda-lo atraves de paredes desprovidas de conceitos p erigosos, ou colocando a frente biombos que reflictam valores materiais universalmente aceites, no verdadeiro sentido da palavra. 64 Mesmo em rel a~ao aos direitos, liberdades e garantias, embora tornados como bandeiras visiveis pressentia-se a dificuldade em os separar completamente do politicamente possivel em face de urn multiculturalismo que, na pratica, tern fronteiras espessas e nem sempre fac eis de permear. 65 Como exemplos podem recordar-se o exterminio do povo armenio as miios dos Turcos bem antes da segunda Guerra Mundial, o ex terminio sovietico exercido sobre dissidentes e grup os etnicos, culturais e religiosos, no periodo leninista e estalinista, e o ex terminio exercido por Pol Pot sobre o se u proprio povo.
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56 um louco mata o seu cliente se tiver algo para lhe vender. Se todos tiverem algo para vender ninguem hostilizara o seu vizinho, maxima que se aplica tanto a individuos como a povos. A frente vira pois o econ6mico, depois o politico, depois talvez o cultural se nao implicar uma avalia<;ao de culturas e se nao derivar para o reconhecimento das identidades. No fundo, medo ancestral, ele proprio ja quase cultural p01路que em cada gera<;ao foi transmitido e refor<;ado por novos medos. A guerra quase como elemento cultural, que se esconjura esconjurando as vertentes de que se receia poder derivar. 3.5. Pode compreender-se este modo de olhar a questao. A experiencia europeia ao longo do seculos, de amarga mostra que nao deve ser menosprezada. Resta saber se e adequado e, antes de mais, util em termos de futuro. Quanto a adequa<;ao deve reconhecer-se que podera eventualmente ajustar-se a um modelo economicista, satisfat6rio em termos de presente, com a vantagem suplementar de, ao subordinar determinadas questoes de fundo a uma aparente neutralidade, evitar comprometimentos e tensoes no curto prazo. Contudo, um modelo social, tal como um modelo experimental nas ciencias exactas, s6 e viavel se estiver preparado para incorporar o futuro e ao desvalorizar algumas das componentes potenciais por receio de inconveniencia ou perigosidade, coloca-se, no minimo, em posi<;ao fragil para resistir duradouramenteh6. Ora, os factores integrantes desse conceito recusado existem e andam por ai, nao sendo possivel negar a sua presen<;a, agora e no futuro. 0 modelo alimenta-se p01路tanto, em parte de uma fic<;ao, com toda a fragilidade que implica. E evidente que nem todos os elementos identitarios tem a mesma potencialidade de risco, mas em momento anterior referimos pelo menos um em cuja 6rbita esta presente em nivel elevado, independentemente de ser ou nao tido em conta. 0 modo de olhar a questao e, por isso, talvez tambem imprudente, porque por omissao de esfor<;o de enquadramento favorece o alargamento da margem de afirma<;ao social de factores passiveis de aproveitamento abusivo. Tal como nao e possivel ter a certeza de que nunca existira quem prefira matar o vizinho para o roubar, ou simplesmente para lhe impor sujei<;ao, em detrimento de com ele comerciar, nao e nesse caso possivel ter a certeza que nao emergirao num futuro proximo, com a pujan<;a que o desinteresse da sociedade em os afrontar lhes permitiu acumular. Encerra, par outro lado, postulados discutiveis.
Guilherme de Oliveira Martins "Precisamos da identidade para definirmos um espa~o de coesao, para termos as bases nao contratuais de um contrato social e para termos o fundamento de um 'demos' europeu. Dai a necessidade de wna 'comun idade de memoria', apta a compreender e a asswnir eo m sentido constmtivo de futuro a responsabilidade e as culpas nas vicussitudes das revolu~i5es, das guerms ou do lwlocausto ... ", in "Reflexao da Semana" (13 a 19 de Dezcmbro de 2004), Centra Nacional da Cultura, Lisboa. 66
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Postula a inexistencia de uma cultura europeia. Mas, nao tern em conta que a Europa por debaixo do mosaico de nacionalidades, para o bem e para o mal teve e tern vivencias comuns, pel0 menos na hist6ria, na religiao e no direito, a sombra das quais emergiram elementos culturais significantes. E se e certo que o mosaico aponta para muitas vertentes, nunca deixou de ser possfvel encontrar as grandes linhas em torno das quais se afirmaram. Postula uma identidade colectiva fabricada em detrimento de elementos culturais. Sendo estes diversos, sup6e que aquela nao poderia existir sem os oprimir, desencadeando uma reac~ao em cadeia. Mas, nao tern em conta que identidade e cultura nao sao necessariamente sobreponfveis. A identidade move-se no campo da cultura mas nao a absorve integralmente. Muito do cultural e irrelevante do ponto de vista identitario e os factores relevantes podem ser orientados para objectivos meta-nacionais 67 â&#x20AC;˘ Esquece tambem que, tal como o sistema democratico e permeavel a aproveitamentos anti-democraticos, ficando deles refem, tambem factores ha que se podem aproveitar da neutralidade e desinteresse para corn a identidade comum, para, em nome de uma identidade parcelar especialmente afirmativa, se abalan~arem ao domfnio sobre as demais, entrando assim pela janela aquilo que se tentava nao deixar entrar pela porta68 â&#x20AC;˘ Postula a ideia de que a causa dos dramas europeus esteve na pluralidade de culturas plasmadas em na~6es, sendo pois, desejavel apagar do universo das figura~6es tudo o que para elas possa chamar a aten~ao. Mas, nao tern em conta que por detras desses dramas estiveram homens, umas vezes aspirando ao domfnio pelo domfnio, emulando comportamentos inelutaveis desde o prindpio dos tempos, s6 limitaveis atraves da sublima~ao de ideais superiores, outras vezes manipulando convic~6es culturais, aproveitando-se do desinteresse ou da ausencia de esfor~o da sociedade em as enquadrar em patamares mais elevados. Postula a ideia de que a nega~ao da nacionalidade e pressuposto da caminhada dos grupos para formas solidarias de convivencia. Mas nao tern em conta que a na~ao e urn grupo natural independente da vontade do politico ou do legislador. CmTesponde a comunidade e tendera a fechar-se sobre si mesmo,
67 A ideia de que a identidade europeia nao deve destruir ou empobrecer as identidades particulares, tao cara a uma certa visao conciliadora postulante da possibilidade de se encontar urn ponto de equilfbrio razoavel, como foi expressa por Dom Manuel Clemente, actual bispo do Porto, na altura auxiliar de Lisboa, no citado Col6quio da Universidade Cat6lica, tern na distin<;ao entre niveis culturais urn passive! ponto de partida. Convem porem, nao esquecer que o trabalho de construc;ao da identidade nao deve ser deixado apenas ao born senso, escudado na cren<;a da razoabilidade do ser humano, mas deve pasar por uma avalia<;ao do poder politico em conjunto corn a sociedade, em nome de objectivos conformes a valores fundamentais. 68 Paulo Otero, A democracia totalitdria .... M. Bigotte Chorao, Democracia, relativismo e amaeara totalitaria, in "Autoridade e Consenso no Estado de Direito" ..
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corn forc;a proporcional a colocada na desvalorizac;ao das suas representac;6es, a menos que em substituic;ao sejam validamente disponibilizadas outras, igual ou superiormente valiosas. Esquece ainda que a nac;ao nao e s6 fonte de drama, mas tambem laborat6rio onde o grupo organiza a solidariedade politica e na qual se desenvolvem factores pre-identitarios comuns. Postula a ideia de que a neutralidade face a identidade colectiva e virtuosa. Mas, nao tern em conta a lic;ao da natureza, na qual a neutralidade nao existe, mas apenas o equilfbrio e que quando este nao ocorre facilmente a realidade fica presa do aproveitamento do mais forte. Postula a crenc;a na racionalidade comportamental do indivfduo quando despojado de motivac;oes culturais. Para alem de tal despojamento ser urn mito, esquece que o ser humano e simultaneamente racional, intuitivo e emotivo, nem sempre a primeira qualidade se sobrepondo as demais, ou sequer sendo certo que nao derive, a propria razao e ate a moral, da emoc;ao, como Ant6nio Damasio demostrou ou ao menos sugeriu. Postula por fim a existencia de urn tempo infinito para corrigir eventuais erros. Esquece porem que o tempo da Europa esta a correr depressa, aproximando-se o momento em que pode ver-se confrontada corn a necessidade de abdicar do que quis ser, ou optar por uma nova redefinic;ao de equilibrios, quic;a pela forc;a. Pode ainda questionar-se a utilidade de tal modo de pensar. A identidade e factor de coesao e uma Europa sem coesao sera sempre urn corpo fraco. A desvalorizac;ao de urn conceito corn potencialidade coesiva s6 se justifica se a esse desvalor corresponder urn valor superior. Qual podera ser? Provavelmente, o receio de a identidade induzir domfnio d e urn grupo sobre outro, mas ja vimos que tal efeito nao e inelutavel. Nao se ve pois, utilidade em a negligenciar neste plano 69 . A desvalorizac;ao da identidade anda de maos dadas corn o relativismo culturaF0, na medida em que a nenhum factor e reconhecida relevancia para emergir dos demais. Impede ainda a distinc;ao entre comportamentos e crenc;as de diferente natureza, subjacentes a esses factores, a menos que agridam objectivamente valores legais. Propugna portanto, basicamente o respeito formal por todos. Todavia, se tal respeito e possfvel e desejavel no plano individual,
Sabre es ta tematica em ge ral, veja-se Maria Manuela Ribeiro, Identidade europeia e multicullttralismo ....; 70 0 relativismo ocupa lugar central na considera<;ao da problematica crista (Josep Ratzinger, Fede, verita, tolleranza .... ). Todavia nao se circunscreve a este dominio, podendo ser vista no piano cultu ra l em geral. Alguma sociologia intentou mesmo enxerta-lo nas ciencias exac tas, embora corn pouco sucesso . No piano cultural rep resenta, ate certo panto, a adop<;ao da interroga<;ao de Pilatos na presen<;a de Jesus "a que ea verdade?", coma norma comportamental adoptada pela sociedade e pelo Estado. Quando se associa ao dogma da maioria absoluta, cria uma combina<;ao corn urn potencial explosivo notavel. 69
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no plano colectivo nem todos podem ser considerados igualmente valiosos. A essencia de cada um tern de ser aferida ao menos pela razao e pelos principios que enformam o modelo de sociedade a que se aspira. Nao o fazer e optar por coisa nenhuma e tempo vira em que alguem tentara optar e consegui-lo-a eventualmente, substituindo-se a quem o nao quis fazer. Corn que risco e consequencias dependera da motivac;ao A desvalorizac;ao da identidade conduz a indiferenciac;ao cultural. Todas as diferenc;as se tornam relativamente indiferentes, ficando o corpo social aparentemente mais homogeneo. Ilusao. As diferenc;as nao se esbatem. Apenas se esbate a forma como sao olhadas, conduzindo a um nivel de tolerabilidade mais elevado, para o bem e para o mal. Mas se o primeiro nao incomoda o segundo fa-lo e muito. Paradoxalmente, no campo biol6gico o mundo empenh a-se na valorizac;ao da diversidade pm路que a considera condic;ao de sobrevivencia. Ora a diversidade nao e apenas uma formula aplicavel a natureza ou as especies, vistas deste ponto de vista. E tambem aplicavel ao ser humano e aos grupos que constitui. Tambem aqui a diferenc;a e condic;ao da liberdade, nao por criar corpos estanques mas por criar espac;os disponiveis para quem a eles quiser aderir. A desvalorizac;ao da identidade por via da desvalorizac;ao da diversidade, conduz portanto a homogeneidade total. A prazo constitui uma etapa da globalizac;ao. Ora, nao e liquido que ambas sejam uteis. A tentativa de reconhecer a Europa como um ser colectivo sem cultura e identidade pr6prias, escudado na suposta incompatibilidade corn direitos, liberdades e garantias formais, tal como sao vistos no quadro da civilizac;ao ocidental, e pois uma atitude potencialmente destrutiva. 3.6. A razao de ser das paginas anteriores relaciona-se corn a convicc;ao de que a Europa, se nao possui ja uma identidade enqu anto tal, possui pelo menos elementos identitarios comuns. Num ou noutro caso necessita corn urgencia de um trabalho de consolidac;ao, se quer ultrapassar as contigencias de um embate contra os que nela se nao reveem ou que a recusam, tendo assim um futuro . Essa identidade deve aproveitar os factores significantes comuns corn particular dimensao de futuro, que se encontram na sua essencia, e ser moldada no sentido da aproximac;ao a valores compativeis corn um projecto sustentavel a longo prazo, ou seja um projecto no qual, quanto ao nucleo, nao subsistam linhas de indefinic;ao sobre o valor relativo de eventuais pontos de vista em confronto. S6 assim superara o que as nacionalidades podem ter de negativo, como o Presidente da Comissao Europeia dizia 71, preservan do-se todavia as
"Supra.
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na<;6es e as nacionalidades como reservatorios de valores culturais proprios mas menores 72 . Se a sociedade atraves dos que exercem o poder em cada momento nao o conseguir fazer, nao estara a altura do futuro7 3 . Num tempo em que a dimensao metafisica parece ganhar novo peso na sociedade, sera sempre dificil retirar desse nucleo o factor religioso. No caso europeu esta presen<;a nao provira apenas da falta de confian<;a no presente que leva a olhar mais para o divino. Provem tambem do papel desempenhado na evolu<;ao europeia, do passado ao presente, nao apenas na perspectiva puramente historica mas politica. 0 modelo de sociedade que se imaginou clever ser a Europa apoia-se em alguns pilares. Entre os fundamentais podem citar-se tres: separa<;ao da Igreja e do Estado; protec<;ao dos direitos liberdades e garantias ate niveis compativeis corn a subsistencia da sociedade, tal como esta pensada; soberania popular e sua expressao em quadros representativos. Destes tres, pelo menos os dois primeiros tern muitas das suas raizes no pensamento cristao. E quanta ao terceiro nao e impossivel estabelecer pontes, embora a formula<;ao mais frequente aponte noutro sentido. 0 pensamento cristao esta pois, por direito proprio na base do modelo de sociedade politica que funda a Europa 74 . A recusa em fazer a referenda as suas origens cristas na Constitui<;ao Europeia em nome de uma potencial discrimina<;ao, tentando esconder ou apagar a realidade, mais nao e do que urn capitula do relativismo que desvaloriza a identidade. Representa ainda o medo latente em estabelecer diferen<;as claras entre modelos serviveis ou inserviveis. Representa o receio de afirmar os limites precisos do que e aceitavel em face da dignidade politica e humana. Nao o fazer e alicer<;ar a Europa no proprio medo, faze-lo e afirmar o futuro da Europa. Outro factor e sem duvida, o direito.
n Nas palavras de Dom Manuel Clemente "A identidade europeia tem de ser concebida de forma aberta, a partir de uma pluralidade de pertem;:as... " 73 Tal como o vemos. Nao aquele futuro que frequentemente os responsaveis politicos deixam escorrer atraves de palavras mimeticas que, mais do que traduzir desejo de adaptar o futuro a Europa, traduzem preocupac;ao em adaptar a Europa ao futuro . Por paradigmatica a intervenc;ao do Ministro dos Neg6cios Estrangeiros portugues no Centra Cultural de Belem, em Lisboa, em 9 de Maio de 2001, na inaugurac;ao do Seminario "Alargamentos: identidade europeia e governan(a", ao comparar o futuro do alargamento da Uniao Europeia a situac;ao vivida ao tempo da Guerra Fria, quando punha em paralelo as palavras do frances Raimond Aron "paz impassive/, guerra improvave/", com as do britanico Timothy Carton Ash "unidade imposs fvel, colapso improvavel" . 74 Nao apenas na via politica mas tambem na juridicae na teol6gica. Na primeira, a afirmac;ao e lugar comum junta da juris-historiografia (por todos o classico de Rafael Gibert, Elementos formativos del derecho en Europa. Gennanico, Can6nico. Roman~ .. .). Sabre a indissociabilidade entre espirito europeu e identidade crista, presente na consciencia dos pais da Europa, cf. Josep Ratz inge1~ Fede, verita, tol/eranza... , passim.
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0 passado da Europa tern uma hist6ria juridica corn suficientes pontes entre na<;6es para poder ser ignorado, de tal modo que, talvez mais do que em outro dominio, ha. neste ambito ja urn forte embriao de Europa juridica75 â&#x20AC;˘ Corn a vantagem de, sendo uma area imbuida de tecnicidade, nao ser prima facie adequada a suscitar grandes resistencias intelectuais. Convem porem estar consciente de que esta suposi<;ao contem fragilidades, pois tambem aqui ha valores que em circunstancias determinadas nao deixarao de entrar em conflito violento. 0 problema anteriormente referido acabara por entrar na ribalta. Tambem neste caso sera necessaria, mais cedo ou mais tarde, optar entre os mais e os menos valiosos.
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"MODALIDADES DE CONTRATO DE ARRENDAMENTO HABITACIONAL NA PERSPECTIVA DA SUA DURA~AO."
Pedro Pitta e Cunha Nunes de Carvalho
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"MODALIDADES DE CONTRATO DE ARRENDAMENTO HABITACIONAL NA PERSPECTIVA DA SUA DURAC::AO." Pedro Pitta e Cunha Nunes de Carvalho 1
1. Ponto previo de terminologia
A distin<;:ao de modalidades d e contrato de arrendamento urbano habitacional na perspectiva da sua dura<;:ao enquadra-se na tematica da extin<;:ao do contrato, pelo que come<;:aremos por fazer breve referencia a esta materia. Assim, considere-se o novo art. 1079.째 CC, que refere expressamente as seguintes modalidades de cessa<;:ao (ou extin<;:ao) do contrato de arrendamento urbano: -
Acordo; Denuncia; Resolu<;:ao; Caducidade.
A doutrina esta muito longe de ter alcan<;:ado a unanimidade no que respeita a delimita<;:ao conceptual destas categorias. 2 Mas vejamos simplesmente o significado que o legislador atribuiu a cada uma delas. "Acordo" Corresponde a figura a que o legislador designou "revoga<;:ao" no art. 1082.째 CC 3 . Assim, "revoga<;:ao", para a Lei n. 0 6/2006 (de ora em diante,
1
Professor Auxiliar Convidado da Universidade Lusiada. Advogado. Conforme assinalamos nas nossas li~6es "Dos Contratos", Lisboa, 1994, p 80 e ss .. Por exemplo, Inocencio Galvao Telles recusa a expressao "resolu~ao" para a figura prevista no art. 801. 0 CC, defendendo que apropriado seria utilizar a palavra "rescisao" ("Direito das Obriga~6es, Coimbra, p. 460 ss.). 3 Estranha-se o legislador nao utilizar desde logo a expressao "revoga~ao" no novo art. 1072.0 2
cc.
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tambem designada NRAU), consiste no acordo de declara<;6es negociais entre as partes no contrato de arrendamento mbano, para extin<;:ao do mesmo. Note-se que o legislador n ao nomeia a mod alidade tradicionalmente admitida da revoga<;:ao unilateral (ja veremos que a designa por "denuncia"). "Den uncia" Para a Lei a denuncia consiste na declara<;:ao unilateral de uma das partes para extin<;:ao do contrato de arrendamento urbana. Pode ser livre (arts. 1100.0 , 1101. 0 c) CC) ou vinculada (art. 1101. 0 a) e b) CC). Chame-se a aten<;:ao para que ha aqui uma ruptura terminol6gica importante, pois no C6digo Civil a "denuncia" correspondia a declara<;:ao de uma das partes tendente a evitar a renova<;:ao automatica do Contrato de Arrendamento ap6s o decurso do prazo de vigencia. Agora, esta figura aparece designada como "oposi<;:ao a renova<;:ao" (confr. arts. 1054.0 e 1055.째 CC). Nao nos parece vantajosa esta altera<;:ao de terminologia. Desde logo, ir-se-a criar confusao, pois subsistirao contratos antigos, que remetem para terminologia anterior, que passarao a co-existir corn contratos novos, que se referem a nova. 4 Mas, principalmente, altera-se a terminologia numa area em que, como ja se disse, a doutrina esta longe de ter conseguido unanimidade. Para agravar, essa altera~ao foi feita numa orienta~ao que nao e a que encontramos em geral no C6digo Civil, onde, recorde-se, esta materia foi integrada. Assim, por exemplo, figura em tudo correspondente, surge a prop6sito da proposta contratual, no art. 230.째 CC, e a lei designa-a "revoga<;:ao". Surge no testamento (arts. 2311. 0 e ss. CC), tambem corn a designa<;:ao "revoga<;:ao". E ainda na doa<;:ao em geral, revogavel por ingratidao do donatario (arts. 969. 0 e ss. CC), nesta hip6tese vinculada ao contrario do que sucede nas anteriores, ou, em especial, na doa<;:ao entre casados, aqui, livre (art. 1765.째 CC). 5 Talvez tivesse sido mais prudente ter mantido a terminologia. "Resolu~ao"
Para o legislador da Lei n. 0 6/2006, a resolu<;:ao consiste na declara<;:ao unilateral de uma das partes do contrato de arrendamento urbana para extin<;:ao do mesmo corn fundamento numa hip6tese muito especffica, o incumprimento da contraparte. Trata-se de urn conceito restrito de resolu<;:ao e de uma aplica<;:ao incidental da figura prevista no art. 801. 0 2 CC. 4
Confusao em que, provavelmente, ten'i incorrido quando utilizou a expressao "denunciados" no art. 26. 0 2 NRAU, para designar aquilo a que, nesse mesmo diploma, optou por chamar antes "oposi~ao 5
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a renova~ao".
Nosso "Dos Contratos", cit, pg. 159 e ss. e 170 e ss ..
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"Caducidade" Trata-se de figura residual da extin<;ao do contrato de arrendamento urbano, categoria bastante heterogenea. Extin<;ao (automatica) por outra causa que nao as anteriores (que sao todas potestativas) .
2. Modalidades de contrato de arrendamento urbano quanto
a durac;ao
No que respeita a dura<;ao, a nova lei preve 2 modalidades de contrato de arrendamento urbano para habita<;ao: "contrato corn prazo certo" e "contrato de dura<;ao indeterminada" (arts. 1094. 0 e ss CC).
2.2. 0 "contrato a prazo certo" 0 "contrato a prazo certo" e urn contrato corn clausula de termo final 6, que pode ir de urn mfnimo de 5 a urn maximo de 30 anos (art. 1095.0 2 e 1025. 0 CC). Decorrido o prazo, nos termos do art. 1051. 0 l.a) CC, o contrato caduca. Porem, o contrato e automatica e sucessivamente renovavel (arts. 1054. 0 , 1096.0 1 CC), por perfodos de 3 anos, sendo que qualquer das partes pode "opor-se a renova<;ao" (arts. 1097. 0 e 1098. 0 1 CC). 7 Conforme resulta dos preceitos mencionados, o direito de oposi<;ao a renova<;ao, nao e conferido em termos iguais ao senhorio e ao arrendatario: - 0 senhorio tern de comunicar ao arrendatario a oposi<;ao renova<;ao corn 1 ano de antecedencia (art. 1097.0 ) ; - 0 arrendatario pode comunicar corn antecedencia de 120 dias apenas (1098. 0 ). Esta antecedencia prevista para a comunica<;ao do arrendatario esta em correspondencia corn o direito que a lei tambem atribui ao arrendatario de, unilateralmente, fazer cessar o contrato ("denunciar", na expressao legal) corn 120 dias de antecedencia ap6s 6 meses vigencia efectiva (art. 1098. 0 2 CC) . Cabe referir que autores ha que concebem este esquema legal (caducidade seguida de renova<;ao automatica) de outra perspectiva: nao seria o decurso 6
Sabre o conceito de termo e suas classificac;6es, confira-se na obra marcante de Joao de Castro Mendes, "Teoria Geral do Direito Civil", 1979, p. 530 e ss., e mais recentemente, Pedro Pais de Vasconcelos, "Teoria Geral do Direito Civil", Coimbra, p. 452 e ss., manual elaborado aquando a regencia da disciplina na Universidade Lusiada. Ainda a luz do CC anteriot~ a obra classica de Inocencio Galvao Telles, "Dos Contratos em Geral", Lisboa, 1962, p. 233 ss .. 7 Ha quem manifeste preferencia pela expressao "prorrogac;ao" (Manuel Januario Games, "Constituic;ao da Relac;ao de Arrendamento Urbana", Coimbra, 1980, p. 44 e ss.).
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do prazo, em caso de "oposi<;:ao a renovac;ao", a determinar a caducidade do contrato, mas seria a "oposi<;:ao a renova<;:ao", ela propria, a causa extintiva do contrato, funcionando o decurso do prazo apenas como causa justificativa dessa "oposi<;:ao renova<;:ao" .8 Inclinamo-nos para a primeira explica<;:ao, parecendo-nos que a altera<;:ao terminol6gica, que fala em "oposi<;:ao a renova<;:ao", ate podera refor<;:ar essa perspectiva.
