Série I, n.o 5 (2011)
Política Internacional e Segurança
Universidade Lusíada Editora Lisboa • 201 1
Media teca da Universidade Lusíada- Cat,,logaçào na Publicação LUSÍADA Política internacio nal e segurança. l..isboa, 2008 Lusla dil. Pol ít ic<~ internacional e scgm.1 nça
I
p ropr. Fundação Minerva- Cuttma- Ensino e Investigação Científica
; di r. José Francisco Pavia. - S. 1, n. 1 {2008)- . - Lisboól:
Univcrsid<~dc
Lusíadn, 2008-
Série J
N.• s
. -24 cm.- Scmcs tról l
JSSN 1647-13342 1. Política lntcmacionnl - Periódicos 2. Segurança In ternacional - Periódicos f - P AVIA, José hétncisco Lyncc
Z<~g<~lo, 1967-
Ficha Técnica
Titulo
Lusímla. Políticil internacionill e
seguranç<~
Fundação Minerva - Culturi'l - Ensin o c Investigaçã o Ciel\tífica
Propr ietário
Dhector
Pro f. Douto r José Francisco Lyncc Zngnlo Pavia
Conselho Rcclactodal
Prof. Dnutm Luís Lobo Fcrnnndes (Universid<'!;de do Minho)
Prof. Doutor Cnrlos Mottn {Univers idade Lusí<~da de Lisbo<t) Prof. Doutor Luís C \std o Branco {Insti tuto Português de A po io ao Oc5Ciwolvimento) l'rof. Do utor And ré Thomash<tu sctt (University of Sou i h Africa) Prof. Doutor Moisés Silva Fenmndes (Univel1õidadc de l.isiX~<l)
Prof.'1 Doutora Maria Jose Stm;k (Un i\'l.:rsidildc d e l~vor.l) Prof Doutor Fnm c•sco
DepôsHo Legal
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?.862·1512008
ISSN
1647-1342
Local
Lisbotl
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Sumário
SUMÁRIO NOTA DE ABERTURA E POLÍTICA EDITORIAL.... ............................................ 7 PROCEDIMENTO DE ARBITRAGEM CIENTÍFICA ........................................... 9 A CONSTITUIÇÃO DE ANGOLA DE 2010 NO CONTEXTO DO CONSTITUCIONALISMO EM ÁFRICA
André Th01nashausen .......................................................................................... 11 OS PARLAMENTOS NACIONAIS E O PROCESSO DECISÓRIO COMUNITÁRIO
Maria Eduarda Azevedo ...................................................................... ................ 29 AS TRANSFORMAÇÕES DA POLÍTICA EUROPEIA: A POSIÇÃO DA ALEMANHA
Patricia Daehnhardt ............................................................................................ 53 TEKTHNOS: GEOLOGIA, CONSTRUÇÃO DE POVOS E CONFLITUALIDADE NO SISTEMA INTERNACIONAL Paulo Bessa .......................................................................................................... 77 A "PRIMAVERA" ÁRABE: DINÂMICAS REGIONAIS E DESAFIOS PARA A COMUNIDADE INTERNACIONAL
Marta Mucznik .................................................................................................... 97 A "ORFANDADE" DOS JOVENS DELINQUENTES Ângela Lisboa.......................................................................................................109 DUAS DÉCADAS DE MERCOSUL: VALEU A PENA?
Elizabeth Accioly ................................................................................................. 125
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Nota de abertura e política editorial
NOTA DE ABERTURA E POLÍTICA EDITORIAL
Lançamos agora o quinto número da Revista Lusíada Política Internacional e Segurança. O próximo número, o sexto, terá lançamento previsto para Dezembro; tentaremos sempre, na medida do possível e como já foi referido em nota anterior, acompanhar a actualidade internacional que, como sabemos, é dinâmica, imprevisível e cheia de surpresas. Tentaremos também reforçar o carácter transdisciplinar, incentivando a colaboração de autores de outras áreas científicas. Mais uma vez se relembra que está aberto em permanência um endereço de e-mail para onde deverão ser enviadas as propostas de artigos, que depois de submetidos às exigências do escrutínio por arbitragem independente, poderão ser aqui publicados. O referido endereço electrónico é: pavia.jose@ gmail.com.
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Procedimento de arbitragem científica
PROCEDIMENTO DE ARBITRAGEM CIENTÍFICA
Em estreita relação com a Política Editorial, a Revista Lusíada. Política Internacional e Segurança foi pensada com o objectivo de fornecer um conjunto de contributos científicos originais e actualizados no campo da Ciência Política, das Relações Internacionais e das Políticas de Segurança em geral. O procedimento de arbitragem científica tem de ter obrigatoriamente em consideração a especificidade da Revista tal como é descrita na Nota de Abertura e Política Editorial. O Conselho Científico foi constituído por investigadores nacionais e estrangeiros especializados nas diversas áreas de investigação, como consta dos respectivos currículos. O objectivo foi conciliar a necessária qualidade científica e a variedade de especializações com a diversidade de temáticas. Os membros do Conselho Científico serão os garantes da qualidade e validade científica das diversas contribuições para os números sucessivos da Revista. Assim, periodicamente serão convidados segundo as respectivas qualificações científicas e especialidades, a dar a sua opinião, em sistema de blind review, sobre a qualidade dos textos, a orientação geral, os dossiers temáticos e as diversas secções de cada número. Será solicitado a cada membro um relatório onde constem, devidamente explicitadas, as diversas observações e propostas de melhoria. Os resultados desta avaliação traduzir-se-ão numa alteração, reajustamento ou rectificação quer da linha editorial quer das contribuições presentes e futuras, numa perspectiva evolutiva centrada n a p reservação da qualidade científica e da actualização temática da Revista.
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A CONSTITUIÇÃO DE ANGOLA DE 2010 NO CONTEXTO DO CONSTITUCIONALISMO EM ÁFRICA
André Thomashausen Professor em Direito Público, Constitucional e Internacional e Director do Institute of Foreign and Comparative Law da University of South Africa (Unisa) andre@legesrnundi.corn
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A Constituição de Angola de 2010 no contexto do Constitucionalismo em África, pp. 11-27
Resumo: A Constituição de Angola de 5 de Fevereiro de 2010 é fruto dum processo constituinte que se arrastou 14 anos, a partir da Lei 18196. Acabou por ser votada na ausência dos deputados da oposição, que se sentiram de tal forma excluídos, que resolveram boicotar a sessão final. Será que a prática constitucional poderá superar a falta de inclusividade no processo constituinte? Existem bons fundamentos para crer que sim. A constituição de 2010 integra-se ao melhor nível técnico nas mais modernas tendências do constitucionalismo em África, ultrapassando em muitos aspectos, qualitativamente e do ponto de vista da procura de soluções originais, a constituição da África do Sul de 1994196. Considera-se que o processo de escolha e de nomeação do Presidente da República é menos importante para a caracterização dum sistema de governação, sendo mais decisiva a atribuição de poderes e responsabilidades ao cargo de chefe de estado. Nesse contexto, considera-se exagerada a acusação de que a nova constituição de 2010 teria criado um sistema "hiper-presidencialista", já que o Presidente carece do poder de dissolver a Assembleia. Em última analise, serão a prática e a realidade constitucional que irão determinar se a constituição de 2010 poderá fugir à triste regra das constituições instrumentalizadas e de propaganda, que têm dado cobertura a governos essencialmente fracos, carentes de verdadeiro apoio popular, e incapazes de ultrapassar o dualismo dos "dois públicos" nas sociedades africanas na época pós-independências.
Palavras Chave: Processo constituinte em Angola I hiper-presidencialismo I comissão constitucional I "África profunda" I "dois públicos" Abstract: The Constitution of Angola of 5 February 2010 is the result of a constitutional process that lasted 14 years, starting with the passing of Act 18196. The final text of the Constitution was voted in the absence of the opposition MPs, who felt excluded to such a degree that they decided to boycott the final session. Will constitutional practice be able to overcome the lack of original inclusiveness? There are good reasons to believe so. The constitution of 2010 integrates the best state of the art in the most modem trends of constitutionalism in Africa, surpassing in many respects, qualitatively and in terms of originality, the constitution of South Africa of 1994196. The selection and appointment process of the president is considered less important for the characterization of a system of government than the actual attribution of powers and responsibilities to a h ead
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of state. ln this context, the claim that the new constitution of 2010 would have created a "hyper-presidential" system is rejected. The Angolan President lacks the power to dissolve Parliament. ln the final analysis, it will be the practical and constitutional reality that will determine whether the 2010 Constitution will escape the grim rule of instrumentalized and propaganda constitutions that have provided cover to governments that lacking in genuine popular support, and thus unable to overcome the dualism of the "two publics" in African post independence societies.. Keywords: Constituent and constitution making process in Angola I hyperpresidentialism I constitutional commission I "two publics"
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A Constituição de Angola de 2010 no contexto do Constitucionalismo em África, pp. 11-27
ÍNDICE I. GLOBALIZAÇÃO DOS OBJECTIVOS DA CONSTITUIÇÃO
II. CoNSTITUCIONALISMO AFRICANO E A CoNSTITUIÇÃO VIRTUAL
m.
FoRÇA NoRMATIVA DO CoNSTITUCIONALISMO
III, A CONTRTBUIÇÃO DE ANGOLA
"· O FuTuRo Do CoNSTITUCIONAUsMo EM ÁFRICA I. GLOBALIZAÇÃO DOS OBJECTIVOS DA CONSTITUIÇÃO
A questão da globalização do constitucionalismo não é uma preocupação nova. Podemos falar da globalização da ideia da Constituição desde os tempos da grande revolução democrática, da Revolução Francesa. Foi quando o primado da lei fundamental, como expressão do pacto social que tme os indivíduos na qualidade de membros duma sociedade e duma nação, veio substituir a crença irracional no direito divino dum Rei de governar, através da sua família alargada e das demais famílias fidalgas. Para Rousseau, o que importava era. a pureza do poder democrático, e a possibilidade de reduzir e mesmo ultrapassar a alienação entre os governadores e os governados.1 O ideal deste conceito é a d emocracia directa, em que todas as decisões seriam tomadas directamente pelos governados, pelo povo. Num país totalmente abrangido pela informática moderna seria possível, mesmo através dos dispositivos portáteis como o Blackberry e outros, que em qualquer altura do dia as decisões a tomar seriam sujeitas ao voto plebiscitário dos cidadãos. Mas evidentemente, estes se cansariam desta responsabilidade constante, e recla-· mariam uma divisão do trabalho bem mais funcional, através da delegação do poder de decisão. É neste raciocínio que muito facilmente se entende a preocupação de Montesquieu, que foi de organizar de maneira fiável e segura a inevitável delegação do poder de decisão, em termos da democracia não directa mas representativa. Para evitar que a delegação do poder de decisão possa ser abusada, Montesquieu prezava a doutrina da separação dos três poderes fundamentais de um estado, o poder de fazer leis, o poder de executar as leis, e o poder de rever judicialmente as relações resultantes desses leis e da aplicação das mesmas. 2 É uma realidade que poucos professores do ensino do direito constitucional aceitam, que as assembleias legislativas no estado moderno não podem 1
Jean Jacques Rousseau, The Social Contract or Principies ofPoliticai Right, 1762. Translated by G. D. H. Cole, http://www.constitution.org / jjr/socon.htm. 2 Charles d e Secondat, Baron de Montesquieu, The Spirit of Laws, http://constitution.org/cm/sol. htm.
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corresponder à exigência teorética da doutrina da separação dos poderes do estado. As Assembleias modernas são controladas pelo partido majoritário, e os funcionários mais poderosos desse partido compõem e controlam o poder executivo, o governo, enquanto o poder judicial depende de ambos, a assembleia e o governo, através dos processos de recrutamento e da nomeação dos juízes.3 Assim a doutrina da separação dos poderes tornou-se tão ilusória como também é ilusório o ideal da democracia directa, em que existiria identidade de vontade entre os governados e os seus governadores. Mas mesmo assim, o consenso mundial positivo constitucionalista tem cada vez maior legitimidade e força, na sua busca de soluções que mais adequadamente poderiam realizar ambos os ideais de Rousseau bem como do Montesquieu. 4 Podemos largamente distinguir três grandes famílias de leis constitucionais: Primeiro, a família retrógrada das constituições monárquicas ou caudilhistas, que servem simplesmente como instrumento para a legalização formal e positivista do poder dum monarca ou dum "Caudilho". Temos como exemplos em África a constituição monarca da Swazilândia, e a constituição vigente da Líbia, que serve como exemplo duma constituição proclamadora dum estado subjugado ao caudilhismo dum líder carismático mas d itador. A grande diferença entre a monarquia e o caudilhismo é que o caudilho tem problemas de sucessão insuperáveis. Segundo, as constituições neoliberais do estado de direito multipartidário, parlamenta1~ presidencialista ou semi-presidencialista. Estas constituições de cariz p redominantemente Europeia são hoje caracterizadas pela tendência da burocratização legalista, em que a d ensidade do regulamente de todos e qualquer aspectos da vida individual bem como colectiva, no contexto do aperfeiçoamento do processo de revisão judicial, começa a revestir uma nova tendência totalitária. Qualquer contestação é permitida, mas só muito raramente será possível a um queixoso vencer. O perigo deste modelo está no risco duma degeneração do estado de direito, em estado p erfeccionista e praticamente incontestável. Terceiro, as constituições de partido político dominante, sendo o exemplo mais fascinante a evolução do constitucionalismo na República Popular da China. A China continua a praticar o princípio da representação puramente indirecta e do mandato por instrução, em oposição ao princípio do m andato livre. Segun d a o artigo 59 da Constituição da China de 1982, na versão corren te de 2004, lido em conjunto com a Lei Eleitoral de 1986, os 3000 membros da Assembleia, denominada Congresso do Povo, são eleitos indirectamente pelos Congressos Populares a vários níveis, provincial, distrital, e local, sendo unicamente os delegados dos Congressos Locais eleitos directamente, tal como se previa na constituição de Angola de 23 de Setembro de 1980, até à reforma de 3
J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5" ed (Aimedina 2002), pp 549-
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563; Jorge Bacelar de Gouveia, Manual de Direito Constitucional, Volume II, 2." ed. (Airnedina 2007), pp. 805/6. Urna revisão crítica e fundamental da doutrina do constitucionalismo universal foi recentemente apresentada por Ming Sung Kuo, "The End of Constitucionalisrn As We Know It? Boundaries and the State of Global Constitution al (Dis)Ordering", 2010 1 (3) Transnational Legal Tiuory, pp. 329-369.