2.3. 0 "contrato de dura(:iio indeterminada"
0 "contrato de dura<;:ao indeterminada" e, como a designa<;:ao sugere, urn contrato sem qualquer prazo, mas que pode ser unilateralmente cessado ("denunciado", na expressao legal) por qualquer das partes (arts . 1100. 0 e 1101 .째 CC), sendo que a lei, mais uma vez, discrimina as partes contratuais, podendo o arrendatario "denunciar" arbitrariamente corn antecedencia de 120 dias (art. 1100. 0 1 CC), e o senhorio corn antecedencia de 5 anos (art. 1101. 0 c) CC). Portanto, nao tern aplica<;:ao a esta modalidade o art. 1051. 0 l.a) . Ha, porem, uma questao te6rica importante a analisar, resultante da cria<;:ao da figura do "contra to de dura<;:ao indeterminada". Sabemos que o contrato de arrendamento e urn contrato de loca<;:ao que versa sobre im6vel (art. 1032.째 CC) e que o contrato de loca<;:ao tern, por elemento tfpico, o caracter temporario (art. 1022.째 CC). 9 Urn contrato diz-se temporario quando, no momento da sua celebra<;:ao, a cessa<;:ao dos seus efeitos fica estabelecida pela ocorrencia de urn facto futuro de verifica<;:ao certa. Ou seja, urn contrato diz-se temporario quando tern urn perfodo de vigencia pre-determinado (urn prazo de vigencia). Tal nao acontece no "contrato de dura<;:ao indeterminada". E certo que o contra to de dura<;:ao indeterminada" e den uncia vel" e, portanto, pode ser terminado em qualquer altura (ap6s 5 anos, por parte do senhorio). Mas tal nao lhe atribui o caracter temporario (alias a ser assim todos os contratos seriam temporarios), sendo padfico que qualquer das partes pode fazer cessar os contratos celebrados sem prazo, dentro do prindpio de que ninguem pode ficar indefinidamente vinculado a urn contrato. Pois o "contrato de dura<;:ao If
If
8
Assim, Jorge Pinto Furtado, "Manual do Arrendamento Urbana", Coimbra, 2001, p. 688 e 706
ss .. Que o canicter tempon\rio e elemento essencial do contrato de arrendamento, e aspecto pacificamente assinalado pela doutrina, face as no<;6es lega is de arrendamento e loca<;ao (por exemplo, Jorge Pinto Furtado, ob. cit., p. 40 ss., Manuel Januario Comes, ob. cit, p 61 e ss., Ant6nio Pais de Sousa, "Anota<;6es ao Regime do Arrendamento Urbana, Lisboa, 2001, p 61, Joao An tun es Varela e Fernando Pires de Lima, C6digo Civil Anotado, II, Coimbra, 1997, p. 343 e ss.). 9
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indeterminada" pode ser cessado. Mas tambem pode nao ser. Nao pode e ter a qualifica<;:ao de contrato temporario, pois nao tern prazo, antes e, no ambito desta classifica<;:ao, urn contrato perpetuo (e, coma tal, "denunciavel"). Nao e, tambem, urn contrato corn prazo incerto: nesta hip6tese a vigencia do contrato esta pre-determinada em fun<;:ao de urn facto futuro de verifica<;:ao garantida, embora nao se conhe<;:a o momento em que se produzira essa verifica<;:ao. Tambem nao se diga que ao "contrato de dura<;:ao indeterminada" e aplicavel 0 limite maxima de 30 anos previsto para 0 "contrato de loca<;:ao": se assim fosse o contrato nao seria de dura<;:ao indeterminada, antes teria prazo certo (os 30 an os)! Ou seja, "contrato de dura~ao indeterminada" nao se enquadra na descri~ao tlpica do contrato de arrendamento nem na da figura mais geral do contrato de loca~ao. Assim, em rigor, devemos concluir que o legislador admitiu urn tipo contratual novo. Possivelmente, este tipo novo terci dura~ao efemera, pelo menos nos termos em que esta desenhado, pois nao nos parece que para o locador haja muito interesse em celebrar urn contrato de dura~ao indeterminada, que o vinculara, no minimo, por 5 anos, em detrimento de urn contrato a prazo certo (figura que corresponde aos contratos de corn prazo efectivo criados pelo RAU), cujo prazo minimo tambem e de 5 anos e do qual se libertara (tambem) por mera comunica~ao (art. 1097. o CC). Contudo, nao deixa de ser curioso verificar o seguinte: Ate hoje, apesar de tecnicamente temporarios, os arrendamentos sem prazo efectivo acabavam por, na pratica, serem perpetuos (para o senhorio), por motivo da renova<;:ao automatica e de o senhorio nao se poder opor a mesma. Agora esses "arrendamentos" (convertidos em "contratos de dura~ao indeterminada") passarao a ser, na pratica, temporarios, embora tecnicamente perpetuos (por nao terem qualquer prazo)!
2.3.1. Denuncia para habita<;:ao Trata-se da den(mcia fundada na necessidade de habita<;:ao pelo proprio ou pelos seus descendentes em 1. 0 grau (art. 1101. 0 a) CC). 0 legislador reproduziu em grande parte para a nova "denuncia para habita<;:ao" (art. 1102.째 CC) o regime que estabelecia anteriormente para a antiga "denuncia para habita<;:ao", prevista no art. 71. 0 RAU (que corresponde, coma ja observamos, a uma "oposi<;:ao a renova<;:ao", na terminologia da nova lei).
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Assim, necessidade de habita<;ao 10 devera ser enquadrada nos seguintes condicionalismos: 1. 0 Ser o senhorio proprietario 11 , comproprietario, usufrutuario do predio
ha mais de 5 anos ou, independentemente deste prazo, te-lo adquirido por sucessao; 0 2. Nao ter ha mais de 1 ano casa propria ou arrendada que satisfac;:a as suas necessidades de habita<;ao ou dos seus descendentes em 1.0 grau, na area em questao; 3. 0 Tratar-se o contrato de arrendamento a denunciar do mais recente (para a hip6tese de o senhorio ter diversos predios arrendados na area); As areas em questao, na linha da legislac;:ao anterior, estao definidas do seguinte modo: - Lisboa e conselhos limftrofes e Porto e conselhos limftrofes; - Outros conselhos. Chama-se, porem, a aten<;ao para a adop<;ao da referenda ao "conselho" e o abandono da antiga referenda a "comarca". 0 que podera introduzir dado novo na questao de saber se a men<;ao "comarcas limftrofes" na legisla<;ao anterior deveria ser interpretada no sentido de abranger todas as comarcas resultantes de desdobramentos ocorridos ap6s a entrada em vigor do C6digo Civil. Por n6s, ainda que corn algumas reservas, sempre pensamos que o legislador pretendia abranger apenas comarcas contiguas as grandes urbes, considerando que, funcionado como satelites, tern acessos reciprocos facilitados . 0 desdobramento das comarcas reflete o desenvolvimento do quadro demografico, corn a interposi<;ao de grandes aglomerados urbanos (correspondentes a Amadora e Oeiras), o que dificulta significativamente o acesso as zonas extremas, pela necessidade de atravessar novos aglomerados e pela concentra<;ao de pessoas nos transportes publicos e nas vias. Nesta perspectiva inclinavamo-nos para a redu<;ao das areas resultantes da aplica<;ao do original art. 1098.째 CC, correspondentes apenas a Lisboa e suas novas comarcas (efectivamente) limftrofes e Porto e suas novas comarcas (efectivamente) limftrofes. Esta modalidade de denuncia tern de ser efectuada por processo judicial (art. 1103. 0 1 CC).
10
Necessidade que devera ser apreciada subjectivamente (ainda que nao, arbitrariamente) e, em nosso entender, esta directamente relacionada (e prevista) na a! b) do art. 1102.째CC. 11 Surpreendentemente o legislador omitiu esta hip6tese basica, que mais tarde veio a incluir corn a Declara<;ao de Rectifica<;ao n. 0 24/2006, de 17.4.
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A lei refere o dever de pagamento de indemniza<;ao a favor do arrendatario (correspondente a 1 ano de renda), que devera ser efectuada no mes seguinte a senten<;a corn transito em julgado (art. 1104. 0 5 CC).
2.3.2. Denuncia para demoli<;ao ou altera<;ao profunda do edificio Tambem para esta situa<;ao o legislador aproveitou a causa de "oposi<;ao da lei antiga (entao chamada "denuncia") e aplicou-a a "denuncia" do contrato de arrendamento de dura<;ao indeterminada. A denuncia fundada em demoli<;ao ou altera<;ao profunda do edificio obriga o senhorio a indemnizar o arrendatario, sendo que o valor minima desta indemniza<;ao corresponde a 2 anos de renda (art. 1104. 3.a) e 4.). 12 A lei fornece solu<;6es alternativas ao senhorio:
a renova<;ao"
0
- Realojamento definitivo noutro local (art. 1104. 3.b) CC); - Realojamento temporario noutro local seguido de realojamento no mesmo local, concluidas as obras (art. 1104. 0 3.c) CC). 0
Parece discutivel que esta ultima hip6tese corresponda -a uma verdadeira "denuncia" do contrato (no sentido de revoga~ao unilateral imprimido pela nova lei) . A regulamenta<;ao nesta modalidade de denuncia sera objecto de legisla<;ao especial (art. 1104. 8 CC) . 0
2.3.3. Denuncia livre Nao nos parece especialmente feliz a terminologia que, sugerida pela lei, e que come<;a a instalar-se na doutrina, que distingue "denuncia injustificada" e "denuncia justificada", consoante o sujeito o possa fazer arbitrariamente ou condicionadamente. Corn efeito, a chamada "denuncia injustificada" e, afinal, justificada, pm路que legalmente admitida. Parece-nos preferivel a utiliza<;ao das expressoes "denuncia livre" ou mesmo "denuncia arbitraria", por urn lado, e "denuncia vinculada" ou "denuncia condicionada", por outro. Esta modalidade de denuncia, ao contrario das anteriores, deve ser efectuada por mera comunica<;ao, nao sendo necessaria intentar qualquer processo judicial para o efeito (art. 1101. 0 c) CC).
12 0 valor minima corresponde, portanto, ao dobro do previsto para a denuncia para habita~ao (art. 1103. 0 1 CC).
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A comunica<;ao devera ser recebida 13 corn 5 anos de antecedencia pelo arrendatario (art. 1101. 0 c)), mas tera de ser objecto de confirma<;ao entre 15 e 12 meses antes da data da efectiva<;ao (art. 1104.° CC). 2.4. Possibilidade de
celebra~iio
de contrato de arrendamento a prazo
incerto Sera admissfvel a celebra<;ao de urn contrato de arrendamento urbano a prazo incerto? A questao ganha sentido, uma vez que a lei apenas menciona como modalidades o "contrato a prazo certo" e o "contrato de dura<;ao indeterminada" (que, como se referiu, e melhor se vera, e contrato sem qualquer prazo). No contrato corn prazo incerto a cessa<;ao dos efeitos do contrato esta pre-determinada em fun<;ao de urn facto futuro de verifica<;ao certa, mas nao se conhece o momento em que se produzira essa verifica<;ao. Ora, a verifica~ao pode ocorrer antes de passarem 5 anos, o que poderia subverter o esquema estabelecido pelo legislador.
A
luz da legisla<;ao anterior, fortemente vincullstica, foi muito discutida a questao da possibilidade de aposi<;ao de clausula condicional a urn contrato de arrendamento urbano. A lei inclui a verifica<;ao de condi<;ao resolutiva como causa de caducidade do contrato de loca<;ao 14 â&#x20AC;˘ Podera aplicar-se esta allnea ao contrato de arrendamento urbano? A questao teve a maior premencia naquela fase do vinculismo em que a lei apenas admitia contratos de dura<;ao nao limitada: a inclusao da condi<;ao poderia servir para subverter a imposi<;ao legal da renova<;ao automatica imperativa. Havia quem entendesse que essa clausula deveria considerar-se nula, por permitir tentar "fazer entrar pela janela o que nao pode entrar pela porta". 15 Contudo, outra solu<;ao era possfvel: aceitar a validade da clausula, que seria seguida da renova~ao automatica do contrato (pelo prazo supletivo legal). 16 A questao manh~m relevancia, pois se e certo que a lei permite a celebra~ao de contratos a prazo certo efectivo (de dura~ao limitada) e a celebra~ao de contratos de dura~ao indeterminada mas denunciaveis por qual-
13 Pensamos que o momento relevante sera o da recep~ao, tratando-se de declara~ao recipienda e considerando o art. 224.° CC. "Sinal revelador do conceito extremamente amplo de caducidade perfilhado pelo legislador. 15 Manuel Januario Gomes, ob. cit., p. 260 e ss .. 16 Nes te sentido, Jorge Pinto Furtado, ob. cit., p. 357 ss ..
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quer das partes, a verdade e que o senhorio fica sempre vinculado a urn periodo minimo de 5 anos de contrato. Assim, a inclusao de cl<l.usula de condi~ao resolutiva pode ter por objectivo subverter o principio da vincula~ao minima do senhorio pelo prazo de 5 anos. A questao pode ser resolvida por uma das 2 vias acima descritas, inclinando-nos para a segunda (podendo ate invocar-se o prindpio do aproveitamento dos neg6cios juridicos)Y Ora, nao nos parece indefensavel a transposic;ao de semelhante soluc;ao para a clausula de termo incerto. Ou seja, na hip6tese de o facto resolutivo ocorrer antes dos 5 anos, o contrato "renovar-se" de acordo corn a soluc;ao supletiva: por durac;ao indeterminada, que e a actual via supletiva (art. 1094. 3 CC), aplicando-se seguidamente o regime correspondente. 0
3.
Celebra~ao
de
de contrato de arrendamento urbano como acto
administra~ao.
Devera o acto de celebrac;ao de contrato de arrendamento urbana habitacional ser qualificado como acto de administrac;ao ordinaria ou, antes, como acto de administrac;ao extraordinaria (ou acto de disposic;ao, para quem perspective o direito do arrendatario como urn direito real)? Considere-se o art 1024.0 1 CC, que reza o seguinte: "A locac;ao constitui, para o locador, urn acto de administrac;ao ordinaria, excepto quando for celebrada por prazo superior a seis anos." Nesta perspectiva dir-se-ia que a celebrac;ao de urn contrato corn prazo certo por periodo inferior a 6 anos, envolve urn acto de administrac;ao ordinaria, considerando que o senhorio pode opor-se livremente a renovac;ao (sendo que o prazo minima tera de ser de 5 anos). Poder-se-ia ser tentado a chegar a mesma conclusao relativamente a celebrac;ao de contrato de durac;ao indeterminada, pois neste o senhorio apenas esta necessariamente vinculado durante 5 anos (art. 1101. 0 c) CC), podendo "denuncia-lo". Mas nao deveria o legislador ter esclarecido expressamente a qualificac;ao do acto de celebrac;ao de urn contrato de arrendamento urbana, sendo que este contrato tern particularidades que merecem ser ponderadas neste campo? Tanto mais que, relativamente aos antigos contratos sem durac;ao limitada, a doutrina
17 Relativamente ao contrato celebrado sob condi~ao suspensiva, sabemos que nao produz os efeitos normais enquanto ela nao se verificar. Nessa fase produz apenas os chamados efeitos prod6micos, que visam acautelar a eventualidade da ve rifica~ao da condi~ao e a eficacia plena do neg6cio juridico. Para a hip6tese de contra to celebrado sob condic;ao suspensiva determina a lei que, corn a certeza de que a condi~ao nao se verificara, estes efeitos prod6micos cessam por caducidade.
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ja vinha reclamando a sua nao qualifica<;ao como acto de administra<;ao ordinaria e o desajustamento do criterio do art. 1024. 0 para o efeito?
4. Comentario final
Inclinamo-nos para pensar que, no campo do contrato de arrendamento para fins habitacionais, e se bem que haja que reconhecer que nesta materia confluem multiplos interesses cujo equilfbrio e bastante diffcil de estabelecer, nao foram tomadas as medidas que possam vir resolver os problemas que se vem arrastando penosamente. Fica a ideia de que o legislador ponderou, de forma muito, clara, o direito a habita<;ao, o valor da estabilidade da mesma, as dificuldades econ6micas de muitos inquilinos. Trata-se, sem duvida, de valores importantes, que cabe ao legislador salvaguardar. Porem, tera pecado por: -
Se ter deixado ofuscar pela importancia daqueles valores, esquecendo que varios interesses do senhorio tambem sao relevantes e dignos de protec<;ao; - Ter cafdo na tenta<;ao de, para tutelar os interesses dos inquilinos, transferir os encargos correspondentes para os senhorios, particulares, sendo que esses encargos sao publicos, do Estado, no que chamarfamos o "prindpio da oportunidade" ("o senhorio estava no sftio errado a hora errada!) .
Parece-nos injustificado que alguem nao se possa constituir senhorio por urn periodo de tempo inferior a 60 meses (5 anos), conforme resulta dos arts. 1098. 0 e 1101.째 CC. Porque impedir a celebra<;ao de contratos arrendamento urbano para habita<;ao (permanente) em que o senhorio se vincule por 2 ou 3 anos apenas? Para garantir a estabilidade da habita<;ao? Permitir que o senhorio ficasse vinculado por urn perfodo menor, nao significaria proibir que se viesse a vincular por urn periodo maior. Se urn candidato a arrendatario tivesse o aspecto da estabilidade da rela<;ao como fundamental, poderia sempre fazer uma proposta por 5 anos, ou mais, e se a renda fosse interessante, o senhorio nao deixaria de aceitar. Nao e verdade que na vigencia do RAU, e corn a possibilidade de celebra<;ao de contratos de dura<;ao limitada, se celebraram ainda muitos contratos sem dura<;ao limitada? No nosso exerdcio profissional conhecemos varios casos. Por outro lado, a mudan<;a de casa nao deve ser considerada urn drama. Traz inc6modos, mas nao eo fim do m undo . Tern vindo a ser criada em Portugal a ideia do terror da mudan<;a. Tambem acontece corn o emprego: as pessoas
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tern medo de mudar de emprego (recordo que em Portugal, por lei, os contratos de trabalho sao "celebrados para a vida"). Nos paises ocidentais e comum a mudan<;a de emprego e de residencia, e a verdade e que a popula<;ao vai vivendo muito melhor que a popula<;ao portuguesa. Esta mentalidade de "se fechar na concha", de nao assumir riscos, leva ao imobilismo, tolhe o desenvolvimento. Mas esta medida resulta ainda mais incompreensivel e injusta quando se constata que, em contrapartida, o inquilino apenas fica inevitavelmente vinculado por urn periodo maximo de 10 meses, ou seja, 1 I 6 de urn periodo contratado de 5 anos. Nao e digno de protec<;ao o interesse do senhorio que fica frustrado pela cessa<;ao do arrendamento corn mais de 80% do prazo por cumprir, que fica privado de rendimento corn que contava (e ate pode ser vital para a sua subsistencia)? Que ate pode ter optado pelo inquilino que fez cessar o contrato em detrimento de outra proposta, mas que agora fica meses seguidos a procura de outro arrendatario? No fundo, feitas as contas, talvez nao tenham sido verdadeiramente abertos novos horizontes: a verdade e que o RAU ja permitia a celebra<;ao de contratos de arrendamento para habita<;ao corn vincula<;ao minima de 5 anos para o senhorio.
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REPUBLICA DE RAZOES
Ricardo Leite Pinto
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REPUBLICA DE RAZOES*
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SUMARIO: 0 neo-republicanismo constitui uma corrente filos6fica relativamente recente, inserida na famÂŁlia mais amp la das teorias da democracia. Se bem que colhendo a heran9a do republicanismo hist6rico que tem as suas raizes no pensamento de ARISTOTELES ou CfcERO, reformulado na Renasce119a pelas vozes de MAQWAVEL ou HARRINGTON e reconceptualizado nos alvores do constitucionnlismo pelos escritos de fEFFERSON ou MoNTESQWEU, o pensamento republicano ganhou novo folego no final do seculo XX quando os estudos hist6ricos de PococK, Wooo e BAYLTN sabre a revolu9iio americana permitiram o desenvolvimento de uma abundante literatura sabre o papel da virtude, da cidadania e da delibera9iio politica nas sociedades modernas. Apesar das not6rias dijeren9as de pensamento names coma SKINNER, PETTTT, Vmou ou SPITZ passaram a ser considerados epigonos do neo-republicanismo. Mas outros autores, coma HABERMAS, WALZER, SANDEL ou RAwLs, niio ficaram indiferentes ao novo surto doutrinario. No campo do Direito Constitucional as influencias tambem se fizeram sentir, sendo de referir na literatura juridica norte-americana os names de MTCHELMAN, SuNSTEIN, AcKERMAN ou SHERRY. Esse vasto "corpus" ideol6gico e te6rico abriu novas portas para !er e interpretar as Constitui9oes e o Direito Constitucional. Alguns desses contributos acentuaram o papel da virtude, a participa9iio politica, a raziio dial6gica, a delibera9iio politica, a ideia de soberania popular e a modeliza9iio da cidadania. Mas o contributo neo-republicano pode tambem ajudar a densificnr o conceito complexo de "forma republicana de governo", presente em muitas Constitui9oes coma limite material de revisiio constitucional coma e o caso da Constitui9iio Portuguesa de 1976. Embora o conceito de forma republicana de governo remeta para uma fisionomia tradicional que o define par recurso ao elemento anti-monarquico, a "rottation in office", a separa9iio de poderes e a constitui9iio mista, pode tambem ser lido coma um "modo de governar" .. Nesta ultima perspectiva o neo-republicanismo pode ajudar a re-conceptualizar a forma republicana de governo associando-a ao valor epis temico da democracia deliberativa (refor9o
' Comunica<;ao ao VII Congresso da Associa<;ao Internacional de Direito Constitucional (IACL, Atenas, 11-15 de Junho 2007) - Workshop "Latest Developments in Constitutional Theory and Doctrine" (Chairs: Profs. Yasuo Hasebe e Otto Pfersmann). 1 Professor Assistente da Faculdade de Direito da Universidade Lusiada de Lisboa.
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da legitimidade e da correc9iio das decisi5es politicas co/ectivas). Este texto procumra centrar-se neste ultimo panto, reconciliando a teoria republicana cam a forma republicana de governo, aspecto que tem sido descurado pelos juristas neo-republicanos. ABSTRACT: Neo-republicanism is a relatively recent line of political thought, part of
the widest theories of democracy. Emerging from the historic Republicanism, that has its roots in Aristoteles' or Cfceros' thoughts, reformulated in the Renaissance through the voices of Maquiavel or Harrington and re-conceptualized at the birth of the Constitutionalism by the writings of Jefferson or Montesquieu, the republican thought gained new strength at the end of the XX century when PococK, Wooo A ND BAYu N's historic studies, about an American revolution, allowed the development of abundant literature about virtue, citizenship and politic deliberation in modern societies. Despite the notorious differences of thought, names like SKINNER, PEITIT, Vmow or SPITZ became to be seen as epigones of the neo-republicanism movement. Other authors, like HABERMAS, WALZÂŁ1\, SA NDEL or RAWLS, didn't stand indifferent before the new doctrinal burst. These influences were also felt in the f ield of Constitutional Law, being important to mention M!Cf-IELMA N, SuNSTEIN, AcKERMAN or SHERRY, authors part of the north American juridical literature. This vast ideological and theoretical corpus opened new ways of reading and interpreting the Constitutions and the Constitutional Law. Some of these contributions accentuated the importance of virtue, political participation, the dialogical reason, the political deliberation, the idea of popular sovereignty and citizenship. However, the neo-republican contribute could also help condense the complex concept of 'republican form of government', present in many Constitutions as barriers of the constitutional revision, as in the Portuguese Constitution of 1976. Although the concept of republican form of government turned to a traditional physiognomy that is defined, by appeal, to the anti-monarchy element, to the "rottation in office", to the separation of powers and to the mixed constitution, may also be read as a "way to rule" .. In this last perspective, the neo-republicanism can help to re-conceptualize the republican form of government, associating it to the epistemic value of deliberative democracy (reinforced by the legitimacy and the correction of the collective political decisions). This text will focu s on this last point, reconciling the neorepublican theory with the republican form of government, an aspect that has been relinquished by the neo-republican jurists.
1. NEO-REPUBLICANISMO E TEORIAS DA DEMOCRACIA 0 neo-republicanismo procurou recuperar o sentido esquecido da expressao "republica" densificando-a a luz da interpreta<;ao hist6rica e dos contributos contemporaneos (PINTO, 2006 : 13-33). Faz parte da familia das teorias da democracia ao lado, entre outras, da concep<;ao liberal, da concep<;ao participativa ou da concep<;ao comunitaria. Nesse sentido e urn modelo
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normativo e ideal que nao pretende descrever a realidade mas a afirmar coma ela deveria ser. 0 neo-republicanismo e pais uma teoria normativa da democracia. Ha varias aproximac;6es neo-republicanas, umas de natureza mais liberal outras mais comunitaria. E possivel, contudo, recensear entre outras, pelo menos tres preocupac;oes comuns: a) a virtude dvica (virtu I civic virtue), designando o envolvimento na comunidade, a preferencia pelo interesse publico, a busca do bem comum por oposic;ao a corrupc;ao (a ineptidao para a vida livre, a emergencia dos interesses particulares, as "facc;6es"); b) a participac;ao politica que envolve urn alargado processo de discussao e deliberac;ao onde todos podem participar em condic;6es de independencia e igualdade (democracia deliberativa) e no qual o papel da argumentac;ao por apelo a razao dial6gica ("audi alteram partem") e ao compromisso conversacional ganham urn peso decisivo; c) urn certo modelo de cidadania e de patriotismo construido em torno da conversa dvica, da participac;ao na "polis" corn acento t6nico nos deveres e responsabilidades. Este modelo, sobretudo na sua faceta deliberativa pretende ser uma alternativa as outras teorias da democracia, sobretudo a perspectiva liberal que assenta na agregac;ao de grupos de interesse e na negociac;ao politica. 0 modelo liberal, centrado no individualismo, nos direitos individuais e na democracia de partidos, nao teria evitado a crise da democracia contemporanea: corrupc;ao, afastamento dos cidadaos em relac;ao a vida politica, apatia dvica, "deficit" de legitimidade nas decis6es politicas. Construir urn Estado republicano, assente numa democracia republicana tern sido a tarefa de gente tao diversa quanta SKINNER, Vmou ou PEITIT. Nao existe urn, mas varios neo-republicanismos. Desde logo deve fazer-se justic;a a PococK (PococK, 1975) e ao seu "Machiavellian Moment" sem o qual o neo-republicanismo nao teria voado tao alto. A sua reinterpretac;ao do republicanismo maquiavelico e a sua recepc;ao nas origens da revoluc;ao americana, marcando a perenidade do cidadao que se realiza coma homem livre na medida em se empenha na vida publica, teve urn extraordinario impacto, embora tardio, nos estudos hist6ricos, politicos e juridicos subsequentes. Mas os escritos de PococK nao podem fazer esquecer a recuperac;ao republicana que Wooo (Wooo, 1969) e BAYLIN (BAYLIN, 1967) haviam desenvolvido antes a prop6sito das origens da revoluc;ao americana e do debate entre federalistas e anti-federalistas. 0 republicanismo de PococK pode ser vista coma uma releitura das preocupac;oes de ARENDT sabre as revoluc;6es americana e francesa, corn enfase na participac;ao dvica dos cidadaos e deliberada hostilidade a visao liberal do Homem e da Sociedade. Diverso, mas tambem poderoso nos seus seguidores, eo republicanismo "neo-romano" de SKINNER (SKINNER, 1998). A sua republica e de uma associac;ao de
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cidadaos a ordem juridica e ao interesse comum, sendo que a participa<;ao dvica nao e urn fim em si, mas urn instrumento para a vida livre. Duas outras vis6es neo-republicanas importantes sao as de PETTIT e de VIROLI. 0 primeiro (PETTIT, 1998) elabora uma teoria do republicanismo contemporanea que assenta numa concep<;ao da liberdade que remonta ao pensamento classico: liberdade como ausencia de servidao. Opoe assim a concep<;ao liberal de liberdade como ausencia de interferencia, uma outra, republicana, liberdade como ausencia de domina<;ao. Neste sentido sustenta que a tradicional distin<;ao entre liberdade positiva e liberdade negativa estudada por BERLIN (BERLIN, 1969), nao da resposta a uma moderna concep<;ao republicana. 0 ideal republicano nao sera tanto o de privilegiar de forma directa e obrigat6ria a participa<;ao na vida politica, mas antes preservar a liberdade como nao domina<;ao atraves da delibera<;ao publica valorizando a capacidade dos cidadaos contestarem o poder (democracia contestataria). Por seu lado VIROLI (Vmou, 2003) desenvolve uma concep<;ao neo-republicana que permita responder as dificuldades quer do comunitarismo quer do liberalismo em materia de defini<;ao de cidadania. Segundo ele o patriotismo republicano seria anti-nacionalista. A adesao do cidadao aos valores substantivos da republica como comunidade politica, e nao aos valores abstractos da "na<;ao", permitira a todos exercerem os seus direitos civis e politicos e aderirem as reformas politicas e sociais de forma solidaria. A solidariedade implica urn sentido de perten<;a a "republica" universalista e nao necessariamente a "na<;ao" 2 â&#x20AC;˘ Em Fran<;a, atendendo as especificidades do patrim6nio hist6rico da "republica", mais agarrado aos "lieux de memoire", os reflexos do neo-republicanismo anglo-sax6nico fizeram-se sentir tarde (SPITZ, 1995, RENAUT, 2005). E o debate acabou por se centrar sobretudo na resposta a dar as reivindica<;6es a favor do reconhecimento de identidades espedficas no seio do espa<;o publico, por for<;a da pressao da agenda politica mais imediata relacionada corn as politicas de integra<;ao das minorias etnicas. Outros autores nao se auto-intitulam formalmente neo-republicanos mas nao ignoram o debate e o contributo daqueles. Michael SANDEL na sua critica do liberalismo (SANDEL, 1982) nao deixa de considerar que a liberdade depende do auto-governo colectivo, o que pressupoe a capacidade dos cidadaos deliberarem no espa<;o publico por forma a encontrarem o bem comum. Os impasses do liberalismo podem ser ultrapassados pelo recurso a elementos de uma teoria republicana que ponha acento t6nica na liga<;ao a comunidade, na virtude dvica e na participa<;ao nos assuntos publicos. Tambem H ABERMAS ao distinguir entre a concep<;ao liberal e a republicana quanto a natureza dos processos de
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Esta tese tem alguns pantos de contacto coma
H ABE RMAS (AUDIER,
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concep~ao
do "patriotismo constitucional" de
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decisao publicos se orienta por uma terceira via (HABERMAS, 1997; 1998), a democracia deliberativa. Mas esta, na medida em que se centra no valor do dialogo como ideal de comunica<;ao publica virado para o acordo nao deixa de reflectir 0 "apport" republicano. Mesmo RAWLS, que e criticado pelos neo-republicanos dad a a sua defesa da ideia liberal do sujeito e a sua concep<;ao "empobrecida "da liberdade, nao deixa de reflectir sabre o republicanismo, introduzindo a distin<;ao entre republicanismo classico e humanismo civico, cam clara simpatia pelo primeiro. 0 republicanismo classico pode ajudar a fortalecer a sua concep<;ao de liberalismo politico na medida em que a participa<;ao dos cidadaos se tome instrumentalmente relevante para a garantia das liberdades individuais (RAWLS, 1995). Finalmente WALZER (WALZER; 1997), defensor das posi<;6es comunitarias, sustenta que s6 uma liga<;ao aberta e plural do cidadao que valorize a sua liga<;ao as varias esferas associativas e religiosas, permite a sua participa<;ao politica eficaz em todos os niveis. Mas neste aspecto partilha corn os neo-republicanos uma certa ideia de participa<;ao civica que e condi<;ao de uma sociedade livre.
2. NEO-REPUBLICANISMO E DIREITO CONSTITUCIONAL
A discussao republicana no campo do Direito Constitucional tern sido ventilada a duplo titulo: a) os homens da filosofia politica procuram construir modelos de funcionamento democratico, corn recurso aos utensilios constitucionais tradicionais, ou seja e desde logo, ao papel da Constitui<;ao como ordem juridica do Estado e da Sociedade, por forma a alimentar uma democracia republicana (PETIT, 2003, MARTf, 2006), sugerindo novas ou reformuladas figuras juridico-constitucionais ("checks and balances", governo misto, direito de peti<;ao, iniciativa legislativa popular, "referenduns"); b) os juristas pro cur am re-interpretar as Constitui<;6es dos seus paises a luz do "republican revival". Par exemplo, os juristas neo-republicanos, designadamente MICHELMAN (1986, 1988), SU NSTEIN (1988, 1993), AcKERMAN (1993) ou SHERRY (1986, 1995) acentuam que e possivel ler a Constitui<;ao norte-americana de acordo lentes republicanas. Isso significaria que a Constitui<;ao de 1787 seria pqrtadora de urn c6digo genetico "republicano" dedutivel do seu lastro hist6rico, das suas fontes, dos seus prindpios e das suas normas. Dito de outra forma: a Constitui<;ao norte-americana conteria em si urn ideal regulativo - urn processo de tomada de decisoes politicas substancialmente republicano - a disposi<;ao de todos os qve 0 souberem interpretar, simples cidadaos, titulares dos 6rgaos de poder politico ou juizes do Supremo Tribunal. Lusfada. Direito. Lisboa, n .0 4/5 (2007)
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Este ultimo aspecto significaria mais do que a defesa do regime politico democnitico, projecto que esta insito em todas ou quase todas as Constituic;oes de hoje. Traduziria uma especial qualificac;ao da democracia: uma democracia mais robusta, onde as decis6es politicas ganhariam em legitimidade e em justic;a. Contudo o entendimento dos juristas neo-republicanos esta longe de ser uniforme (PINTO, 1998: 126-152; 2006: 24-25). Parece ser ponto comum entre todos, ou pelo menos entre os que acima citamos, a ideia de que a definic;ao do bem comum deve nascer do dialogo, como compromisso conversacional o que pressup6e o valor da virtude civica, e nesse sentido todos sao adeptos em maior ou menor grau de uma democracia deliberativa. Contudo nao e unanime 0 entendimento quanta a sede desse dialogo republicano. MICI-IELMAN (1986, 1988) parece destacar o papel dos juizes do Supremo Tribunal especie de guardi6es do dialogo republicano, SuNSTEIN (1988, 1993, 1999, 2001, 2002) adopta a soluc;ao "madisoniana" de centrar o dialogo nos representantes eleitos do povo que acabam por filtrar a vontade popular e corrigir os excessos, o populismo e a irracionalidade, enquanto ACKERMAN (1993, 1998), atraves da sua teoria dualista, entende que esse papel, pelo menos nos fen6menos os constituintes, cabe ao povo que em momentos excepcionais delibera acerca dos interesses da comunidade.
3. NEO-REPUBLICANISMO E "FORMA REPUBLICANA DE GOVERNO"
Quando os juristas neo-republicanos analisam as questoes constitucionais e desde logo a Constituic;ao, procurando surpreender uma linhagem republicana no espirito e na letra da Constituic;ao, quase sempre esquecem a relevancia da "forma republicana de governo". Muitas Constituic;6es consagram tal principio coma limite material a revisao constitucional, o que significa que o assumem coma trave mestra do ordenamento juridico-constitucional que deve perpetuar-se de gerac;ao em gerac;ao. Na Constituic;ao francesa de 1958(art. 89. 0 al. 5), na Constituic;ao Italiana de 1947 (art. 139. 0 ) ou na Constituic;ao Portuguesa de 1976 (art. 288. 0 al. b), a expressao aparece como limite material a revisao constitucional. Ja na Constituic;ao dos EUA de 1787 ela e encarada como uma clausula garantia ("guarante clause") na qual o Governo Federal assume a sua protecc;ao no contexto dos Estados Federados. Vale a pena ver como tern sido encarada a "forma republicana de governo" e a propria expressao "republica" pelos constitucionalistas de alguns destes paises. Comec;ando pelos EUA a expressao tern suscitado pouco interesse. Ha urn trabalho ja classico sobre o assunto (WIECEK, 1972) e recentemente outro jurista (SELLERS, 2003: 109-112) recuperou 0 tema. Para este ultimo a forma republicana de governo assentaria na ideia do bem comum coma prop6sito da actividade politica, no quadro da legalidade, da soberania do povo, dos "checks
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and balances", da representa<;ao politica, de urn legislativo bicameral, da independencia judicial, da renova<;ao dos cargos politicos e do federalismo. Em Fran<;a a reptlblica esta presente em quase todos os debates politicos e a doutrina proclama a "excep<;ao francesa" em materia de paixao republicana associando-a aos sfmbolos, as mem6rias e a mistica. Mas se bem que a Constitui<;ao francesa refira a "forma republicana de governo" como limite a revisao constitucional da Constitui<;ao de 1958, a sua densifica<;ao juridica nao vai muito para alem de uma aproxima<;ao negativa como "regime oposto a monarquia". Contudo o Conselho Constitucional francesa tern alargado o conceito por referenda a categoria dos valores fundamentais inscritos no preambulo da Constitui<;ao e aos "principios fundamentais reconhecidos pelas leis da republica": soberania popular, separa<;ao de poderes, liberdades fundamentais, indivisibilidade do Estado e laicidade (VIOLA, 2002: 44-53, MATHIEU e VERPEAUX, 1996). Finalmente em Portugal a doutrina constitucional e a jurisprudencia 3 associam a "forma republicana de governo", cujas origens hist6ricas remontam a Constitui<;ao republicana de 1911, aos seguintes principios: anti-monarquia, renova<;ao dos cargos publicos, laicidade do Estado, separa<;ao entre Igreja e Estado, soberania popula1~ unidade do Estado (CANOTILHO, 2003: 228).
4. REPUBLICA, FORMA REPUBLICANA DE GOVERNO E DEMOCRACIA DELIBERATIVA
Uma das obras mais marcantes sobre teorias da democracia na ultima decada do sec. XX "Democracy and Desagreement" (GuTMANN e THOMPSON, 1996) resume o seu desiderata da seguinte maneira: quando os cidadaos desacordam moralmente sobre as quest6es politicas publicas o que devem fazer? Devem deliberar uns corn os outros, procurando acordos morais quando puderem e mantendo respeito mutuo quando o nao puderem" (GuTMANN e THOMPSON, 1996: 347). A ideia de que as decis6es colectivas, que implicam op<;6es fundamentais para a vida em sociedade e actua<;6es por parte dos governantes, deve girar em torno da delibera<;ao, e tao antiga como a hist6ria da humanidade. ARIST6TELES, MoNSTESQUIEU, MADISON ou STUART Mru defenderam de formas diferentes, e certo, a delibera<;ao como metodo de decisao politica. Contudo, foi apenas nos ultimos dez anos que o ideal deliberativo come<;ou a ganhar novo vigor como forma de responder as debilidades e criticas das modernas democracias, acusadas de excessivo mercantilismo, transformadas que estao 3 0 Tribunal Constitucional pronunciou-se uma unica vez (Ac6rdao 364/91) sobre o prindpio republicano na Constituic;ao de 1976 associando-o a renovac;ao dos cargos politicos (PINTO, 2006: 80-90).
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em jogos politico-partidarios em que os grupos de interesse prevalecem na balan<;a dos custos e beneffcios e em que a ac<;ao politica redunda numa negocia<;ao formalmente legitimada pelo voto (BoHMAN e REHG, 1997, MAcEoo, 1999, DRYZEK, 2000). Para ah~m do espectaculo mediatico das elei<;6es e dos representantes eleitos reunidos em parlamentos, os cidadaos afastam-se cada vez mais da vida politica corn a sensa<;ao de que as mais relevantes questoes da vida politica lhes passam ao lado e sao decidas por poderosos grupos de pressao. A democracia deliberativa tornou-se uma alternativa democratica apelativa, obtendo grande adesao academica, sobretudo no mundo anglo-sax6nico, nos ultimos anos. Em boa parte os trabalhos de HABERMAS (1987 (1981) sobre a "Teoria da Ac<;ao Comunicativa" criaram urn ambiente filos6fico favoravel para esse desenvolvimento. Contudo, sao ainda muitas as pistas abertas sobre a democracia deliberativa, porque sao tambem diversas as aproxima<;6es dos varios autores. Continua a fazer-se uma distin<;ao entre uma democracia deliberativa elitista centrada sobretudo no papel dos representantes e uma democracia deliberativa republicana, que acentua o papel dos cidadaos e a potencia<;ao da esfera publica para a delibera<;ao informal. Esta ultima permite cruzar a teoria da democracia deliberativa corn o neo-republicanismo, de modo que quase todos os neo- republicanos sao, a seu modo, mais ou menos deliberativos. Importa pois, antes de mais, ver os tra<;os gerais da teoria da democracia deliberativa e depois a sua assumida filia<;ao republicana. A democracia deliberativa e urn modelo normativo que pretende justificar e legitimar as decisoes politicas. E urn modelo normativo porque nao quer retratar a realidade, antes apontar o que ela deveria ser. Assim, o procedimento deliberativo e uma condi<;ao para a legitimidade das decisoes politicas. Trata-se de urn ideal regulativo e aproximativo (ELSTER, 1998: 8). Regulativo dado que se trata "de urn horizonte normativo em direc<;ao ao qual devemos tender na medida do possivel" (MARTl, 2006: 25). Aproximativo porque opera gradualmente: quanta mais deliberativo for o processo decis6rio mais legitimas serao as decisoes politicas. Este ponto e extremamente importante para uma das reflexoes conclusivas deste texto. Se admitirmos que o ideal deliberativo e valido e da corpo a urn modo republicano de governar, nao estamos a excluir outras hip6teses de decisao democratica (negociar ou votar, por exemplo) mas afirmamos urn grau de exigencia suplementar no processo de decisao politica que a nao ocorrer (ou se ocorrer de forma empobrecida), pode invalidar o resultado final a luz do paradigma constitucional republicano. Antes de avan<;armos importa desde ja afastar as grandes objec<;6es a democracia deliberativa. Se a delibera<;ao visa pela via da argumenta<;ao urn consenso em torno de certas questoes fundamentais para a vida em sociedade, a verdade e que ha desacordos irredutiveis entre os cidadaos ou grupos de cidadaos (por razoes culturais, religiosas ou sociais) que abalam a exequibilidade de qualquer esfor<;o deliberativo. Os criticos falam entao de irrealismo,
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inocuidade e prejufzo da delibera~ao. No essencial todos se arrumam em torno da ideia de que se trata de urn ideal ut6pico, que pressup6e uma realidade que nao existe, o que torna impossfvel superar os desacordos (BOHMAN, 1996: 71-105). A tese realista nao invalida que o processo deliberativo seja idealmente melhor que qualquer outro. E mesmo quando nao resolve os conflitos ou nao chega a consensos, nao deixa de melhorar a qualidade das decis6es, sobretudo se o desacordo persistir em momento posterior a delibera~ao. Nenhum te6rico da democracia deliberativa cai no absurdo de admitir que tudo se concilia, tudo se consensualiza, todos os conflitos de superam. E inegavel que os chamados "conflitos profundos" das sociedades contemporaneas, coma a eutanasia, o aborto, a pena de morte, a legaliza~ao das drogas leves, produzem desacordos persistentes. Nestes casos como escreve o constitucionalista norte-americano CAss SuNSTEIN o facto de nao chegarmos a acordo quanta a esses pantos nao significa a invalidade da delibera~ao. Podemos ter que recorrer a outra estrah~gia democratica, votar ou negociar, mas nao deixaremos de deliberar corn resultados praticos positivos, ainda que incompletos ou parciais. Par exemplo, podemos sempre chegar a acordo quanta a questao parciais que eliminem as maiores controversias: e aquilo a que se chama o "uso construtivo do siH~ncio" (SuNSTEIN, 1999: 130). Nao e necessaria alcan~ar acordo sabre todos os nossos prindpios, ou sabre todas as raz6es que levam a acreditar nesses prindpios em alguns casos sera mesmo impossfvel - mas podemos chegar a acordo sabre algum panto que ponha fim as controversias e "silenciar o nosso sistema de cren~as". Estes "acordos teorizados incompletamente" (SuNSTEIN; 1999: 128-148) reduzem o perigo dos desacordos persistentes e permitem a convivencia dos cidadaos corn respeito mutua e civilidade. Outra das crfticas a teoria deliberativa assenta na sua aparente contradi~ao: a delibera~ao em vez de aproximar, afastaria. Trata-se de urn fen6meno estudado na chamada psicologia social e conhecido coma "polariz a~ao de grupos" (SuNSTEIN, 2002: 176). A polariza~ao irracional p6 s-delibera~ao significaria que as convic<;6es do grupo deliberante se extremariam coma resultado do proprio processo deliberativo. Se, por exemplo, num debate pr6 e contra a interrup~ao voluntaria da gravidez os grupos deliberantes estao muito fechados, limitados na argumenta~ao disponfvel, impermeaveis a vozes alternativas e dissonantes, avessos a informa~ao complementar e se enquistam no contexto das influencias sociais que modelam os seus comportamentos (reputa~ao e auto-imagem) o resultado, dizem os estudos empfricos, sera contrario ao consenso e ao acordo. Mas ainda que assim seja - e mais uma vez a crftica dec01路re de uma leitura realista da teoria deliberativa - nao se ve coma o resultado da delibera~ao possa ser considerado negativo ou inferior a qualquer outro processo de decisao corn exclusao da delibera~ao (coma a simples agrega~ao de preferencias pelo voto ou a negocia~ao) . Mesmo que a delibera~ao em alguns casos possa agravar o conflito social - e seguramente nao e a delibera~ao s6
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por si como processo a unica ou principal causa desse agravamento - nao se ve como possa considerar-se melhor urn modelo inverso onde prevale<;:a a ignorancia dos cidadaos como forma de' preservar as suas "incoerencias e irracionalidades" (MART!, 2006: 37). Os mecanismos utilizados em democracia para decidir sao fundamentalmente tres (ELSTER, 1998: 6): votar, negociar ou argumentar. Em regra, os tres referidos mecanismos sao utilizados concomitantemente. Acontece porem que os tres modos se articulam de forma a fazer sobressair urn deles consoante o modelo de democracia escolhido: a "democracia como mercado" predominantemente no voto, a "democracia pluralista" na negocia<;:ao e a "democracia deliberativa" na argumenta<;:ao. Come<;:ando na primeira que assenta na teoria da "social choice" o sistema democratico ve-se transformado num mercado econ6mico onde os partidos vendem programas que sao adquiridos pelos votantes. Se bem que o voto prevale<;:a como meio para tomar decis6es, aquele decorre fundamentalmente de uma motiva<;:ao politica entre interesses individuais ou grupais egoistas. 0 modelo pluralista preconiza a negocia<;:ao e o compromisso como meios para decidir politicamente, entendendo a democracia como uma competi<;:ao livre entre grupos de interesse que lutam por influenciar as decis6es politicas, vendo-se obrigados a negociar para alcan<;:ar urn compromisso basico na tomada de decis6es. A negocia<;:ao e pois o cora<;:ao do modelo. Finalmente a democracia deliberativa assenta no principio da argumenta<;:ao de acordo corn o qual a troca de raz6es a favor ou contra certa solu<;:ao, num quadro de liberdade e igualdade de oportunidades, pode alcan<;:ar a melhor e mais correcta decisao. Pretende-se a assim a transforma<;:ao racional das preferencias imparciais 4 que entram inicialmente como "input" do processo deliberativo de forma a atingir urn consenso, nao por agrega<;:ao de interesses ou por negocia<;:ao. A for<;:a dos argumentos devera prevalecer sobre as amea<;:as, as coa<;:6es, as promessas ou a maioria dos votos. E porque, como se disse, nao ha democracia que se baseie unicamente na argumenta<;:ao, nem a argumenta<;:ao s6 por si, como vimos, pode eliminar definitivamente os desacordos basicos, e que a democracia deliberativa que assenta no principio da argumenta<;:ao nao afasta o voto ou a negocia<;:ao, acabando alias, no seu desenho institucional por considerar em maior ou menor grau algum mecanismo de voto. A democracia deliberativa assenta na ideia de interesse geral e na no<;:ao de bem comum, que resultara da agrega<;:ao de interesses intersubjectivos de todos os cidadaos. Nao e possivel no ambito deste texto desenvolver esta corn-
4 0 ideal deliberativo pressup6e preferencias imparciais, pelo que as formas institucionais da delibera<;ao na 16gica dos seus defensores devem evitar as motiva<;6es autointeressadas e os usos estrategicos da argumenta<;ao, que nem sempre sao combatidas pela "for<;a civilizadora da hipocrisia"
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plexa materia, assim como nao podemos de forma exaustiva analisar as precondi<;6es da delibera<;ao e os seus prindpios estruturais tais como a literatura sobre a materia os tern apresentado. Limitar-nos-emos a urn breve resumo do tema para que se compreenda o valor epistemico da teoria deliberativa . A questao do interesse geral e do bem comum e urn verdadeiro cavalo de batalha da teoria deliberativa, justamente porque e a unica em confronto corn as alternativas referidas antes, que afirma que o "interesse geral" s6 se pode entender por adi<;ao dos interesses subjectivos de todos os cidadaos. Ainda que partamos, no processo deliberativo, de interesses individuais e egofstas a necessidade de os confrontar em debate publico por apelo a raz6es que os fundamentem, leva a generalidade e a intersubjectividade e p01路tanto a uma fundamenta<;ao corn base em prindpios e nao apenas desejos, gostos ou meras preferencias egofstas. Se alguem actua corn base em prindpios e equivalente a dizer-se que actua motivado pelo bem comum. Assim, a no<;ao de "bem comum" corresponde ao do interesse geral no sentido do conjunto de interesses inter-subjectivos existentes na comunidade (MART!, 2006: 64). A delibera<;ao pressup6e esse entendimento, nisso acordam todos os democratas deliberativos. Mas ha inumeras divergencias quanto as respostas a dar a outras quest6es: quem delibera? como se delibera? quais as pre-condi<;6es para delibera<;ao? quais as regras ou prindpios por que se rege a delibera<;ao? havera limites as quest6es sujeitas a delibera<;ao? Resposta a primeira questao e essencial. Isto porque ha quem defenda urn modelo deliberativo mais elitista centrado essencialmente nos representantes eleitos do povo e outro mais alargado que tern como suj eitos os cidadaos. A resposta dada por HABERMAS (1987: 33), quando este sustenta que os participantes na delibera<;ao sao todos os potencialmente afectados pela decisao que vai ser produzida, e uma boa base de trabalho mas nao resolve o problema. Devemos reduzir a delibera<;ao ao nfvel dos 6rgaos representativos ou alarga-la a todos os cidadaos? Uma visao estrutural e verdadeiramente deliberativa e por natureza ampla e anti-reducionista. Nao pode ignorar a estrutura<;ao das modernas sociedades, a sua complexidade geografica e demografica e o facto que as democracias modernas serem institucionalmente representativas. Oaf que a delibera<;ao deve ocorrer nos f6runs representativos, mas tambem e cada vez mais, em f6runs de cidadaos, em espa<;os publicos formais e informais ou mesmo pela vida da participa<;ao directa (OVEJERO, MARTf, GARGARELLA, 2004: 38-43). Quanto ao conteudo da delibera<;ao ela ha-de incidir sobre quest6es de natureza polftica que adoptarao a forma de norma / s juridical s corn necessaria aplica<;ao colectiva. Isto significa que em regra, todos os actos do Estado, corn excep<;ao dos actos de natureza tipicamente jurisdicional e os de natureza individual e concreta pela via da aplica<;ao, podem e devem ser objecto de urn procedimento deliberativo. Do ponto de vista conceptual e possfvel considerar que certas quest6es, por dizerem respeito ao foro da vida
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privada ou por envolverem especificidades h~cnicas, nao podem ser sujeitas a delibera<;ao. Em qualquer caso isso releva mais do desenho institucional da democracia deliberativa do que da sua projec<;ao teorica. Na verdade, ha zonas que constitucionalmente estao vedadas a certos modos concretos de deliberar, como, por exemplo, quando as Constitui<;6es subtraem a referenda certas materias. Mas a verdade e que a propria Constitui<;ao, na teoria deliberativa, nao deve ficar excluida na sua aprova<;ao e revisao a uma processo de argumenta<;ao (ELSTER, 1998 a: 116). 0 processo deliberativo exige por urn lado pre-condi<;6es de delibera<;ao que sao condi<;6es de viabilidade do proprio processo e do outro prindpios estruturais de funcionamento que habilitam a uma delibera<;ao mais rigorosa e eficaz. 0 tema e altamente complexo e nao pode ser desenvolvido aqui. A distin<;ao entre pre-condi<;6es e prindpios nem sempre e evidente na literatura deliberativista. E sao por demais evidentes alguns paradoxos que podem perturbar o valor intrinseco da teoria (NINO, 1996:192193). E obvio que a delibera<;ao exige pluralismo e desacordo. Sem desacordos nao ha nada para deliberar. A argumenta<;ao exige boa prepara<;ao e informa<;ao dos cidadaos, quer para argumentar quer para entender os argumentos, exige liberdade de opiniao, exige igualdade de acesso a arena publica, e nao podem ser descuradas as quest6es da igualdade de oportunidade e da redistribui<;ao da riqueza. Ora, o cumprimento dessas pre-condi<;6es esta obviamente dependente da eficacia das decis6es politicas que as promovam: se queremos ter bons argumentos temos que dar mais e melhor educa<;ao aos cidadaos e incentivos a vida publica e participada. Nesse sentido a legitimidade das decisoes alcan<;adas pela via deliberativa depende em boa medida das pre-condi<;6es assinaladas. Mas tambem, do ponto de vista procedimental, do respeito de certos prindpios. Todos giram em torno da ideia de argumenta<;ao - governo por discussao, troca de argumentos e raz6es a favor ou contra certa proposta (MANIN, 1998: 352-353) -,a saber: prindpio do procedimento colectivo, prindpio da inclusao, prindpio da publicidade, prindpio do procedimento aberto e continuo, prindpio da igualdade e da liberdade dos participantes. Do ponto de vista da sua justifica<;ao, a democracia deliberativa afirma-se quer pelo seu valor epistemico, na medida em que garante maior correc<;ao e legitimidade das decis6es politicas, quer pelo seu respeito a valores substantivos como a dignidade, a autonomia e a igualdade politica basicas. A afirma<;ao para ser devidamente fundamentada exigiria uma digressao aprofundada pelo conceito e teorias da legitimidade politica e uma discussao acerca da justi<;a procedimental e da justi<;a substantiva nas decisoes politicas. Infelizmente nao e possivel faze-lo mas nao pode deixar de se indicar os principais topicos da justifica<;ao epistemica propostos pela generalidade dos deliberativistas, seguindo de perto a excelente sintese avan<;ada por MART! (2006: 194-201). Dir-se-a entao que o procedimento democratico deliberativo se legitima na medida em que permita chegar a decis6es mais correctas que os outros processos
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de decisao politica como o voto ou negocia~ao. Os seus quatro efeitos mais relevantes sao: a delibera ~a o melhora e incentiva o intercambio de informa~ao, arrastando consigo uma acrescimo de competencia dos cidadaos para participar no processo deliberativo; a argumen ta ~ao permite detectar erros de facto e de l6gica que nos levam a corrigir os nossos pantos de vista; a argumenta~ao, na m edida em que e urn processo racional dial6gico permite urn melhor controlo dos aspectos emocionais que sao meio caminho p ara as preferencias irracionais; a delibera~ao tende a neutralizar as desigualdades de informa~ao que sao uma fonte de manipulac;ao politica. Por outro lado, existe urn segundo tipo de jus tifica ~6es de natureza substantiva que apontam para que a delibera~ao , por confronto corn os outros modelos, se mostre mais "amiga" de certos valores morais. Nesse sentido diz-se que a delibera~ao respeita a liberdade, a igualdade, a dignidade e nessa medida refor~a valores como a reciprocidade, a cooperac;ao, o pluralismo ou o progresso (MrcHELMAN, 1986: 33, 40-41). Se bem que, como se afirmou antes, a democracia deliberativa seja uma teoria normativa que visa idealmente encontrar as melhores formas de decisao politica, os seus autores nao dispensam de propor so lu~6es para que esse desiderata possa ser alcan~ado. Essas solu ~6es ora visam refor~ar a esfera publica para que as associac;oes civis, os grupos de cidadaos e os pr6prios cidadaos possam deliberar mais e melhor de forma nao institucional, ora procuram melhorar os meios institucionais de delibera~ao e desde logo propondo reformas ao nivel do funcionamento dos parlamentos. Algumas destas propostas envolvem a propria altera~ao da Cons titui~aoS. No primeiro grupo de propostas destacam-se: a) transparencia nos processos de decisao estatais; b) clever de fundamenta~ao das decis6es publicas; c) regula~ao e promo~ao da vida associativa; d) e du ca~ao civica; e) regu la~ao do u so e acesso aos meios de comunica~ao social por forma a assegurar a liberdade de expressao; f) cria~ao de f6runs deliberativos digitais publicos corn democratizac;ao das novas tecnologias de informa~ao. Do lado das propostas para refor~ar a delibera~ao institucional (NrNO, 1996: 205-209, PETIIT, 1997): a) direito de p etic;ao e de iniciativa legislativa popular; b) mecanismos de participa~ao de associa~6es nas delibera ~6es, designadamente no processo legislativo; c) refon;o das consultas populares e dos "referenduns" deliberativos; d) participac;ao dos cidadaos na Administra~ao Publica; e) varias formas de participa~ao dos cidadaos nos processo decis6rios a titulo vinculativo ou consultivo, como as "deliberative polls", a "deliberation day" (AcKERMAN e FrsHKIN,, 2002) ou os "or~amentos participativos". Estas propostas de desenho institucional
5 A discu ssao sobre a rigidez constitucional e o controlo judicial da constitucionalidade das leis tern rnostrado que os adeptos da teoria deliberativa desconfiarn de arnbas. Urna excessiva rigidez constituciona l e urn controle da cons titucionalidade inirnigo da leg islador dernocratico dificilrnente se cornpa tibilizarn corn o idea l (M ARTi, 2006: 292).