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6 de Março 1991, pela Lei 12/91.5 O que as três grandes famílias do direito constitucional têm em comum é a função principal de qualquer constituição, nomeadamente a integração dum povo dentro de um determinado território de tal modo que a representação desse povo possa conquistar não só formalmente a aceitação internacional, mas igualmente o respeito que lhe permitirá participar a pé da igualdade num mundo globalizado. 6 Para poder atingir este objectivo, as constituições devem necessariamente revestir-se de aceitação e apoio, quer dizer legitimada original e regularmente renovada, a nível nacional, bem como na percepção das grandes potências que determinam o intercâmbio e diálogo globaF A tarefa constitucionalista consiste assim no encontro de soluções que podem fomentar a integração nacional, ao invés da criação de identidades negativas, baseadas na rejeição daquilo que possa ser visto como alheio ou "inimigo". A capacidade geradora do consenso dos cidadãos sobre as grandes metas do futuro é o que determina o sucesso das sociedades modernas. A definição clássica de Max Weber ensina três origens da legitimidade, o que quer dizer origens da eficácia e sustentabilidade do poder político: a autoridade carismática e personalizada como fonte da legitimidade, a autoridade constituída na base de processos racionalistas e institucionalizados como base da legitimidade, e a legitimidade na base da tradição, ou legitimidade histórica.8 A legitimidade histórica prevalece em países que ultrapassaram um período de grande transformação. É normal que um movimento de libertação, conquistador contra uma ocupação estrangeira ou colonial, venha a estabelecer uma forte legitimidade histórica. Como sabemos, em África, a legitimidade histórica tem até aos nossos dias prevalecido sobre as outras possíveis fontes de legitimidade. II. CONSTITUCIONALISMO AFRICANO E A CONSTITUIÇÃO VIRTUAL Durante a época colonial não existiam constituições em África. O que constituía os países era o direito colonial, um derivado do direito administrativo da época anterior à conquista dos direitos fundamentais. Adiante, o período das independências, a partir dos anos sessenta até ao início da época dos noventa, fora caracterizado pelas constituições decretadas. A maioria das constituições das independências seguiu os modelos encontradas no leste da Europa, especialmente na antiga Alemanha Oriental, pais que tinha muito apoiado as lutas de independência. Por exemplo, em Angola, em 11 de Novembro de 1975, um "Acto Constitucional" foi aprovado por resolução 5 Textos em
http://www.novexcn.com/constitutional_law_main.html.. Ver para a doutrina da soberania dos parlamentos a recente re-apreciação de Markus Ogorek, "The Doctrine of Parliamentary Sovereignty in Comparative Perspective", vol. 6 n.0 6 German Law Journal, pp. 967-980. 1 A. Thomashausen, Verfassung und Ve7fassun.gswirklichkeit immodemen Portugal, Berlin 1982, pp. 2427. 8 Max Weber, "Die drei reinen Typen der legitimen Herrschaft", in: J. Winkelmann, ed, Gesammelte Aufsiitze zur Wíssenschaftslehre, 4th ed Tübingen, 1973, pp. 475-488, 485. 6
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do Comité Central do MPLA, e essa deliberação partidária foi simplesmente atestada no Art. 60 dessa nova Con stituição da Independência. Artigo 1,0 da "Lei Constitucional", proclamava o novo Estado de Angola Independente como sendo um país onde "qualquer forma de exploração do homem pelo homem" seria abolida, e o Art. 2. 0 anunciava que o MPLA fora instalado como o único partido político legal em Angola, a fim de exercer o controlo completo sobre o Estado e todos os seus órgãos, em todos os níveis, através de um sistema de comissários designados, aliás previsto nos Artigos. 31-52 bem como numa demais resolução do partido MPLA, publicada como Lei n. 0 1 de 1976.9 Os estados pós-coloniais em África simplesmente continuaram a tradição duma legalidade autocrata imposta inicialmente pelas potências coloniais. O instrumento de controlo mais importante da administração colonial tinha sido a restrição da liberdade económica com a sujeição de toda e qualquer actividade, inclusive os mais humildes serviços do sector informal ou comércio, ao regime de licenciamento administrativo. Juntamente com a negação das liberdades de circulação de pessoas, serviços e capitais, a tradição legal colonial foi uma tradição do abuso do direito administrativo para a manutenção dum controlo absoluto das actividades humanas. Os novos governos independentes não resistiram à tentação de se aproveitarem e de simplesmente continuarem a tradição administrativa colonial. Este fenómeno explica-se pela relativa fragilidade dos novos governos independentes, baseados em números restritos de membros efectivos, confrontados com os enormes desafios de estabelecer um controlo efectivo em territórios imensos, fragilizados pelas fronteiras artificiais do tempo colonial e na ausência duma identidade nacional partilhada pelas populações segredad as em etnias bem distintas. 10 Como Nwabueze mostrou no seu primeiro e muito original livro sobre o constitucionalismo africano}1 as constituições das independências tinham sido elaboradas fora da África, com inspiração em tradições legais e sistemas de valores que nunca foram enraizados em África. Os poucos autores e estudiosos africanos envolvidos neste processo tinham sido "assimilados" à Europa Ocidental ou, alternativamente, aos valores soviético-socialistas. Por consequência, as suas ideias e escritos constitucionais careciam de originalidade, eram alheios à África, e acabaram por ser esquecidos no obsoleto. Tal como mui tos dos novos políticos anticolonialistas, estes constitucionalistas Correia & Bornito de Sousa, Angola História Constitucional (Coimbra 1996), pp. 21-23 e 177-190. Yash Ghai, "AJourney around constitutions: reflections on contemporary constitutions", 122, South African Law Joumal, pp. 804-831 e 808; H K Prempeh, "Marybury in Africa: Judicial Review and the Challenge of Constitutionalism in Contemporary Africa", 80 Tulane Law Review (2005-6), pp. 1239-1323, 1274-78; Ruth Gordon, "Growing Constitutions", in: 1 (3) ]oumal of Constitutional Law (1998/99), pp. 528 -582, 536-542; Julian Go, "Modelling the State: Postcolonial Constitutions in Asia and Africa", 39 (4) Southeast Asian Studies (2002}, pp. 558-583, 560 et seq.; James C N Paul, "Some Observations on Constitutionalism, Judicial Review and Rule of Law in Af.rica", 35 Ohio State Law Journal, pp. 851-869, 855-858. 11 Nwabueze, B. O, Constitutionalism i11 the emergent states, London: C. Hurst, 1973, p. 23. 9A
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da primeira hora tinham sido condicionados a imitar seus antigos mestres e senhores coloniais, até à reprodução das modas de se vestir, falar, actuar bem como na prática dos Protocolos do Estado. Havia extremos absurdos como o de mandar erigir cópias mal executadas de edifícios do governo de Paris, na capital da República Central Africana do falecido Presidente Bokassa. O equívoco da primeira fase constitucionalista pós-colonial, era de promover uma recepção selectiva do direito constitucional europeu, colocando a doutrina da soberania parlamentar no centro de todas as considerações, em detrimento da compreensão adequada do Estado de Direito, e da sua evolução moderna e funcional, revestido na doutrina da supremacia da lei da constituição.12 Com o fim do poder soviético, em 1989, veio o fim da rivalidade entre as duas superpotências globais que tinham sustentado e por vezes dominado muitos dos governos africanos. A partir de 1990, o palco estava montado para uma onda de refor mas constitucionais e de transformação em todo o continente africano. A nova força política dos países ocidentais doadores e os todo-poderosos acordos comerciais com a UE e os EUA aceleraram ao máximo a introdução dos sistemas constitucionais multipartidários em África. De um total de 53 estados independentes africanos,13 antes e até 1990, apenas 9 tiveram um governo democraticamente eleito. De 1990 até 2000, 36 países africanos realizaram eleições multipartidárias pela primeira vez, ou d epois da sua ressuscitação de algum tipo de regime ditatorial ou militar.14 Um adicional de 5 países realizaram eleições não partidárias/ 5 quer dizer sem que tenha havido partidos políticos a concorrer, tal como no caso do Uganda. Outros oito tiveram eleições consecutivas pela segunda ou mesmo terceira vez.16 Até ao ano passado, em 2010, todos os 47 países da África Subsariana (quer dizer a África, excluindo Argélia, Egipto, Líbia, Marrocos, Tunísia e Sahara Ocidental) realizaram eleições periódicas e repetidas, num total de mais de 260 eleições/ buscando assim fundamentar seus governos num processo de legitimação democrática multípartidária.17 O advento do multipartidarismo na década de noventa exigiu reformas constitucionais em todos os países. A partir de 2004, todas as 54 nações do continente africano concluíram processos de adopção de constituições novas ou de modificações profundas das constituições an teriores. 18 12
Isaak L Dore, "Con.stitutionalism and the post-Colonial State in Africa: A Rawlsian. Approach", in : 41 S t Louis llniversity Law ]ournal (1996/7), pp. 1301-1317, p. 1305 et seq. 13 Ver a lista em: http:/ I en.wikipedia.org/wil<i/List_of_African_countries_and_territories. JJ Os Cômoros, Gabão e a Costa do Marfim em 1990, Benim, Burkina Faso, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Zâmbia e Argélia em 1991, Angola, Djibouti, Cameron, Gana, Quénia, Mali, e Mauritânia em 1992, Burundi, Guiné Equatorial, Guiné, Madagáscar, Níger, República Central Africana, Senegal, Seychelles e Togo em 1993, Guiné Bissau, Malawi, Moçambique, África do Sul em 1994, Etiópia e Tanzânia em 1995, Gâmbia e Serra Leoa em 1996, Chade e Libéria em 1997 e Nigéria em 1999. 15 Eritreia, Líbia, Sud ão, Swazilândia e Uganda. 16 Botswana, Egipto, Gabão, Lesotho, Maurícias, Marrocos, Namíbia, e Zimbabué. 17 Staffan I. Lindberg, Dernocracy and elections in Africa. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2006, pp. 68 et seq. 18 H Kwasi Prempeh, "Marybury in Africa: Judicial Review and the Challenge of Constitutiona.lism. in
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No entanto, e tal como foi recentemente confirmado em 2009 por um estudo de Bogaards, é verdade que os parlamentos em África continuam a ser dominados por um partido político hegemónico, na maior parte dependente da sua legitimidade histórica. 19 A questão central que se põe é de saber se esta segunda onda do constitucionalismo em África, desde 1990, tem sucedido melhor na superação da anomalia do dualismo de autoridades em África, termo este introduzido pelo autor Whitaker no seu conhecido e fundamental estudo sobre o exercício da autoridade do estado em África titulado "Políticas de Tradição". 20 O dualismo da autoridade no estado, refere-se à realidade sociológica da "existência de dois públicos em África". Sem excepção verifica-se um estranhamento persistente das grandes maiorias das populações que não se conseguem reencontrar e identificar com os modelos constitucionais importados da Europa, e em alguns casos, tal como na Libéria e no Gana, a partir da América do Norte. Na África lusófona, a realidade dum "segundo público" é por vezes contida na utilização do termo ilustrativo da "África profunda".21 Muito concretamente, enquanto os grandes intelectuais de expressão portuguesa debatem a falta de pureza de doutrina na solução angolana recente, do voto duplo obrigatório para a escolha do Chefe de Estado, o que sentirá e o que dirá a tal "África Profunda" sobre o assunto? Corresponderá ou não ao que eu gostaria de chamar o direito consuetudinário constitucional?22 Os críticos apontam que a segunda onda de constituições em África, desde 1990, teria produzido predominantemente "propaganda constitucional". O autor alemão Klug, numa contribuição em 2001 sugeriu, no que diz respeito à constituição sul-africana de 1996, de que esta constituição, tal como tantas outras, estava em risco de se tornar uma "constituição irrelevante", porque não teria conseguido impor moderação e controle sobre o exercício do poder político, e fazer valer as normas mínimas de direitos sociais e económicos, em especial o direito à saúde.23 A maioria dos estudiosos lamenta que as duas últimas décadas não tenham conseguido enraizar genuinamente em África os modelos constitucionais das democracias multipartidárias, também referidos como os sistemas da "poliarquia". Richard Joseph, do Centro Carter na Universidade de Emory, Contemporary Africa", 80 Tulane Law Review (2006), pp. 1239-1323 a 1274-1287. Mathijs Bogaards, "Counting parties and identifying dominant party systems in Africa", 43 European Journal ofPolitícal Research (2004), pp. 173-197, 20 C. S Whitacker, The Politics ofTradition: Continuity and Change in Northern Nigeria, 1946-1966, Princeton 1970. 21 Richard L Sklm~ "The African Frontier for Politica! Science", in: Robert H. Bates, V. Y. Mudimbe, Jean F. O'Ban~ Africa and the Disciplines: The Contributions of Research ín Afríca to the Social Scíences and Hwnanities, Chicago 1993, pp. 83-110, 104. 22 Ver para Angola os apontamentos de Ruy Duarte de Carvalho na sua entrevista com Nuno Vida! em Junho de 1998, N Vida!, ed., O que não ficou por dizer ... (Associação Cultural Chá de Caxinde 2011), pp. 19-40. 23 H Klug, "Five Years on: How relevant is the Constitution to the New South Africa", in: 26 Vermont Law Revíew (2001/2), pp. 803-819. 19
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classifica as transformações democráticas em África durante a década das primeiras transformações (de 1990 a 2000) como meras "transformações virtuais". As eleições teriam degenerado em rituais de aclamação para conceder a bênção legalista às mesmas elites que desde a independência, detiveram sempre o poder político e que conseguiram continuar a monopolização do seu elitismo, em detrimento do desenvolvimento e do bem-estar dos seus países. III. FORÇA NORMATIVA DO CONSTITUCIONALISMO Se aceitarmos ser uma condição fundamental para o bom funcionamento de uma democracia multipartidária parlamentar que a oposição deve realisticamente poder assumir o papel da "esperança institucionalizada da minoria"/4 através duma possibilidade credível e realista de que a oposição algum dia poderá vir a constituir uma maioria e assim formar um governo, então sim, esta condição está ausente em praticamente todos os sistemas de governo em África. Como regra, os partidos da oposição são mal tolerados e onde o seu apoio ultrapassa 20-25%, eles são vistos e por muitas vezes abertamente criticados como provocadores "duma ameaça à paz nacional".25 Como resultado, os partidos de oposição em África, independentemente dos sistemas eleitorais, continuam fragmentados, limitados por lealdades predominantemente étnicas, subfinanciados, com tendência de personalizar a liderança e assim fomentando o fraccionamento, normalmente oferecendo pouca continuidade e demonstrando falta de capacidade para formular alternativas de política. Mesmo assim, as constituições e os processos constituintes manifestam-se como causas determinantes nestes processos.26 A força dos processos constituintes e das constituições está a crescer e não a diminuir. Isto é evidenciado pelo fato de que cada instância de elaboração de uma constituição em África desde 1990 tem sido um evento apaixonante e em muitas vezes um processo de consciencialização nacional prolongado. A etapa mais significante no começo deste processo foram as negociações constitucionais na África do Sul em 1990 na sequência do primeiro processo constituinte originário na Namíbia independente, até à entrada em vigor em 1994 da Constituição Sul-Africana Provisória. Uma etapa possivelmente igualmente decisiva poderá vir a ser considerada a mais recente promulgação da nova Constituição de Angola, em 5 de Fevereiro de 2010. Qualquer governo em África desde 1990 tem actuado procurando legitimar-se em referência à constituição do país, invocando as interpretações que mais lhe convierem. Especialmente o Zimbabué confirma esta afirmação. O intenso e 24
Inspirado nas palavras de Werner Kaltefeiter: "Die institutionalisierte Hoffnung der Unzufriedenen", in: W. Kaltefleiter, Vorspiel zum Wechsel - Eine Analyse der Bundestagswahl 1976, Berlin 1977, p. 246 et seq. 25 W Teshome, "Opposition Parties and the Politics of Opposition in Africa: A Criticai Analysis", in: 3 (1) Intemational Joumal of Humanities and Social Sciences (2009), pp. 1-15, 2. 26 André Mangu, "Constítutional Democracy and Constitutionalism in Africa", in: 2006 Conflíct Trends, pp. 3-8, 7.
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autodestrutivo conflito interno neste país está centrado na sua constituição, na disputa sobre o processo de aplicá-la, sobre as denúncias de que determinadas políticas foram adoptadas em violação da Constituição, e sobre o calendário e a direcção da futura revisão da Constituição. O conflito deste país inicia-se de facto com uma reforma constitucional fracassada, em fins de 1999, quando a maioria dos eleitores se recusou a endossar a constituição então proposta a plebiscito. 27 A essência do Acordo de Partilha do Poder do Zimbabué, de 15 de Setembro de 2008, além do estabelecimento de um governo interino de unidade nacional, foi de estabelecer um processo de debate e elaboração duma nova Constituição. A falta de bom senso e de adequação profissional dos procedimentos inseridos no acordo de 2008 resultou, tragicamente, em que não tem sido possível atingir as metas que o compromisso em Setembro de 2008 tinha vislumbrado. Se o Acordo Geral de Paz de Moçambique em 1992 tivesse sido elaborado com a incompetência manifesta no Acordo de Partilha do Poder do Zimbabwe, até aos dias de hoje não teria havido paz em Moçambique. A força normati v a do constitucionalismo existe em África e contradiz os críticos que nos querem fazer crer que as nossas constituições seriam "irrelevantes".28 IV. A CONTRIBUIÇÃO DE ANGOLA Angola é o exemplo mais recente duma recepção do normativismo constitucional moderno e global, com a promulgação da nova Constituição Angolana, de 05 de Fevereiro de 2010. A Constituição de 2010 resulta dum dos mais prolongados e complexos processos constituintes dos nossos tempos. Iniciado pelo dispositivo da Lei 18/96 de 14 de N ovembro 1996, o processo que finalmente produziu a constituição demorou 14 anos, passando pela elaboração em 16 de Fevereiro de 2000 duma lista de 27 princípios constitucionais de base, e em Janeiro de 2004 da publicação duma proposta de constituição completa e pronta para ser adoptada e promulgada/ 9 apenas para ser descartada na sua integridade para abrir o caminho para a realização da eleição duma nova Assembleia a 8 de Setembro de 2008.30 27
J. Hatchard, "Some Lessons on Constitution Making from Zimbabwe", 44(2) 2001 Journal of Afri-
can Law, pp. 210-216; M Sithole, "Fighting Authoritarianism in Zimbabwe", 12 (1) 2001 Joumal of Democracy, pp. 160-169; B. Raftopoulos & T Savage, Zimbabwe Injustice and Reconciliation (Institute for Justice and Reconciliation, Cape Town, 2004); W Dobcke, "De babuínos, homossexuais e um presidente- ou: um fracasso da política exterior do Zimbabué depois do fim da Guerra Fria", E. C. de R. Martins, ed., Relações Internacionais (Brasília, 2003), pp. 341-396. 28 Armando Marques Guedes, "Os Processos de Constitucionalização dos Estados Africanos Lusófonos enh·e Factos e Normas", 11.4 (Set. 2007) Revista Negócios Estrangeiros - Especial, pp. 6-28; António Alberto Neto, Instituições Políticas e Sistemas Constitucionais nas Países Africanos de Expressão Portuguesa (Kiazele, Luanda 2003). 29 A. Thomashausen, "Constitutional Law in Extreme Emergencies", in: Brohmer et ai., ed., Internationale Gemeinschaft und Menschenrechte- Festschrift für Georg Ress, Heymanns- Koln, Berlin, München 2005, pp. 1295-1304. 30 A. Correia & Bornito de Sousa, Angola História Constitucional (Coimbra 1996).
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A nova Assembleia, nos termos da Lei n .0 09/02, de 6 de Janeiro de 2009, instituíra então uma nova Comissão Constitucional composta por 45 membros, revestida de um estatuto de autonomia e equipada com serviços de apoio e de secretariado e orçamento próprios. 31 São de salientar dois aspectos importantes da aplicação de processos já internacionalmente estabelecidos. Primeiro, o esforço da Comissão Constitucional em tornar as suas deliberações por consenso, e apenas no caso em que esse consenso não pôde ser alcançado, por maioria de votos de todos os seus membros. O princípio da busca do consenso foi aplicado com grande sucesso na elaboração da Constituição Sul-Africana em 1993/94, vindo a constituir o novo princípio da inclusividade.32 Apresenta-se como variação subtil à regra da maioria dura e rápida, obrigando os participantes a procurar o compromisso, antes de poderem tornar urna decisão puramente majoritária. Desta forma introduziu-se na democracia multipartidária moderna um conceito fundamental das tradições consuetudinárias africanas, obrigando os intervenientes ao debate, à evitação de posturas contraditórias e de força. 33 O princípio do consenso traduz-se na prática num dever de participação e apoio ao debate, um dever que a oposição em Angola viu gravemente ferido na prática real durante a fase final das deliberações constituintes, o que por si não invalida o mérito do conceito originalmente adoptado pela Comissão Constitucional. A outra regra de dimensão internacional importante aplicada no processo constituinte angolano foi a criação da "Comissão Técnica", composta por 19 membros. Reuniu essa Comissão conhecimentos de lei constitucional consideráveis, sob a presidência de um político influente e defensor dos sistemas de governação presidencialista, o respeitado académico professor Carlos Feijó.3-1 A delegação dos trabalhos d e formulação e redacção para uma Comissão Técnica tem evidentemente o seu grande precedente na elaboração da Constituição Alemã de 1949. Três anos após a rendição alemã, em 1948, os governos eleitos de um número de 11 Estados regionais designaram urna "Convenção Constitucional", quer dizer uma reunião de peritos que elaboraram um projecto de constituição dentro de um 31
http:/ /www.comissaoconstitucional.ao/leis.php. Vicki C Jackson, ,What's in a Name? Reflections on Timing, Naming and Constitution-Making", 49 William and Mary Law Review (2007 /8), pp. 1249-1305, A. Thomashausen, ,Demokratie und Rechtsstaatlichkeit in Südafrika", pp. 163-188, in: U Battis, P Kunig, I Pernice, A Randelzhofer, ed., Das Gnmdgesetz im Prozess Europiiischer und G/obaler Verfassungsentwicklung, Nomos Verlagsgesellschaft, Baden Baden 2000. 33 Adebayo Oyebade, Culture and customs of Angola, (Westport, Cmm.:Greenwood Press, 2007}; M. O. Hinz & H. I<. Patemann, eds, The Shade of new leaves: governance in tradititonal authority; a southem African perspective (Berlin, 2006). 34 Carlos Feijó, "O Semi-Presidencialismo em Angola. Dos Casos à Teorização da Law in Books e da Law in Action", in 11.4 (Set. 2007) Revista Negócios Estmngeiros- Especial, pp. 29-43; "O Semi-Presidencialismo em África e, em especial, nos PALOP", 2 (2002) Revista da Faculdade de Direito Universidade Agostinho Neto, pp 27-66; "Teremos Presidente Executivo", O País 11-09-2009, pp. 26-28; Problemas Actuais de Direi to Angolano (Principia, Estoril 2001). 32
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prazo excepcionalmente curto de apenas 13 dias. O projecto foi submetido a uma assembleia de 65 delegados, eleitos pelas 11 legislaturas estatais, que concluiria os seus debates sobre o novo Grundgesetz no prazo de 7 meses. A qualidade da constituição alemã não foi comprometida pelo processo originário que foi deficitário em termos de pureza democrática. O Grundgesetz não só resistiu ao teste do tempo, como continuou, ao longo das décadas a inspirar e orientar globalmente os processos dos constituintes. 35 Assim, é trágico que o texto final angolano, apresentado em 17 de Dezembro de 2009, quando foi votado pela Assembleia a 21 de Janeiro de 2010, com 186 votos a favor, nenhum contra e duas abstenções, tenha vindo a ser boicotado pelo principal partido da oposição, a UNITA, cujos deputados se recusaram de participar na votação. Esta é uma mancha profunda no trabalho excelente que a Comissão Constitucional e a sua Comissão Técnica prestaram. Ambos os Grundgesetz, bem como aliás a proposta de Constituição de Moçambique em 1994 foram recolhidos com unanimidade porque contrariamente aos constituintes em Angola, conseguiram dar expressão a um consenso verdadeiramente nacional, que incluía todos os que tinham voz. Será que a Constituição Angolana de 2010 poderá superar esta falha de indusividade na sua origem? O que dividiu os representantes do Povo foram as questões da forma de escolher o chefe de estado, o Presidente, a extensão dos poderes atribuídos a esse Presidente, e a medida da descentralização territorial do país. A forma de escolha do Presidente encontrada na constituição de 2010 é original e, de facto, única. Em termos jurídicos, trata-se duma ficção jurídica. O primeiro nome inserido na lista de candidatos à eleição parlamentar vencedora é considerado eleito na qualidade de Presidente, e o segundo nome aí inserido é considerado eleito na qualidade de Vice-Presidente, tal como a criança adoptada, a partir do momento da adopção, é considerada criança de pais que não a criaram, enquanto os pais que criaram essa criança, a partir do momento da adopção, cessam de ser considerados progenitores.36 A lei evidentemente pode estabelecer este tipo de regras. A regra em si simplesmente sanciona o que é uma prática estabelecida e aceite globalmente nas democracias multipartidárias. Não existe democracia parlamentar moderna em que o partido político majoritário não controle apertadamente os trabalhos e as decisões da assembleia parlamentar, sob orientação do executivo desse mesmo partido, cujas personalidades normalmente também detêm os principais cargos 35
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A. Thomashausen, in: Das Grundgesetz im Prozess Europãischer und Globaler Verfassungsentwickltmg, supra (nota 32). Bornito de Sousa, "Sistema Presidencialista Parlamentar defende Estado unitário", ANGOP 4-112009, http:/ /www.portalangop.co.ao/ motix/ pt_pt/noticias/politica/2009 /10/ 45/Sistema-Presidencialista-Parlamentar-defende-Estado-unitario,9fa2e643-52ca-4cd4-abbl-db08dc3dbea8.html, accessed 11-04-2011; Mihaela Webba, "Sistema de Governo e Eleição do Presidente da República em Angola", http: / /www.correiodopatriota.com/index.php?option =com_content&task=view&i d=4002&Itemid=293; 27-Jan-2009, accessed 11-04-011.