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permitem contextualizar a democracia deliberativa como urn ideal participativo, no sentido em que exige uma maior participa<;ao dos cidadaos, mas que nao se confunde corn qualquer forma de populismo ou de democracia directa. Pelo contrario, assenta na estrutura representativa do Estado Constitucional contemporanea, e visa refor<;ar a sua dinamica deliberativa. A democracia deliberativa, afirmou-se desde o inicio, e urn modelo que permite legitimar as decis6es politicas. Seguramente como os outros modelos democraticos que assentam predominantemente no voto ou a negocia<;ao tambem o sao. 0 panto esta em que pretende afirmar-se coma o melhor modelo: quanta mais democratica e deliberativa for a decisao politica mais legitima ela e (MICHELMAN, 1989: 317). Nesse sentido a teoria deliberativa e uma teoria procedimental e substantiva sabre a legitimidade (GUTMAN e THOMPSON, 1996: 26-39 ). Vejamos agora a filia<;ao republican a da democracia d eliberativa. Ja se afirmou que muitos deliberativos, embora nao a maioria, se afirmam neo-rep ublicanos (SUSTEIN, 1988, 1993; SANDEL, 1997, MICHELMAN, 1986, 1988; PETTIT, 2003, SKINNER, 1998, BRUGGER, 1999, MAYNOR, 2003, MONOHAN, 2002). Contudo, nenhum deles, designadamente os juristas, associa de forma expressa ou indirecta a "republica" ou a "forma republicana de governo" constitucionalmente consagradas a esse ideal deliberativo. Contudo os fundamentos filos6ficos e hist6ricos do neo-republicanismo permitem essa associa<;ao. Que o modelo ou a ideia de democracia deliberativa tern urn indiscutivel "pedigree" republicano coma refere PETTIT (1997) e indiscutivel. 0 republicanismo tradicional, sobretudo o que ganha densidade nos debates do humanismo civico classico e renascentista assenta na cren<;a da "razao dial6gica" : o santo e a senha d everia ser sempre "audi alteram partem", ou seja escuta sempre a outra parte (SKINNER, 1996: 15-16). 0 modelo apropriado para as decis6es politicas era o do dialogo e da argumenta<;ao, no sentido em que se acreditava que as disputas eram ultrapassadas de modo dialogante 6. Esse m esmo modelo, coma resulta claro dos estudos de ELSTER ((1998 a: 97) sabre as conven<;6es con stituintes norte-americana e francesa do sec. XVIII, manteve-se nos alvores do constitucionalismo e deu corpo a natureza do mandata parlamentar. Os representantes do povo nao estao vinculados as orienta<;6es dos que os elegeram. Pelo contrario, coma dizia SJEYES na Assembleia Nacional francesa d e 1789: "Os deputados vem a Assembleia Nacional, nao para a
6 A referen cia de MAQUJ AV EL (MAQUJAVEL, 1996: 200) aos tumultos da antiga Roma como algo de positivo, significando intenso envolvimento politico e logo com o uma manifes ta~ao elevada da virtude civica, no que se afasta radicalmente do pensa mento da epoca que elogiava a conc6rdia e via nas lutas en tre fac~6es uma amea~a a liberdade, con tinu a a ser alvo de interpreta~6es contradit6rias (SKINNER, 1981, 1996). Mas pode ser lida como um apelo a resolu ~ao conversacional das controversias ea defesa de um ideal de partic i pa~ao politica deliberativa (SKTNNEJ(, 1981: 66-67).
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anunciar os desejos ja fixados dos seus eleitores, mas para deliberar e votar livremente segundo a sua opiniao". Em resumo, a tradi<;ao republicana "assenta no valor da liberdade, numa compreensao da mesma que difere da defendida pelo liberalismo classico, na vincula<;ao dessa ideia de liberdade a uma concep<;ao robusta, participativa e deliberativa da democracia, que acentue o valor da igualdade politica entre os cidadaos e a reivindica<;ao do papel da virtude dvica como motor do auto-governo da republica e do fortalecimento da esfera publica como espa<;o para a participa<;ao por excelencia" (MART], 2006: 252). E esse nao pode deixar de ser, tambem, o sentido normativo assumido pela "republica" e pela "forma republicana de governo" express6es que pontificam nas Constitui<;6es republicanas em vigor como a norte-americana, a francesa, a italiana ou a portuguesa. Sendo que, como vimos, no cora<;ao da concep<;ao republicana se encontra justamente urn ideal democratico- deliberativo cujo valor epistemico se enfatizou.
5. CONCLUSAO
Urn dos escritos pioneiros do neo-republicanismo constitucional (SuNSTEIN, 1988: 1576) chamava a aten<;ao para o entao nascente revivalismo republicano e corn ele para as tarefas da teoria constitucional moderna: integrar o pensamento republicano tradicional corn o papel do Estado regulador, a necessidade de organiza<;6es publicas e privadas modernas para alcan<;ar objectivos republicanos e sobretudo, dar imporHl.ncia ao dialogo e ao desacordo no processo politico pela via deliberativa. E e tambem SUNSTEIN (SUSTEIN, 1993: 20) quem fala de "republica de raz6es" como urn ideal regulativo que permite que as decis6es colectivas se tomem de forma argumentada, onde os cidadaos ou os seus representantes aspirem a resolver as suas disputas de modo conversacional: cada urn de n6s tern o direito a esperar que os outros argumentem por forma a que eu, em prindpio, os aceite, da mesma forma a que os meus argumentos devem, tambem em prindpio, ser aceites pelos outros que comigo conversam (GuTMANN e THOMPSOM, 1996: 55). Este ideal tern uma inegavel filia<;ao republicana e veio a ser desenvolvido e densificado nos ultimos anos no quadro das teorias da democracia pela corrente neo-republicana. Corn o contributo dos juristas, o pensamento neorepublicano apostou numa agenda de reformas institucionais por forma a valorizar o ideal deliberativo. E simultaneamente permitiu ler as Constitui<;6es designadamente a Constitui<;ao norte-americana - corn novas lentes, refor<;ando as suas vertentes deliberativas. Neste ultimo aspecto, contudo, que e sobretudo uma tarefa de interpreta<;ao constitucional e de reconstru<;ao semantica, esqueceu-se ou desvalorizou-se a for<;a do conteudo normativo que as
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express6es "republica" e "forma republicana de governo" poderiam e deveriam ter. 0 "republican revival" prescindiu do suporte textual da forma republicana de governo, mantendo dele uma leitura minimalista sobretudo associado a protecc;ao anti-monarquica, aos direitos fundamentais e a separac;ao de poderes. Corn algumas diferenc;as e esse tambem o entendimento que na Europa o constitucionalismo vem fazendo de identicas clausulas nas Constituic;6es francesa, italiana ou portuguesa. Contudo e possivel e desejavel reconciliar o neo-republicanismo e a sua enfase deliberativa corn a forma republicana de governo. Falariamos assim de uma "republica organizada segundo prindpios republicanos" (PINTO, 1998: 180). A soluc;ao pode passar par encarar a forma republicana de governo como urn "ethos" politico portador de urn duplo sentido: organizat6rio e substantivo. Esta leitura a duas pistas, na 16gica dualista que esta presente em muitos neorepublicanos (ACKERMAN, 1993, 1998) permitiria ver a dimensao organizat6ria como urn rearranjo do modelo misto polibiano, corn a separac;ao de poderes, os checks and balances, a dimensao electiva (soberania popular) e a "rottation in office"(com urn motivo explicitamente anti-monarquico), mas tambem uma dimensao substantiva assente fundamentalmente na sua possibilidade dial6gica (MICHELMAN, 1986, 1988) atraves do compromisso deliberativo que funda uma "republica de raz6es".
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CRIMES DE PESSOAS COLECTIVAS? A PROPOSITO DA LEI AUSTRIACA SOBRE A RESPONSABILIDADE DOS AGRUPAMENTOS PELA PRATICA DE CRIMES
Ricardo Robles Planas
CRIMES DE PESSOAS COLECTIVAS? A PROPOSITO DA LEI AUSTRIACA SOBRE A RESPONSABILIDADE DOS AGRUPAMENTOS PELA PRATICA DE CRIMES* Ricardo Robles Planas 1
1. Quest6es fundamentais sobre a responsabilidade penal das pessoas colectivas. 1.1. Responsabilidade directa da pessoa colectiva. 1.2. A natureza da sanc;ao. 1.3. Os modelos de imputac;ao. 2. A lei austriaca sobre a responsabilidade criminal das pessoas colectivas. 2.1. Quest6es gerais. 2.2. A atribuic;ao da responsabilidade no modelo austriaco. 2.3. A sanc;ao. 3. Reflex6es sobre o futuro da responsabilidade (penal) das pessoas colectivas. 4. Anexo: traduc;ao de preceitos da lei austriaca sobre a responsabilidade penal dos agrupamentos.
0 panorama te6rico e legislativo europeu sabre a questao da responsabilidade penal da propria pessoa colectiva tern variado nas ultimas decadas de forma espectacular2â&#x20AC;˘ As reclamadas necessidades polltico-criminais e as exigencias procedentes de diversas instancias internacionais, em particular das institui<;6es da Uniao Europeia 3, provocaram que na maioria dos ordenamentos juridicos dos paises europeus se tenha adoptado algum tipo de resposta a esta questao. Neste sentido, a ausencia de homogeneidade nas reac<;6es legislativas dos diversos paises permite que se fale na existencia de diversas possibilidades te6ricas, sem que, ate ao momento, se possa afirmar que urn modelo se imp6s
' Tradu~ao de Manuel Jose Miranda Pedro, Juiz de Direito, feita a convite do A utor. A cita~ao das obras e feita nas notas de rodape, omitindo-se a lista d e bibliografia que consta do texto original. 1 Faculdade de Direito. Universidade Pompeu Fabra (Barcelona). 2 Vide, a este respeito, por exemplo, Silvina BACIGALUPO SAGESSE, La responsabilidad penal de !as personas jurfdicas, l.a ed., Bosch, Barcelona, 1998, pp. 313 e ss.; Jose HuRTADO Pozo/Bernardo DEL RosAL BLASCo/ Rafael SIMONS VALLEJO, La responsabilidad criminal de las personas jurfdicas: una perspectiva comparada, Tirant Lo Blanch, Valencia, 2001, passim; Laura ZDNIGA RoDRiGUEZ, Bases para un modelo de imputaci6n de responsabilidad penal alas personas jurfdicas, Thomson-Aranzadi, Cizur Menor (Navarra), 2003, pp. 102 e ss. 3 Sobre o seu desenvolvimento, em profundidade, ZONIGA RoDRiGUEZ (2003), pp. 137 e ss.
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ou seja claramente preferfvel a outro. Neste trabalho sao expostos os grandes rasgos da recente op<;ao austrfaca por urn sistema de responsabilidade das pessoas colectivas pela comissao de crimes. Para conhecer o alcance da resposta austrfaca ao problema convira, corn caracter previo, identificar as principais perguntas que o legislador daquele pafs enfrentava quando chegou a hora de regular a materia pela primeira vez. Tais perguntas nao sao senao os grandes resultados a que se chegam ap6s se efectuar uma indaga<;ao sucinta, mas necessaria, sobre o estado da questao nas legisla<;6es europeias e na doutrina, que se desenvolvera no proximo mimero . Finalmente, a partir das conclus6es extrafdas da analise do modelo austrfaco e dirigindo a aten<;ao para uma eventual reac<;ao similar do legislador espanhol, fazem -se umas reflex6es gerais sobre se e possfvel urn desenvolvimento adequado do Direito Penal neste ambito.
1. Quest6es fundamentais sobre a responsabilidade penal das pessoas
colectivas
Em termos gerais, pode dizer-se que ficou para tras a ideia (vinculada a tradi<;ao jurfdica continental e expressa sob o aforismo societas delinquere non potest) de que as p essoas colectivas haveriam de ficar completamente de fora do ambito de influencia do Direito Penal. Hoje a questao nao e saber se se pode reagir sancionando a pessoa colectiva no seio da qual se cometeu urn crime, mas antes como articular a resposta sancionat6ria. A este respeito, as principais quest6es a partir de cuja resposta fica caracterizado o estado da discussao actual podem ser concentradas em tres grupos de problemas, a saber: (1.1) se a responsabilidade da pessoa colectiva deve ser directa ou subsidiaria; (1.2) a natureza (penal ou nao) das san<;6es aplicaveis a pessoa colectiva; e (1.3) 0 modelo de imputa<;ao de responsabilidade a pessoa colectiva que deve ser adoptado.
1.1. Responsabilidade directa da pessoa colectiva A maioria dos sistemas que preveem san<;6es (penais ou administrativas) para as pessoas colectivas opta por atribuir a pessoa colectiva a responsabilidade directa e cumulativa e nao uma responsabilidade subsidiaria (isto e, a que opera apenas quando nao se possa identificar uma pessoa ffsica responsavel). Este ultimo modelo (que e seguido, por exemplo, pelo C6digo Penal suf<;o 4 ) e,
' Excepto nos crimes d e corrup~ao, perten~ a ou colabora.;ao corn organiza<;6es criminais, terrorismo e branqueamento de capitais, onde se preve a responsa bilidade cumulativa da p essoa juridica e d a pessoa fisica.
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efectivamente, problematico ja desde urn ponto de vista politico-criminal elementar: incentiva a selec<;ao dos directores corn o fim de os fazer responder penalmente, evitando assim a responsabilidade da pessoa colectiva, e por isso foi rejeitado. Por outro lado, ao ser bloqueada a possibilidade de a pessoa colectiva responder quando efectivamente se imputa urn crime a uma pessoa fisica, as necessidades politico-criminais de actuar contra o proprio quadro organizativo que possibilitou o cometimento do crime (o fenomeno denominado «a titude criminal de grupo») sao deixadas sem cobertura5 . Independentemente disto, o modelo da responsabilidade subsidiaria apresenta importantes inconvenientes dogmaticos derivados da impossibilidade de identificar urn responsavel fisico pela comissao do correspondente crime. Assim, em primeiro lugar, a propria afirma<;ao da realiza<;ao de urn tipo de crime (pelo qual a pessoa colectiva responderia subsidiariamente) depende do concurso no sujeito activo (a p essoa fisica) de determinadas caracteristicas que lhe p ermitam imputar o facto objectiva e subjectivamente. Sem a concorrencia de elas e impossivel afirmar a comissao de urn crime em geral e, em muitas outras ocasioes, ademais, implica a impossibilidade de especificar por que crime a p essoa juridica deveria responder. Isto continuaria a ser assim, p ese embora o facto de a lei se limitar a exigir a realiza<;ao de urn facto que objectivamente cumprisse urn tipo de crime: tambem a realiza<;ao do tipo objectivo (por exemplo, crimes de comissao por omissao ou crimes negligentes) requer a comprova<;ao de determinados poderes ou capacidades individuais, de maneira que, se o responsavel nao pode ser identificado ou a p essoa singular nao pode ser responsabilizad a precisamente por carecer dos aspectos individuais requeridos, tampouco a propria pessoa colectiva podera responder. Como se vem afirmando, estas - entre outras - dificuldades levaram a quase totalidade das legisla<;oes europeias e a doutrina 6 a apostar num modelo em que, independentemente da puni<;ao da p essoa fisica ou conjuntamente corn esta, se puna directamente a pessoa colectiva.
1.2. A natureza da san{:iio
Menor harmonia existe entre os diversos ordenamentos juridicos europeus desde 0 ponto de vista do tipo de san<;oes que podem ser impostas as pessoas 5 Sabre os inconvenientes politico-criminais na atribui<;ao da responsa bilidade subsidiaria a pessoa colectiva, vd., por exemplo, SILVA SANCHEZ, «La responsabilidad penal de !as personas juridicas y !as consecuencias accesorias del art. 129 del C6digo Penal>>, in AA.VV., Derecho Penal Econ6mico, n. 0 14, 2001, pp. 319 e ss. 6 Pm·em, HEINE, «Praktische Probleme des Unternehmensstrafrech ts>>, SZW, 1/2005, P · 18, nao se mostra tao critico corn o aludido modelo subsidiario que o C6d igo Penal do se u pais acolhe, antes !he concedendo a virtualidade de fomen tar a clareza organiza tiva da empresa.
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colectivas. A situa<;ao pode ser descrita isolando tres grandes grupos 7: os ordenamentos jurfdicos que preveem san<;6es pr6prias do nucleo do Direito Penal, como a pena de multa (Portugal, Holanda, Fran<;a, pafses anglo-sax6nicos, Noruega, Finlandia, Dinamarca, Belgica e Sui<;a), os pafses que optam por san<;6es administrativas (v.g. Alemanha) e, finalmente, os pafses que optam por san<;6es - cuja natureza e discutida - em todo 0 caso nao pertencentes ao nucleo do Direito Penal e que poderfamos denominar <<acess6rias» (Suecia e Espanha8) ou optam por san<;6es quase-penais (Pol6nia e ltalia). Estas ultimas podem ser caracterizadas como san<;6es que, niio sendo penas mas san<;6es pecuniarias de caracter jurfdico-publico, sao impostas por urn juiz penal e corn uns pressupostos processuais e materiais analogos aos exigidos para a imputa<;ao da responsabilidade penal. A questao relativa a natureza da san<;ao pode ser abordada exclusivamente desde o prisma das decis6es positivas do legislador de cada pais, a partir de dados como estar ou nao a san<;ao expressamente prevista como tal no proprio C6digo Penal ou ter ou nao o juiz a possibilidade de a aplicar no decurso de urn processo penal. Contudo, ao contentarmo-nos corn esta analise fecham-se as portas a reflex6es de lege ferenda, algo que, por demais, nao deveria desejar nem sequer o legislador que ja tenha tornado urn determinado caminho. Alem disso, a reflexao politico-criminal nao deveria impedir que a op<;ao pela natureza penal da san<;ao aplicavel as pessoas colectivas poderia nao estar tao inocuamente disponfvel para 0 legislador como a primeira vista parece estar. Assim, por exemplo, a sua adop<;ao poderia implicar a quebra de certas estruturas ou vfnculos materiais do Direito Penal e tal quebra, por sua vez, poderia repercutir-se negativamente em ambitos onde nao se tern qualquer duvida sobre os limites da responsabilidade penal ou poderia implicar urn descredito nos pr6prios fins da pena. Neste sentido, nao se trataria de <<demonstrar» a
7 Vide, corn mais referencias, HEJNE, <<Kollektive Verantwortlichkeit als neue Aufgabe im Spiegel der aktuellen europaischen Entwicklung>>, in Festschrift fiir Lampe, Berlin, 2003, pp. 579 e ss. 8 Trata-se das medidas contemp ladas no art. 129.0 do C6digo Penal. De todo o modo, a sua natureza e objecto de intenso debate, ver s6 ZuGALDiA ESPINA R, <<Las penas previstas en el articulo 129 del C6digo Pena l para !as p ersonas juridicas>>, PJ, 46, 1997, pp. 327 e ss.; GARCiA ARAN, <<Algunas consideraciones sabre la responsabilidad penal de !as p ersonas juridicas>>, in El nuevo C6digo Penal: presupuestos y fundamentos. Libra Homenaje a D. Angel Tor(o L6pez, Comares, Granada, 1999, pp . 325 e ss.; S!LVA SANCI-!EZ (2001), pp. 340 e ss.; 0CTAVIO DE TOLEDO Y UBIETO, «Las consecuencias d e la pena de Ios articu los 129 y similares del C6digo Penal>>, in Libra Homenaje a/ Profesor Doctor D. Jose Cerezo Mir, Tecnos, Madrid, 2002, pp . 1113 e ss.; TAMARIT SuMA LLA, «Las consecuencias accesorias del articulo 129 del C6d igo pena l: un primer paso h acia un sistema de responsabilidad penal de !as personas juridicas>>, in Libra Homenaje al Profesor Doctor D. Jose Cerezo Mir, op. cit., pp . 1153 e ss.; FEIJ60 SANCHEZ, «Sabre el fundamento de las sanciones penales para personas juridicas y empresas en el Derecho penal espaftol y el Derecho penal peruana>>, in AA.VV., La responsabilidad penal de /as personas jurfdicas, 6rganos y representantes, Lima, 2002, pp. 252 e ss .; Mm Pu1c, «Una tercera via en materia de responsabilidad penal de las personas juridicaS>>, RECPC 6-1-2004, pp. 1 e ss.