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do poder executivo. O partidarismo assim necessariamente neutraliza em grande parte a doutrina da separação dos poderes. Na África do Sul, por exemplo, a "eleição" do Presidente durante uma votação na Assembleia é um mero formalismo, já que o número um da lista de deputados vencedora é necessariamente também o único candidato a ser eleito pela Assembleia para o cargo de Presidente. A nova Constituição Angolana simplesmente reflecte essa realidade constitucional numa regra explícita. O que é mais decisivo, no entanto, é a decisão de por meio desta regra tácita evitar um acto eleitoral separado para a escolha do Presidente. O bom raciocínio em defesa desta decisão constituinte angolana é o receio de que articulações separadas e independentes de duas legitimidades democráticas e eleitorais possam ter resultados diferentes e provocar conflitos entre a legitimidade parlamentar e uma diferente legitimidade presidencial. Existe uma preocupação legítima de que um presidencialismo baseado em eleições presidências directas distintas das eleições parlamentares possa usurpar o poder do estado numa pessoa só e dar origem ao "mobutismo". Foi exactamente para atenuar este risco que a constituição moçambicana previu que os actos separados da votação para a lista de candidatos para a assembleia e da votação para os candidatos a presidente da república devam ser atribuídos como único acto eleitoral, quer dizer simultaneamente. No meu ponto de vista, o método de escolha do chefe de estado é menos significante d e que os poderes que lhe são atribuídos. Um sistema de governo é caracterizado como presidencialista quando o executivo é nomeado e se responsabiliza perante o presidente. É considerado parlamentar, quando o governo é nomeado e se responsabiliza perante o parlamento. E é caracterizado semi-presidencialista quando o presidente representa um poder d e reserva que é activado somente quando a assembleia se torna incapaz de tomar as deliberações que lhe são normalmente atribuídas.37 O método de escolha dum presidente é pouco relevante neste contexto. Pode haver um presidente eleito directamente sem poderes significantes, e pode haver um presidente eleito indirectamente ou por integração numa lista partidária, com uma concentração elevada de poderes, sendo esta ultima alternativa a escolha que a constituição angolana de 2010 acabou por fazer. Foi esta escolha que lhe valeu o atributo de "hiper-presidencialista", nas palavras de um dos grandes mestres Europeus do direito constitucional, o Professor Vital Moreira. 38 Será que devemos concordar com Vital Moreira e condenar a Constituição Angolana? Penso que não pelos seguintes motivos: Primeiro, a Constituição não constitui de forma alguma um poder "hi37
A obra fundamental neste contexto de analise é: W. Kaltefleiter, Die Funktion des Staaatsoberhaupts in der Parlamentarischen Demokratie (Kõln I Opladen 1970). Ver ainda: A Thomashausen, Ve1jassung und Verfassungswirklichkeit in Neuen Portugal (Berlin 1982), pp. 275-281. 38 Vital Moreira, "Presidencialismo superlativo- Espaço público", in: O Público, 9 de Fevereiro de 2010. Ver também: Abel Chivukuvuku, "Não houve grandes mudanças", A Capital, 17-24 Julho 2010; José Eduardo Agualusa, "O Príncipe Perfeito", 25 de Janeiro de 2010, http:/ /www.ionline. pt/contendo/ 43513-o-principe-perfeito~ accessed 28-02-2011.
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per-presidencialista". O Presidente angolano não pode dissolver num acto só a Assembleia, um poder que deve ser considerado o poder chave para um verdadeiro sistema presidencialista. Na realidade, o Presidente em Angola, tal como o Presidente na África do Sul, funciona na base da confiança e do apoio no seio do partido maioritário. É o órgão de gestão máximo do partido, quer dizer um colectivo, de quem na realidade dependem as decisões do Presidente. É esta integração do poder num colectivo que na realidade vai ao encontro das tradições de gestão consuetudinárias.39 Segundo, a Con stituição de 2010 não encerra o debate sobre a separação de poderes na vertente vertical, quer dizer no contexto dum alargamento dos princípios da autonomia local e da descentralização administrativa. O direito moderno constitucional considera esta separação dos poderes vertical mais relevante de que a separação dos poderes a nível horizontal.40 Terceiro, a Constituição de 2010 é em todos os aspectos dos direitos e liberdades fundamentais, incluindo os direitos económicos, sociais, culturais e colectivos um texto exemplar, cujo rigor e qualidade legislativa, por exemplo no seu artigo 57, em muitos aspectos ultrapassa a constituição da África do Sul d e 1996.41 Resta assim a questão do enquadramento na realidade constitucional onde o futuro papel e evolução do poder judicial em Angola acabará por determinar se as garantias e os direitos fundamentais da nova constituição poderão finalmente prevalecer ou não. IV. O FUTURO DO CONSTITUCIONALISMO EM ÁFRICA O estado em África continua a ser um estado fraco, mediante os enormes desafios da pobreza absoluta e do subdesenvolvimento endémico. A faceta nova e fascinante neste enquadramento geralmente triste é a tendência crescente da elevação e do fortalecimento da constituição formal como fonte única do exercício do poder. Um dos mais fundamentais princípios do Acto Constitutivo da União Africana é o artigo 30, segundo o qual os governos formados na base de golpes ou outros processos inconstitucionais são impedidos de participar nas actividades da União Africana. A proibição, no direito internacional público, de governos inconstitucionais na região africana sublinha a crescente importância da legalidade e legitimidade constitucional em África, e a Neste sentido já: Francisco Pereira Coutinho I Axmando Marques Guedes, "Sobre o Sistema de Govemo em Angola -Do Centxalismo "Soviético" ao "Semi-Presidencialismo" Tradicional até à Adopção de um Sistema de Governo Stti Generis", in 11.4 (Set. 2007) Revista Negócios Estrangeiros - Especial, pp. 64-90. 40 Neste sentido já: António Rodrigues Paulo, "A Reforma Administrativa em Angola", IX Congresso Internacional dei CLAD sobre la Reforma dei Estado y de la Admnistración Pública, Madrid, Spain, 2-5 Nov 2004, http:/ /www.iij.derecho.ucr.ac.cr/archivos/documentacion/ inv'Yo20otras%20entidades/CLAD/CLAD%20IX/documentos/paulo.pdf, acessed 11-04-2011. "' Ver: Jorge Miranda, "A Constituição de Angola de 2010", Revista de Ciências Jurídicas e Económicas -Campo Grande (Brasil), vol2 No. 1 (2010), see: http:/ /revistasystemas.com.br/index.php/systemas/article/view /30, accessed 28-02-2011. 39
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queda ontem do antigo governo da Costa do Marfim é a mais recente confirmação desta reorientação dos princípios fundamentais da política em África. Assim, podemos antecipar uma crescente dignificação das constituições africanas. As constituições instrumentalizadas e de propaganda vão pouco a pouco desaparecer, permitindo os alinhamentos constitucionais que eventualmente possam superar o dualismo dos "dois públicos" no estado Africano, e nesta medida a fraqueza pós-colonial do estado em África.
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OS PARLAMENTOS NACIONAIS E O PROCESSO DECISÓRIO COMUNITÁRIO
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Resumo: A mensagem limitada do Tratado de Nice justifica o propósito da Declaração de Laeken sobre o Futuro da Europa. Pelo seu lado, o carácter inconcl~sivo das últimas Conferências Intergovernamentais explica a aposta na Convenção para a reforma dos Tratados europeus. Entretanto, a vontade de mais democracia conduziu a um envolvimento activo dos Parlamentos nacionais no processo de decisão comunitário, para operar quer uma melhor fiscalização das posições tomadas pelos Governos em matéria europeia, quer um controlo político ex ante do princípio da subsidiariedade. Apesar das vicissitudes do Tratado Reformador, estes princípios acabaram acolhidos no Tratado de Lisboa.
Palavras-chave: Convenção da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia I Con venção sobre o Futuro da Europa I Conferências Intergovernamentais I Constituição Europeia I Processo de Tomada de Decisão Comunitário Abstract: The short message of the N ice Treaty justifies the aim of the Laeken Declaration on the Future of Eu rope. On the other hand, the inconclusive nature of the recent Intergovernmental Conferences explains the bet on the Convention for the reform of the European Treatíes. Meanwhile, the desire for more democracy led to an active involvement of the national Parliaments in the EU decision-making process, to operate both a better monitoring of the positions taken by governments on european issues and an ex ante politicai control of the subsidiary principie. Despite the vicissitudes of the Reform Treaty, these principies were finally enshrined in the Lisbon Treaty.
Key Words: Convention on the Charter of Fundamental Rights of European Union I Convention on the Future of Europe I Intergovernmental Conferences I European Constitution I Common Decision-Making Process
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Os Parlamentos Nacionais e o Processo Decisório Comunitário, pp. 29-51
1. Introdução O processo de integração europeia tem sofrido uma crise de credibilidade e confiança generalizada junto de largas franjas da população, assistindo-se ao avolumar dos sinais de um manifesto afastamento, porventura, rejeição, do projecto europeu. Uma situação decorrente, em larga medida, da discrepância entre as ambições proclamadas e a vivência concreta, e que não tem deixado de adensar-se face a um modelo que vem mostrando uma difícil capacidade de resolver alguns dos principais problemas com que se defrontam no quotidiano. Na verdade, o grande mercado único europeu devia gerar prosperidade e milhares de empregos. Porém, é com o desemprego e a insegurança económica, bem como com as suas sequelas sociais e políticas, que os povos têm convivido. Por seu turno, esperava-se que a cooperação policial europeia, consubstanciada no projecto da Europol, viesse combater de forma eficaz o crime organizado, mormente o tráfico de pessoas e de droga, tal como o branqueamento de capitais associado. No entanto, semelhantes flagelos continuam a confrontar de forma crescente os cidadãos europeus. De igual modo, atribuía-se à Política Externa e de Defesa Comum a capacidade de tornar possível à Europa granjear o lugar de parceiro credível na cena política internacional, a começar por um papel decisivo na solução dos conflitos regionais. Todavia, constata-se que os Estados Unidos continuam a gozar do tradicional protagonismo, face a uma participação secundária da União. Daí que, no quadro do novo ciclo de integração europeia encetado no dealbar da década de noventa do século passado, ao objectivo de centrar a acção num novo paradigma capaz de conferir um renovado impulso à construção da Europa, se haja associado, com determinação e vigor, a vontade de empreender um leque de reformas. Tratava-se de um conjunto de medidas indispensáveis para reforçar o controlo democrático da União, enquanto via de levar os cidadãos a "apropriarem-se" do projecto cuja consecução h aviam entregue, confortavelmente, nas mãos dos Governos, almejando fazer dele um vector da sua identidade1 . De facto, perante uma União que acolhe cláusulas de "opt-out", como em Schengen e na adesão ao Euro, admite modelos e ritmos diferenciados de integração e aceita instrumentos de integração política na vertente monetária, competia aos cidadãos europeus e aos seus representantes democraticamente eleitos reflectir e pronunciar-se sobre o futuro do projecto de construção da Europa. Nesta medida, a Convenção sobre o Futuro da Europa empenhou-se decididamente em contribuir para libertar o projecto europeu do pesado fardo ' Cf., Power to the People of the European Union: Right on?, Editorial comments, Common Mmket Law Review, n° 6, 2004, pp. 1475 e ss.
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do "défice democrático", começando por configurar um p alco privilegiado de reflexão e debate aprofundados e amplamente participados sobre o papel dos Parlamentos n acionais no quadro da reforma do processo decisório comunitário. Aliás, a opção pela fórmula da Convenção foi ela p rópria um sinal manifesto da vontade indeclinável da União de superar as críticas relativas à condução das últimas revisões dos Tratados, assentes na objecção de que haviam sido introduzidos novos patamares de integração sem a auscultação prévia d os povos europeus. Afinal, contrariar este statu quo representava, sem dúvidas, um dos principais reptos lançados pela Convenção simultaneamente aos Estados membros e aos Cidadãos europeus. 2. Das Conferências Intergovernamentais à Convenção Sobre o F'uturo da Europa 2.1. O Novo Alargamento Comunitário e o Élan Reformador À beira do novo século e milénio, assistiu-se à mudança radical do cenário geoestratégico eumpeu com o desmantelamento do Muro de Berlim, que veio pôr termo ao mundo bipolar que enfermava o mapa geopolítico do após-guerra assente em duas superpotências, dois sistemas político-ideológicos antagónicos, duas alianças m ilitares, duas Europas e duas Alemanhas, tendo aberto de forma decidida o caminho à reunificação europeia, que passou a representar um desafio histórico irrecusável com o continente eu ropeu a regressar ao seu espaço natural. Então, desenhou-se um cenário em que a adesão dos jovens regimes democráticos emergentes do Centro e Leste europeus, ao aproximar a União do velho sonho "gaulista" de uma Europa do Atlântico aos Urais, ganhou compreensivelmente os contornos de uma das maiores apostas políticas da construção europeia, anunciando-se como um desígnio incontornáveF. Um movimento de reunificação política que correspondeu a uma decisão estratégica de "realpolitik", reconhecida a oportunidade de a União poder contribuir para a realização da paz, segurança e prosperidade em todo o continente europeu, assumindo ainda o pesado encargo económico e finan ceiro envolvido. Estava em causa a reunificação política da Europa, mais do que a mera multiplicação do número de parceiros, aproveitando a oportunidade histórica de estender o modelo de integração ao Centro e Leste europeus, d ar continuidade e dimensão à politica de abertura e ruptura encetada por Gorbachev em 1986 e, ainda, protagonizar o fomento de uma nova dinâmica geográfica e de desen volvimento do espaço europeu, fundada na associação do mercado único às novas dimensões territorial e demográfica. Afinal, perspectivava-se um projecto ambicioso, susceptível de conduzir, a prazo, ao robustecim ento do papel 2
Cf., Maria Eduarda Azevedo, O Último Alargamento, in: Renovar a Aposta Europeia, Lisboa, Quetzal, 1999, pp.191 e ss.
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da União na cena internacionaP. Mas o futuro alargamento, pelas circunstâncias envolventes - o elevado número de países, bem como a profunda clivagem dos candidatos em relação à matriz comunitária, quer pelo contexto político e ideológico de partida, quer pela existência de economias não preparadas para o confronto com o modelo comunitário, mais exigente e sofisticado4 - , tornava imperioso um processo complexo de ajustamento para que se contava com a solidariedade intra-europeia5. Todavia, as novas adesões, além de significarem um teste real para os futuros membros, uma vez que questionavam o dinamismo e a efectiva vitalidade do projecto europeu, constituíam igualmente uma prova insofismável para a própria União, funcionando como uma espécie de confirmação da vontade política e do empenhamento fidedigno dos Estados membros de realizarem uma caminhada conjunta no sentido de novos e mais exigentes patamares da integração6 . Nesta medida, o alargamento correspondia a um desafio que importava transformar numa ocasião de renovação e revivificação da dinâmica europeia. Deste modo, estavam reunidas as condições para voltar a colocar-se, de forma clara e incisiva, a questão de saber até onde a premência da evolução do projecto comunitário ia conseguir forçar a formação de consensos políticos de especial melindre, mas absolutamente indispensáveis, para viabilizar um núcleo central de reformas até aí sistematicamente adiadas e que requeriam a alteração das regras-do-jogo comunitárias. Desenhava-se um cenário em que a União ia ter o ensejo de mostrar capacidade de gerar uma dinâmica poderosa, consagrando-se sobretudo como uma potência. que assume não só as suas responsabilidades na gestão da globalização, conferindo-lhe uma dimensão ética e reguladora, mas também luta contra todas as formas de violência, terror e fanatismo, ocupando um lugar político na cena e governação mundiais. Nas suas múltiplas vertentes, tra tava-se de uma aposta manifestamente exigente, que justificou o regresso da alavanca tradicional do processo de construção da Europa traduzida no binómio alargamento-aprofundamento, patenteando que o futuro alargamento revestia a dignidade e a dimensão do grande desígnio político da União na transição do século e do milénio. Afinal, ao longo do processo de integração, a Comunidade havia encontrado sempre na sinergia entre estes dois movimentos a razão de ser e, em especial, o 3 Cf., Maria
Eduarda Azevedo, A Globalização, a Emopa e o Século XXI, in: IZenovar a Aposta Europeia, ob. cit., pp. 78 e ss. • Cf., Jim Rollo e A Smith, The Politicai Economy of Eastern European Trade with th e European Community: Why so Sensitive, Economic Policy, n° 16, pp. 139 e ss., 1993.; Paul Van Den Bempt, L'Adhésion des Pays d'Europe Centrale et Oriental à I'Union Européenne: Espoirs et Problemes, Revue du Marché Commun et de /'lTnion Européenne, numéro special, n° 369, 1993, pp.579 e ss. 5 Cf., Frédéric Carlutie1~ Vers une Europe de l'Est Homogene : une analyse en termes de clubs de convergence, Revue du Marché Commun et de L'Union. Européerme, no 498, 2000, pp. 302 e ss. 6 Cf., Richard Baldwin, Jean François e Richard Portes, The Costs and Benefits of Eastern En.l.argement: the Impact on the EU an.d Central Europe. Economic Policy, n° 24, pp. 125 e ss., 1997
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élan indispensável para concluir reformas de fundo, responder a novas apostas e traçar outros rumos, que tinham correspondido a verdadeiras bandeiras do projecto europeu. Por isso, do lado comunitário havia a convicção de que era absolutamente vital o reforço do modelo europeu, preparando um clima adequado para o acolhimento dos novos candidatos, na convicção de que após as futuras adesões nada ficaria como antes. Um esforço que implicava reformas e envolvia o retorno ao esquema da Conferência Intergovernamental (CIG), que fora até aos anos 90 o instrumento de direito internacional com uma relevância política ímpar sempre que se tratara de promover mudanças essenciais para o devir europeu. Desta vez iam estar em jogo reformas orientadas, por um lado, para o desenho de um renovado equilíbrio institucional, passível de privilegiar. a transparência e a eficácia e, por outro, para a revitalização do processo decisório, tornando-o mais democrático, mais célere e mais inteligível e, nesta medida, passívet no plano in terno, de mobilizar os cidadãos europeus e, ao nível externo, de contribuir para o fortalecimento da imagem e da posição da Europa no mundo7 • Concretizá-las seria, por conseguinte, uma forma de prevenir quer u ma quase inevitável crise de crescimento da construção da Europa, quer o lançamento da União em uma verdadeira encruzilhada, dividida entre a via intergovernamental e a via fed eral. 2.2. As Fragilidades das Conferências Intergovernamentais
Na antecipação de uma União alargada, enveredou-se pelo figurino tradicional das CIG para realizar uma reforma institucional susceptível de acolher o futuro alargamento, em si uma tarefa tão essencial quanto de uma sensibilidade política indesmentível. E, não obstante a pressão insistentemente proclamada do alargamento, cujo sucesso, invocava-se, podia correr sérios riscos se a reforma não fosse levada a cabo, em 1996 a CIG mostrou-se incapaz de satisfazer as expectativas, relegando as medidas de fundo para a Conferência seguinte, encetando assim uma verdadeira saga, firmada numa sucessão de CIG's que, além do atraso provocado, tornaram evidentes as fragilidades operativas e as insuficiências do modelo tradicional8 . De facto, dois anos volvidos, o tempo estritamente necessário p ara a ratificação do Tratado de Amesterdão, assistiu-se à convocação de uma segunda CIG, com uma agenda pré-definida que, dedicada em exclusivo à resposta 7
Cf., Thérese Blanchet, Transparen ce et qualité de la législation, Revue Trimestrielle de Droit Européen, no 4, 1997, pp. 915 e ss. s Sobre o carácter inacabado do Tratado de Amsterdão e o seu impacto: d ., Massirno Silvestro e Javier Fernandez-Fernandez, Le Traité d' Arnsterdarn: une Évolution critique, Revue du Mm·ché Comtmm et de l'Llnion Européemu, n° 413, 1997, pp. 662 e ss.; Renaud Dehousse, European institutional architecture after Arnsterdam: parliamentary system or regulatory structure?, Common Market Law Review, no 36, 1998, pp. 595 e ss.; Pierre-Alexis Feral, Le príncipe de subsidiarité à la lumiere d'Amsterdam, R evue d'Affaires Européennes, n° 1-2, 1998, pp. 76 e ss.; Jean-Victor Louis, De la diffé.rentiation à l'avant-garde, Cahiers de Droit Européen, n" 3-4, 2000, p p . 301 e ss.; Jacques Steenbergen, The decision-making capacity of lhe EU after the Treaty of Amsterdam, in: The externa! economic dimension of the European Llnion, The H ague, Kluwer Law Intemational, 2000, pp. 115 e ss.