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«culpabilidade penal da pessoa colectiva», mas de acentuar a importancia da manuten<;ao dos conceitos de culpabilidade e de pena tal como hoje os compreendemos (infra 3)9.
1.3. Os modelos de imputa(iio A doutrina lida corn dois grandes modelos teoricos de imputa<;ao da responsabilidade as pessoas colectivas. N este contexto «imputa<;ao» significa legitima<;ao material da imposi<;ao de san<;6es as proprias pessoas colectivas. Sao, seguindo uma terminologia mais ou menos adquirida na doutrina, o modelo da <<responsabilidade por atribui<;ao» e o modelo da <<responsabilidade propria» ou <<origimiria» da pessoa colectiva 10 . No modelo da atribui<;ao a responsabilidade da pessoa colectiva e construida exclusivamente a partir da transferencia ou imputa<;ao da responsabilidade da pessoa fisica que actua como orgao: o que realiza o 6rgao e imputavel a pessoa colectiva. Entende-se, em definitivo, que quando a pessoa fisica que representa a empresa age cometendo urn crime, entao a propria empresa tambem o esta realizando (<< teoria da identifica<;ao» )11 • Como facilmente se pode verificar, este modelo de imputa<;ao implica a atribui<;ao de uma responsabilidade por factos alheios, sem necessidade alguma de fundamentar a reprova<;ao que e dirigida a propria pessoa colectiva (isto e, mera responsabilidade objectiva), algo totalmente censurado na actual forma de conceber a responsabilidade penal. Isto, unido ao facto de que nos casos em que, por alguma razao, nao e possivel atribuir a pessoa fisica uma responsabilidade completa, nao haveria a possibilidade de transferir alguma responsabilidade para a pessoa colectiva, leva ao afastamento doutrinal, pelo menos de prindpio, deste modelo 12 .
Recentemente de outra opiniao, GOMEZ-}ARA DiEZ, La w lpabilidnd penal de In empresn, Marcial Pons, Madrid, 2005, pp. 201 e ss. e passim. 10 A es te respeito vd., entre outros, SJLVA SANCHEZ (2001), pp. 321 e ss.; FEIJOO SANCHEZ (2002), pp. 220 e ss. 11 Esta forma de conceber a responsa bilidade da pessoa colectiva e chissica dos paises anglosax6nicos, mas tambem e o modelo acolhido em Fran~a e na Belgica. 12 Destacadamente, H EINE, «U nternehmen, Strafrecht und europaische Entwicklungen >>, Osterreichisches ]uristenzeitung, 2000, p. 875, qualificando este modelo como «modelo de imputa~ao antropom6rfico que equipara a responsa bilidade individual a colectiva>>. E conclui que s6 <<pode funcionar aceitavelmente d esde o ponto de vista te6rico e pratico na s pequenas ernpresas que estao estruturadas hienirquica e linearmente e naquelas em que poucas sejam as pessoas que assumem fun~6es-chave>>. Vide tambem as recentes criticas que GOMEZ-}ARA DiEZ, <<A utoorganizaci6n empresarial y autorresponsabilidad empresarial>>, RECPC 8-5-2006, pp. 1 e ss., efect ua a este modelo, pondo em destaque que em muitas ocasi6es os que se dizem afastados deste modelo e concentrados na responsabilidade propria ou origimiria da pessoa colectiva nao logt·am, na realidade, fugir do modelo 9
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A impossibilidade na atribui<;:ao de responsabilidade a pessoa fisica procede, fundamentalmente, de duas situa<;:6es: bem porque a propria pessoa colectiva se organiza de urn modo tal que impede a depura<;:ao de responsabilidades (irresponsabilidade individual organizada) ou bem pelas dificuldades proprias na atribui<;:ao de responsabilidade penal em estruturas organizadas (irresponsabilidade individual estrutural) 13 . Em face do que se acaba de dizer, o modelo da responsabilidade propria ou originaria da pessoa colectiva adquire, ao menos a priori, cada vez mais importancia teorica 14 . Neste modelo nao se atribui a pessoa colectiva o acontecimento realizado pelo seu representante, antes se constroi a responsabilidade da pessoa colectiva a partir da infrac<;:ao de deveres proprios que incumbem exclusivamente a esta e nessa medida se pode falar de uma «organiza<;:ao defeituosa da empresa>>. Como se pode observar, a aspira<;:ao ultima deste modelo e superar 0 defeito de atribuir responsabilidade objectiva a empresa, de que padece o modelo anterior. Pode dizer-se, em tra<;:os largos, que este conjunto de deveres se cristaliza em uma posi<;:ao de garantia de vigilancia da pessoa colectiva corn respeito a pratica de crimes: a responsabilidade desta e uma responsabilidade por infrac<;:ao dos deveres de controlo do que ocorre no seu seio 15 • Apesar da aparente nitidez e da correc<;:ao teorica, a configura<;:ao desta responsabilidade segundo a infrac<;:ao de deveres proprios da pessoa colectiva e altamente problematica. De inicio, deve ser evidenciado que a propria no<;:ao de responsabilidade e a sua extensao dependerao do tipo de san<;:ao que se queira aplicar a pessoa colectiva. Este fenomeno -para o qual pouco se adverte - da teoria da responsabilidade pode ser denominado como «o efeito redproco entre san<;:ao e infrac<;:ao» 16 . Corn efeito, toda a atribui<;:ao de responsabilidade por factos proprios esta sujeita a uma dupla condi<;:ao: por urn lado, a constata<;:ao de determinados requisitos que vinculam o sujeito de imputa<;:ao ao facto imputado; por outro, que o proprio facto a que o sujeito de imputa<;:ao esta vinculado mere<;:a a considera<;:ao de relevante para o sistema normativo
de atribui<;ao e acabam por fazer responder a pessoa colectiva por facto da pessoa fisica (cfr. as criticas que nas pp. 22 e ss. e neste sentido o citado Autor efectua as propostas de ZuGALDlA EsPINAR, BACIGALUPO SAGESSE e ZONIGA RooRiGUEZ). 13 Sobre is to, H EINE, Die strafrechtliche Verantwortlichkeit van Unternehmen, Nomos, Baden-Baden, 1995, p. 41. 14 Cfr., em particular, as propostas de LAMPE, «Sys temunrecht und Unrechtssysteme>>, ZStW, 106, 1994, pp. 684 e ss., e HEINE (1995), passim. Recentemente na doutrina espanhola, GOMEZ-JARA DiEz (2005), passim. 15 Sabre este modelo, em general, SILVA SANCI-IEZ (2001), pp. 326 e ss.; HEINE (2000), pp. 875 e 876. 16 Assim, NAUCKE, Die Wechselwirkung zwischen Strafziel und Verbrechensbegriff, Franz Steiner, Stuttgart, 1985, passim; FIUSCH, «Delito y sistema del delito>>, in WoLTER/FREUND, El sistema integral del Derecho Penal, trad . de Robles Planas, Marcial Pons, Madrid-Barcelona, 2003, pp. 200 e ss.
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que o desaprova ou desvalora (ao que agora interessa: o penal) 17 . Pois bem, a maior ou menor exigencia de vinculac;ao subjectiva ao facto (em termos jurfdico-penais chissicos: culpabilidade) e a maior ou menor exigencia da relevancia do facto para o sistema normativo (em termos jurfdico-penais classicos: ilicitude) dependem directamente do tipo de sanc;ao corn que se encerra o cfrculo da imputac;ao . Dizendo-o graficamente: quanto maior for a gravidade da sanc;ao, maior sera o nfvel de exigencia daqueles requisitos e a medida que a sanc;ao vai perdendo intensidade tambem estes poderao ser flexibilizados, de maneira que urn cada vez maior numero de comportamentos ira progressivamente adquirindo o caracter de «infracc;ao>>. Ainda que posteriormente voltaremos a esta questao (infra 3) - no meu jufzo, capital no problema que nos ocupa -, interessa deixa-la desde ja apontada para prosseguir analisando como e corn que dificuldades opera o modelo da responsabilidade por facto s pr6prios da pessoa colectiva. Como se acaba de afirmar, a primeira condic;ao para atribuir responsabilidade por urn facto proprio e a vinculac;ao subjectiva. Do ponto de vista jurfdico-penal, a impossibilidade da afirmac;ao em termos classicos da capacidade de culpabilidade da pessoa colectiva mostra-se como o principal obstaculo para lhe ser imposta a sanc;ao <<pena>> 18 . Este e 0 aspecto que nas ultimas decadas muito tern ocupado o debate jurfdico-penal sobre a responsabilidade das pessoas colectivas. 0 que se traduziu em diversas tentativas de relativizar o obstaculo da culpabilidade, bem modificando o conceito de culpabilidade jurfdico-penal, bem construindo urn conceito de culpabilidade penal ad hoc para as pessoas colectivas: em concreto, deve destacar-se o conceito de culpabilidade por uma organizac;ao defeituosa 19 . Porem, que, realmente, esta forma 17 A dis tin.;ao efectuada no tex to e que se toma por base para as considera.;oes que se seguem e d e caracter concep tual. Nes te sentid o, e ainda que se trate de uma questao debatida em muitos dos seus pantos, deve precisar-se que a relevancia d e um facto para o sistema normativ o juridico-penal tambem exige a (certo grau de) imputa.;ao subjectiva do facto ao sujeito. 18 Cfr., entre outros, Ono, Die Strafbarkeit van Untemehmen und Verbiinden, Waiter d e Gruyte1~ Berlin, 1993, pp. 1 e ss.; RoxiN, Strafrecht. Allgemeiner Teil, tomo I, 4." ed., 2006, n. 0 m. 58 e ss. (cam ulteriores referencias); GRACIA MARTiN, <<La cuesti6n de la responsabilidad penal de !as propias personas juridicas>>, in Mm PUIG/Luz6N PENA, Respansabilidad penal de las emp resas y sus 6rganas y respansabilidad penal par el praducta, Bosch, Barcelona, 1996, pp. 69 e ss.; PEREZ MANZANO, «La responsabilidad penal de !as personas juridicas>>, AP 2, 9-15 d e Janeiro de 1995, pp. 20 e ss.; JAKOBS, «LPunibilidad de !as personas juridicas?>>, trad. d e Suarez Gonzalez, in AA.VV., La respansabilidad penal, ap. cit., pp. 63 e ss.; SILVASA NCHEZ (2001), pp. 333 e ss.; Mm Pu1c (2004), pp. 1 e ss.; FEIJ60 SANCHEZ (2002), pp . 21 7 e ss. 19 Vide as diferentes perspectivas de TIEDEMANN, «Die "Bebussung" von Unternehmen nach dem 2. Gesetz zur Bekampfung der Wirtschaftskriminalitat>>, NJW, 1988, pp. 1169 e ss.; HIRSCH, Die Frage der Straffdhigkeit van Persanenverbiinde, Opladen Westdeutscher Verlag, 1993, passim; VOLK, «Zur Bestrafung von Unternehmen>>, JZ, 1993, pp. 429 e ss.; ScHONEMANN, «Punibilidad d e !as personas juridicas desd e la perspec tiva europea>>, trad. de Penaranda Ramos/ Perez Manzano, in ARROYO ZAPATERO et al., Hacia un Derecha Penal Ecan6mica Eurapea. Jarnadas en Hanar del Prafesar Klaus Tiedemann,
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de culpabilidade analoga a culpabilidade da pessoa fisica converta a pessoa colectiva em urn sujeito em rela<;ao ao qual se possa falar de autonomia moral e que e capaz de assumir como propria a pena enquanto male enquanto expressao de uma reprova<;ao etica em cuja forma<;ao tambem participou, e algo que esta muito distante de ser evidente (veja-se tambem infra 3). Menor aten<;ao mereceu a questao de saber se as infrac<;6es dos deveres de organiza<;ao, que as pessoas colectivas podem cometer, ingressam no programa normativo de protec<;ao juridico-penal. Seja qual for a perspectiva que se adopte, o certo e que corn as regras de defini<;ao d a tipicidade das condutas (regras de imputa<;ao) nao e possivel afirmar que as infrac<;6es dos deveres organizativos constituem comportamentos directamente tipicos do crime que se cometa 20 • Em todo o caso, tais infrac<;6es podem chegar a ser qualificadas, desde o ponto de vista estrutural, como omiss6es do clever de cuidado que facilitam (ou implicam o perigo de facilitar) a comissao de crimes (por parte de pessoas fisicas). Por conseguinte, s6 se pode estabelecer a responsabilidade da pessoa colectiva a partir de urn clever indirecto que consista em esta nao propiciar a lesao do bem juridico causada pela pessoa fisica (constituindo-se em uma especie de «garante de vigiH'l.ncia»). A este respeito, continuam abertas quest6es fundamentais. Por urn lado, a configura<;ao e a amplitude deste drculo de deveres, se bem que a tendencia parece ir no sentido de fundamentar a responsabilidade da pessoa colectiva quando nao tiver tornado as precau<;6es devidas (meios materiais, pessoais, etc. ) para impedir que se converta em urn «estado p erigoso» a partir do qual os crimes serao cometidos. Por outro lado, se tais deveres tern natureza juridico-penal (isto e, se estao abrangidos pela tipicidade p enal de forma estruturalmente similar a que abrange a participa<;ao ou o crime de perigo) ou se a sua relevancia se move em outros niveis do ordenamento juridico. E, enfim, na linha do que ja afirmei, se o destinatario de tais deveres de organiza<;ao e e pode ser a propria pessoa colectiva ou bem se se mantem e se devem manter estritamente vinculados a pessoa fisica que faz a sua gestao - em todo o caso, refor<;ando-os, se tal for possivel - (sobre isto,
infra 3) .
Boletin Oficial del Es tado, Madrid, 1995, pp. 565 e ss.; H EINE (1995), passim; DANNECKER, <<Z ur No twendigkeit der Einfi.ihrung kriminalrechtlicher Sanktionen gegen Verbande>>, GA, 2001, pp. 101 e ss.; ZU LGALDiA ESPINAR (2003), pp. 537 e ss.; ZDNIGA RODRiGUEZ (2003), passim; BACIGALUPO 5AGESSE (1998), pp. 352 e ss.; GOMEZ-JARA (2005), passim. 20 H EINE (2003), p . 589, reconhece-o.
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2. A lei austriaca sobre a responsabilidade criminal das pessoas colectivas
2.1. Questoes gerais
No dia 1 de Janeiro de 2006 entrou em vigor na Austria a lei sobre a responsabilidade penal das pessoas colectivas (Bundesgesetz iiber Verantwort-
lichkeit van Verbiinden fiir Strajtaten - Verbandsverantwortlichlceitsgesetz, doravante VbVG) 21 • Ate esse momento nao existia naquele pafs previsao alguma que atribufsse responsabilidade penal as pessoas colectivas por crimes cometidos no exerdcio das suas actividades. Contudo, desde a aprova<;ao do segundo Protocolo para a Harmoniza<;ao da Protec<;ao dos Interesses Financeiros das Comunidades Europeias de 19 de Julho de 1997, o Estado austrfaco tinha-se comprometido a dar curso a obriga<;ao de introdu<;ao nos ordenamentos jurfdicos dos Estados-membros de urn sistema de responsabilidade das pessoas colectivas 22 • A primeira coisa que corn este acontecimento legislativo salta a vista e a op<;ao por uma lei especial, em vez da introdu<;ao ou modifica<;ao de preceitos do C6digo Penal austrfaco, para o estabelecimento de uma resposta a questao desde o ordenamento penal. Isto pode ser interpretado como urn dado ilustrativo da pouca convic<;ao corn que o legislador austrfaco se aproxima a propria possibilidade da responsabilidade penal das pessoas colectivas. Assim mesmo, uma leitura atenta do tftulo da lei deixa espa<;o suficiente para duvidar se o legislador austrfaco quis atribuir natureza penal a responsabilidade da pessoa colectiva ou bem se, pelo contrario, declarou que, sob uma serie de pressupostos, as pessoas colectivas respondem pela ocasiiio da comissao de urn crime por parte de uma pessoa ffsica a ela vinculada, evitando assim urn pronunciamento sobre o caracter penal ou nao de tal responsabilidade. Se se compara o texto finalmente aprovado corn os anteprojectos da VbVG, confirma-se esta segunda linha: na lei nao se utilizam, em nenhum momento, expressoes como penalidade ou san<;ao penal que, sim, apareciam nos anteprojectos. Finalmente, qualquer duvida fica dissipada quando se repara no tipo de san<;ao que a lei elegeu para ser imposta as pessoas colectivas feitas responsaveis «por» urn crime: uma multa que nao possui natureza penal (na lei impoemse «Geldbuflen» e nao «Geldstrajen», tambem diferentemente do inicialmente previsto nos anteprojectos). 21 No fim deste trabalho inclui-se urn anexo corn a tradw;ao dos preceitos substantivos rnais irnportantes desta lei. 22 Da irnportante discussao doutrinal que nos ultirnos anos teve lugar na Austria sabre este terna cabe destacat~ especialrnente, os influentes trabalhos de HEINE (2000), pp. 871 e ss.; ZEDER, <<Ein Strafrecht juristischer Personen : Grundzi.ige einer Regelung in Osterreich>>, OJZ, 2001, pp. 631 e ss.; LbscHNIG-GSPANDL, <<Zur Bestrafung juristischer Personen>>, OJZ, 2002, pp. 241 e ss.; Moos, «Die Strafbarkeit juristischer Personen und der Schuldgrundsatz>>, RZ, 2004, pp . 98 e ss.
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A VbVG acolhe o sistema da acumula<;:ao das san<;:6es aplicaveis as pessoas ffsicas e colectivas (§ 3, n. 0 4). A determina<;:ao da responsabilidade e da san<;:ao aplicavel a pessoa colectiva tern lugar no mesmo procedimento penal no qual se determina a responsabilidade da pessoa ffsica. Para tal fim, a VbVG contem uma serie de preceitos de caracter processual fundamentalmente destinados a estender a regula<;:ao processual penal ja existente para as pessoas ffsicas (StPO) as pessoas colectivas que podem ser responsabilizadas de acordo corn a lei (§§ 13 a 27) 23 . Assim, por exemplo, o § 14, n. 0 3, da VbVG estabelece que quando a legisla<;:ao processual penal austriaca utiliza os termos suspeito, imputado, acusado ou culpado, devera incluir-se agora tambem as pessoas colectivas responsaveis em conformidade corn a VbVG. Igualmente, declara-se na lei que durante 0 procedimento 0 agrupamento sera considerado inculpado, procedimento este que pode ser iniciado pelo 6rgao de fiscaliza<;:ao atraves da realiza<;:ao de oportunas diligencias de investiga<;:ao ou mediante instancia de parte (§ 13). Finalmente, destacam-se as amplas faculdades de renuncia a persegui<;:ao outorgadas ao 6rgao de fiscaliza<;:ao (§ 18), que devera actuar ponderando os diversos interesses em conflito (gravidade do facto, consequencias produzidas, comportamento do agrupamento depois do crime, prejuizos para o agrupamento no caso de san<;:ao). Assim as coisas, o facto de se estabelecer a responsabilidade (nao penal) para a pessoa colectiva no processo penal permite concluir que o legislador austriaco seguiu a ja mencionada via quasi-penal entre o Direito Penal e o direito administrativo sancionador. Diferentemente do que sucede na legisla<;:ao de outros paises, a VbVG nao preve urn catalogo fechado de crimes ou infrac<;:6es pelos quais se responsabilizara a pessoa colectiva, antes esta se-lo-a sempre que se realize uma conduta prevista nas leis nacionais como crime (a excep<;:ao dos crimes financeiros, cuja comissao s6 gerara responsabilidade para a pessoa colectiva se assim estiver expressamente previsto na lei de finan<;:as daquele pais - actualmente em processo de reforma). Os destinatarios da lei sao os <<agrupamentos>> (Verbande). 0 conceito de agrupamento (§ 1, n.os 2 e 3, da VbVG) e mais amplo do que o de pessoa colectiva (pois tambem se incluem nos destinatarios da lei entes que carecem de personalidade juridica segundo o ordenamento juridico austriaco). Desde logo, 0 termo espanhol <<agrupamento>> nao e 0 mais indicado para referir os sujeitos de uma lei semelhante. Mas tampouco na lingua alema a sua adop<;:ao terminol6gica e satisfat6ria, ainda que o seu uso como termo mais amplo do que 0 de pessoa colectiva e muito mais frequente na doutrina juridico-penal austriaca e alema sobre o Direito Penal de empresa do que na espanhola. Em 23 Preceitos que, pela sua enorme transcendencia pratica, mereciam ser objecto de urn estudo detalhado que no presente trabalho nao se pode realizar.
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todo o caso, a VbVG parece acolher urn ponto de vista exclusivamente juridicopenal, ao qual estaria subjacente uma defini<;ao funcional de pessoa colectiva a quem atribuir responsabilidade. Neste sentido, pessoa colectiva seria aquela que, estando ou nao legalmente reconhecida como tal pela lei, tivesse capacidade de adquirir direitos e contrair obriga<;6es pr6prias no trafico juridico 24 • Deixam-se expressamente de fora do ambito de aplica<;ao da VbVG o Estado federal, os Estados federados, os municipios e outras pessoas colectivas, sempre e quando todos eles actuem no exercicio de fun<;6es atribuidas por lei. Igualmente, nao serao objecto de san<;ao legal as igrejas reconhecidas, as sociedades religiosas e as comunidades confessionais religiosas no que se refere ao exercicio das suas actividades espirituais. Finalmente, neste mesmo circulo de problemas, chama poderosamente a aten<;ao o facto de a VbVG nao canter previsao alguma dedicada aos grupos de empresas e a outras realidades supraempresariais. No que se refere as pessoas fisicas cuja actividade e pressuposto da responsabilidade da pessoa colectiva, a lei austriaca distingue entre a pessoa fisica que realiza fun<;6es de gestao ou administra<;ao da pessoa colectiva ou outras pessoas fisicas subordinadas as anteriores. As primeiras sao denominadas, literalmente, <<pessoas corn poder ou capacidade de decisao» e as segundas <<empregados>>. Ainda que a primeira expressao em lingua alema seja muito grafica em rela<;ao ao que resulta materialmente relevante desde o ponto de vista juridico-penal, e usual a nossa doutrina recorrer a outros termos (como ode administrador) para referir as pessoas fisicas que ostentam o domfnio sabre a gestiio da pessoa colectiva.
2.2. A atribui~iio da responsabilidade no modelo austriaco
0 § 3 regula os pressupostos segundo os quais a pessoa colectiva responde pela comissao de urn crime nos seguintes termos:
§ 3. (1) Um agrupamento e responsavel par um crime quando, cumprindo-se as condi~oes requeridas nos numeros 2 ou 3, 1. o facto seja cometido em seu beneficia ou 2. cam o facto se lesionem deveres que incumbem ao agrupamento. (2) Um agrupamento e responsavel pelos crimes de uma pessoa cam capacidade de decisiio quando esta coma tal tenha praticado o facto de forma ilfcita e culpavel.
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Em particular sabre as caracteristicas que as pessoas colectivas de direito publico, civis e mercantis deveriam reunir para serem cati.didatas a responsabilidade, vide as esclarecedoras considera<;i'\es de BACIGALUPO SAGESSE (1998), pp. 368 e SS.
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(3) Urn agrupamento e responsavel par crimes cometidos pelos empregados quando: 1. o empregado tenha realizado o facto tipico de forma ilicita; o agrupamento e responsavel par urn crime que pressuponha o dolo apenas no caso de o empregado ter agido dolosamente; par urn crime que pressuponha a negligencia apenas no caso de o empregado ter infringido o dever de cuidado devido segundo as circunstancias, e 2. a pratica do crime foi possivel ou essencialmente facilitada pelo facto de as pessoas corn poder de decisiio niio terem observado o cuidado devido e exigivel segundo as circunstancias, especialmente par terem omitido as medidas pessoais, tecnicas ou organizativas essenciais para impedir tais facto s. (4) A responsabilidade do agrupamento par urn facto e a puni(;iio das pessoas cam capacidade de decisiio ou dos empregados pelo mesmo facto niio se excluem mutuamente. Como se pode observar, distinguem-se duas grandes situa<;oes em que existe responsabilidade da pessoa colectiva: a) por urn crime cometido por quem nela tenha o poder de decisao; b) pela realiza<;ao antijuridica de urn tipo criminal por urn empregado, sempre que a comissao do facto tenha sido possibilitada ou essencialmente facilitada pela infrac<;ao do dever de cuidado exigivel a quem tern o poder de decisao. Em ambos os casos, o pressuposto da responsabilidade da p essoa juridica (isto e, 0 criteria que permite imputar 0 crime a sua esfera) e: (1) que 0 facto tenha sido realizado em beneficia da pessoa colectiva ou (2) que a pessoa colectiva tenha infringido deveres que lhe incumbiam. A respeito do primeiro pressuposto, deve ter-se em conta que em todos os textos comunitarios e incluida a exigencia de que o facto tenha sido cometido em beneficia da pessoa colectiva. No entanto, no projecto da lei austriaca justificou-se a sua nao formula<;ao deste modo, requerendo-se, simplesmente, que o facto tenha sido cometido <<por ocasiao da actividade da empresaÂť. No texto finalmente aprovado o requisito de que o facto seja realizado ÂŤem beneficiaÂť da empresa parece exigir algo mais: a vontade da lei e abarcar apenas os factos cuja comissao implique ou possa implicar urn enriquecimento ou uma poupan<;a para a pessoa colectiva. Este requisito, interpretado em termos puramente econ6micos, sera problematico em todos aqueles crimes cuja pratica nao tenha directa ou indirectamente uma repercussao econ6mica positiva para a pessoa colectiva (pense-se, por exemplo, nos homicidios, nas lesoes, nos crimes contra a honra, etc.). Em todo o caso, parece que uma adequada interpreta<;ao do preceito deveria conduzir a que o agrupamento nao respondesse por facto s cometidos contra os seus interesses e tambem por factos cometidos em beneficia exclusivo de urn elemento da empresa.
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Este primeiro pressuposto de imputa<;ao da responsabilidade a pessoa colectiva consagra o modelo da atribuir;iio: a pessoa colectiva responde sempre que o facto seja cometido em seu beneficia, sem acrescentar ulterior requisito. Isto e, se a pessoa ffsica actua no interesse (econ6mico) da pessoa colectiva, a responsabilidade transfere-se automaticamente para esta ultima. Nao e necessaria, pois, que a pessoa colectiva infrinja algum clever: responsabilidade objectiva da pessoa colectiva. Desde logo, isto e assim para os crimes cometidos pela pessoa corn capacidade de decisao. No caso dos empregados a questao e algo mais complicada, uma vez que, ao lado da circunstancia de o empregado cometer urn crime em beneffcio da sociedade, a responsabiliza<;ao desta requer ainda que a pessoa corn capacidade de decisao tenha desrespeitado o cuidado devido para impedi-lo (veja-se infra b) . Se o facto nao e realizado em beneffcio da empresa, mas simplesmente no contexto das suas actividades, entra em jogo o segundo pressuposto alternativo : a pessoa colectiva ainda podera ser responsabilizada pelo facto, se infringiu os deveres que lhe incumbiam. Os concretos deveres s6 podem ser determinados a partir do respectivo sector de actividade. A titulo de exemplo, podem ser citados os deveres de proporcionar medidas de seguran<;a aos trabalhadores, os deveres de nao contaminar, os deveres de evitar que os produtos causem danos aos consumidores, etc. A primeira vista, este segundo pressuposto parece apontar para a responsabilidade da pessoa colectiva por facto proprio . Aprofundemo s este ponto tendo em conta os dois casos previstos de responsabilidade da pessoa colectiva. a) 0 primeiro caso de responsabilidade da-se corn a p ratica de urn crime por parte de quem tern o poder d e decisao. Esta pessoa deve com ete-lo de modo ilicito e culpaveF 5 . Parece claro que, se o crime que o administrador comete e doloso, a sociedade respondera por urn crime doloso e se e negligente, respondera por este. Como se afirmou, trata-se de urn caso de responsabilidade objectiva, na m edida em que a reprova<;ao dirigida a sociedade consiste, exclusivamente, em urn 6rgao seu ter realizado o facto. Isto sera desde logo assim sempre que o facto tenha sido cometido em beneficia (econ6mico) da empresa. Por sua vez, se este nao e o caso, pode parecer que o nucleo da reprova<;ao derivara da circunstancia de a sociedade ter infringido urn clever de cuidado que lhe incumbia, em concreto respondera por nao ter organizado as medidas que lhe eram exigiveis para evitar o facto . Porem, tampouco neste segundo caso se consegue evitar a responsabilidade objectiva inerente ao modelo da atribui<;ao (de maneira que na realidade tambem se esta perante urn caso de responsabilidade por atribui<;ao). 0 que se observa corn clareza, se
25 Nada se diz sabre a passive! ve rific a ~ao na pessoa que ostenta o poder de decisao de uma causa de exclusao da pena ou da responsabilidade penal (em sentido amplo), coma, par exemplo a prescri~ao, a d esistencia ou a morte do arguido.
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se tern em conta que a concorrencia do dolo na conduta de quem tern o poder de decisao implica automaticamente a responsabilidade dolosa da pessoa colectiva. Sucede exactamente o mesmo corn a negligencia. Em ambos os casos imputa-se a pessoa colectiva 0 lado subjectivo do facto realizado pela pessoa fisica. E evidente que, a existir, o dolo ou a imprudencia quanta ao dever de adoptar precaw;oes nao pode ser identificado corn o dolo ou a negligencia da pessoa fisica na comissao do concreto crime. Para nao se incorrer em responsabilidade objectiva da pessoa colectiva seria necessaria prescindir do titulo de imputac;ao subjectiva da pessoa fisica e fixar-se exclusivamente, se e que isso e possivel, no dolo ou na negligencia da propria pessoa colectiva por referencia a omissao das precauc;6es devidas. Questao distinta e se 0 dolo ou a negligencia referidos a tais precauc;6es sao suficientes para afirmar a comissao dolosa ou negligente do crime finalmente realizado (sobre isto, veja-se infra 3). b) A segunda situac;ao possivel e a pratica do crime por parte de empregados, caso em que sao requeridas duas condic;oes para que a pessoa colectiva seja responsabilizada: (1) o empregado deve cometer urn facto tipico e ilicito, nao sendo necessaria que concorra a culpabilidade. Quanto ao tipo subjectivo, se o trabalhador realizou dolosamente o facto, a pessoa colectiva respondera tambem por urn crime doloso; por urn crime negligente, se o trabalhador cometeu urn crime negligente; (2) a pratica do facto foi possivel ou foi essencialmente facilitada pela circunstancia de as pessoas corn poder de decisao nao terem observado o cuidado devido e exigivel segundo as circunstancias, especialmente por terem omitido as medidas pessoais, tecnicas ou organizativas essenciais para impedir tais factos. Nesta segunda situac;ao, relativa aos crimes cometidos por subordinados, de novo se p6e em evidencia como, na realidade, nao se esta centrando a reprovac;ao da pessoa colectiva na omissao de precauc;oes para evitar o cometimento de urn crime por parte dos empregados, antes se imputa aquela o tipo subjectivo do autor do crime. Urn modelo de responsabilidade propria da pessoa colectiva exigiria urn titulo proprio de imputac;ao subjectiva, isto e, que a responsabilidade dolosa ou negligente da pessoa colectiva se estabelecesse relativamente a omissao dolosa ou negligente das medidas de precauc;ao a adoptar para impedir a pratica de crimes por parte de subordinados. Questao diferente e se, como sucedia no caso da pessoa corn capacidade de decisao que nao age em beneficio da empresa, a omissao dolosa ou negligente de tais medidas de precauc;ao ja constitui comissao dolosa ou negligente do crime (veja-se tambem infra 3). A isto acresce o facto de neste segundo caso se aludir expressamente a pessoa corn capacidade de decisao (e nao a propria pessoa colectiva) como sendo a que omite as medidas de cuidado. Observa-se corn clareza, aqui tambem, que a pessoa corn capacidade de decisao identifica-se corn a pessoa colectiva. A infracc;ao do dever de cuidado do administrador e a infracc;ao do dever de cuidado da sociedade: responsabilidade objectiva desta. 472
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2.3. A sanr;ao
Como ja se afirmou, a unica san<;ao prevista no § 4 da VbVG e a multa. Referiu-se igualmente que, ao ser utilizada a expressao «GeldbujJe» e nao «Geldstrafe>>, fica claro o canicter nao penal da san<;ao pecuniaria. Esta transcendental circunstancia parece confirmar a hip6tese de a lei austriaca partir da ideia segundo a qual a san<;ao aplicavel as pessoas colectivas por terem cometido crimes apresenta urn acentuado caracter preventivo e, inclusive, possui uma certa componente de reprova<;ao etico-social, mas em nenhum caso possuiria a reprova<;ao etico-individual que a pena supoe. A san<;ao multa e imposta de acordo corn o sistema de dias de multa. 0 numero de dias varia, em fun<;ao da gravidade do crime, entre 40 e 180. Assim, por exemplo, por ser urn crime especialmente importante no ambito da criminalidade de empresa, o crime ecol6gico, que na Austria pode ter uma pena de prisao ate tres anos, o numero de dias de multa aplicavel a empresa pode ascender a 85. A quantia de cada dia de multa e calculada tendo em conta a capacidade de produ<;ao econ6mica da empresa. Para se obter esta ultima magnitude, primeiro devera partir-se dos rendimentos da empresa e dividi-los em 360 partes. 0 resultado sera o valor inicial e o juiz podera mover-se entre o ter<;o superior e o ter<;o inferior a tal valor. Ha urn minima de 50 euros por dia e urn maxima de 10.000. Assim, no caso do meio ambiente a san<;ao maxima aplicavel a uma empresa corn os rendimentos econ6micos maximos e de 850.000 euros e a san<;ao minima e de 4.250 euros. A lei preve uma serie de indica<;5es gerais para a determina<;ao da gravidade do facto, isto e, do m:imero de dias de multa (§ 5). A concorrencia de alguma das tres seguintes circunstancias faz corn que o nl'm1ero de dias seja proporcionalmente mais elevado: quanta maior for o dano ou o perigo de que o agrupamento seja responsavel, quanta mais elevado for o beneficia obtido por este em consequencia do crime e quanta mais comportamentos ilicitos dos trabalhadores se tolerem ou facilitem. For sua vez, deve determinar-se urn menor numero de dias de multa quando: 1. ja antes do crime o agrupamento tenha tornado precau<;5es para
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impedir os factos ou tenha requerido do trabalhador uma conduta leal ao Direito; o agrupamento for unicamente responsavel por crimes cometidos pelos trabalhadores (§ 3, n. 0 3); o agrupamento tenha contribuido relevantemente para o esclarecimento do facto; o agrupamento tenha reparado as consequencias do facto; o agrupamento tenha adoptado mecanismos essenciais para impedir factos similares no futuro;
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6. o facto implique importantes encargos jurfdicos para o agrupamento ou para o seu proprietario26 • Em rela<;ao a este elenco de circunstancias atenuantes, cumpre referir que nao e urn catalogo fechado, de modo que e possivel aplicar analogicamente as regras da Parte Geral do C6digo Penal austriaco (por exemplo, nos casos de tentativa, que nao estao contemplados). No mesmo sentido, chama poderosamente a aten<;ao a circunstancia prevista no n. 0 2: a pessoa colectiva deve responder em menor medida, se o titulo pelo qual e responsabilizada consiste em nao ter adoptado medidas para evitar o cometimento do crime por parte da pessoa fisica (paralelamente a atenua<;ao prevista para a comissao por omissao do n. 0 5 do § 34 do i:iStGB). Dois aspectos merecem ainda ser destacados. Por urn lado, nao se regula a hip6tese de a sociedade nao poder suportar a multa, isto e, nao se previu urn regime de responsabilidade subsidiaria pelo seu nao pagamento. Por outro lado, - 0 que inclusive chama mais a aten<;ao - nao se previu outro tipo de san<;ao, alternativa ou c6njuntamente corn a multa, em particular as que no nosso ordenamento juridico sao conhecidas como consequencias acess6rias, previstas no art. 129. 0 do C6digo Penal. Deve reconhecer-se, certamente, que, ao contrario de outros paises pr6ximos, o C6digo Penal austriaco nao contempla unicamente penas ou medidas privativas de direitos, deixando-se ao legislador sectorial a regula<;ao e aplica<;ao destas medidas. No entanto, nao deixa de ser surpreendente que uma lei especial que regula a responsabilidade criminal das pessoas colectivas nao incorpore directamente tais medidas, cuja importancia e capacidade de afecta<;ao da pessoa colectiva excede, na maioria dos casos, a propria san<;ao pecuniaria. Na informa<;ao que acompanha o projecto de lei esta expressamente justificada a nao imposi<;ao a pessoa colectiva de uma san<;ao de proibi<;ao de actividades por ser demasiado severa (uma especie de <<pena de morte» para a pessoa colectiva) e, em todo caso, a decisao e transferida para o legislador sectorial.
26
Este t:iltimo pressuposto e especialmente interessante porque se !rata de ter em conta na da mu Ita a «pena natural>> «sofrida >> pela pessoa colectiva. Efectivamente, es ta atenua~ao ex trai-s e directamente do oStGB (§ 34, n. 0 19), que preve como atenuante generica o facto de o autor ou uma pessoa proxima deste ver a sua sat1de ou a integridade fisica afectada pelo crime ou o facto de este !he produzir alg um prejufzo material ou juridico de especial considera~ao. Transpondo isto para a responsabilidade das pessoas colectivas, seria aplicavel, por exemplo, ao caso em que o administrador tambem fosse proprietario, de modo que receberia uma san~ao pelo crime cometido e, por sua vez, as consequencias da multa imposta por causa da responsabilidade da pessoa colectiva recairiam indirecta e exclusivamente sobre o mesmo. determina~ao
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3. Reflexoes sobre o futuro da responsabilidade (penal) das pessoas
colectivas
Se nao se quer vulnerar a proibic;ao de responder por factos alheios, entao, em todo o caso, a pessoa colectiva so podeni ser responsabilizada pelos seus proprios factos e nao por factos das pessoas fisicas que cometam o crime em concreto. Assim, certamente, o modelo de atribuic;ao de responsabilidade por facto proprio constitui o ponto de partida adequado 27 • Neste sentido, o facto proprio que pode ser reprovado a pessoa colectiva pela pratica de crimes por p essoas fisicas e a criac;ao de urn determinado contexto (ou a nao adopc;ao de m edidas organizativas para evitar urn determinado contexto) que propicie aquelas o seu cometimento. Por outras palavras, pela sua propria dinamica a pessoa colectiva pode efectivamente constituir-se em urn <<estado perigoso». Ora bem, a questao quanta a imputac;ao da responsabilidade e se a infracc;ao de determinados deveres destinados a evitar este «estado p erigoso>>, do qual as pessoas fisicas se servirao nas eventuais actividades criminosas, e urn elemento suficiente para (co)imputar a pessoa colectiva a realizac;ao do tipo cometido pela pessoa flsica. Ou formulando-a de urn modo mais preciso: se a infracc;ao de urn dever de organizac;ao que incumbe a pessoa colectiva como proprio pode ser considerada uma conduta tipica - estruturalmente similar ao que sucede na participac;ao - do crime finalmente cometido p ela pessoa fisica. A resposta deve ser negativa. A infracc;ao de urn dever de organizac;ao da pessoa colectiva nao e titulo suficiente para a atribuic;ao de responsabilidade pelo crime correspondente 28 • As regras de imputac;ao da responsabilidade penal a isso se op6em: nao ha. nexo juridico-penalmente suficiente entre a infracc;ao do dever de organizac;ao da pessoa colectiva e a lesao produzida pela p essoa fisica. Perante isto torna-se irritante propor modificac;oes n as regras de atribuic;ao da responsabilidade penaF9 . Se o que se pretende e atribuir responsabilidade penal, entao as regras que se utilizem para tal devem ser as regras de atribui{:iio de responsabilidad penal. Pelo contrario, se do que se tra ta e de responsabilizar, sem mais, a pessoa colectiva, as regras de imputac;ao podem revestir outra
27
Cfr. , por exemp lo, LAMPE (1994), p . 731. Apostando num modelo d e auto-responsabilidade empresarial, GOMEZ-JARA DiEZ (2006), pp. 248 e ss.; CANCIO MELIA, <<LRespon sabilidad penal de !as p ersonas juridicas?>>, in Mm PUic/CoRCOY BIDASOLO (dir.)/GOMEZ M ARTIN (co01·d.), Nuevas tendencias en politica criminal. Llna auditoria al C6digo Penal de 1995, Reus, Madrid, 2006, pp. 10 e ss., reconhece que este deve ser o ponto de partida. 28 Sobre isto, em geral, vide FR ISCH (1996), pp. 99 e ss.; M ARTINEZ-B UJAN P ~ R EZ, Derecho Penal Econ6m.ico. Parte General, Tirant Lo Blanch, Valenc ia, 1998, pp. 196 e ss., com ulteriores referen cias . 29 No m esmo sentido, vide CANCIO MELIA, "LResponsabilidad p en al d e !as p ersonas juridicas?>>, in Mm Puic/CoRCOY BIDASOLO (dir.)/GOMEZ MARTiN (coord.), Nuevas tendencias en polftica criminal, op. cit., pp. 14 e ss., considerando que o fen6meno da responsabilidade penal d as pessoas colec tivas e m ais um a manifestac;ao do denominado << Direito Pen al do Inimigo>>.
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forma mais flexivel, mas nao se pode pretender atribuir responsabilidade penal corn regras de atribui<;ao de responsabilidade niio penais. Esta conclusao nao e uma mera peti<;ao de prindpio. A conclusao e for<;osa, se se atentar que, se no Direito Penal se abandonam as regras penais de imputa<;ao e se atribui responsabilidade penal com outras regras juridicas (mais flexiveis), entao esta a quebrar-se a necessaria rela<;ao 16gica entre tipo de responsabilidade, regras de atribui<;ao de responsabilidade e ilkito. Significa isto que ja nao se podera saber se urn ilicito e urn ilfcito penal quando as regras de atribui<;ao de responsabilidade nao sao penais, mas sim outras. Por conseguinte, significa tambem que se dilui por completo o sentido da responsabilidade penal. Como se pode observar, a questao da responsabilidade penal propria das pessoas colectivas por crimes cometidos por pessoas fisicas nao depende tanto de ser ou nao possivel atribuir-lhes capacidade de culpabilidade em sentido tradicional, mas antes se, inclusive reconhecendo nelas uma <<singular capacidade de culpabilidade», e possivel afirmar que levam a cabo urn «ilicito penal» em rela<;ao corn a produ<;ao do crime. 0 debilitamento das regras penais de imputa<;ao que a atribui<;ao de responsabilidade penal as p essoas colectivas exigiria seria tal que pelo caminho se perderia o aspecto penal dessas regras, e o que unicamente teriamos ganho seria a colagem da etiqueta «pena» a uma realidade que nao a merece. Em troca seria muito o que perderiamos. Em sentido contrario a opiniao esbo<;ada, LAMPE considera que determinadas pessoas colectivas (grupos criminais, empresas econ6micas corn tendencia criminal e Estados e estruturas estatais criminalmente pervertidos) sao verdadeiros «sistemas de ilicitude» 30 . Significa isto que a sua mera existencia ja produz uma «ilicitude do sistema». Assim, afirma LAMPE que «a ilicitude do sistema e urn estado de ilicitude em si, que se pode confirmar em ac<;6es, mas nao tern por que ser necessariamente assim>> 31 • Esta «ilicitude do sistema» concorreria, segundo LAMPE, corn a «ilicitude individual» da pessoa flsica pelo concreto crime cometido e, ademais, corn a «ilicitude dos altos mandantes» do colectivo que provocaram ou nao evitaram que este desembocasse em urn «sistema de ilicitude». A ideia de LAMPE e, pois, que uma mesma lesao pode ser imputada de diferente modo e corn diferentes pressupostos a tres instfmcias («sujeitos») distintas: individuo, pessoa colectiva em si e «garantes» da pessoa colectiva. Nao se pode duvidar que seja possivel estabelecer conex6es entre aquelas instancias e a lesao. 0 problema reside bem antes no pressuposto de que LAMPE parte: em si mesma a conexao e suficiente para atribuir responsabilidade penal, isto e, estamos perante autenticos «ilkitos penais». No meu modo de ver s6 a «ilicitude individual» cumpriria tal propriedade. A
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L AM PE
(1994), pp . 684 e ss. (1994), p. 715, com cursiva no original.