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aos "leftovers" de Amesterdão, consubstanciou uma das agendas políticas mais limitadas da história das negociações europeias. Acabou por tratar-se d e uma Conferência que, incapaz de gerar elementos de compensação negocial indispensáveis para uma solução genericam ente satisfatória, veio mergulhar os dirigentes dos Estados membros, ao nível dos Conselhos Europeus de Biarritz e Nice, numa real e indisfarçável partilha de poder 9 10• No final, os Quinze, perante o imperativo de construírem na prática as condições institucionais para o alargam ento, aprovaram um texto que correspondeu ao menor denominador comum das posições nacionais. E n esta exacta medida o Tratado de Nice acabou por não deixar ninguém satisfeito, se bem que, no final, todos reclamassem vitória, como era proverbial11 • Daí que esta Cimeira haja ficado para a história sobretudo como a encenação de um verdadeiro psicodrama. Mas se o resultado do Conselho Europeu d e Nice foi inegavelmente decepcionante e o Tratado complexo de concretizar, o futuro das CIG's não se mostrou risonho e promissor. Na prática, foi impossível não tirar a conclusão d e que as CIG's estavam a mostrar-se inoperantes e a banalizar-se perigosamente, comprometendo o processo de construção europeia, bem como a imagem e credibilidade da União. Haviam sido conferências inconclusivas, que se tinham su cedido a um ritmo acelerado, deixando patente à Europa e ao m undo a incapacidade europeia d e construir os consensos necessários para gerir qu estões internas. Por seu turno, os Tratados a que haviam dado origem eviden ciavam também um consequen te e, porventura, inevitável carácter incompleto, assumindo uma tónica transitória. Tratados que, ainda m al assin ados e apen as ratificados, tinham tido o destino traçado, relegados de forma prematura para os anais da história até porque a expectativa e o foco incidiam já sobre aquele outro que, anunciava-se, lhes iria suceder. Acresce que, perante tal voragem p rodu tivista, nem as soluções n egociad as h aviam tido o tempo suficiente de maturação para mostrarem valia, nem a governação europeia c"onseguira reflectir um relacion amento interinstitucional equ ilibrado e sustentado, susceptível de agradar aos cidadãos europeus. 9 Cf. Paulo de Pitta e Cunha, O Tratado de Nice - Um Contributo Modesto para a Construção Europeia, in: A Integração Europeia no Dobrar do Século, Coimbra, Almed ina, 2003, pp.143 e ss.; JeanPaul Jacqué, Droit institutionnel de l'Uníon européenne, Paris Dalloz, 2001, pp. 132 e ss.; John Tilltson, The Nice Treaty: some first impressions, London, European Current Law, January; 2000, XI-XIV. 10 Cf. Giorgio Maganza, Réflexions sur le Traité d ' Amsterdam : contexte général et quelques aspects particuliers, Paris, Annuaíre Français de Droit International, vol. 43, 1997, pp. 657 e ss; Hubert Haenel e François Sicard, Enracíner l'Europe, Paris, Seuil, 2003, pp.17 e ss. ; Maria Eduarda Azevedo, Dupla Leitura de Nice, Negócios Eshmtgeiros, no 1, 2001, pp. 71 e ss. 11 Cf., Pa ulo de Pitta e Cunha, O alargamen to da União Europeia e a Reforma Institucional - O Tratado de Nice, Rev. Ordem dos Advogados, ano 63, Abril de 2003, pp. 51 e ss.; do mesmo Auto1~ O Tratado de Nice - Um Contributo Modesto para a Construção Europeia, in: A In tegração Europeia no Dobrar do Século, Coimbra, Almedina, 2003, pp.143 e ss.; Mar Jimeno Bulnes, La Reforma jurisdicional dei Tratado de Niza, Boletín de Información, n° 1917, 2002, pp .l681 e ss.; Georges Vandersanden, Le sisteme juridictionnel communautaire ap res Nice, Cahíers de Droit Européen, no 1-2, pp. 3 e ss., 2003.
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Afigurava-se assim inevitável o desamor dos cidadãos pela questão europeia, quase esquecidas as verdadeiras razões por que o projecto europeu parecia ter deixado de mobilizar as opiniões püblicas nacionais. Este ambiente vivido na década de 90 parecia encontrar justificação no menor empenhamento quer das instituições europeias, designadamente da Comissão e do seu presidente, quer dos Chefes de Estado e de Governo dos países membros. Era o efeito do muito falado défice de liderança, popularizado na imagem "o avião sem piloto". Neste quadro, era viva a consciência de que, após as discussões travadas em Nice, que tinham culminado com a adopção de uma reforma institucional tímida, urgia promover uma reflexão aprofundada sobre os desafios que, na viragem do século, se colocavam à Europa e a cada um dos parceiros europeus. Mais do que nunca, era a hora de pensar sobre o modelo da Europa, reflectindo sobre a fisionomia política d e uma União Europeia alargada. Na verdade, só uma Europa mais integrada do ponto de vista político poderia não apenas superar as carências e as dificuldades que se faziam senth~ mas também encontrar as respostas adequadas aos desafios colocados pelo mundo globalizado. Ora, o primeiro e mais elementar pressuposto de sucesso desta tarefa residia na restauração da confiança entre os Estados membros, seriamente comprometida pela multip licação de confrontações e a proliferação de sinais dúbios e d erivas hegemónicas. Com efeito, só a reafirmação das finalidades da Europa e, em particular, a renovação dos compromissos por parte dos Estados membros é que podiam contribuir para a dissipação do mal-estar instalado e abrir caminho à recuperação dos laços de confiança. E como segundo pressuposto emergia ainda o imperativo de gerar condições para o estabelecimento de um diálogo franco e aberto entre as instituições comunitárias e os cidadãos europeus, não devendo estes, em cada momento, reputar a intervenção comunitária excessiva e inadequada. Por isso, decorriam ainda as negociações de Nice, já os parceiros europeus, cientes das insuficiências das negociações e antecipando as dificuldades de implementação do novel Tratado, anunciavam uma próxima revisão dos tratados e a convocação de uma outra CIG, em 2004, para debater o futuro da Europa. Um anüncio que, eloquente quanto às limitações do Tratado aprovado em 2000 e ao pouco que aí se havia conseguido reformm~ foi reforçado com a Declaração de Laeken, em que se encerrou a decisão de preparar a reforma dos tratados através da convocação d e urna Convenção em virtude das debilidades do modelo da CIG. Nesta medida abriram-se as portas a uma nova fase da história da Europa, esperando-se da Convenção, como um dos seus instrumentos nucleares, a realização da revisão dos tratados no quadro de uma efectiva aproximação d as instituições aos cidadãos Um quadro em que a Convenção devia debruçar-se, entre outras questões, sobre o processo decisório comunitário, preconizando o envolvimento dos Parlamentos nacionais e, bem assim, o diálogo entre as instituições e os cidadãos, tornando-o mais fácil, mais célere e mais compreensível, a fim de superar o tão
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propalado "défice democrático"12 13. Acresce que com a opção pelo modelo d a Convenção p retendeu-se mostrar ter sido apreendida a lição dos últimos acontecimentos, tanto mais que era previsível que, a par da análise da aplicação do princípio da subsidiariedade e da participação dos Parlamentos nacionais no processo decisório, a Europa devesse ainda enfrentar tanto o balanço do complexo sistema de votação aprovado em Nice, como a complexidade acrescida do Tratado. Deste modo, só muito dificilmente seria possível resistir a pressões para reabrir uma nova discussão de poder, até porque o acordo alcan çado constituía para muitos Estados uma simples etapa intercalar na prossecução da respectiva equação de interesses. Considerando que nas primeiras décadas do novo século a União podia passar de uma configuração de quinze Estados membros, centrada a ocidente, para um projecto envolvendo cerca de trinta parceiros, espraiada sobre a ampla e heterogénea plataforma continental europeia, importava reconhecer que o espírito da União alargada não seria um template da matriz original do espírito europeu, que nas décad as de cinquenta e sessenta animara a construção europeia do após-guerrra. Em síntese: na iminência da unificação da Europa, impunha-se repensar o modo de concretização do projecto europeu e dar passos decididos no sentido da sua refundação. Neste contexto, embora incumbisse à CIG a tomada formal de decisões, para assegurar uma preparação tã.o alargada e compreensível quanto possível do projecto do futuro tratado mostrou-se conveniente explorar o novo modelo de revisão de modo a atingir realmente os objectivos pretendidos à margem da pressão desestabilizadora do formato das últimas Conferências, afastando também o estigma que parecia m aculá-las. Perspectivava-se um figurino não só mais democrático, porque passível de dar voz às opiniões públicas nacionais e ao sentir dos povos europeus, 111as também mais transparente, por contraposição à reserva e opacidade características das negociações diplomáticas. Daí que, em Nice, os Chefes d e Estado e de Governo não tenham hesitado 12
Como Maria Eduarda Azevedo sublinha, O "défice democrático" d a Europa, Renovar n Aposta Europeia, ob. cit., pp. 170 e ss., trata-se de uma situação que um nümero cada vez maior de cidadãos considera inaceitável e pode hipotecar a adesão ao projecto de integração. Assente no binómio Comissão-Conselho, o processo decisório comunitário tem sido acusado de enfermar de "défice democrático", que nem a eleição do Parlamento Europeu por sufrágio universal e directo, nem o processo de co-decisão Parlamento-Conselho conseguiram superar. Por outro lado, com esta invocação pretende-se ainda significar que a transferência de competências dos Estados para a Comunidade não correspondeu à transferência de poderes d os Parlamentos nacionais para o Parlamento Europeu. Neste sentido, Paulo de Pitta e Cunha, A Convenção Europeia, in: A Integração Europeia no Dobrar do Século, ob. cit., pp.ll5 e ss.; Charles Reich, Qu'est-ce que !e deficit démocratique?, Revue du Marché Commun et de l'Union Européenne, n° 343, 1991, pp. 14 e ss. 13 A este propósito importa reter que o Conselho de Ministros, que adopta numerosos actos outrora da competência parlamentar ao nível nacional, é, ele próprio, uma instituição democrática, respondendo os seus membros politicamente perante o respectivo Parlamento nacional.
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em optar pelo modelo da Convenção, legitimando a afirmação de que, se as negociações do Conselho Europeu haviam constituído um claro alerta para os riscos de indefinição que grassavam no seio dos parceiros comunitários, o acordo alcançado sobre a realização de uma ampla reflexão sobre o Futuro da União no seio de uma Convenção, previamente a uma nova CIG, representava o melhor legado deixado aos cidadãos europeus14• 2.3. A Convenção Europeia: Um Novo Espaço de Debate e Construção da Europa
É indiscutível que a escolha do modelo da Convenção para enquadrar a reflexão sobre o futuro da Europa não podia deixar de beneficiar da influência da Convenção que criou a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e, naturalmente, da sua boa prestação. Então, assumida a necessidade de vincular a União a um catálogo de direitos fundamentais e perante a tentativa gorada de adesão formal à Carta Europeia dos Direitos do Homem15, o Conselho Europeu de 1ampere havia incumbido a Convenção - uma entidade ad hoc, com uma composição original, integrada por representantes dos poderes legislativo e executivo ao nível nacional e comunitário- de criar um rol de direitos fundamentais da União. E, na observância do mandato, a Convenção, em estreita e permanente sinergia com os cidadãos europeus, levara a cabo a tarefa, escrupulosamente e dentro do calendário estipulado16• Por isso, após a experiência decepcionante das últimas CIG's, tornou-se natural a vontade de replicar o mesmo paradigma que mostrara já como dar corpo a reformas importantes, mobilizando o conjunto dos Estados e das sociedades civis nacionais, sem sobressaltos, nem atrasos. Daí que a Convenção sobre o Futuro da Europa haja nascido com uma fisionomia idêntica, enquanto uma assembleia política de tónus parlamentar reforçado, combinando os poderes legislativo e executivo, nas dimensões Neste sentido, Kimmo Kiljunen, The European Constitution in the Making, Brussels, Centre for European Policy Studies,2004, pp.29 e ss. 15 Cf. Toth, The European Union and Human Rights: the way forward, Common Mnrket Law Review, n° 3, 1997, pp. 491 e ss.; Pierre Pescatore, La coopération entre la Cour Communautaire, les Juridictions Nationales et la Cour européenne des Droits de l'Homme dans la protection des Droits Fondamentaux. Enquête sur tm probleme virtuel, Revue du Marché Commun et de l'Union Européenne, 11° 466,2003, pp. 151 e ss.; Florence Benolt-Rohmer, L'adhésion de l'Union à la Convention des Droits de l'homme, Revue Universelle des Oroits de l'Homme, n°1-2, 2000, pp.57 e ss.; Fausto de Quadros, Direito da União Europeia, Coimbra, Almedina, 2004, pp.166 e ss.; Frank Hendl'ickx, Fundamental rights in the EU, in: Institutional chnnges and European social policies after the Treatt; ofAmsterdam, The Hague, Kluwer Law International, 1998, pp. 157 e ss. 16 Cf. Henri Labayle, Droits fondamentaux et droit européen, Droit administra til. L'achwlité juridique, n° spécial, 1988, pp. 75 e ss.; Brian Bercusson, Interpreting the EU Charter in the context of the social dimension of European integration, in: European Labour Law and the Charter of Fundamental Rights, Brussels, ETUL, 2002, pp.9; António Goucha Soares, A Carta dos Direitos Fundamentais dn União Europeia, Coimbra, Coimbra Editora, 2002. 14
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nacional e comunitária, associando de forma inovadora representantes do Governo e dos Parlamentos dos países candidatos à adesão. Um original"mix" de representação que visou o fortalecimento da dupla legitimidade democrática -legitimidade de Estados e de Povos -, que se pretendia ver não só acolhida, mas também reflectida no futuro Tratado17• Deste modo, questionando os cânones do direito e da política, a Convenção não foi, definitivamente, nem um "think tank", nem um mega Grupo de Sábios para a realização de um "brainstorming", sem capacidade de decisão e onde tudo ficasse em aberto. Não foi igualmente uma assembleia constituinte, afastada a hipótese de representar no espaço europeu o embrião de uma democracia supranacional inerente a um modelo federat verdadeiramente inexistente na prática. Mas esta fórmula procurou responder, e em definitivo, às críticas dos que acusavam a União de realizar reformas e promover medidas que não correspondiam aos anseios e às prioridades dos cidadãos, sem suprir o clima de indiferença que grassava sobre o rumo do projecto europeu. Por isso, ainda sob a influência da verdadeira "Caixa de Pandora" aberta pelas negociações de Nice, os debates da Convenção iniciaram-se naturalmente com a afirmação e a defesa dos valores nucleares que moldam o projecto europeu e estimulam a confiança não só entre os parceiros europeus, mas também entre a União Europeia e os seus cidadãos. E, depois de assumida a partilha de um leque de valores e objectivos comuns, teve como primeira prioridade a identificação não só do papel que os cidadãos desejam para a União no mundo globalizado, mas também das razões do desencanto com o projecto europeu. Nestes termos, ao configurar um amplo e participado esp aço d e discussão de ideias e d e formulação de p ropostas sobre o futuro modelo político d a Europa, a Convenção teve o mérito incontornável d e tirar esse debate d o círculo tradicional e restrito das elites e dos especialistas, esboçando a respectiva abertura aos cidadãos. 3. O Papel dos Parlamentos Nacio nais 3.1. Enquadramento
Na Convenção sobre o Futuro da Europa, os Parlamentos nacionais foram simultaneamente agentes e objecto da reforma empreendida. De facto, nunca como até então lhes havia assistido uma missão tão substantiva no quadro da construção europeia. De ratificadores dos Tratados, os Parlamentos nacionais assumiram no decurso dos trabalhos um papel criativo, apresentando directamente propostas 17
Cf. António Vitorino, A Constituição europeia: que novas perspectivas para a UE?, in: A Constituição Europeia. Que novas perspectivas para a União Eumpeia?, Cascais, Principia, n° 13-14. 2003, pp. 9 e ss.; António Covas, Portugal e a Constituição Europeia, Lisboa, Edições Colibri, 2003, pp.167 e ss.; Peter Olivier The convention on the future of Europe: the issues and prospects, in : The Treaty of Nice and Beyon.d, Oxford, Hart Publishing, 2003, pp. 10 e ss.
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em nome dos seus eleitores. Por outro lado, a coberto do apelo à superação do "défice democrático", viram-se associados, enquanto parceiros, ao processo de tomada de decisão comunitária no quadro da nova arquitectura institucional europeia. No Tratado de Nice, as câmaras legislativas nacionais haviam já merecido uma atenção especial, facto que justificara o Protocolo n° 13 em que lhes foi conferido algum relevo, se bem que tímido, no âmbito do processo decisório europeu. Deste modo, coube ao mandato de Laeken para revisão dos tratados retomar a questão da equação Parlamentos nacionais/processo decisório europeu, então de forma mais consequente. Na verdade, a Convenção, que se posicionou como o pólo dinamizador de uma verdadeira refundação da Europa - mediante um processo aberto, transparente e amplamente participado pela sociedade civil e, por conseguinte, credor de um lugar insubstituível na história, promovendo vigorosos debates sobre as opções políticas fundamentais da União no século XXI -, não podia ignorm~ do ponto de vista institucional e da cidadania europeia, quer a função dos Parlamentos nacionais no âmbito da tomada de decisão comunitária, quer a cooperação interparlamentar. É que, na prática, o processo de integração europeia tem originado uma progressiva e crescente transferência do poder legislativo dos Parlamentos nacionais para os Governos reunidos em Conselho, provocando por conseguinte o seu afastamento do "core" da tomada de decisão comunitária. Deste modo, mostrava-se premente fazer do efectivo envolvimento dos Parlamentos nacionais no processo de tomada da decisão europeia um ponto fulcral seja da reforma da arquitectura institucional da Europa, seja do processo decisório. Uma associação susceptível de contribuir não apenas para melhorar a qualidade democrática da decisão comunitária, mas também, e muito em particula1~ para gerar nos povos europeus e nas opiniões públicas nacionais sentimentos de pertença e partilha em relação ao projecto europeu, desenvolvendo um salutar clima de cumplicidade, indispensável para o sucesso das apostas políticas que se antevêem. Aliás, o esforço de aproximação dos cidadãos à Europa corresponde a um processo de grande envergadura, convocando um largo espectro de acções orientadas quer para uma maior abertura, transparência e democraticidade das instituições e uma maior inteligibilidade da decisão comunitária, quer para uma maior eficácia do princípio da subsidiariedade, assumindo a definição de "quem faz o quê" um carácter basilar no quadro de uma renovada partilha de competências entre os níveis comunitário e nacional, em ordem a produzir impacto e eficácia política, quer ainda para tornar mais real o envolvimento dos Parlamen tos nacionais na fiscalização política permanente ao nível da decisão europeia. De facto, não pode haver coesão efectiva e duradoura na União, nem uma autêntica democracia ao nível comunitário sem que os Parlamentos nacionais, no exercício das suas competências e na assunção das suas responsabilidades, partilhem do poder legislativo de forma estruturada, permanente e equilibrada
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com as instituições europeias. Ora, observa-se que os cidadãos europeus, quando se sentem "perdidos" na complexa teia de procedimentos comunitários, é para os seus representantes políticos que direccionam a contestação, reivindicando apoio e reclamando maior responsabilidade. Por esta razão, os Parlamentos nacionais sentem que hão-de aperfeiçoar os mecanismos de controlo exercidos sobre os respectivos Governos em matéria europeia, na certeza de que a superação das limitações à sua capacidade de intervenção é susceptível de concorrer para emprestar maior vitalidade democrática ao processo europeu. Todavia, os Parlamentos nacionais vêem-se, em regra, a braços com um paradoxo: apesar da importância crescente da legislação comunitária na vida dos cidadãos e, bem assim, do reconhecimento de que o direito comunitário é parte integrante do direito nacional, as questões europeias persis tem em manter-se como "assuntos estrangeiros", circunscrevendo-se a intervenção das Câmaras parlamentares, por norma, a um controlo posterior às negociações e à ratificação dos diplomas de direito comunitário transpostos para o direito interno de cada país membro. Por isso, atendendo a um envolvimento real e efectivo dos Parlamentos nacionais, a Convenção perspectivou a especial valia seja de um diálogo p ermanente dos ramos legislativo e executivo no plano nacional, seja de uma estreita cooperação com o Parlamento Europeu, numa linha de acção complementar, não concorrente, visando o aprofundamento da supervisão sobre os Executivos, comunitário e nacionais, e o desenvolvimento de melhores e mais profícuas formas de articulação e coordenação 18 . 3.2. As Vertentes da Mudança 3.2.1. O Reforço da Fiscalização Política A p articipação dos Parlamentos n acionais envolve, desde logo, o reforço d a fiscalização política sobre a posição dos Governos em matéria europeia. Deste modo, compete a cada Parlamento gerar as condições mais ajustadas para que esse escrutínio seja pleno, cabal e eficaz. E o cumprimento de semelhante desiderato releva de forma substantiva do foro interno de cada Estado m embro, sendo patente, no cotejo da situação dos parceiros europeus, a existência de diferentes sistemas, uns mais efectivos, ágeis e sistemáticos do que outros. Tal não significa, porém, que se almeje a uniformidade quanto ao modo de actuação dos Parlamentos nacionais no espaço europeu. De facto, moldada à luz da organização institucional da repartição de competências adoptada por cada Estado, não é crível, nem desejável, um esforço de harmonização da fiscalização parlamentar entre os Estados membros. 18
Cf., Sean Van Raepenbusch, La Reforme Institutionnelle du Traité de Lisbonne: L'Émergence Juridique de L'Union Européenne, Cahiers de Droit Européen, n"s 5-6,2007, pp. 599 e ss.