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<<ilicitude do sistema» nao e uma ilicitude penal em rela<;ao corn a conduta criminosa da pessoa fisica, pais a tanto nao chegam as regras de imputa<;ao tipicas do crime realizado. 0 mesmo pode suceder corn a ilicitude dos <<garantes>> do colectivo, que consiste em provocar ou nao impedir o sistema de ilicitude: enquanto nao se poder estabelecer uma rela<;ao de participa<;ao tipica entre os garantes e o crime em concreto, a <<ilicitude>> daqueles nao sera uma ilicitude penalmente tipica. Em face disto caberia replicar que nao se estaria a afirmar o caracter de ilicito penal do <<ilicito de sistema>> (e a subsequente responsabilidade penal do proprio colectivo e dos seus mandantes) e da <<ilicitude dos garantes>> do colectivo no sentido de lege lata, antes se estaria a aludir a uma necessidade politico-criminal de puni<;ao a margem do crime cometido pela pessoa singular. De esta possibilidade ocupo-me a seguir. Corn efeito, perante a impossibilidade de atribuir responsabilidade penal originaria a pessoa colectiva par um crime cometido pela pessoa fisica corn as regras de atribui<;ao proprias da responsabilidade penal, cumpre mencionar a conveniencia da tipifica<;ao especifica dos <<ilicitos das pessoas colectivas>> ou dos <<ilicitos dos administradores>> das pessoas colectivas. Tais crimes obedeceriam a logica da antecipa<;ao das barreiras de protec<;ao e da infrac<;ao de deveres especificos de organiza<;ao da pessoa colectiva para evitar a pratica de crimes 32 . De inicio, esta possibilidade deve ser tomada corn cepticismo ja no proprio nivel da ilicitude, pais existem graves problemas de legitima<;ao material de urn ilicito penal coma crime de perigo abstracto da mera desorganiza<;ao empresarial e incorre-se corn demasiada facilidade na atribui<;ao de responsabilidade penal pela simples infrac<;ao de deveres formais 33 . Isto e desde logo assim, se se contempla desde a optica das pessoas fisicas que vao dirigir a actividade da pessoa colectiva e organiza-la de modo a nao ser utilizada por pessoas fisicas (terceiros e eles mesmos) no cometimento crimes: nao e possivel legitimar urn tipo de crime que puna a nao adop<;ao de medidas organizativas empresana1s so pela mera possibilidade de urn terceiro auto-responsavel utilizar a pessoa colectiva coma instrumento para delinquir 34 . Se, ademais, se 32 Tratar-se-ia de uma infrac~iio de perigo e poderia constituir a forma de responsabilizar a pessoa colectiva pela exis tencia do <<estado perigoso>>, em cujo seio a pessoa fisica comete o delito. A ser assim, nao se estaria a responsabilizar a pessoa colectiva pelo crime cometido enquanto tal, mas s6 por criar o perigo generico da pnitica de crimes (ter possibilitado ou nao ter impedido que outros a utilizassem para cometer crimes). Aponta ultimamente em direc~ao similar~ corn resigna~ao e certas reservas, STRATENWERTH, «Zurechnungsprobleme im Unternehmensstrafrecht>>, in Festschrift fiir Manfred Burgstaller, Neuer Wiss, Wien, 2004, p . 198, pondo em evidencia os paralelismos desta atribui~ao de responsabilidade corn o crime de embriagu es absoluta (Vollrausch previsto no § 323a do StGB ou no§ 287 do i.iStGB (tambem ja antes DANNECKER [2001], p. 117, referia esta similitude). 33 Sobre esta questao nao se pronuncia LAMPE (ver supra nota 29) . 34 Uma possibilidade de tipifica~ao alternativa, em principio menos insatisfat6ria, seria a puni~ao das pessoas fisicas corn capacidade de gestao pela omissao do dever de evitar (ou do dever de denunciar para evitar) certos crimes, infringindo previamente deveres organizativos empresariais
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pretendesse punir a propria pessoa colectiva, entao os reparos seriam insuperaveis, porquanto as pessoas fisicas que nao sejam chamadas a organizar a pessoa colectiva de urn determinado modo responderiam em identica medida as que estao directamente obrigadas a faze-lo, de tal maneira que urn tipo assim configurado nao respeitaria o principio da personalidade da responsabilidade penat consagrando expressamente a responsabilidade por facto s alheios 35 . Se nem os principios que limitam o Direito Penal nem as regras de atribui<;ao de responsabilidade que deles derivam permitem recorrer a pena como resposta para a actividade propria da pessoa colectiva diferente da que e dada a actividade da pessoa fisica, entao resta a possibilidade de lhe ser atribuida responsabilidade de caracter juridico-publico a partir de urn conjunto de regras e principios distintos36 . Contudo, neste ponto merece chamar-se a aten<;ao, ja para os efeitos d e se alcan<;arem as finalidades propostas pela puni<;ao das pr6prias pessoas colectivas, para a necessidade de manter a vincula<;ao das concreta s infrac<;6es de deveres organizativos da pessoa colectiva corn os crimes finalmente cometidos pelas pessoas singulares. Neste sentido, parece acertado que a imposi<;ao de san<;6es as pessoas colectivas tenha lugar no processo penal no qual se responsabiliza penalmente a pessoa fisica, de maneira similar a que foi decidida pelo legislador austriaco. Algo sem elhante ja sucede corn as regras de atribui<;ao e os principios pr6prios do sistema de medidas de seguran<;a. Assim, nao se discute que as medidas de seguran<;a nao sao penas ou que, ainda que se admita que estas deveriam ter urn certo sentido sancionat6rio37, o sentido da afirma<;ao da responsabilidade penal nas medidas de seguran<;a e radicalmente distinto do sentido da afirma<;ao da responsabilidade penal nas penas. 0 mesmo deve ser dito quanta as consequencias acess6rias que ja conhecemos e os seus (praticamente ausentes na regula<;ao actual) preselementares. Tratar-se-ia, com efeito, de um caso de omissao d e gravidade intermedia (que o nosso C6digo Penal ja conhece) que teria por base um titulo d e imputa<;ao d e responsabilidad e distinto do titulo que sustenta a a tribui.;ao d e responsabilidade pelo resultado, a saber, o cl ever gera l d e evitar certos crimes (graves). A questao problematica n es te ponto seria a d e admitir a possibilidade de sancionar penalmente a comissao negligente d e tal crim e por parte dos administradores. 35 Em gera l sobre esta obj ec.;ao a atribu i<;ao d a responsabilidade penal as pessoas colec tivas, vide, por exemplo, BAJO FERNAN DEZ, <<La responsabilidad p enal de las personas jurfd icas en el Derecho administra tivo espaftol>>, in MlR PUIG/ Luz6N PENA, Responsabilidad penal, op. cit., p. 20; Mm Pu1G (2004), p . 9; KbHLER, Strafrecht. Allgemeiner Teil, 1998, p. 559 . 36 Neste sentido afirma BAJO FERNANDEZ (1996), pp. 17 e ss. e p. 22, que ÂŤa discu ssao deveria entao ser enquadrad a no seio d e um hipotetico Direito sa ncionador (penal) das p essoas colec tivas, distinto do Direito Penal em sentido es trito e d e outros sec tores excepcionais como o Direito Pena l dos perigosos, dos inimputaveis adultos e dos menores.>> 37 Cfr. SILVA SANC HEZ (2001), p. 340: ÂŤE tambem inerente as m esmas uma clara signifi ca.;ao d e reafirma <;ao do Direito (como conjunto de normas de va lora<;ao, n este caso). E tampouco sao al heios a elas os efeitos sec und arios d a preven<;ao geral intimida t6ria e inclusive da preven<;ao especial predelitual, es ta ultima restringida a outras p essoas fisicas d a m esma empresa.>>
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supostos de aplicar.;ao. Pois bem, quanto a responsabilidade das pessoas colectivas, trata-se da mesma ideia: o unico sentido em que se admitiria que o sistema de regras e principios pr6prios da atribuir.;ao de responsabilidade a pessoa colectiva se denominasse «penal» seria o de ela ter unicamente em comum com a pena o facto de se realizar no procedimento penaP8 . 0 caminho assinalado nao esta tao distante daquelas posturas que entendem que nao se podem aplicar sanr.;oes penais as pessoas colectivas e que defendem que as medidas expressamente previstas na lei penal (como as consequencias acess6rias no caso espanhol) sao medidas de seguranr.;a ou similares, cujo destinatario e a pessoa fisica que comete o crime 39 • Na realidade, poderia afirmar-se sem dificuldades que as consequencias acess6rias que, nao sendo penas, sao aplicadas no processo penal a uma pessoa fisica tem um certo, indirecto, conteudo sancionat6rio de caracter juridico-publico que inegavelmente recai sobre a propria pessoa colectiva e, por outro lado, que os pressupostos da sua imposir.;ao podem facilmente convergir com os pressupostos da infracr.;ao de determinados deveres organizativos por parte da pessoa colectiva 40 . Mas a opr.;ao apontada aproxima-se, todavia, mais da postura de quem, em termos gerais, apostou por uma via intermedia entre a via administrativa e a via penal (das penas) para definir a natureza da atribuir.;ao de responsabilidade as pessoas colectivas41 . Ora bem, na minha opiniao os «estados perigosos» das pessoas colectivas deveriam ser objecto de uma regular;iio especial que teria de materializar-se a margem do C6digo Penal atraves de um corpo normativo cujos destinatarios seriam as pr6prias pessoas colectivas e que definiria aquelas situar;i5es desorganizadas das pessoas colectivas que se querem evitar e associar-lhes a correspondente sanr;iio (tamb6n pecuniaria). Na hora de estabelecer as mencionadas proibir;i5es particulares a lei em questi'io deveria ter sempre como finalidade prevenir o aparecimento na pessoa colectiva de urn contexto que favorer.;a a comissiio de crimes. A aplicar.;ao da sanr.;ao a pessoa colectiva pela infracr.;ao de proibir.;oes no processo penal atraves qual se dirime a responsabilidade da pessoa fisica daria cumprimento as exigencias que os "Curiosamente, um dos principais defensores da rcsponsabilidade penal das pessoas colectivas esta de acordo em que as regras de atribui.;ao de responsabilidade para as pessoas fisicas e para as pessoas colectivas devem ser distintas e, alem disso, esta disposto a renunciar a denomina.;ao «penal» quanto a responsabilidade das segundas (cfr. HEINE [2000], p. 880). 39 Assim, por exemplo, Mm Pu1c (2004), pp. 1 e ss.; FE!JOO SANCHEZ (2002), pp. 252 e ss. 10 · Assim entendido, nada obstaria a admitir que uma eventual san<;ao de multa a pessoa colectiva tivesse a natureza de conseqw?ncia acess6ria (neste sentido, Mm Pu1c, Derecho Penal. Parte General, 7." ed., Reppertor, Barcelona, 2005, p. 201, quanto a previsao constante do art. 31.", n." 2, do C6digo Penal). " 1 Assim, por exemplo e com importantes matizes, S!LVA SANCHEZ (2001), pp. 340 e ss.; GJ<ACJA MARTiN (1996), pp. 69 e ss.; BAJO FERNANoEz (1996), pp. 17 e ss.; BAJO FERNANDEZ/BACJG,\LUPCJ SAGESSE, Dereclw Penal Econ6mico, Centra de Estudios Ram6n Areces, Madrid, 2001, p. 123.
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nossos tempos parecem reclamar de urn modelo de responsabilidade jurfdica dos entes colectivos. Estas esquematicas afirma<;6es requerem urn ulterior desenvolvimento e uma analise desde o ponto de vista da sua coloca<;ao pratica no ordenamento jurfdico espanhot uma tarefa que vai alem das pretens6es deste trabalho. Aqui tratava-se de por em evidencia que, perante as dificuldades apresentadas por aquilo que e proprio da pessoa colectiva para chegar a constituir uma realidade merecedora de reac<;ao jurfdico-penal e em face das necessidades de configura<;ao de urn sistema de responsabilidade das pessoas colectivas nao absolutamente desconectado da comissao de crimes por parte de pessoas ffsicas, uma regula<;ao expressa extrapenal dos pressupostos para a imposi<;ao no processo penal de san<;6es nao penais (incluindo san<;6es pecuniarias e consequencias acessorias) as proprias pessoas colectivas aparece como uma solu<;ao plausfvel. Esta solu<;ao estaria em condi<;6es de realizar o fim que subjaz a pretensao de atribui<;ao de resp onsabilidade (penal) a propria pessoa colectiva: evitar graves defeitos organizativos nas pessoas colectivas que propiciem a pratica de crimes por parte de pessoas ffsicas, nao produzindo ao mesmo tempo eros6es nos prindpios fundamentais do Direito Penal. Como se pode observar, esta via tern importantes similitudes corn o modelo austrfaco analisado nas paginas anteriores. Nao obstante, dele se distinguiria principalmente por nao se construir a responsabilidade da pessoa colectiva transferindo para esta a responsabilidade do administrador ou de outras pessoas ffsicas que actuam no seu seio, antes se prop6e concentrar-se no estabelecimento e na infrac<;ao de concretos deveres de organiza<;ao que digam respeito a propria pessoa colectiva e se relacionem corn a comissao de cada urn dos crimes.
4. Anexo: tradUI;ao de preceitos da lei austriaca sobre a responsabilidade penal dos agrupamentos
Agrupamentos
ยง 1 (1) A presente lei federal regula os pressupostos segundo os quais os agrupamentos sao responsaveis por crimes e como devem ser sancionados, assim como o procedimento em virtude do qual se determina a responsabilidade e se imp6e a san<;ao. Crime no sentido desta lei e toda a ac<;ao punida corn pena aplicavel em urn procedimento conforme a lei do estado federal ou de urn estado federado; esta lei federal e aplicavel aos crimes financeiros desde que esteja previsto na lei penal de finan<;as (BGBI. n. 0 129/1958). (2) Agrupamentos no sentido desta lei sao as pessoas colectivas, assim como as sociedades mercantis pessoais, as sociedades patrimoniais registadas e as associa<;6es de interesse economico de caracter europeu.
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(3) Nao sao agrupamentos no sentido desta lei: 1. a massa hereditaria; 2. o Estado federal, os Estados federados, os municipios e outras pessoas colectivas desde que actuem na execw;ao da lei; 3. as igrejas reconhecidas, as sociedades religiosas e as comunidades confessionais religiosas desde que desempenhem actividades espirituais.
Pessoa corn capacidade de decisao e empregados
ยง 2. (1) Nesta lei pessoa com capacidade de decisao
e quem:
1. seja administrador, membra da direcc;ao ou procurador ou quem esteja juridicamente autorizado a representar externamente o agrupamento de modo similar; 2. seja membra do conselho de fiscalizac;ao, do conselho de administrac;ao ou quem ostente faculdades de controlo em uma posic;ao de direcc;ao; ou 3. por qualquer modo exerc;a influencia decisiva na administrac;ao do agrupamento. (2) Empregado no sentido desta lei
e aquele
que:
1. em razao de uma relac;ao laboral, educativa ou de qualquer outra relac;ao de formac;ao; 2. em razao de uma relac;ao de subordinac;ao segundo a Heimarbeitsgesetz 1960, BGBZ n. o 105/1961 ou relac;ao laboral similar; 3 . como mao-de-obra cedida (ยง 3, n. 0 4, da Arbeitskrajteiiberlassungsgesetzes - AUG, BGBl n.o 196/1988); ou 4. em razao de uma relac;ao de servic;o ou de qualquer outra relac;ao especial de caracter juridico-publico realize prestac;oes laborais para o agrupamento.
Responsabilidade
ยง 3. (1) Um agrupamento e responsavel por um crime quando, cumprindo-se as condic;oes requeridas nos numeros 2 ou 3, 1. o facto seja cometido em seu beneficia ou 2. corn o facto se lesionem deveres que incumbem ao agrupamento. (2) Um agrupamento e responsavel pelos crimes de uma pessoa corn capacidade de decisao quando esta como tal tenha praticado o facto de forma ilicita e culpavel. (3) Um agrupamento e responsavel por crimes cometidos pelos empregados quando: 1. o empregado tenha realizado o facto tipico de forma ilicita; o agrupamento e responsavel por um crime que pressuponha o dolo apenas no caso de o empregado ter agido dolosamente; por um crime que
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pressuponha a negligencia apenas no caso de o empregado ter infringido o clever de cuidado devido segundo as circunstancias; e 2. a pratica do crime foi possivel ou essencialmente facilitada pelo facto de as pessoas corn poder de decisao nao terem observado o cuidado devido e exigivel segundo as circunsU'i.ncias, especialmente por terem omitido as medidas pessoais, tecnicas ou organizativas essenciais para impedir tais factos. (4) A responsabilidade do agrupamento por urn facto e a puni<;ao das pessoas corn capacidade de decisao ou dos empregados pelo mesmo facto nao se excluem mutuamente.
Multa aplicavel ao agrupamento § 4 (1) Quando urn agrupamento seja responsavel por urn crime devera ser-lhe aplicada uma multa. (2) A multa aplicavel ao agrupamento determinar-se-a segundo o sistema de dias de multa. 0 minimo e urn dia de multa. (3) 0 numero de dias de multa ascendera ate:
180, se para o facto estiver prevista uma pena de prisao perpetua ou privativa da liberdade ate 20 anos; 155, se para o facto estiver prevista uma pena de prisao ate 15 anos; 130, se para o facto estiver prevista uma pena de prisao ate 10 anos; 100, se para o facto estiver prevista uma pena de prisao ate 5 anos; 85, se para o facto estiver prevista uma pena de prisao ate 3 anos; 70, se para o facto estiver prevista uma pena de prisao ate 2 anos; 55, se para o facto estiver prevista uma pena de prisao ate 1 ano; 40, nos restantes casos. (4) 0 dia de multa sera determinado segundo os rendimentos do agrupamento, considerando todos os aspectos da sua capacidade de prodw;ao econ6mica. Sera fixado em montante que correspondera a 360." parte dos rendimentos anuais ou em montante que nao supere essa parte em urn ter<;o ou nao o alcan ce em urn ter<;o e, em todo o caso, tera como minimo 50 euros e como maximo 10.000 euros. Se o agrupamento servir fins sociais, humanitarios ou religiosos (segundo os §§ 34 a 47 da Bundesabgabenordnung, BGBZ. 11. 0 194/ /1961) ou nao prossiga a obten<;ao de lucros, a quantia do dia de multa sera fixada entre o minimo de 2 euros e o maximo de 500 euros.
Determina\ao da multa aplica.vel ao agrupamento § 5. (1) Na determina<;ao do numero de dias de multa o tribunal ponderara as circunstancias atenuantes e agravantes, desde que elas nao determinem ja a moldura da multa.
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(2) Especialmente, o numero de dias de multa deve ser mais elevado: 1. quanta maior for o dano ou o perigo de que o agrupamento seja responsavel; 2. quanta mais elevado for o beneficia obtido pelo agrupamento em consequencia do crime; 3. quanta mais comportamentos ilicitos dos trabalhadores se tolerem ou facilitem. (3) Deve determinar-se urn menor numero de dias de multa quando: 1. ja antes do crime o agrupamento tenha tornado precauc;6es para impedir tais factos ou tenha requerido do trabalhador uma conduta leal ao Direito; 2. o agrupamento for unicamente responsavel por crimes cometidos pelos trabalhadores (ยง 3, n.0 3); 3. o agrupamento tenha contribufdo relevantemente para o esclarecimento do facto; 4. o agrupamento tenha reparado as consequencias do facto; 5. o agrupamento tenha adoptado mecanismos essenciais para impedir factos similares no futuro; 6. o facto implique importantes encargos jurfdicos para o agrupamento ou para o seu proprietario.
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ยง3 - ORA<;OES DE SAPIENCIA
LA RELACION ENTRE DOGMATICA JURIDICOPENAL Y POLITICA CRIMINAL EN EL CONTEXTO POLITICO ALEMAN TRAS LA SECUNDA GUERRA MUNDIAL. HISTORIA DE UNA RELACION ATORMENTADA
Francisco Munoz Conde
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LA RELACION ENTRE DOGMATICA JURIDICOPENAL Y POLITICA CRIMINAL EN EL CONTEXTO POLITICO ALEMAN TRAS LA SECUNDA GUERRA MUNDIAL. HISTORIA DE UNA RELACI6N ATORMENTADA * Francisco Mufioz Conde 1
1. Introducci6n
Parece evidente que cualquier concepto, sea el de "Dogmatica juridico-penal", sea el de "Polftica criminal" o cualquier otro, puede ser usado en el sentido que a cada uno mas convenga, y que una palabra, expresi6n o h~rmino conceptual por sacrosanta o respetable que parezca, puede ser rellenado con cualquier contenido, desde el mas excelso y sublime, hasta el mas perverso y miserable. De ahi que una proposici6n como: "Adolf Hitler (o el General Franco, o Pinochet o Videla) fue un buen gobernante", pueda ser analizada desde el punto de vista puramente gramatical (sujeto-verbo-predicado), o como una declaraci6n a favor de una determinada ideologia que incluso en un pais como Alemania, que sufri6 y padeci6 el regimen nacionalsocialista y sus consecuencias hasta unos Hmites realmente extremos, pueda llegar a considerarse como un delito de apologia del Holocausto. Toda cultura tiene sus mitos y sus antimitos, y es diffcil, por no decir, imposible, conocer el alcance y el contenido que hay detras de cualquier concepto, si separamos su formulaci6n linguistica del contexto en que se formula . Existe hoy en dia acuerdo en la Linguistica moderna en que no basta la Sintaxis para entender el sentido de una proposici6n linguistica, sino que es preciso recurrir tambien a la Semantica (interpretaci6n en contexto) e incluso a la Pragmatica (el uso de la expresi6n en una determinada situaci6n) 2 â&#x20AC;˘ â&#x20AC;˘ Comunicac;ao proferida em Lisboa, na Universidade Lusiada em Outubro de 2004, quando do doutoramento "honoris causa" . 1 Catedratico de Derecho Penal. Universidad Pablo de Olavide, Sevilla . 2 Sobre estas diferentes formas de en tender e interpretar una proposici6n lingi.iistica, tanto mas si esta es juridica, vease H ASSEMER, Fundamentos del Derecho Penal, traducci6n Mufioz Conde y Arroyo Zapatero, Barcelona, 1984, p. 221.
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Par eso, cuando se trata de analizar la relaci6n entre Dogmatica juridicopenal y Politica criminal parece necesario situarse sobre todo en el contexto de un pais determinado y en una epoca determinada y sacar despues las conclusiones que parezcan oportunas. Por razones que voy a tratar de aclarar inmediatamente, para analizar este problema, ese pais no puede ser otro que Alemania y la epoca en la que mejor se puede analizar no puede ser otra que la dificil situaci6n espiritual en la que se encontraba sumergida la Ciencia penal alemana tras la Segunda Guerra Mundial. La elecci6n de este pais para expon er este problema es facil de entender, ademas en este Acto, si se tiene en cuenta que tanto la Ciencia portuguesa, coma la espafi.ola del Derecho penal de la ultima mitad del siglo XX han sido y son, en mayor o menor medida, tributarias de una forma de elaboraci6n sistematica y de interpretaci6n del Derecho penal, que coincide con la elaborada por la Dogmatica alemana del Derecho penal durante casi todo el siglo XX. Esta se ha esforzado sobre todo por elaborar un modelo de imputaci6n de la responsabilidad penal a traves de la construcci6n de una Teoria General del Delito, que, en sus diferentes versiones, constituye entre los penalistas de habla hispana y portuguesa (y en buena parte tambien italiana), una especie de lenguaje juridico comun que nos acerca cientificamente y permite entendernos por encima de las peculiaridades que presenta la legislaci6n de los distintos paises. Basta con leer cualquier publicaci6n monografica o las obras de caracter general, Manuales o Tratados, sobre todo de la Parte General del Derecho penal, para darse cuenta hasta que punto es grande esa influencia entre nosotros, penalistas portugueses y espafi.oles. Es mas, en algunos casos, mas de una vez uno creeria que esta leyendo un libro aleman traducido al espafi.ol o al portugues, tal es la cantidad de citas abrumadoras y exhaustivas que se hace de la bibliografia alemana, en su idioma original, por mas que la mayoria de los hipoteticos lectores de esas obras, tanto mas si se trata de alumnos, no hablan ni entienden el idioma aleman. La elecci6n de la epoca para analizar esta relaci6n entre Dogmatica y Politica criminal, requiere quizas una explicaci6n mas detenida. Creo qu e, coma he demostrado en mi monografia "Edmundo Mezger y el Derecho penal de su tiempo, Estudios sobre el derecho penal nacionalsocialista", 4." ed. Valencia 2003, buena parte de la discusi6n sobre los mas complejos y profundos problemas dogmaticos del Derecho penal que se desarroll6 en la Republica Federal de Alemania tras la Segunda Guerra Mundial en torno a la estructura causal o final del comportamiento humano y la pertenencia del dolo a la culpabilidad o a la tipicidad, pudo ser utilizada, en parte, para soslayar o no tener que hablar de las barbaridades que se llevaron a cabo con el Derecho penal nacionalsocialista y desvincularse de las directrices politico-criminales de aquella epoca, que alguno de esos dogmaticos habian seguido pocos afi.os antes con todo fervor. En este sentido, son bastante reveladoras las palabras sobre el pretendido caracter "apolitico" de la Dogmatica con las que en 1950 comienza MEZGEJ' su monografia "Moderne Wege der Strafrechtsdogmatik": 490
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"Durante mucho tiempo, la Dogmatica penal ha estado apartada de los intereses juridicopenales. Su mas joven y mundana hermana, la Politica criminal, la ha tenido en la sombra "3 Es curioso que esto lo diga una persona que en los afi.os anteriores, y en un contexto politico diferente, se habfa esforzado, sobre todo, por traducir a la Dogmatica o por convertir en nuevas categorfas dogmaticas los postulados politicocriminales del nazismo. Era algo asf como si se reconociera que ya que la Politica criminal en la que el habfa colaborado o incluso crefdo firmemente, no se podia llevar a cabo (el homo no estaba ya, desde luego, para tales bollos biologicistas y racistas), era mejor volver a una Dogmatica jurfdicopenal abstracta, bastante confusa a veces, apartada de las necesidades diarias y s6lo interesada en "atender a mas profundas relaciones vinculadas a los nombres de Edmund Husserl, Nicolai Hartman y Martin Heidegger" 4 Veinte afi.os mas tarde, aunque desde un punto de vista distinto y con diferente perspectiva, WELZEL considera incluso que la Dogmatica sirve de valladar contra las posibilidades de manipulaci6n politica5 y manifiesta incluso, lo cual parece sin duda exagerado, que tambien cumpli6 ese papel en la epoca nazi:
"La Dogmatica no ha sido cultivada en Alemania unicamente "l' art pour l' art", sino coma un fuerte bastion contra las intromisiones politicas y asi se mantuvo precisamente en el Tercer Reich. Entonces se produjeron graves ataques contra la Dogmatica coma "pensamiento analitico liberal", pero, - continua -, "que superara la tormenta politica, que la ciencia, practicamente intacta tras el derrumbamiento del Tercer Reich, pudiera reanudarse y continuar, tiene su fundamento en que habia creado un espacio ideologico neutral. La Dogmatica puede, en optima medida, neutralizar el ambito juridico mas susceptible de ser ideologizado, especialmente el del Derecho penal"6 â&#x20AC;˘ No se hasta que punto W ELZEL estaba convencido de que sus planteamientos dogmaticos estaban por encima de las tendencias politico-criminales que le toc6 vivir en la primera etapa de su vida academica. Como es sabido, el reproche mas firme que se ha hecho a su teorfa es precisamente que, desde el punto de vista politico-criminal, favoreda el "Derecho penal de la voluntad", al subjetivizar en demasfa el concepto de ilicito o injusto, preconizar que la tentativa fuera castigada con la misma pena que el delito consumado, ampliar la punibilidad de la tentativa inid6nea a casos rayanos en la tentativa irreal 3
Moderne Wege der Srafrechtsdogmatik, Munich 1950. Introducci6n. (traducida al espaii.ol par mi, con el titulo "Modernas orientaciones de la Dogmatica juridicopenal", Valencia, 2000). 4 Coma nota anterior. 5 WELZEL, Zur Dogmatik im Strafrecht, en Festschrift fi.ir R.Maurach, 1972, p. 4. 6 WELZEL, ob. cit. en nota anterior, p. 5.
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o el delito imposible. Estas tesis eran evidentemente mas afines, en todo caso, a un Derecho penal autoritario que a un Derecho penal liberal, pero de ahi no se puede deducir mas alla de la pura especulacion teorica ninguna vinculacion directa de WELZEL con el regimen nacionalsocialista. En todo caso, lo que todo esto demuestra es que, al margen de los intentos mas o menos sinceros de MEZGER o WELZEL par separar los planteamientos puramente dogmaticos de los politicos o politico criminales, el condicionamiento politico de las construcciones dogmaticas en cualquier momento historico no puede soslayarse. Desde luego, se hace dificil admitir que la Dogmatica juridicopenal que surgio en Alemania en los umbrales del siglo XX, en plena expansion del Imperio prusiano, regido por la ferrea mano del Canciller Otto van Bismarck, haya llegado hasta nuestros dias y atravesado todo el siglo XX sin mas incidencias en su evolucion que las motivadas par su propia dinamica; y que momentos tan dramaticos coma las dos Guerras Mundiales y situaciones politicas tan distintas coma la Republica de Weimar, el nacionalsocialismo, la division en dos Estados y la posterior reunificacion a finales del siglo XX no hayan dejado ninguna huella, ni influido en su elaboracion. y aun mas dificil todavia es admitir que esa Dogmatica puede estar no solo por encima del tiempo, sino del espacio y ser utilizada coma un instrumento aseptico en cualquier lugar, independientemente de las particularidades politicas, sociales, culturales y economicas del respectivo pais. Pero admitamos que, efectivamente, la Dogmatica juridicopenal concebida desde los planteamientos filosoficos ontologicistas, en los que tambien se mueve expresamente MEZGER en "Moderne Wege", esta par encima del bien y del mal, de las necesidades y utilidades de la vida diaria. LSignifica esto que la Dogmatica juridicopenal es un fin en si misma y que solo ella es la que debe ser objeto de ensefianza y de estudio en las Facultades de Derecho y, por tanto, objeto espedfico tambien de la actividad judicial penal? Este fue, sin duda, el planteamiento que domino en la Ciencia alemana del Derecho penal en los afios 50 y 60 y hasta bien entrados los 70 del siglo XX, y, par tanto, en la de los paises influenciados par la misma, tanto de habla portuguesa, como espafiola, en los que practicamente, por lo menos en el ambito del Derecho penal, no se hablaba de otra cosa mas que de la polemica entre finalismo y causalismo, que se convirtio en una especie de guerra civil entre, por y para penalistas, en la que los planteamientos politicocriminales estaban de mas o mas alla de las cuestiones dogmaticas. Ello sucedio sobre todo en el ambito academico, en el que estas polemicas de caracter dogmatico fueron el banco de prueba por el que tenia que pasar todo joven penalista que aspirase a alcanzar el mas alto grado de la carrera academica: la plaza de catedratico de Derecho penal. Ay, de quien en aquella epoca no dominase (o al menos pudiera fingir que dominaba) los mas complicados vericuetos y entresijos del idioma aleman y de las construcciones mas complejas de la Dogmatica
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juridicopenal alemana. Pero ay tambien de quien confesadamente causalista, tuviera la mala suerte de tropezarse en su concurso u oposiciones con un finalista, o viciversa. La discusion sobre la posicion sistematica del dolo en el sistema d e la teoria del delito, se convirtio asi en los paises de nuestro entorno linguistico, en la polemica penal por excelencia, con las repercusiones que esto tenia ademas para evitar el compromiso y las posibilidades criticas con el Derecho penal vigente en nuestros paises por esa epoca que no tenia nada de santo, justo o minimamente humano. Es evidente que ello contribuyo a configurar tambien en el joven penalista aspirante de la carrera academica, una mentalidad que le permitia asumir, por asi decir, todo lo que le echeran, fuera . una reforma puramente coyuntural de una regla de determinacion de la pena, fuera una legislacion excepcional de negacion de derechos humanos ÂŁunciamentales. Lo unico que tenia que hacer como penalista, o como penalista cultivador unico y exclusivo de la Dogmatica, era analizar si dicha reforma confirmaba la tesis del dolo como elemento de la tipicidad o de la culpabilidad, o la estructura causal o final de la accion humana. De este modo, la ventaja, que en opinion de WELZEL, tenia la Dogmatica juridicopenal de constituir un bastion contra las intromisiones politicocriminales, podia en algun caso ser mas de lamentar que lo contrario. Quien considere, como WELZEL y aparentemente tambien como MEZGER a partir de "Moderne Wege", que la mision primordial de la Ciencia del Derecho penal es la elaboracion dogmatica del mismo, no se puede extrafiar luego de que las decisiones politicocriminales se adopten en otros ambitos en los que la Dogmatica carece practicamente de influencia . Pero independientemente de los peligros que puede representar para la defensa de derechos fundamentales el entendimiento de una Dogmatica juridicopenal pretendid amente "apolitica", tampo co puede ignorarse el alejamiento que esta forma de entender la Dogmatica produjo en la praxis del Derecho penal, es decir, en la Jurisprudencia. Efectivam ente, si se analiza la Jurisprudencia d e estos aftos, se observa inmediatamente que las discusiones dogmaticas llevadas a cabo en el ambito principalmente academico, apenas tuvieron una influencia tan decisiva como cabia esp era1~ no solo por su enorme complejidad y dificil accesibilidad a los practicos del Derecho penal, sino tambien porque estos estan vinculados sobre todo a las particularidades del caso concreto, a la prueba del mismo y a las "impurezas" inherentes a la investigacion y al proceso p enal (escasez de medias, maniobras y argucias de las partes, etc.), que inciden mas en sus decisiones que las elucubraciones de la Dogmatica juridicopenal, que apenas se ocupa de las mismas. No se pued e ignorar que los mejores Tratados d e Derecho p enal que se han escrito en Alemania en los ultimos afios, como el de Roxin, Jakobs o Stratenwerth, ni siquiera llegan a ocuparse de las consecuencias juridicas del delito, y con la excepcion de Roxin, tampoco el proceso penal es objeto de especial atencion,
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o cuando lo es, siempre a un nivel cientifico inferior al que suele darse en la Dogmatica del derecho penal material. No en vano se ha dicho alguna vez que la Dogmatica no es mas que la muleta que utiliza el Juez para fundamentar una decision polltico-criminaF. Desde luego, una Dogmatica basada solo en pretendidos datos ontologicos podra ser todo lo neutra ideologicamente que se quiera, pero el objeto de referenda de la misma, el Derecho penal, nolo es en absoluto, sino que, como el propio WELZEL reconoce, es el sector mas ideologizado de todas las ramas del Derecho. Y de ahf siempre surgira una contradiccion diffcilmente superable y que, en todo caso, impide darle a la Dogmatica jurfdicopenal ese valor absoluto o casi exclusivo que tanto WELZEL (a partir de 1950), como WELZEL (parece que, en todo caso, no en sus primeros escritos 8), pretenden darle, basandola en pretendidas estructuras logico-objetivas de la accion, sean estas entendidas de un modo causal (asf MEZGER) o final (asf WELZEL). Pero es que ademas con ello surge el peligro de que con unas bases tan evanescentes y abstractas como las que se derivan de los planteamientos ontologicistas de las teorfas causal y final de la accion se puedan hacer todo tipo de valoraciones o asumirse cualquier decision polltico-criminal. Paradojicamente, todo esto es lo que, sin embargo, facilito que la discusion dogmatica se convirtiera en ellugar comun, o en el "refugium peccatorum" de la mayorfa de los penalistas alemanes despues de la Segunda Guerra Mundial, y de los mas directamente influenciados por ellos, los portugueses y los espafioles. Asf sucedio, por ejemplo, con Edmund MEZGER quien, al parecer, sin gran esfuerzo y a pesar de su ya avanzada edad, se pudo adaptar perfectamente a esta discusion y recuperar, si bien a un nivel mas bajo, su antiguo interes por las cuestiones puramente dogmaticas que, sin duda, habfan sido, como lo demuestra su Tratado, lo mejor de su produccion antes de quedar contaminado por las tendencias pollticocriminales, que hicieron de Alemania, un pueblo de "poetas y pensadores" ("Dichter und Denker"), un pueblo de "jueces y verdugos" ("Richter und Henker7 7
Asi la califique ya en mi articulo Funktion der Strafnorm und Strafrechtsreform, en Strafrecht und Strafrechtsreform, edit. por Madlener y Papenfuss, Koln, 1974; yen m i Introduccion a! Derecho penal, Barcelona, 1975, pp. 179 y ss .. Cfr. Mur\Joz CONDE, Presente y futuro de la Dogmatica juridicopenal, Revista Penal2000 (version alemana con el titulo Gegliickte und folgenlose Strafrechtsdogmatik?, en Kritische Vierteljahresschrift fi.ir die Gesetzgebung und Rechtswissenschaft, volumen especial dedicado a Winfried Hassemer en su 60 cumpleaf\os, 2000, pp. 129 y ss.; publicada tambien en EsER/ HASSEMER/ BuRKHARDT, Die deutsche Strafrechtswissenschaft vor der Jahrtausendwende, Riickbesinnung und Ausblick, Miinchen, 2000, pp. 199 y ss.). De esta ultima hay una version a! espaf\ol publicada en Valencia, 2004, con el titulo "La ciencia del Derecho penal ante el nuevo milenio", coordinacion de Muf\oz Conde (el articulo citado esta en !as paginas 229 ss. de esta version). 8 Cfr. Monika FROMMEL, Los origenes ideologicos de la teoria final de la accion, traduccion de Francisco Muf\oz Conde, ADP 1989; MOLLER; Furchtbare Juristen, 1987, p. 223. 9 La frase originaria "Dichter und Denker" ("Poetas y Pensadores"), que parece se debe a Madame von Stael (cfr. el trabajo de Hans MAYER, Von guten und schlechten Traditionen deutscher
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Por lo demas, tambien en Alemania en los afios 50 y 60, en pleno apogeo de la polemica entre causalistas y finalistas, los dogmaticos se ocupaban de la Polftica criminal, s6lo que, como "El burgues gentilhombre" de Moliere, hablaban en prosa sin saberlo o, en este caso, sin decirlo, pero sabiendo perfectamente lo que hacfan. Como claramente demuestra la discusi6n en el seno de la Comisi6n de Reforma del Derecho penaP 0, incluso cuando se discutia sobre las cueshones mas puramente dogmaticas, se argumentaba con criterios polftico-criminales. Tras la discusi6n dogmatica habia en aquel momento tambien una determinada concepci6n polftica del Estado y polftico-criminal del Derecho penal que tacita o expresamente se aceptaba. Una polftica que, en general, recuperaba la vieja tradici6n iusnaturalista y una imagen conservadora del ser humano y de la sociedad 11 y que se correspondia con la propugnada por el partido dem6crata cristiano (CDU), con ellema de Adenauer "no a los experimentos" y con el anticomunismo visceral fomentado a ultranza por los Estados Unidos de America, el gran valedor de la recuperaci6n econ6mica de la Republica Federal Alemana, una vez que en plena "guerra fria" se habian dado cuenta del valor estrategico que tenia este pais frente a los paises socialistas del Este de Europa. Obviamente, esta polftica, que tenia tambien especfficas consecuencias politico-criminales, podia ser acep tada sin mayores problemas por aquella generaci6n de "viejos juristas" alemanes que pasaron del Imperio prusiano al nacionalsocialismo, sin querer siquiera enterarse de que en medio hubo una Republica democratica, la de Weimar (1918-1933), que se extingui6, entre otras cosas, por la falta de apoyo y de fe en la democracia que siempre mostraron los sectores mas relevantes de la Ciencia juridica de aquella epoca 12 â&#x20AC;˘
Sprache und Literatur, en: Sind w ir noch das Volk der Dichter und Denker? 14 Antworten, editado por Gert Kalow, p. 7); fue tra sform ada en sentido ir6nico, dada la similitud fonetica, en la de "Richter und Henker" ("Jueces y Verdugos"), probablemente por el critico li terario Karl KRAUS y tambien la utiliz6 Kurt TucHOLSKY, convirtiendose en un luga r comun, porque no ea be duda de que describe con bastante precision y crudeza lo que ocurri6 en Alemania en Ios aii.os 30. Sabre !as relaciones entre estos dos importantes escritores y el Derecho penal, veanse: MERKEL, Reinhard, Strafrecht und Satire im Werk von Karl Kraus, Frankfurt am Main, 1998; y GRENVILLE, Kurt Tucholsky, Miinchen, 1983, pp. 45 y ss. (la cita se encuentra en la pagina 74). 10 Sobre ella y concretamen te sabre la intervenci6n de MEZGER en la misma, tanto en la discusi6n sobre Ios fines de la p ena a tener en cuenta en su determinaci6n, como en el tema del tratamiento del error de prohibici6n, suministra una buena informaci6n THULFAUT, Kriminalpolitik und Strafrechtslehre bei Edmund Mezger, Baden-Baden, 2000, pp. 299 y ss .. 11 Cfr. por ejemplo, JEsCHECK, Das Menschenbild unserer Zeit und die Strafrechtsreform, Tubinga 1957 (publica do tambien en JESCHECK, Strafrecht im Dienste der Gemeinschaft, Berlin, 1980, pp. 3 y ss.). 12 Cfr., por ejemplo, Car! SCHMITT, Die Hi.iter der Verfassung, 1931, que en !as paginas finales hace un canto de !as fa cultades del Presidente del Reich (poco tiempo despues fu e nombrado Adolf Hi tler como Canciller del Gobierno) como "protector y garante de la unid ad e integridad del pueblo aleman" (p . 159; sobre el papel de Car! ScHMITT como ide6logo de la teoria politica na zi, vease MDLLER, pp. 50-52. Sabre el Derecho pena l en la Republica de Weimar, cfr. supra capitula I). Con raz6n dice Heltmut HEIBER (Die Republik von Weimar, 1966, p. 276) que "el Estado de Weimar tiene mas amigos
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Muy sintomatico y revelador de esta actitud de desprecio hacia la Republica de Weimar, es, por ejemplo, que MEZGER en su Tratado de 1931, practicamente no aluda nunca a la Constitucion de Weimar, ni utilice argumentos dogmaticos apoyandose en dicha Constitucion. Otro ejemplo puede ser su actitud respecto a la pena de muerte, expresada en: "Fur und wider die Todesstrafe", una conferencia dada en Sttutgart el 23 de marzo de 1928, publicada en Mitteilungen des Universitatsbundes Marburg, Junio 1928, Num. 20, pp. 17 y ss. En este trabajo, MEZGER, coma muchos otros penalistas de la epoca, se pronuncia a favor de la pena de muerte, aunque solo sea para "eliminar la vida indigna de ser vivida de los asesinos mas crueles", pero, al mismo tiempo, critica la Ley de Proteccion de la Republica, promulgada en 1923, siendo Presidente del Gobierno socialdemocrata Friedrich Ebert y Ministro de Justicia Gustav Radbruch, cuyo paragrafo 1,1 preveia la aplicaciori de la pena de muerte para el homicidio, o la tentativa de homicidio de un miembro del Gobierno. MEZGER critica este precepto, porque, a su juicio, supone un "abuso con fines politicos". Solo que para valorar esta opinion en el contexto politico en que se da, hay que tener en cuenta que dicha Ley se aprobo tras el asesinato en un atentado en 1922 del Ministro de Asuntos Exteriores Walter Rathenau a manos de dos miembros de un grupo antisemita de extrema derecha, pertenecientes a la Organizacion Consul, que acusaba a Rathenau de "traidor" y "judio". No conozco ningun articulo de MEZGER que criticara, aftos despues, a los pocos meses de haber llegado Hitler al poder, la imposicion, con efecto retroactivo, de la pena de muerte al miembro del Partido Comunista van der Lubbe, acusado de haber incendiado el Reichtstag, incendio que probablemente fue provocado por los propios nazis y en el que, en todo caso, no resulto nadie muerto. ahora decadas despues de su desaparicion que en la epoca de su existencia". Vease tamb ien KOHNL, La Reptiblica d e Weimar, Valencia, 1991, que, en general, mantiene una actitud critica frente a dicha Republica a la que acusa de haber entregado el poder sin resistencia a Hitler. El dato es conocido y viene en cualquier libro sobre el tema, por mas que la bibliografia al respecto sea extensa yen ella abunden !as interpretaciones mas diversas. En todo caso, como muestra del grado de deterioro a que habfan llegado algunos sectores de la Justicia se cita el caso ocurrido en Potempa el16 de agosto de 1932, en el que cinco nacionalsocialistas mataron a golpes a un comunista. Una semana mas tarde fu eron condenados a muerte por un Tribunal especial, pero, tras un telegrama del propio Hitler en el que llamaba a Ios condenados "camaradas" y pedia su libertad "como una cuestion de honor", fueron indultados y, poco tiempo despues de la ascension de Hitler a! poder, puestos definitivamente en libertad (vease !as referencias a! caso en h. Ye. Hannover, Politische Justiz 1918-1933, 1966, p.301 ss.). El Presidente del Tribunal era un tal Dr. Dietrich que, en 1933, publico en una revista especializada el articulo "Der nationale Zweck", en el que defendia la tesis de que Ios delitos de lesiones, secuestros y homicidios cometidos contra el "enemigo interno" debian ser justificados como las acciones de Ios soldados en guerra contra el enemigo (citado por MERKEL, p . 523) . En es te ambiente no es ex trafio que la Asociacion Alemana de Jueces, que durante la Reptiblica de Weimar habia hecho gala de su "apoliticismo", el 19 de marzo de 1933, en nombre d e sus 13.000 miembros, asegurara su total adhesion a! regimen hitleriano (vease KOHNL, p. 95). Es de estos jueces de los que llego a decir TucHOLSKY: "El Pueblo tiene en sus Tribunales la confianza que estos merecen. No merecen ninguna ".
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Esta actitud de desprecio a la Republica de Weimar de muchos Catedraticos de Universidad, se describe muy bien por Walter JENS, en su libro sabre la Universidad de Tubinga (Eine deutsche Universitat. 500 Jahre Ti.ibinger Gelehrtenrepublik, Tubinga 1977, p. 330), que fue precisamente la Universidad en la que, coma ya hemos dicho, se doctor6 y habilit6 Edmund MEZGER:
"Aversion frente al extranjero; miedo a los rajas; desprecio a los judios; lucha contra los destructores de la herencia protestante alemana: Nada extraiio que una Universidad tan monolitica politicamente pudiera consumar casi sin ruptura la transici6n del Imperio a la Dictadura (la Republica en Tubinga no habia tenido lugar )" 13 â&#x20AC;˘ Puede ser que luego MEZGER y alguno coma el, abjurara o, por lo menos, tuvieran un cierto sentimiento de culpa por los horrores cometidos por el sistema nazi al que habian servido, pero a lo que seguramente nunca renunciaron fue a la fuerte impronta conservadora y autoritaria que caracteriz6 la formaci6n juridica de toda una generaci6n de funcionarios, de servidores del Estado, de jueces y profesores de Derecho, en la Administraci6n prusiana y que Heinrich Mann tan graficamente retrat6 en su magnifica novela "Der Untertan" ("El subdito")14 . En todo caso, la Politica criminal sigui6 desempefi.ando tambien despues de la guerra una funci6n importante, aunque no se confesara abiertamente, en los planteamientos dogmaticos. Coma sefi.ala RoxrN 15 , la Politica criminal
13 Citado por THULFAUT, ob. cit., p. 7, quien, sin embargo, destaca que "tales consideraciones generales sabre la actitud politico-social de Ios profesores universitarios de la epoca no deben ocultar la calidad de la ensef\anza que recibi6 a !If Mezger". 14 La obra comenz6 a publicarse por entregas en un peri6dico antes de la Primera Guerra Mundial, pero su publicaci6n fue interrumpida durante la Guerra. Publicada posteriormente en su integridad, fue duramente atacada por Ios sectores mas reaccionarios que la acusaron de injuriosa para el pueblo aleman. Una imagen similar de critica a! provincianismo y conservadurismo de aquella epoca ofrece tambien su novela "Professor Unrat", que igual que "Der Untertan" fue llevada a! cine con el titulo de "El Angel Azul", consiguiendo un gran exito, no en t:iltima instancia merced a la fama que alcanz6 su principal protagonista, la estrella del cine Marlene Dietrich. Ni que decir tiene que Heinrich Mann abandon6 Alemania en 1933 y muri6 en el exilio en Santa M6nica (USA) en 1950. Vease tambien sabre Ios sinsabores y penalidades que pasaron durante el periodo nacionalsocialista estos alemanes en el exilio, entre Ios que se encontraban otros ilustres escritores coma B.Brecht, Tucholsky y el propio Thomas Mann, Premia Nobel de Literatura, la impresionante novela del hijo de Thomas y sobrino de Heinrich, Klaus MANN, El volcan. 15 RoxiN, La evoluci6n de la Politica criminal, el Derecho penal y el Derecho procesal penal en la Republica Federal Alemana, traducci6n de G6mez Rivero y Garcia Cantizano, pr6logo de Muf\oz Conde, Valencia 2000, pp. 17 y ss. En el mismo sentido HASSEMER, La Ciencia jurfdicopenal en la Rept:iblica Federal Alemana, traducci6n de Hormazabal Malaree, Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, 1994, p. 39. En este mismo trabajo destaca HASSEMER (p. 49) la dificultad de elaborar una Polftica criminal sob re !as bases de este entendimiento de la Dogmatica juridicopenal; y en un trabajo posterior (Das Selbsverstandnis der Strafrechtswissenschaft, en EsER/ HASSEMER/ BuRKHARDT, pp. 28
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alemana despues de la Segunda Guerra Mundial hasta 1975 se caracteriz6 "por el recurso a elementos tradicionales que no fueron desacreditados por la dictadura nacionalsocialista", citando, entre estos elementos, la fundamentaci6n del concepto material de delito en la ley etica y en la doctrina cristiana del Derecho natural. Ast por ejemplo, recuerda RoxiN, el Tribunal Supremo Federal fundamentaba el castigo de la omisi6n de no impedir un suicidio del siguiente modo:
"Dado que la ley etica desaprueba energicamente ... todo acto suicida ... , el Derecho no puede admitir que la obligaci6n de auxilio del tercero se diluya en la desaprobaci6n etica de la voluntad suicida". Los padres que toleraban que durante el noviazgo su hijo I a adulto tuviera relaciones intimas con su novia/ o en la vivienda paterna er an castigados con una pena de prisi6n, algo que el Tribunal Supremo Federal fundamentaba del siguiente modo:
"En la medida en que la ley etica ordena la monogamia y la familia coma forma obligada de vida y en la medida en que tambien la ha convertido en fundamento de la vida de los pueblos y Estados, prescribe al mismo tiempo que las relaciones sexuales solo deban tener lugar en un contexto monogamico ... ". Pero tambien la Gran Comisi6n de Reforma del Derecho penat a la que pertenedan muchos profesores de prestigio (entre otros el mismo Edmund MEZGER), se movia en una linea parecida, en la medida en que, por ejemplo, pretendfa castigar la homosexualidad masculina como medio de "conseguir mediante la fuerza etica de la ley penal una barrera contra la expansion de una practica inmoral.. .". Como estos ejemplos trafdos a colaci6n por RoxiN demuestran, tambien la Dogmatica de aquella epoca estaba impregnada de elementos politicocriminales, entre los que no hay que olvidar la importancia de la discusi6n sobre los fines de la pena, que, por supuesto, se resolvfa a favor de una teorfa retribucionista e incluso expiacionista 16, pero para evitar los recuerdos del pasado se preferfa pasar como de puntillas sobre estas cuestiones, o no mencionarlas expresamente en las discusiones dogmaticas. La utilizaci6n del adjetivo "politico" o del sustantivo "Politica" en el mundo del Derecho se habfa desacreditado hasta el punto de que cualquier referenda a ella para fundamentar o
ss.) dice: "quien resucita y reelabora en la posguerra un Derecho natural y basa el Derecho penal en certezas aprioristas y estructuras 16gico-materiales (... ), dirige el reflector cientifico a un ambito intemporal en el que se puede estar bastante seguro ante preguntas inc6modas sabre el pasado reciente" (vease tambien, la edici6n espafiola de esta obra citada en supra en nota 6, en la que el articulo de Hassemer esta traducido por Marfa del Mar Diaz Pita, p.21 ss., la cita corresponde a la pagina 43 de la edici6n espafiola). 16 Cfr. RoxiN, lug. u. cit.
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explicar una decision juridica quitaba valor a la misma. No dejaba de ser paradojico, sin embargo, que esto ocurriera sobre todo entre los que habian puesto sus conocimientos al servicio de una determinada politica y, por tanto, los habian "politizado", y luego, cuando esa politica no estaba de moda p01¡que se habia desacreditado por si misma o simplemente ya se habian conseguido los fines politicos perseguidos, se dedicaran a conjurar el empleo de la palabra que para ellos tenia connotaciones peligrosas 17 â&#x20AC;˘ Otra razon podia ser que la absoluta conformidad y confianza en las decisiones politicas que en la nueva epoca se adoptaban (restablecimiento de la ley y el orden burgues, defensa de los valores familiares y religiosos tradicionales, de los valores morales occidentales, tal como los habia entendido siempre la burguesia conservadora alemana, frente al peligro sovietico comunista o a los movimientos subversivos pagados por el"oro de Moscu", etc.) hiciera innecesario preocuparse por ellas. La decision juridicamente correcta debia ser tambien, por tanto, politicamente conveniente, porque se partia de una coincidencia en los fines, que no tenian por que llevar a soluciones contradictorias. Pero cuando no es asi, se plantea, un problem a dificil de resolver. Negar la contradiccion es esconder la cabeza debajo del ala y no querer ver la realidad. Resolverla dando la primacia a una de las partes en conflicto, es decir, a la Dogm<Hica o a la Politica criminal, es algo que no se puede decidir a priori sin saber de que Dogmatica juridica o de que Politica criminal se esta hablando. En el Estado nacionalsocialista esta claro que la primacia se le dio a la Politica y ciertamente a los fines politicos que caracterizaban dicho Estado, lo que traducido al Derecho penal suponia tanto como que este tenia que perseguir, con sus medios especificos, estos fines, resumidos sobre todo en la idea de la pureza de la raza del pueblo aleman: la raza aria. La Dogmatica juridicopenal de la epoca no hizo, pues, otra cosa, que seguir fielmente esos postulados e intentar traducirlos en categorias dogmaticas basicas como la idea de "traicion" (Verrat) como fundamento del concepto material de delito, y la idea de "eliminacion" (Ausmerzung) de elementos daninos al pueblo y a la raza, como uno de los fines de la pena 18 .
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Sobre el pretendido "apoliticismo" de la Universidad alemana en Ios afios de la Republica de Weimat~ vease KOHNL, pp. 130 y ss. A modo de anecdota que refleja muy bien esa actitud, recuerdo una que se cuenta del General Franco, al que alguien le pregunt6 que cuat era el secreta que le habia permitido permanecer tanto tiempo en el podet~ y el, el dictador, el golpista contra el Gobierno legitimo de la II Republica espafiola, contestaba: "no meterme nunca en politica". La palabra "politica" estaba tan desacreditada que se decia que aplicada a una palabra tan noble como la de "madre" daba como resultado la "madre politica", es decir, la suegra; e incluso decir de alguien que era "un politico" tenia unas connotaciones peyorativas rayanas en el insulto. 18 Cfr. TELP, Ausmerzung und Verrat, 1999, cuyo titulo refleja precisamente este par de conceptos: Ausmerzung und Verrat.
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