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Todavia, isso não é impeditivo de que, do confronto dos modelos existentes, não se retirem pistas quanto à definição de um leque de "Boas Práticas" susceptíveis de tornarem mais eficaz e fácil a função de controlo parlamentar, aumentando a sua qualidade no conjunto europeu. Afinal, na ausência de um modelo ideal susceptível de aplicação universal, é importante um Código de Boas Práticas passível de acolhimento genérico, sem violação da independência e autonomia de cada um, mas que se possa constituir em solução válida no interesse de cada Estado membro, dos cidadãos e do próprio projecto europeu . Por sua vez, a operacionalidade da intervenção dos Parlamentos nacionais pressupõe também que, além da abertura e publicitação das reuniões do Conselho de Ministros - mormente quando investido da função legislativa - , a Comissão promova a respectiva inscrição no seu "mailing", de modo a fazer-lhes chegar directamente e sem delongas - não por via dos Executivos nacionais - o programa anual, os projectos de diploma e ainda os documentos de consulta. 3.2.2. A Cooperação Interparlamentar O reforço do p apel dos Parlamentos nacionais na decisão europeia depende igualmente da intensificação do diálogo e da cooperação interparlamentares . Nesta medida, mostrou-se inadiável equacionar a posição da COSAC em ordem a torná-la mais operativa e eficaz, melhorando a natureza e a qualidade dos seu s contributos. Esta, aliás, a via reputada mais ajustada para responder à reivindicação insistente de reforma desde órgão especializado em assuntos europeus criado em 1989. Com efeito, o intercâmbio de experiências e a cooperação entre os Parlamentos n acionais e europeu são domínios em que a COSAC possui uma inegável vantagem comparativa que não deve ser desperdiçada19 • Uma situação que justificaria ora uma designação mais clara e, sobretudo, inteligível para o cidadão, de modo a tornar a sua presença mais acessível e justificada, ora a sua institucionalização20 • Mas a este respeito a Convenção não teve o necessário "golpe de asa" e a coragem política suficiente para enfrentar o fantasma que pairava sobre a institucionalização da COSAC, invocando-se que podia dar cobertura à criação, indirecta ou mediata, de uma nova instituição- uma segunda Câmara -, integrada por deputados dos Parlamentos nacionais. Em boa verdade, tratava-se de uma proposta que concitava uma oposição alargada, com base no argumento de que iria contribuir para aumentar a complexidade do sistema decisório, provocar a centralização europeia e significar um recuo histórico, com o regresso dos Cf., Stefano Martinelli, Le Rôle des Parlements nationaux dans l'archicteture européenne, Revue du Droit de l'Union Européenne, n° 4, 2004, pp. 753 e ss.; Houser Mattieu, La COSAC - une instance européenne à la croisée des chemins, Revue du Droit de l'Union Européenne, no 2, 2005, pp. 343 e ss. 2 °Cf., Maria Eduarda Azevedo, Os Parlamentos Nacionais e a Qualidade Democrática da Decisão Europeia, Europa. Novas Fronteiras, n°s 13-14, Centro de Informação Europeia Jacques Delors, 2003, p. 30. 19
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Parlamentares nacionais ao desempenho simultâneo de um mandato europeu. Um temor absolutamente infundado que, no entanto, fez o seu caminho e condicionou a Convenção, inibindo-a de reformar e revigorar a COSAC. Não obstante, a COSAC poderia sempre merecer uma referência expressa no articulado do futuro tratado. Contudo, na prática o entendimento foi outro, havendo-lhe sido reservada uma breve menção ao nível de um protocolo anexo. E se do ponto do vista jurídico a solução encontrada não encerra qualquer sinal de menorização, visto o protocolo gozar da mesma força vinculativa que o resto do tratado, já sob o prisma político a inserção sistemática não é indiferente, uma vez que a consagração no articulado não iria deixar de contribuir decisivamente para reconhecer à COSAC e às suas deliberações maior importância, atribuindo-lhes um carácter vinculativo, por contraponto com a natureza meramente informativa e o fraco alcance político de que dispõem. Então ficaria reflectida e relevada a dimensão parlamentar desta estrutura no âmbito do processo decisório europeu, abrindo-se o caminho à previsão de um dever de diálogo entre a COSAC e o Conselho21• Ora, como o projecto europeu se faz segundo o método gradual, a progressão na senda de relações interparlamentares mais estreitas e intensas corresponde a um passo suplementar no sentido de um envolvimento progressivamente mais reforçado e consciente d os Parlamentos nacionais no processo de decisão europeia. 3.3. Os Parlamentos Nacionais e o Princípio da Subsidiariedade 3.3.1. O Princípio da Subsidiariedade Ao longo de quase meio século de existência, a Comunid ad e tem passado a intervir de forma crescente e continuad a em praticamente todos os domínios da vida dos cidadãos. Intervenções que não deixam de suscitar muitas vezes nas opiniões públicas nacionais o sentimen to de que se trata de acções porventura excessivas, senão mesmo de valia questionável. Daí que a Convenção, com o in tuito de conferir maior transparência e responsabilidad e à vida comunitária, haja retomado o p rincípio da subsidiaried ade criado pelo Tratado de Maastricht e reafirmado em Protocolo ao Tratado d e Amesterdão22, visando identificar "quem faz o quê" em matéria europeia ao nível dos vários escalões de poder, um assunto que se tom ou, afinal, uma questão fulcral para os cidadãos europeus. Nesta medida, além de procurar aproximar cidad ãos e decisores políticos, emprestando maior racionalidade, celeridade e eficácia às acções a empreender, a subsidiariedade transformou-se num poderoso instrumento d o novo paradigma 21
Cf., Maria Eduarda Azevedo, Os Parlamentos Nacionais e a Q ualidade Democrática da Decisão Europeia, Europa. Novas Fmn teiras, n"s 13-14, ob. cit., p.31. 22 Cf., Vlad Constantinesco, Les Compétences et le Principe de Subsidiarité, Revue Trimestrielle de Droit Européen, n" 2, Avril-Juin 2005, pp. 305 e ss.
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de decisão, mais democrático e ajustado às exigências da governação no mundo moderno23 . Contudo, ao tratar-se de um princípio que respeita ao exercício das competências, não às competências propriamente ditas, não chegava separar as águas - competências da União, por um lado, e competências dos Estados, por outro - , proclamando que a União há-de intervir apenas nos domínios de competências par tilhadas com os Estados se e quando estes não puderem atingir devidamente os objectivos p ropostos24 • Embora se haja feito sempre a apologia do princípio, o certo é que, de Maastricht à Convenção, a União pouco mais fizera senão teorizar. Por isso, duas décadas volvidas sobre a sua criação, faltava ainda uma análise séria e rigorosa para melhorar a aplicação do princípio, o seu acompanhamento e a sua fiscalização política e jurisdicional. No entanto, não restavam dúvidas de que só uma aplicação correcta da subsidiariedade, bem como da proporcionalidade, secundada por mecanismos de apuramento da sua observância, é que ia permitir à União, aos Estados e aos cidadãos aproveitar o seu potencial. Por isso, face à necessidade de aprofundar a questão da subsidiariedade e da proporcionalidade25, melhorando a eficácia destes princípios, e, ainda, de colmatar as lacunas existentes e já detectadas, em Laeken foi tomada a decisão de promover a sua inclusão no pacote de matérias que requeriam uma reflexão aturada. Porém, não obstante a convicção de que o princípio da subsidiariedade devia ser mais do que um mero título, a reflexão não devia ancorar-se na elaboração de listas de assuntos por níveis de decisão26 • Semelhante abordagem de carácter quantitativo até podia afigurar-se, no imediato, o método mais indicado para um projecto de resposta ambicioso. Porém, esta leitura, embora válida na aparência, na prática ia corresponder a um esforço inglório. A prazo, a emergência inevitável de lacunas, fruto do ajustamento das competências d a União às mutação políticas, económicas e sociais acabaria por revestir um devastador efeito babilónico, dificultando que tanto a União, como os Estados decidissem se deviam/podiam agir. Ao mesmo tempo, caso fosse privilegiado este tipo de abordagem, estar-se-ia a dar o beneplácito a uma solução totalmente divorciada do propósito que ditara a consideração da importância do princípio. 23
Cf. Ernst Gottfried Mahrenholtz, Subsidiarité et Débat Démocratique, Éléments Indispensables d' un Espace Juridique Européen, Revue du Marché Commun et de l'Union Européenne, n" 438, 2000, pp. 323 e ss.; Francette Fines, Subsidiarité et Responsabilité, Revue des Affaires Européennes, n°s 1-2, 1998, p p. 95 e ss. 24 Cf. Gareth Davies, Subsidiarity: The Wrong Idea, in the Wrong Place, at the Wrong Time, Common Market Law Review, vol. 43, n" 1, 2006, pp. 63 e ss. 25 Cf. Nicolas de Sadelleet~ Le Príncipe de Proportionnalité: un Cheval de Troie du Marche Intérieur?, Revue des Affaires Européerm es, n"s 3-4, 1999, pp. 374 e ss. 26 Cf. Jan H . Jans e Joanne Scott, The Convention on the Future of Emope: an Environment Perspective, Journal ofEnvironmental Law, vol. 15, n° 3, 2003, pp . 323 e ss.
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Mas assumido que o esquema, tanto ao nível da União, como dos próprios Estados membros, seja no capítulo da aplicação, seja em matéria de controlo, não primava pela eficiência, tornou-se irrecusável a decisão de agir sobre todo o processo a fim de propor melhorias genéricas e globais27 • 3.3.2. Os Parlamentos Nacionais na Aplicação do Princípio da Subsidiariedade Na convicção da inevitabilidade da reforma, determinou-se que os novos mecanismos a introduzir deviam respeitar um leque de regras fundamentais: a não criação de novas instituições; a manutenção das linhas-mestras do processo legislativo comunitário, no respeitante à duração e ao grau de complexidade; a não sujeição a novas burocracias; e, ainda, a não geração de situações de bloqueio. Deste modo, a reforma atacou três questões essenciais: como reforçar a consideração e aplicação dos princípios dasubsidiariedade e da proporcionalidade logo na fase de elaboração e análise das propostas de actos legislativos; como tornar mais efectivo o controlo da observância do princípio; e, ainda, como alargar as possibilidades de recurso ao Tribunal de Justiça. Quanto à primeira questão, sendo a Comissão titular do direito d e iniciativa e primeira responsável pela observância destes princípios, a Convenção fez impender sobre o Executivo comunitário os deveres de consulta a todos os intervenientes no processo legislativo e, bem assim, de anexar a cada proposta uma ficha explicativa, com indicadores quantitativos, incluindo de carácter financeiro, para aquilatar da sua observância. Em relação à segunda matéria, propôs-se a criação de um mecanismo inovador de alerta rápido28 - "early warning system" -, para os Parlamentos nacionais accionarem sempre que presumam não haver sido respeitada a subsidiariedade ou a proporcionalidade. Trata-se de um audacioso mecanismo de controlo político ex ante que, ao configurar uma relação entre os Parlamentos nacionais e a Comissão, representa um elemento de grande relevo no âmbito da futura organização institucional europeia, ficando as Câmaras parlamentares nacionais, ainda que não legisladores, associadas, pela primeira vez na história da construção da Europa, ao processo legislativo europeu. Nesta senda, para um desempenho cabal da nova missão, os Parlamentos nacionais devem receber da Comissão, directamente e em simultâneo com o Conselho de Ministros e o Parlamento Europeu, as propostas de carácter legislativo. Acresce que, como a apresentação do programa legislativo anual da Comissão representa uma oportunidade importante para um primeiro debate sobre a subsidiariedade e a proporcionalidade, é desejável a sua discussão tanto pelo Parlamento Europeu, como pelos Parlamentos nacionais. 27 Cf.,
Verina Seiler, Subsidiarité et Validité dans l'Ordre Juridique Européen, Revue lnl:erdisciplinaire d' Etudes Juridiques, no 55, 2005, pp. 189 e ss. 28 Cf., José Martín y Pérez de Nanclares, E! Projecto de Constitución Europea: Reflexiones sobre los Trabajos de la Convención, Revista de Derecho Comunitário Europeo, afio 7, n° 15, 2003, pp. 550 e ss.
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Deste modo, o mecanismo de "alerta rápido" foi concebido para viabilizar que qualquer um dos Parlamentos nacionais, antecipando-se à entrada em vigor dos actos legislativos comunitários, exerça o controlo democrático sobre a correcta aplicação dos princípios da subsidiariedade e proporcionalidade. Então, na hipótese de se pronunciar pelo não acatamento, terá seis semanas para dirigir ao Parlamento Europeu, ao Conselho de Ministros e à Comissão um parecer fundamentado com as razões da apreciação negativa. E sendo considerado pertinente e tiver correspondência com a vontade legítima dos Estados, podem também ser encetadas consultas junto dos órgãos regionais com competência legislativa. Desencadeado o procedimento de "alerta rápido", no caso de concitar a actuação colectiva de 1/3 dos Parlamentos nacionais, a Comissão é obrigada a reexaminar a proposta, podendo decidir pela sua manutenção, retirada ou reexame. Este mecanismo, que coloca todos os Parlamentos nacionais em pé d e igualdade, favorece a análise das propostas legislativas da Comissão e garante que o legislador assume, em consciência, a importância da subsidiariedade e da proporcionalidade. Por outro lado, cumpre também realçar que a atribuição aos I'arlamentos nacionais desta função de controlo ex ante não corresponde à criação de instituições ou órgãos novos. No final, havia ainda que combinar este controlo político com um controlo jurisdicional ex post. Contudo, acabou por não ser reconhecido aos Parlamentos nacionais o direito de recurso directo para a instância jurisdicional europeia, pelo que, a existir, o recurso há-de ser interposto através do Executivo de cada Estado membro. 4. Do Projecto de "Tratado Constitucional" ao Tratado de Lisboa No final, a Convenção, ao invés de apresentar o trabalho realizado como um projecto de tratado unificador, preferiu antes introduzi-lo sob as vestes de uma constituição para a Europa, qual pilar de uma futura união política de Estados em moldes federais. É certo que o direito das Comunidades Europeias evidencia traços federais inequívocos, mormente a consagração do primado do direito comunitário sobre o direito nacional, mesmo de natureza constitucional, ou o processo integrativo da área económica, em contraste, aliás, com a integração política que continua a acusar avanços integracionistas lentos e titubeantes29 • No entanto, para se falar de Constituição em sentido material seria indispensável a expressão directa de um poder constituinte europeu, não o mero poder reflexo emergente da outorga dos tratados pelos Governos. Daí manter-se a prevalência do carácter confederal, se bem que mesclado com sinais insuspeitos de supranacionalidade, proporcionando um quadro em que à Convenção sobre o
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Cf., Paulo de Pitta e Cunha, Reservas à Constituição Europeia, Coimbra, Almedina, 2005, pp. 66 e ss.
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Futuro da Europa faltava a legitimidade para propor essa mutação. Neste contexto, aventurar a ideia de uma Constituição para a Europa não iria deixar de abrir uma discussão acesa sobre a criação do Estado europeu sob uma capa federal, na certeza de que então o debate iria centra-se no apuramento do interesse e da conveniência em trilhar semelhante caminho30. Acresce que a experiência dos Estados europeus ensina que as constituições nacionais são criadas ou revistas no seio de assembleias saídas de eleições por sufrágio universal e directo. Ora, tal não foi decididamente a situação do texto elaborado pela Convenção sobre o Futuro da Europa. Daí que o projecto não devesse ter sido proclamado como raiz de um tratado constitucional, designação que os povos europeus não estavam aliás preparados nem para compreender, nem para acolher. Melhor teria sido destacar o cumprimento escrupuloso de um mandato ambicioso e exigente, não deixando que certos protagonismos pessoais 31 comprometessem a leitura, o alcance e o contributo do projecto de tratado para a dinâmica da construção europeia32. Nesta medida, perante o clima pouco favorável aos avanços federais intuídos nos trabalhos da Convenção, a rejeição do projecto de tratado pelos referendos francês e holandês pareceu condenar inevitavelmente ao fracasso o produto desta experiência singular33 • Diga-se em abono da verdade que o desfecho da consulta ao eleitorado em França teve por detrás preocupações de desvirtuamento do modelo sacioeconómico nacional, fruto do efeito dos fenómenos de deslocalização e da concorrência movida por países mais competitivos mas cuja mão-de-obra não goza de protecção ou benefícios equivalentes à dos trabalhadores franceses34• No cômputo geral, estes argumentos vieram a pesar mais do que o impacto das mudanças propostas pelo projecto de tratado, que pareciam afectar menos o quotidiano e os interesses imediatos dos cidadãos. No caso holandês dominou essencialmente o receio dos cidadãos de verem consagrado o ascendente dos Estados grandes, uma leitura que espelhou as preocupações identitárias d e um país pequeno, diluído numa Europa muito vasta e em risco de ver reduzido o seu peso específico. Todavia, independentemente das verdadeiras motivações expressas nas duas consultas populares, o certo é que o receio de um desfecho de idêntico em novas consultas populares aconselhou uma reflexão atenta sobre a evolução da Europa e sugeriu o desenvolvimento de um diálogo consciente com os cidadãos. 30
Cf., Brendan P. G. Smith, Constitu.tion building in the European llnion: the process of the Treatt; reforms, The Bague, Kluwer Law International, 2002, pp, 185 e ss. 31 O protagonismo de quem queria figurar na galeria dos "pais da Europa", 32 Esta a posição que tive a oportunidade de defender enquanto membro da Convenção, em representação da Assembleia da República. 33 Paulo de Pitta e Cunha, Um Salto em Falso, in: A Crise da Constituição Europeia, Coimbra Almedina, 2005, pp.57 e ss. 3' O eleitorado francês, atento ao facto de se tratar porventura da última revisão dos Tratados, e apercebendo-se da impossibilidade prática de se reve1~ no futuro, a Constituição europeia, em virtude das exigências de unanimidade dos Estados, ter-se-á manifestado contra a perspectiva liberal consagrada.
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Então, perante um Tratado virtualmente morto, a Presidência alemã, em Junho de 2007, justificando as razões que fazem do país um dos motores da construção da Europa, tomou a iniciativa de propor um "Tratado Reformador", privado da referência constitucionat e no qual seriam inseridas as alterações em sede institucional a introduzir nos Tratados vigentes, sem visar a sua revogação. Abriu-se assim um período de reflexão, aproveitado ainda para fomentar debates a nível nacionat envolvendo a participação de cidadãos, parceiros sociais, Parlamentos nacionais e partidos políticos, reafirmado uma vez mais o imperativo de intensificar e alargar um debate mobilizador, sem perder do horizonte a existência de um impasse institucional à espera de uma solução apropriada e urgente35 • No termo do interregno, à CIG foi conferido o mandato de redigir o projecto do Tratado Reformador, cuja execução coube a Portugat no exercício da presidência, através do desenvolvimento de uma complexa e aturada negociação diplomática centrada, essencialmente, no prudente expurgo dos sinais mais claramente federais. No final, o projecto de Tratado submetido ao CE de Lisboa foi, no essencial, a reprodução do tratado "constitucional"36 . Então, o Tratado de Lisboa, herdeiro não só da clarificação das categorias de competências da União, mas também da sua possível devolução para o patamar nacionat reforçou os poderes de controlo dos Parlamentos nacionais que podem gozar de condições para desempenhar uma função mais afirmativa na construção europeia em defesa do princípio da subsidiariedade, em consonância com a legitimidade que detêm e a responsabilidade política que assumem perante os cidadãos eleitores. E posteriormente, já no quadro da tormentosa caminhada para a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, coube ao Tribunal Constitucional alemão contribuir para fazer do dossier Parlamentos nacionais uma pedra vital na mecânica decisória europeia, ao considerar o Tratado compatível com a Lei Fundamental alemã desde que o país alterasse a legislação interna que regula o acompanhamento do processo de integração europeia por parte das duas Câmaras do Parlamento. Nesta medida, a Alemanha, impulsionada pelos Uinder, que encaravam a atribuição de competências à Comissão como uma forma de subverter os equilíbrios internos do próprio modelo federal, fez depender a aprovação do Tratado da participação dos Parlamentos nacionais no processo decisório da União, colocando assim o tema no centro dos debates. Com efeito, sempre que estava em causa abordar no plano comunitário matérias emergentes das competências dos Estados federados, delas era interlocutor exclusivo o Governo Federal nos Conselhos de Ministros europeus. Cf., Paulo de Pitta e Cunha, O Congelamento das Grandes Questões Europeias, in: A Crise da Construção Europeia, ob. cit., pp. 67 e ss.; do mesmo Auto1~ Direito Europeu. Instituições e Políticas da União, Coimbra, Almedina, pp. 347 e ss. e O Tratado de Lisboa. Génese, Conteúdo e Efeitos, Coimbra, Almedina, 2008, pp. 19 e ss. 36 Cf., Sean Van Raepenbusch, La Reforme Institutionnelle du Trailé de Lisbonne: l'Émergence Juridique de l'llnion Européenne, ob. cit., pp. 577 e ss.; Carla Amado Gomes, O Tratado de Lisboa, Revista do Ministério Público, n° 114, 2008, pp. 7 e ss. 35
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Por isso, desapossados da capacidade de intervenção, os Liinder não viam como prevenir a escalada de reforço das competências europeias sem que tivessem a possibilidade de emitir uma palavra decisiva. Daí que, no uso da faculdade conferida pelo futuro Tratado, o Tribunal Constitucional, em Junho de 2009, tenha acabado por determinar a necessidade de a legislação se ajustar ao novo mecanismo, fazendo depender a ratificação do Tratado da realização das adaptações necessárias. Está em causa, sem margem para dúvidas, um importante alerta a todos os Parlamentos nacionais no que concerne aos poderes acrescidos agora conferidos pelo Tratado de Lisboa. Deste modo, afigura-se que acabam finalmente por estar preenchidas as premissas para concretizar a máxima de Jean Monnet "Não coligamos os Estados, unimos os Povos" .
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Patricia Daehnhal'dt
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Resumo: O artigo analisa as transformações da política europeia da Alemanha e questiona a visão convencional da Alemanha como um estado europeizado. Num contexto de simultaneidade de crises europeias, principalmente a crise das dívidas soberanas da zona euro, a Alemanha afirma-se mais assertiva na defesa dos seus interesses. Partindo dos conceitos de 'Europeização', 'downloading' e 'uploading' na interacção entre as instituições europeias e o contexto doméstico alemão, argumenta-se que a Alemanha percorre actualmente uma reconceptualização dos seus interesses e da sua identidade internacional, com implicações para a solidez da solidariedade intra-europeia e o futuro do próprio projecto europeu. Palavras-chave: Europeização I 'downloading' I 'uploading' I política europeia alemã I crise das dívidas soberanas.
Abstract: The article examines the transformation of German European policy and questions the conventional view of Germany as a Europeanized state. ln a context of simultaneous crises in Europe, especially the sovereign debt crisis of the eurozone, Germany has become more assertive in defending its interests. On the basis of the concepts of 'Europeanization', 'downloading'and 'uploading' regarding the interaction between European institutions and the German domestic context, it is argued that Germany is currently reconceptualizingits interests and its international identity, with implications for the strength of intra-European solidarity and the future of the European project itself. Keywords: 'Europeanization' l'downloading' I 'uploadíng' I German European policy I sovereign debt crisis.
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A transformação da política europeia da Alemanha O papel da Alemanha como Estado europeu cada vez mais auto-confiante e assertivo na política internacional foi conseguido principalmente através de sua posição de actor chave dentro da União Europeia.1 Por causa de uma forte congruência entre interesses e identidades alemães e as instituições europeias, a Alemanha tem sido tradicionalmente retratada como um 'estado europeizado'. 2 Mas recentemente esta reputação da Alemanha tem sido contestada por alguns (Hellmann et al. 2005) e a atitude de Berlim face à crise das dívidas soberanas na zona euro, desde 2010, levantou sérias dúvidas sobre a manutenção do compromisso alemão para com a Europa e a solidariedade que a Alemanha está disposta a prestar como principal motor económico na UE. Este artigo questiona a visão convencional da Alemanha como um estado europeizado e analisa as causas para as mudanças que se têm vindo a verificar na política europeia alemã (PEA). Em que medida é que diminuiu a convergência política, e aumentou a resistência junto das elites políticas alemãs quanto à adaptação de preferências políticas da UE e quais são os limites daí resultantes para a europeização? Para tal será contextualizada a dinâmica doméstica aquando do processo que levou à assinatura do Tratado de Lisboa (TL) pela Alemanha até à posição de Berlim sobre a actual crise das dívidas soberanas da zona euro. À luz do disposto pelo Tratado de Lisboa e da posição do Tribunal Constitucional Federal, por um lado, e as posições assumidas pelas elites políticas em relação à crise da zona do euro, por outro lado, o artigo sugere que esses factores confirmam a afirmação de uma Alemanha mais auto-confiante quanto às suas práticas de europeização convencional para um reflexo mais unilateralista e uma política europeia orientada acima de tudo para o interesse nacional. O argumento d efen dido é que a Alemanha percorre actualmente uma clara reconceptualização dos seus interesses e da sua identidade internacional, com implicações para a solidez da solidariedade intra-europeia e o futuro do próprio projecto europeu.
1
Este artigo é parcialmente adaptado de Patricia Daehnhardt, 'Germany in the European Union', in Reuben Wong and Christopher Hill, eds (2011), National nnd European Foreign Policy: Towards Europennization, Routledge, 2011. 2 A caracterização da Alemanha como um Estado Europeanizado encontra-se em: J. Andersen (2005). 'Germany and Europe: Centrality in the EU', in S. Bulmer and C. Lequesne (eds.) The Member Stntes of the Europenn Union. Oxford: Oxford University Press, 77-96; S. Bulmer (1997). 'Shaping the Rules? The Constitutive Politics of the European Union and German Power', in Peter Katzenstein (ed.). Tamed Power. Germnny ín Europe. Ithaca and London: Cornell University Press, 49-79; S. Bulmet~ C. Jeffery and W. Paterson (2000). Germany's European Diplomncy: Shaping the Regional Milieu. Manchester: Manchester University Press; K. Dyson and I<.H. Goetz, eds. (2003). Germany, Europe and the politics of constraint. Oxford, New York: Oxford University Press; K. Goetz (1996). 'lntegration Polícy in a Europeanized State: Germany and the IGC', Journal of European Public Policy, 13/1; P. Katzenstein (1997). 'United Germany in an Integrating Europe', in P. Katzenstein (ed.). Tnmed Power. Germany in Eumpe. Ithaca and London: Cornell University Press, 1-48.
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Enquadramento conceptual
Para podermos analisar as mudanças na política europeia alemã (PEA) iremos recorrer ao conceito analítico de 'Europeização? De uma forma genérica, europeização implica um considerável grau de identificação entre as políticas de um Estado Membro e as instituições europeias, sugerindo graus de convergência e divergência política, em ambas as dimensões de 'top-down' ou downloading e de 'bottom-up' ou uploading. Inicialmente o conceito foi entendido como a influência das instituições europeias para superir as assimetrias entre Estados membros e produzir uma mudança na política interna dos mesmos. Hix e Goetz definiram a europeização como 'um processo de mudança na legislação nacional de práticas institucionais e políticas que pode ser atribuído à integração europeia '(Hix e Goetz 2000:27). Radaelli caracterizou a europeização corno um conjunto de 'processos de construção, (b) difusão e (c) institucionalização de regras formais e informais, procedimentos, paradigmas de políticas, estilos, maneiras de fazer as coisas e as crenças compartilhadas e normas que são primeiramente definidos e consolidados na tomada de decisões da UE e, em seguida, incorporados na lógica dos discursos internos, identidades, estruturas políticas e políticas públicas' (Radaelli 2000:4). Featherstone e Radaelli definiram europeização como um processo inerentemente assimétrico, com uma qualidade dinâmica: 'os seus efeitos estruturais não são necessariamente permanentes ou irreversíveis. (...)O impacto da europeização é tipicamente gradual, irregular e desigual ao longo do tempo e entre estruturas locais, nacionais e subnacionais' (Featherstone e Radaelli 2003:4). Vink e Graziano alargaram o âmbito conceptual sugerindo que a europeização deve ser teorizada para responder 'como as políticas europeias, regras e normas estão a afectar os sistemas políticos domésticos' (Vink e Graziano 2006:12). Para outros, a 'Europeização não é inevitavelmente um processo verticat com a ocorrência de uploading e downloading, mas crescentemente um processo horizontal, onde as instituições supranacionais são fracas e os Estados-Membros continuam a ser os principais intervenientes, com a europeização a veicular uma 'coordenação reflexiva' entre governos nacionais (Bulmer e Lequesne 2005:345) ao invés de agir como uma variável independente. Mais recentemente, Ladrech explicou a direção 'de cima para baixo' da "europeização", como 'a maneira através da qual um estado responde a dinâmicas exógenas e endógenas, [que são] muitas vezes condicionadas por regras e processos da UE (2010:21 Ladrech). Mesmo assim, para este autor a pesquisa sobre a europeização está agora num ponto em que 3
Existe uma vasta bibliografia sobre 'Europeanization': S. Bulmer and C. Lequesne (2005). The Member States of the European Union. Oxford: Oxford University Press, 1- 20; K. Featherstone and C. Radaelli, eds. (2003). The Politics of Eurapeanizatíon, Oxford: Oxford University Press; R. LadJech, Europeanization anel National Politics, Palgrave Macmillan, 2010; J.P. Olsen (2002). 'The Many Faces of Europeanization'. Joumal of Common Market Stuclies 40/5, 921-952; P. Graziano and M. Vink, eds. (2006) Europeanization: New Research Agendas. Houndsmills, Basingstoke, Hampshire and New York: Palgrave Macmillan.
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'o impacto diferencial da Europa' reforça a conclusão de que 'as instituições e . políticas domésticas são relevantes' (Ladrech 2010:34). Assim, a definição de Europeização de um Estado e das suas políticas baseia-se na definição proposta por Reuben Wong e Christopher Hill segundo a qual a europeização é 'um processo bi-direcional que leva a uma convergência : negociada, mas limitada em termos de objectivos políticos, preferências e mesmo 1 a identidade entre o nível nacional e o nível supranacional' (Wong e Hill 2011). · Para Wong e Hill a utilidade conceptual da europeização está em 'encontrar um , caminho intermédio, uma vez que aceita que os Estados-Membros adaptam es. truturas de decisão e normas da Política Externa e de Segurança Comum (PESC), 1 ao mesmo tempo que reconhece que esses mesmos Estados-Membros estão ati. vamente envolvidos na formação dessas estruturas e normas'. Neste sentido, o ; conceito de europeização deve ser entendido como um duplo processo através : do qual os Estados-Membros fazem o 'uploading' das suas preferências políticas ; para as políticas da UE, e adaptam, através do 'downloading', políticas desenvol; vidas na UE e outros Estados-membros para a arena política doméstica. Como esses dois processos estão em fluxo constante desenvolve-se a prática , simultânea de duas vias de adaptação, cujo resultado varia entre um bom ou , mau encaixe, com implicações que alteram as dimensões nacional e europeia de , fazer política (Bõrzel e Risse 2003). Em primeiro lugar, isto pode produzir uma . tendência de convergência entre as identidades e interesses nacionais e europeus, em que ambos são cada vez mais constitutivos um do outro, como pode também , produzir o efeito contrário. Em segundo lugar, o uploading é um processo com, parativamente mais rico do que o downloading na medida em que geralmente , produz dois resultados: por um lado, contribui para a europeização crescente · de instituições e políticas, e por outro lado, reforça a influência e o poder de um Estado-membro nas estruturas da UE. Uploading produz, assim, o efeito colateral , de reforçar o poder nacional tornando-se a estratégia preferida, principalmen' te para os Estados maiores da UE, enquanto que o downloading tende a ser um. processo mais demorado, que envolve um compromisso negociado entre múl, tiplos actores. As pressões de adaptação que são produzidas quando ocorre um , mau encaixe da política entre a UE e um Estado-Membro pode levar à mudança , interna através de 'absorção', 'acomodação' ou 'transformação' (Risse Bõrzel e . 2003), mas também pode simplesmente provocar 'inércia' (Radaelli 2003), o que , enfraquece o efeito global da capacidade da UE de fazer o downloading ou até · mesmo levar a uma oposição à política europeizada. Como Ladrech pergunta, 'se , os diferentes tipos de pressão são de facto criados a partir da relação UE-sistemas · domésticos, que factores explicam uma mudança quando ela ocorre?' (Ladrech 2010: 33). Se o p rocesso de convergência política bidirecional entre os Estados-Mem. bras e as instituições da UE, através da europeização, é conceptualizado como não sendo nem inevitável nem incremental, isso levanta a questão de saber se é possível que um estado des-europeizar, ou se a Alemanha tornou-se mais como de outros estados, mais propensa a defender, unilateralmente e sem hesitações, o seu interesse nacional. Há alguns anos a questão de saber se a Alemanha se tinha 1
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tornado 'mais britânica', i.e, mais pragmática e menos idealista, foi colocada num contexto de prevalência da tése da continuidade da política externa e da política europeia alemã. Hoje já ninguém nega as profundas mudanças da postura alemã na União Europeia. A diminuição da propensão alemã para uma convergência automática de interesses e para uma política solidária com os Estados membros da UE tem implicações inegáveis para o futuro do projecto europeu, já que o euro sem a Alemanha não só deixaria de ser a segunda maior moeda mundial, como afectaria inevitavelmente a viabilidade do projecto político de unificação europeia. O caminho para a europeização A europeização da política alemã começou muito antes de o termo se tornar conceptualmente operacional nos estudos europeus desde o inícios da década de 1990 e desenvolveu-se em três áreas. Primeiro, a dinâmica de europeização ocorreu na dimensão identitária. A experiência com o nacional--socialismo e a derrota da Alemanha na II Guerra Mundial criou um vácuo de identidade depois de 1945 que a criação da Comunidade Económica Europeia e a participação da RFA como membro fundador desde cedo preencheu. Durante a Guerra Fria, a RFA desenvolvou um europeísmo que serviu de instrumento de recuperação da identidade pós-Auschwitz, levando a República Federal da Alemanha (RFA) a desenvolver uma relação quase simbiótica com a CEE, que, juntamente com a entrada da RFAna NATO, em 1954, serviu como veículo para Bona recuperar a credibilidade internacional como um membro válido da comunidade política da Europa ocidental. A Alemanha assumiu compromissos institucionais em consonância com o quadro normativo comunitário para a formulação de políticas (Anderson e Goodman 1993) construindo gradualmente um papel internacional como um actor com um reflexo multilateralista europeu (Bulmer et al. 2000:52). Durante décadas, essa sinergia identitária entre Bona e Bruxelas funcionou bem, considerando que a interação se desenvolveu principalmente na própria CEE, com apenas uma dimensão de política externa reduzida. A necessidade dos alemães de serem europeus, e mais europeus do que os outros através do multilateralismo institucionalista sempre teve a sua dose de artificialidade, sempre ligada a uma contínua, se reduzida, desconfiança dos vizinhos, como se verificou, aliás, na fase inicial do processo de unificação alemã. Ao m esmo tempo, contudo, foi este 'multilateralismo exagerado' e este europeísmo indisociável da política alemã, que moldou decisivamente os contornos da União Económica e Monetária e a política do alargamento da União. Em segundo lugat~ a europeização desenvolveu-se no domínio da congruência institucional. A recuperação de uma política externa semi-soberana (Katzenstein 1987) foi facilitada pela congruência institucional que se desenvolveu entre Bona e as instituições europeias. Paradoxalmente, esta foi uma estratégia de 'obtenção' de soberania através da 'renúncia' parcial de soberania para as ins-
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tituições comunitárias (Haftendorn 2001). Ao delegar poderes às instituições poderes que a RFA efectivamente não tinha, de forma comparável à dos outros Estados membros - os decisores políticos foram capazes de recuperar o poder, muitas vezes involuntariamente, 'de forma indirecta e difusa' (Bulmer 1997:51). As instituições europeias funcionaram, assim, como instrumento para a Alemanha amplificar a sua voz na política europeia e transatlântica. Esta congruência institucional com a Comunidade Europeia abriu o caminho para a Alemanha gradualmente adquirir poder normativo e assim moldar os contornos do processo de integração europeia de uma forma activa (Daehnhardt 2007). Bulmer e Katzenstein argumentaram que essa congruência institucional foi tão significativa, que a Alemanha conseguiu moldar as instituições europeias e de decisão política decisiva, reduzindo as pressões de adaptação sobre as instituições nacionais (Borzel2005:51). Finalmente, a europeização ocorreu no âmbito da implementação das políticas (policies). Desde o início da Cooperação Política Europeia (CPE), em 1969, a RFA apoiou activamente o desenvolvimento da cooperação de uma política externa conjunta. Este empenho derivava de vários factores: em primeiro lugar, inseria-se na abordagem geral da RFA quanto à integração europeia, de apoio por razões económicas e de consolidação da identidade alemã enquanto país europeísta. Em segundo lugar, tratava-se de uma política que representava o sucesso da política externa alemã e que consequentemente reunia o apoio consensual da elite e opinião pública. 4 Em terceiro lugar, a integração da RFA na CEE permitia-lhe aplicar os elementos chave da sua diplomacia: o multilateralismo reflexivo e um institucionalismo de delegação de soberania, numa estratégia voluntária e consciente de inserção nos mecanismos de cooperação europeus e nas estruturas ocidentais no mundo da guerra fria. Por último, o europeísmo alemão significava para parte da elite política alemã, até finais da década de 1990, a constituição, a longo prazo, de uma federação europeia em detrimento das soberanias nacionais. Neste sentido, a Alemanha foi um dos principais países a conduzir o processo de aprofundamento da integração, através da ampliação dos domínios de políticas comunitárias, o aumento das decisões tomadas por maioria a 40 áreas de política (e consequente diminuição do poder de veto dos Estados membros) e o alargamento das competências para os orgãos comunitários, como a Comissão, o Parlamento Europeu e o Tribunal Europeu de Justiça. Esta estratégia alemã pressupunha uma forte convergência entre interesses alemães e europeus, onde os conflitos de interesse na troca de ideias e políticas entre os níveis alemão e europeu mantiveram-se reduzidos, produzindo um grau considerável de europeização da política alemã com uma baixa probabilidade de conflitualidade de interesses. Isto levou um autor a argumentar que 'a europeização do estado alemão faz com que a procura do interesse nacional, em oposição ao interesse europeu, seja uma tarefa infrutífera. Os interesses alemão e europeu fundiram-se ao ponto 4
H. Schneider, M. Jopp, M. and U. Schmalz, (eds.) (2001). Eine neue deutsche Europapolitik? Rahmen-
bedingungen - Problemfelder - Optionen (Institut für Europãische Politik, Europãische Schriften des Instituts für Europaische Politil<, Bom1: Europa Union Verlag, Bonn, 77.
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de tornar o seu significado separado crescentemente impossível' (Goetz 1996:24). Mas não era certo que esta congruência iria perdurar após a unificação uma vez que 'a República Federal não estava institucionalmente obrigada a permanecer uma entusiasta da integração mais profunda' (Banchoff 1999:266). Recentemente unificada, a Alemanha tinha agora o potencial para recuperar uma política nacional soberana, levando muitos a acreditar que o país iria seguir um caminho menos europeizado ou mesmo separar-se da União Europeia (Waltz 1993). Assim, o fim da Guerra Fria representou um duplo desafio para os decisores políticos alemães, primeiro, porque catapultou a Alemanha para a posição de se tornar a 'potência central europeia' (Schwarz 1994) e segundo, porque o Tratado de Maastricht sobre a União Europeia, de 1993, abriu o caminho para a UE emergir como um actor de política externa através da PESC, onde a Alemanha teria de responder a expectativas sobre o reforço do seu europeísmo. A emergência simultânea destes reflexos aparentemente contraditórios levantava a questão 'se os decisores nacionais estavam a reconceptualizar significativamente as suas noções de interesse e identidade em termos europeus' (Hill1998:39). Na década de 1990 observa-se a continuidade da política integracionista alemã e a sua predisposição em fazer avançar o projecto económico e mesmo político europeu. William Paterson falou do 'vision thing' do Chanceler alemão, quando Kohl tinha uma visão sobre o projecto europeu e prosseguia um multilateralismo europeísta (Paterson 1999). Isto colocava a Alemanha na posição aparentemente paradoxal de ser um semi-Gulliver que voluntariamente aceitava ser restringido na sua política externa em troca da sua inserção na projecto europeu e aceitação dos seus vizinhos. A Alemanha federalista de Kohl concebia os "Estados Unidos da Europa", projecto que ia ao encontro do interesse alemão, desta forma inserido e 'encaixado' ('embedded') num contexto europeu. É neste sentido que se explica a vontade política alemã em aderir ao projecto de União Económica e Monetária e a aceitação do fim do marco alemão, evidência da riqueza e força económica alemã e símbolo da identidade pós-guerra alemã. Ironicamente, esta perspectiva de unificação europeia foi seguida por Joschka Fischet~ líder do partido Os Verdes e ministro dos negócios estrangeiros do governo centro-esquerda, entre 1998 e 2005. No seu discurso na Universidade de Humboldt, em Berlim, em 12 de Maio de 2000, Fischer apresentou a sua visão quanto ao futuro da União Europeia, e advogou uma federação europeia (Fischer 2000). O seu modelo assentava na 'expansão da cooperação reforçada entre aqueles Estados que pretendiam cooperar mais intensamente do que outros', através da criacção de um centro de gravidade, um grupo avant-garde, que funcionaria como 'a força impulsionadora para a finalização da integração política e deveria, desde o início, incluir todos os elementos da futura federação'. Para Fischer, o modelo federativo pressupunha um núcleo duro franco-alemão. Mesmo que este discurso lançasse o debate europeu sobre a reforma institucional d a União, Fischer foi o último político alemão a falar publicamente dos 'Estados Unidos da Europa'. Na prática, porém, a Alemanha já se tinha separado da visão federalista e pós-soberanista. A opinião pública alemã começava a identificar os custos e a questionar o tradicional euro-entusiasmo dos seus governos, principalmente no
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domínio económico e monetário, mais do que nas áreas da PESC e da PESD. A decisão da adopção do euro, um projecto chave de Helmut Kohl, foi tomada contra a maioria do eleitorado alemão que se opunha a uma moeda comum, porque pretendia manter a Deutsche Mark, moeda forte e símbolo do sucesso político e económico da reconstrução da RFA. É perante este pano de fundo, com uma opinião pública crescentemente céptica quanto ao aprofundamento económico da integração europeia que se deve entender a gradual alteração do europeísmo alemão. O Chanceler Gerhard Schroder, que fora ministro presidente da Baixa Saxónia, até se tornar Chanceler em 1998, tinha uma visão menos europeísta, mais defensora dos interesses dos Estados federados alemães (Liinder), e concebia, por isso, a devolução de alguns poderes às instituições nacionais. De acordo com este novo impulso nacional a Alemanha deveria deixar de ter hesitações em seguir mais assertivamente os seus interesses nacionais, e deixar de actuar de acordo com constrangimentos históricos que condicionaram a política alemã durante a Guerra Fria. Schroder fortaleceu as coordenadas de uma mudança na política externa alemã, com uma nova espécie de europeísmo quando afirmou, perante o Bundestag, em 10 de Novembro de 1998, que os alemães 'não são europeus porque [eles] têm que o ser, mas porque [eles] o querem ser.' Este novo princípio, que sugere uma hipótese de escolha, mas que na realidade afirmou o início de uma política mais centrada numa análise dos custos e benefícios da integração europeia, mudou o europeísmo alemão. Colocar os interesses alemães à frente de um suposto 'bem comum europeu' é recente na política alemã. Schroeder afirmou que a Alemanha iria agora seguir uma política decidida em Berlim. Como consequência, os parceiros já não podiam contar automaticamente com o comportamento multilateralista alemã.o. Schroder defendeu uma redução da contribuição financeira alemã para a Política Agrícola Comum (PAC) e os fundos estruturais, a delimitação das competências das instituições da UE, e a recuperação de alguns poderes por parte das instituições nacionais mais bem equipadas para lidar com questões específicas. Isto também teve reflexos na relação transatlântica, quando o governo alemão se recusou a apoiar a política dos EUA de intervenção militar no Iraque, que por sua vez, produziu grandes divergências na Europa e contribuíu para uma séria crise nas relações transatlânticas. Este novo europeísmo, mais instrumental e nacional, equivaleu, para Jeffery e Paterson, a uma 'deslocação das placas tectónicas' da política europeia alemã, indicando o fim do 'círculo virtuoso' que durante décadas caracterizara a congruência entre a Alemanha e a Europa Geffery e Paterson, 2003). Angela Merkel, Chanceler alemã desde 2005, aceitou as premissas do novo europeísmo alemão. Na Alemanha após as crises transatlântica de 2003 e constitucional europeia de 2005, o movimento das placas tectônicas acalmou. Para superar a crise constitucional, o governo de grande coligação CDUI CSU e SPD teve um papel decisivo durante a presidência alemã da UE no primeiro semestre de 2007, reiniciando o processo que conduziria à assinatura do Tratado de Lisboa. Berlim reafirmou a sua postura multilateralista e seu papel de mediador no Conselho Europeu de Bruxelas, em Dezembro de 2005, quando desbloqueou o im-
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passe financeiro, e assegurou fundos adicionais à Polónia. Contudo, a Declaração de Berlim de Março de 2007 acabou por destronar a visão de Kohl e atribuir ao Tratado de Lisboa uma linha mais pragmática: a integração europeia manteve-se no caminho da evolução, porém menos à custa da soberania nacional, o que terminou, ou pelo menos adiou sine die, os sonhos dos federalistas europeus. Merkel galvanizou a política europeia para garantir que a UE seja capaz de agir, mas já não à custa da marginalização dos próprios interesses da Alemanha. O contexto de transformação interna No ano em que a República Federal da Alemanha celebrou o 60° aniversário de sua fundação e 20 anos desde a queda do Muro de Berlim, a União Europeia respirou de alívio com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, em 1 de Dezembro de 2009. Este Tratado, que visou reformar as instituições comunitárias como forma de integrar 27 países membros e tornar a UE um actor internacional credível representou, no entanto, o culminar de uma sucessão de crises na Europa, que começou com o fracassa da Constituição Europeia, não aprovada por referendo pela França e pela Holanda em 2005. Como tantas vezes na história da integração europeia, o progresso da integração foi precedido por momentos de crise, o que mostra que a maioria dos casos de europeização estão incorporados num grau considerável de incerteza ou precedido por uploading directo ou indirecto por um ou mais Estados-Membros. Mas este processo tem produzido uma mudança na medida em que o optimismo deu lugar a uma sobriedade pós-federalista, muito em função do desencanto crescente das opiniões públicas europeias, que se recusam a aceitar a contínua partilha da soberania nacional em troca do que vêem como uma estrutura supranacional burocrática, onerosa e pouco benefíca às suas vidas. A Alemanha continue a exercer uma influência decisiva sobre o processo de integração europeia, reflectida em grande parte nas novas disposições do Tratado de Lisboa, como acontece com o novo procedimento de votação do TL onde o peso demográfico dos Estados é factor decisivo: para um número importante de questões passa a vigorar, a partir de 2014, a regra da dupla maioria nas votações tomadas no Conselho: 55% dos Estados membros juntamente com 65% da população dos países poderão fazer aprovar leis quando se aplica este tipo de votação. Isto significa que uma minoria de bloqueio poderá constituir-se com pelo menos quatro Estados e pelo menos 35% da população da UE. Como Estado mais populoso da UE, com 82 milhões de habitantes, a Alemanha, que foi a principal impulsionadora desta alteração, aumentou a sua capacidade de decisão dentro da União. O novo europeísmo tornou a Alemanha um poder mais conservador, mais propensa ao intergovernamentalismo, ao mesmo tempo que demonstra menos inibições em renunciar ao tradicional europeísmo. Esta transformação do europeísmo alemão explica-se através de seis factores provenientes de um novo contexto doméstico alemão mais do que através de um forte desajuste institucional entre as instituições europeias e as estruturas internas da Alemanha. Em primeiro lugar, e desde logo, a PEA baseia-se num siste-
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ma pouco coordenado e altamente descentralizado de decisão política, produzindo 'a mais desconcentrada' estrutura institucional interna para a elaboração de políticas comunitárias (Bulmer et al. 2000:22). A existência de vários ministérios envolvidos na elaboração e condução da política europeia, como a Chancelaria, o Ministério dos Negócios Estrangeiros, o Ministério das Finanças, o Ministério da Economia e Tecnologia, o Ministério do Desenvolvimento e o Ministério da Defesa, em que cada departamento ministerial está sujeito à acção de lobby de grupos de interesses, torna uma posição coordenada díficil e demorada e enfraquece a posição negocial de Berlim em Bruxelas (Hüttmann 2007). Os representantes alemães em Bruxelas muitas vezes não conseguem chegar a acordo sobre uma posição comum, diminuíndo a capacidade global de Berlim para fazer o uploading das suas preferências da política nacional porque não há nenhum mecanismo de coordenação formal de trabalho e as actuais dinâmicas de coordenação informal que se desenvolveram ainda não produziram uma postura coerente. A coordenação entre os governos federados, o governo em Berlim e os funcionários alemães na Comissão, no Parlamento da UE é fraca. Por outro lado, a Chancelaria, que já gozava de uma Richtlinienkompetenz (direito de definição das linhas de orientação política, constitucionalmente definido) na política europeia, viu a sua posição reforçada com o Tratado de Lisboa já que o Conselho Europeu viu os seus poderes reforçados e os Chefes de Estado são os únicos representantes nas cimeiras mais importantes da UE. A regra política de que o Chanceler vem do partido mais votado e o ministro dos negócios estrangeiros do partido minoritário da coligação apenas contribui para a potencial discórdia, e é outro dos factores que deixa o parceiro minoritário com pouca margem de manobra eficaz para moldar a política europeia. Em segundo lugat~ o federalismo alemão representa uma condicionalidade estrutural, que sempre retardou o processo de tomada de decisão a nível federal. A ocorrência de várias eleições nos Estados federados para a constituição dos governos dos Li:inder e a defesa dos seus interesses influencia decisivamente a tomada de decisão em Berlim; durante o corrente ano de 2011 realizam-se sete eleições regionais, o que automaticamente desacelera o processo de decisão e representa igualmente uma limitação de actuação no palco europeu, num quadro de fundo onde o Tratado de Lisboa fortaleceu o papel dos Li:inder. Em terceiro lugar, a elite jurídica é a elite alemã mais eurocéptica, sendo o Tribunal Constitucional Federal (TCF) considerado um obstáculo a uma maior integração europeia (Guerot 2010). A ratificação do Tratado de Lisboa pelo Bundestag só ocorreu após o veredicto do TCF sobre a sua constitucionalidade, pronunciado em 30 de Junho de 2009. Declarada a compatibilidade do Tratado com a Lei Fundamental (Constituição da Alemanha), o TCF impôs salvaguardas em matéria de integração.5 Em primeiro lugar, ambas as câmaras, o Bundestag e o Bundesrat, deverão exercer maior controle sobre as acções do governo federal no Conselho Europeu e os processos decisórios sobre a unanimidade teriam que 5
BVerfG, 2 BvE 2/08 vom 30.6.2009, Absatz-Nr. (1 - 421), http:/ /www.bverfg.de/entscheidungen/ es20090630_2bve000208.html
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ser aprovados pelo Bundestag. Em segundo lugar, a participação dos alemães em missões militares no âmbito da PESC e da PCSD deve ser sujeita a uma maior fiscalização pelo Bundestag. Por último, o veredicto foi também uma votação sobre as emendas sugeridas pelo Tratado sobre as competências do próprio TCF, que receava vê-las limitadas pelo Tribunal de Justiça da UE. O veredicto do TCF contribuiu para a desconcentração de algumas competências para as instituições nacionais que limitam o âmbito de acção do governo alemão, dificultando a posterior transferência de soberania da política nacional para a União (Micossi 2009). Como resultado, o TCF continua a desempenhar um papel político considerável ao poder limitar a margem de manobra política do governo em material de política europeia. Alfred Grosser acredita que o veredicto 'não foi motivo de comemoração', pois 'levanta questões sobre o compromisso da Alemanha para com a Europa', concluindo com a pergunta retórica: 'A Alemanha tornou-se o travão da Europa?' (Grosser 2009). Em quarto lugat~ está em curso uma crescente polarização do cenário político alemão. Esta mudança está a desenvolver-se desde as eleições legislativas de Setembro 2009, que deram aos pequenos partidos como o FDP, Verdes e Linke n1ais de 30 por cento do voto popular. Isto sugere uma transformação significativa a longo prazo da paisagem política no sentido de uma disposição mais fragmentada das escolhas dos eleitores em favor dos pequenos partidos. Esta tendência foi confirmada pelas eleições na Renânia do Norte-Vestfália, em 9 de Maio de 2010, quando os pequenos partidos também conseguiram obter mais de 30 por cento dos votos. E mais recentemente, nas eleições em Março de 2011, na Renânia-Palatinado e em Baden-Württemberg, onde nenhum dos grandes partidos conseguiu formar o governo, originando governos de coligação entre o SPD e os Verdes, com a particularidade de no Estado de Baden-Württemberg o ministro presidente ser colocado pelos Verdes. Esta alteração do quadro partidário afecta a política europeia da Alemanha, tornando o processo de decisão já altamente fragmentado ainda mais complexo. Em quinto lugar, a erosão do consenso da elite inter-partidária sobre a integração europeia é outro factor inovador. Emergiu uma retórica menos pró-europeia e pró-integracionista nos discursos de todos os partidos políticos, defensável perante todo o tipo de público, interno ou internacional. Isso inevitavelmente enfraquece concepções tradicionais de interesse e de identidade europeus. O SPD, em particular, demonstrou a nova postura quando, em 21 de Maio de 2010, durante um debate sobre a crise do Bundestag, se absteve de apoiar os planos de resgate financeiro à economia grega proposto pelo governo para a aprovação dev 750 bilhões de euros numa atitude sem precedente (Bulmer e Paterson 2010). Mesmo que o argumento alemão, que o fundo de emergência não pode ser usado como um mecanismo de novos estados para contratar novas dívidas, não seja errado, a falta de tacto e o tom contundente de partes do establishment alemão prejudicaram a reputação da Alemanha no seio da UE. Werner Hoyer, secretário de Estado do MNE alemão, admitiu que 'estrategicamente estamos a fazer a coisa
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certa, mas temos um problema de comunicação'.6 Finalmente, a posição da sociedade civil produz efeitos políticos junto da postura partidária. Em primeiro lugar, a opinião pública alemã, eurocéptica desde a introdução do euro em 2001, é muito crítica quanto às soluções que o seu governo propõe para a resolução da crise das dívidas soberanas e o contribuinte alemão recusa-se a apoiar as medidas de resgate, que posicionaram a Alemanha como o principal Estado europeu para resgatar a Grécia, a Irlanda e PortugaL Pesquisas recentes indicam que cerca de 60 por cento dos alemães favorecem a reintrodução do euro, 45 por cento consideram que o euro trouxe mais desvantagens do que benefícios, contra 33 por cento que defendem as suas vantagens. 7 Uma parte dos meios de comunicação social alemães tem aproveitado, de forma populista, o crescente ressentimento popular contra as medidas de austeridade que o contribuinte alemão irá indirectamente sentir, e assume posições hostis face à resposta do governo à crise. Um grupo reduzido de personalidades alemãs questionam as medidas adoptadas, e discute-se, em diferentes fora de comunicação, o futuro da integração europeia. Hans Olaf Henkel, antigo presidente da Federação da Indústria Alemã (BDI) e antigo apoiante do euro, por exemplo, defende, desde Novembro de 2010, a criação de duas moedas euro para resolver a crise, um 'euro do Norte' e um 'euro do Sul', com o primeiro grupo a integrar os países do Benelux, a Áustria, a Finlândia e a Alemacl1.a, sob a liderança desta última, ao passo que o segundo grupo seria liderado pela França, integrando Portugal, Espanha, Itália e Grécia. 8 O especialista financeiro Wilhelm Hankel advoga mesmo o regresso da DM (Deutsche Mark), desde Junho de 2010, e apresentou, juntamente com outros académicos, uma queixa junto do Tribunal Constitucional Federal sobre a legalidade do pacote de ajuda à Grécia face ao Tratado de LisboaY Estas tendências eurocépticas não sã.o novas junto do eleitorado; a mudança está no aproveitamento político pelos partidos, num clima de incerteza generalizada.10 Isto é algo sem precedentes num país onde a crítica sistemática à integração europeia era até há pouco tempo impensável. Os seis factores referidos contribuem, assim, para um contexto de mudança interna, com consequências a longo prazo para dinâmica de europeização alemã. Segundo Bulme1~ Jeffery e Padgett, o novo contexto 'vai deixar a Alemanha com um tipo diferente de sistema político'. Essa transformação, argumentam os autores, ocorre no meio de uma. sensação de 'crise latente', que coincide com 'uma erosão dos alicerces sobre os quais o sistema politico do pós-guerra foi construído'. Isto produziu uma Alemanha mais nacional e mais propensa a impor interes6 '"Steht ihr noch zu Europa?'", Der Spiegel, 48,29 November 2010, p. 87. 7 Frankfurter Allgemeine Zeitung, 25 January 2011, Glomb 2011 and Financial Times, 16 December 2010. http:/ /www.focus.de/finanzen/news/staatsverschuldung/ex-bdi-praesident-henkel-mit-nord-euro-und-sued-euro-aus-der-schuldenkrise_aid_576235.html 9 O TCF já recebeu mais de 50 queixas de pessoas individuais, ou grupos de pessoas, que contestam a legalidade do pacote de ajuda financeira à Grécia, em curso desde há um ano. '50 Verfassungsbeschwerden gegen die Euro-Rettung', 8 Maio 2011. http:/ /www.morgenpost.de/wirtschaft/ articlel632997I 50-Verfassungsbeschwerden-gegen-die-Euro-Rettung.html 10 Quentin Peel, 'Euroscepticism wins no votes in Germany', Financial Times, 16 December 2010.
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ses especificamente alemães na política comunitária, e fazê-lo contra a vontade dos seus parceiros, se for necessário (mesmo incluíndo a França), e até mesmo para tentar travar o alcance da integração (Bulmer et ai. 2010:18).
A crise das dívidas soberanas da zona do euro A crise das dívidas soberanas da zona euro tem reforçado questões sobre o compromisso alemão com a União Europeia. Como para os decisores politicas alemães a estabilidade monetária é politicamente vital, a forma como o governo alemão tem lidado com a crise das dívidas soberanas da zona do euro nos últimos 12 meses é indicativa da sua posição mais ampla no seio da UE. Neste momento a crise do euro está a ser discutida na Alemanha num contexto de crescente frustração com os custos, para os contribuintes alemães, do resgate financeiro à Grécia, Irlanda e Portugal, numa altura em que a economia alemã é a grande excepção, d e recuperação económica, descida da taxa de desemprego e aumento do volume d e exportações na zona euro. Isto levanta questões sobre o compromisso da Alemanha e a sua vontade em manter a solidariedade intra-europeia. O regresso ao realismo na PEA traduz-se na passagem do dictum de Kohl de que a integração europeia é uma questão de guerra ou paz, para uma análise actual dos custos da integração europeia. Esta análise de custos e benefícios da crise provocou intensas críticas a Berlim por parte dos seus parceiros europeus e da Comissão Europeia e, levanta questões sobre se a reação da Alemanha à crise confirma um reflexo mais unilateralista e uma atitude mais orientada para o interesse nacional alemão. Assim, a dimensão política da crise é uma indicação da direção da PEA. É também politicamente relevante porque, se confirmou 'a Alemanha como líder indiscutível da UE' (Grant 2010), esta liderança tem deixado a Alemanha numa posição isolada, o que poderá diminuir a sua capacidade de continuar a exercer influência. Qual é a posição da Alemanha sobre a crise das dívidas soberanas da zona euro? É primordialmente baseada em critérios de estabilidade econômica como sustenta Glomb: 'A Alemanha considera três princípios como imutáveis: a estabilidade da moeda comum, a independência do Banco Central, e a responsabilidade de cada Estado sobre as suas próprias finanças. A rejeição alemã de uma zona euro inflacionista e de uma união de transferências financeiras não é negociável. A Alemanha passou por dois períodos de hiperinflação; a unificação alemã custou ao governo federal 1.3 bilhões de euros em 20 anos ou mais de 60% do PIB anual do país' (Glomb 2011). Além disso, os lideres políticos sabem que a decisão de desistir do marco alemão, em Maastricht, em 1991, nunca foi bem recebida pela opinião pública alemã, e que a atitude desta, que já era de pouca compreensão quanto ao resgate grego porque se recusa a ver os contribuintes alemães como o principal contribuinte financeiro para a ajuda à Grécia, transformou-se em desilusão total em relação ao que grande parte da opinião pública considera como críticas injustas por parte dos seus vizinhos. Três fases podem ser identificadas na reacção de Berlim, através de três ati-
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tudes distintas: hesitação, reacção e liderança. A primeira fase foi caracterizada pela hesitação e cautela do governo alemão, depois do Conselho Europeu informal de 11 de Fevereiro de 2010 ter decidido que Estados-Membros endividados deveriam receber ajuda. Face às eleições regionais no Estado federal da Renânia do Norte e Vestefália, de 9 de Maio de 2010, a Chanceler hesitou em comprometer-se a ajudar a Grécia e opôs-se à proposta do presidente francês, Nicolas Sarkozy, em Março, de criação de um mecanismo da UE para ajudar os Estados endividados.U Até ao fim de Abril de 2010 Berlim parecia não opor-se à expulsão dos países endividados da zona euro, o que provocou duras críticas à Alemanha e levou alguns governos a acusá-la de seguir uma linha populista e não demonstrar a liderança necessária para acalmar os mercados (Jones 2010). Na segunda fase, o governo Merkel simplesmente reagiu a pressões externas que exigiam uma liderança alemã. Em 7 de Maio de 2010, o Bundestag votou a favor da aprovação do plano de resgate grego. Este voto foi crucial na dinamização da adopção de um pacote de resgate 750 bilhões de euros na cimeira da UE no mesmo dia e na reunião do Ecofin, em 9 de Maio, da qual resultou a criação do Fundo Europeu para a Estabilidade Financeira (EFSF) e, sob a insistência da Chancelei~ sob a inclusão do Fundo Monetário Internacional. Nesta fase, contudo, a Alemanha alinhou-se ao lado de outros Estados membros mais do que seguiu uma convicção verdadeira mesmo se isto contrastava com a retórica utilizada. Num discurso perante o Bundestag, em 19 de Maio, Merkel comentou sobre a crise: O que está em jogo 'é muito mais do que estes números, é muito mais do que uma moeda. A união monetária é um destino comum (Schicksalsgemeinschaft). É, portanto, nada mais, nada menos do que a preservação e a viabilidade da ideia europeia. Esta é a nossa missão histórica, pois se o euro falha~~ a Europa falha' (Merkel2010). Para Merkel, tratava-se de uma crise existencial e da maior prova de que a Europa teve de enfrentar desde 1957, mas, apesar disso, o governo nã.o assumiu uma postura pró-activa, para contrariar os efeitos desestabilizadores da crise. Na terceira fase, ainda em curso, a Alemanha tornou-se mais assertiva na defesa das suas posições. Embora com relutância, mostrou liderança pela primeira vez na cimeira franco-alemã de Deauville, em 19 de Outubro de 2010, quando Merkel e Sarkozy bilateralmente definiram a agenda para os próximos meses. Apesar da coordenação franco-alemã, Paris assumiu claramente um papel secundário: Berlim impôs regras mais rígidas e penalidades para os Estados-Membros 11
O resultado da eleição foi penalizante para ao partido CDU. Mais de um quinto do eleitorado rejeitou a forma como o governo alemão estava a lidar com a crise na Grécia. Os custos políticos de Berlim eram altos porque a estratégia de Merkel falhou duas vezes: primeiro, quando, inicialmente, a Chanceler parecia opor-se à ajuda financeira para a Grécia e tentou adiar a decisão sobre o financiamento até para depois das eleições regionais, submetendo o seu governo a críticas nacionais e internacionais; em segundo luga1~ quando, poucos dias antes da eleição, o governo decidiu aprovar um pacote financeiro em conjunto com a UE e o FMI para Atenas, aprovado pelo Bundestag, em 7 de Maio. Os eleitores mostraram que rejeitavam o papel de Berlim como o pagador da União Europeia, e como o principal financiador do resgate das economias mais fracas na zona euro. Além disso, como resultado das eleições, a CDU perdeu a maioria no Bundesrat.
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excessivamente endividados (mesmo que falhou, como inicialmente previsto, em privar estes estados temporariamente dos seus direitos de voto), a criação de um novo mecanismo de resgate permanente e a alteração ao Tratado de Lisboa, necessária aos olhos de Merkel para antecipar um possível veto do Tribunal Constitucional Federal quanto à nova instituição, se o TCF a determinasse de inconstitucional com a lei alemã. Isso verificou-se nas difíceis negociações sobre a criação de um mecanismo permanente de resgate financeiro europeu. No Conselho da UE em 28 e 29 Outubro os Estados membros concordaram com o acordo de Deauville quanto à aplicação de sanções mais duras aos Estados-Membros excessivamente endividados, a criação de um mecanismo de emergência permanente (para substituir o EFSF criado em Maio) e as alterações ao Tratado de Lisboa. A Cimeira do Conselho da UE, em Bruxelas, em 16 de Dezembro de 2010 aprovou as medidas decididas no Conselho de Outubro. A nova instituição financeira, a funcionar a partir de 2013, garantiria a estabilidade financeira e disciplina fiscal, e d everia ser criada por 'uma simples alteração ao Tratado de Lisboa que tornaria mais fácil a ratificação e não exigir o tipo de referendo que levou à rejeição de uma Constituição Europeia.' 12 Em inícios de Fevereiro de 2011 a Alemanha apresentou o plano para um 'Pacto para a Competitividade', a criacção de um governo económico com base na coordenação económica mais estreita entre os 17 membros da zona euro para a integração dos sistemas fiscais e mercados laborais. 13 O objectivo é criar uma convergência real das políticas económicas, uma vez que toca na soberania fiscal nacional, em políticas fiscais e leis laborais. Esta é uma mudança considerável de posição da Alemanha um ano antes, quando Merkel rejeitou a proposta de Sarkozy de um governo económico. Para ser justo, em 19 de Maio do ano passado, afirmou perante o Bundestag, que 'continua a ser imperativo [implementar], o que até agora não, que nem o Tratado de Maastricht, ou Tratado de Lisboa conseguiu fazer: avançar com a integração económica da União Europeia, que deve seguir a união monetária. Sem ela, a União Monetária não persistirá a longo prazo' (Merkel2010). O facto de Merkel ter esperado dez meses pode ser explicado pelos consideráveis constrangimentos internos que enfrenta: 'Não é fácil convencer os políticos alemães e os eleitores, e muito menos o poderoso tribunal constitucional em Karlsruhe, que a Alemanha deve tornar-se o fiador da união monetária' (Peel2011). A maioria dos Estados-Membros reagiu com grande cepticismo em relação ao Pacto de Competitividade, à proposta de uma maior harmonização das políticas financeira, económica e social e à ideia alemã de uma união económica na 12
13
'Euro Proposal Could Face Constitutional Concerns in Germany', Der Spiegel, 14 Febr 2011. http:/ I www.spiegel.de/international/europe/0,1518,druck-745398,00.html Stephen Castle, 'Germany and France roll out plan to boost Euro', NYT, 4 February 2011. httllJL www.nytimes.com/2011/02/05/business/global/05union.html? r=2&src=busln. A ideia de um governo económico europeu foi defendida por Wolfgang Schauble, ministro alemão das Finanças, num discurso que proferiu sobre a reforma da regulamentação financeira europeia, na Universidade de Humboldt, em 26 de janeiro de 2011. http:/ /www.cdu.de/doc/pdfc/110126rede-schaeuble. pdf
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qual a união monetária existente seria incorporada.14 Muitos viram isso como uma tentativa deliberada da Alemanha para impor o seu modelo económico à zona euro e reduzir as posições negociais dos outros Estados da zona euro. Mas este foi o preço pedido para que a Alemanha mantenha os seus compromissos quanto a garantias adicionais para o fundo de resgate. A cimeira UE regular de 24-25 de Março de 2011 acabou por adoptoar o mecanismo de emergência permanente, em 2013, e a alteração do TL. Durante esta fase, a liderança da Alemanha assentou numa estratégia de uploading, ou seja, onde Berlim introduziu as suas preferências políticas e projectou os seus interesses e influência sobre as políticas da UE, exercendo pressão para acelerar reformas. Se este caso de uploading funcionar, uma maior integração económica será feita de acordo com o modelo alemão proposto pelo pacto de competitividade. Contudo, a estratégia era agora diferente, como a própria Chanceler afirmou: 'As regras não podem ser decididas pelos mais fracos, elas devem ser orientadas pelos fortes .... Em áreas onde uma atitude nacional unilateral pela Alemanha não causar danos, nós iremos agir de forma unilateral' (Merkel 2010). No passado, a estratégia preferencial foi a criação de coligações para incluir Estados mais pequenos no processo de decisão e assegurar assim à sua volta um conjunto de parceiros para fazer valer os seus pontos de vista constituía uma táctica frequente na PEA. A forma como Berlim está a responder agora à crise revela menos preocupação com este mecanismo tradicional e com as críticas dos outros Estados. Que as decisões políticas não foram bem recebidas, nomeadamente na Grécia, Irlanda e agora Portugal, onde as opiniões públicas, que não criticam a aceitação do apoio financeiro em grande parte custeado pela Alemanha mas recusam-se a aceitar os condicionalismos económicos e sociais avançados pelos credores, não sugere automaticamente que Berlim tenha uma política menos europeizada. A Alemanha continua a ser um país europeísta (o principal entre os grandes Estados) mas o seu europeísmo típico mudou: o papel que a Alemanha desempenha dentro da União Europeia, e no relacionamento com. os seus países vizinhos reflecte cada vez mais uma prossecução própria dos seus interesses. Apesar de nunca ter deixado de seguir os seus interesses, a forma como o faz actualmente, assertiva e auto-confiante, tem implicações na política europeia. As acções da Alemanha tornaram-se, por isso, mais pragmáticas e consequencialistas, e a Alemanha mais conservadora e menos progressista.
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A principal preocupação de muitos analistas é de que este pacto poderá perder credibilidade se não tiver um mecanismo de execução que levasse os Estados membws a cumprir com o que o pacto estipula. lnvocat~ como a posição alemã parece implicar, o método aberto de coordenação, como, por exemplo, 'a pressão dos pares', segundo a qual um Estado cumpriria com as disposições do tratado para evitar a vergonha de não o fazer, não é realista. Aprovar um novo pacto sem um mecanismo de sanções para os Estados que o violem conduziria à erosão ftmcional, como aconteceu com o Pacto de Estabilidade e Crescimento cujo mecanismo de sanção tornou-se supérfluo quando a Alemanha e a França assim o decidiram, em 2004, quando ambas ultrapassaram o limite do défice máximo de 3%.
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Conclusão
O aumento de vozes críticas quanto à PEA coincide com as fortes expectativas relativamente à Alemanha para que assuma um papel internacional mais relevante num clima de simultaneidade de crises europeias, como a crise do euro, a crise financeira, a crise dos refugiados e a tendência para um aproveitamento populista nacional em alguns partidos políticos europeus. Uma estratégia possível seria a de assumir uma postura menos europeísta e actuar mais como outras grandes potências no palco internacional. No caso da Alemanha, contudo, não é isso que se verifica: estando no caminho da recuperação económica, depois de uma década de duras reformas económicas internas, e sendo a Alemanha a segunda maior potência exportadora no mundo, ela não tem assumido as responsabilidades internacionais que o seu peso estrutural lhe confere; antes pelo contrário, a recente abstenção alemã na votação da resolução 1973, no Conselho de Segurança das Nações Unidas, em 17 de Março de 2011, sobre a aplicação de uma 'no-fly zone' na Líbia, por razões humanitárias, separou Berlim de Paris e Londres, revelou, mais uma vez, que a retórica de responsabilidade internacional invocada não é acompanhada por posições concretas. 15 Isto revela insegurança na actuação internacional e uma politica externa com fundamentos pouco pragmáticos que desvalorizam a posição alemã: enquanto que na frente europeia sujeita-se crescentemente a críticas de falta de solidariedade, Berlim não tem compensado esta alteração no palco intemacionat o que no seu todo diminui a credibilidade internacional da Alemanha. O novo tom europeu de Berlim revela uma permanente análise de custos e benefícios da sua participação na União Europeia. Se não é surpreendente que a potência central europeia se despediu do tradicional europeísmo idealista e progressivo, esta Alemanha mais assertiva e mais egoísta, leva os restantes Estados membros a adoptarem uma postura mais crítica em relação a ela. O futuro próximo da União deverá por isso percorrer uma estrada esburacada, onde a solidariedade intra-europeia será testada até aos seus limites. Neste contexto extremamente crítico, convem à Alemanha não esquecer os benefícios económicos mas também políticos que lhe advêm do projecto europeu - e dos quais ela precisa, também no século XXI. Bibliografia:
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TEKTHNOS: GEOLOGIA, CONSTRUÇÃO DE POVOS E CONFLITUALIDADE NO SISTEMA INTERNACIONAL
Paulo Bessa Doutor em Antropologia Cultural e Social pela Universidade Nova de Lisboa, Professor Auxiliar na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Lusíada de Lisboa Investigador do Centro de Estudos da Economia e Sociedade (CEPESE), Porto Membro da Royal African Society, School of Oriental & African Studies, Reino Unido
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Resumo: Este artigo constitui um exercício multidisciplinar, cujo objectivo prim.ário é o de, através da interligação de conceitos e matrizes teóricas de diferentes campos da ciência, designadamente da Geologia, da Política, da Sociologia e da Antropologia, descortinar linhas-guia válidas, em termos de aplicabilidade, para a compreensão da lógica subjacente a uma vasta miríade de fenómenos relacionados com conflitos, desde a esfera internacional à individual. Paralelamente, existe um intuito de demonstrar que um modelo teórico não tem forçosamente de emergir como um colete de forças, cerceando a capacidade de um investigador para equacionar problemáticas, independentemente do seu teor. Neste sentido, existe um ensejo de, sem ser de todo simplista, procurar edificar uma matriz flexível, de âmbito quase holístico, não obstante o enfoque escolhido serem as etnias e as suas relações. Constatando-se que tanto a teoria da Deriva dos Continentes - acrescida posteriormente da Expansão dos Fundos Oceânicos - como as identidades sociais, particularmente a étnica, remetem para uma construção, no primeiro caso etimológica, resultando da d inâmica geológica do planeta, e no segundo da d iferenciação social e cultural de grupos de indivíduos, procurou-se verificar a viabilidade de cruzar conceitos e realidades que são muito d istintas mas têm algo em comum, deixando em aberto a possibilidade de poderem constituir uma outra perspectiva das relações internacionais, sobretudo na vertente da conflitualidade no sistema global, não apenas entre unidades políticas (Estados) mas também envolvendo as suas componentes populacionais. Palavras-Chave: Política Internacional; Modelos Teóricos; Grupos Etno-Religiosos
Abstract: This article represents a multidisciplinary exercise with the primary goal of, through the interconnection of concepts and theoretical matrixes of different science fields, namely Geology, Politics, Sociology and Anthropology, envisage valid guidelines, ín terms of its applicability, to the comprehension of the underlining logic of a wide range of phenomena related with conflicts, from the international to the individual spheres. There is also a desire to demonstrate that a theoretical model does not forcibly has to emerge as a straight jacket,
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diminishing the hability of an investigator to put themes into perspective, regardless of its nature. ln this sense, the objective is to try, without being too simplistic, to build a flexible matrix, almost holistic, notwithstanding the chosen focus are ethnic groups and their relationships. Since both the Continental Drift theory - subsequently complemented by the Seafloor Spreading -and the social identities, ethnic in particular, relate to a construction, in the first case etymological, resulting from the geological dynamics of the planet, and on the second from the cultural and social diferentiation of groups of individuais, an attempt was made to verify the viability of crossing concepts and realities which, although very distinctive, do have something in common, opening the possibility for another perspective of international relations, specially concerning conflicts in the global system, not only between politicai units (states) but also involving their population components.
Key-Words: Internation al Politics; Theory Models; Ethnic and Religious Groups.
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1. Tekton: A Arquitechtra Geológica
A Terra assemelha-se a um organismo vivo, em resultado de múltiplas forças e fenómenos naturais que lhe proporcionam um dinamismo constante, desde o seu núcleo à posição orbital relativa no sistema solar. Algumas destas alterações são observáveis no nosso quotidiano, como as condições atmosféricas e o movimento dos oceanos. Outras são visíveis mas menos óbvias, devido à sua lentidão, como a rotação celestial nocturna. Outras ainda ocorrem em permanência, como a subtil deslocação de glaciares e no tocante a alguns vulcões activos, situando-se no patamar da imprevisibilidade as erupções vulcânicas súbitas, os terramotos e os tsunamis, cujo poder molda literalmente a superfície do nosso planeta e nos recorda da existência de um mundo geológico primordial, sob a crosta terrestre. É nesta perspectiva que esta parte do artigo se foca, designadamente nas placas tectónicas, que se movem imperceptível mas inexoravelmente há centenas de milhões de anos. A palavra grega tekton, construir, ou relativo à construção,1 está na origem da teoria da Tectónica de Placas, que resultou fundamentalmente da junção da hipótese da Deriva dos Continentes de Alfred Wegener com a da Expansão dos Fundos Oceânicos de Harry Hess, formuladas em 1912 e em 1960, respectivamente.2 No primeiro caso, Wegener focou-se na morfologia dos continentes, que se assemelhavam a um puzzle que encaixava em tempos remotos num supercontinente, a pangeia. A descoberta de fósseis, rochas e vestígios climáticos similares em diferentes continentes suportava a sua teoria, mas não explicava como se processava. Entre outros contributos, como o do magnetismo das rochas, o mais importante, que consubstanciaria as ideias de Wegener, foi o de Hess, estabelecendo-se que uma "nova crosta é formada pela intrusão magmática ao longo das cristas oceânicas, afastando-se depois continuam.ente destas".3 Por outras palavras, a crosta. está em permanente expansão, com a emergência de novo material do interior da Terra a partir de fissuras na crosta, vales em cadeias de montanhas submarinas, denominados rifts. Como veremos adiante, o reverso desta dinâmica (destruição da crosta) também ocorre, dando origem a fossas oceânicas. A mecânica desta construção, em que de facto são as placas tectónicas que se movem - e nas quais assentam os continentes - conduz-nos à composição 1 Consultar, por exemplo, a introdução de Planetary Tectonícs (pp.l-14), da autoria de Thomas Watters e de Richard Schultz, publicada em 2009 pela Cambridge University Press. 2 A primeira edição alemã da tese de Wegene1~ intitulada The Origins ofContinents and Oceans, remonta a 1915, enquanto o artigo de Hess, "History of Ocean Basins", surgiu na obra coordenada por Engel, A.J., James, Harold & Leonard, B.F., Petrologic Studies: A Volume in Honor ofA. F. Buddington, Geological Society of America, Boulder, Colorado, 1962, pp.599-620. 3 Oreskes, Naomi (ed.), Plaf:e Tectonics: An. Insider's History ~f the Modern. Tl1eory of Earth, Westview Press, Boulde1~ Colorado, USA, 2001, p.39.
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química e física interna da Terra, cujas características nos permitem vislumbrar as forças motrizes que estão na génese do dinamismo geológico. A figura seguinte proporciona uma comparação entre os modelos baseados na composição química e no estado físico dos principais materiais que constituem o interior do planeta.
Figura 1 - Matrizes Química e Física da Terra Matriz Fis<ca Profundidade
Granno e 1 Crosta __ -~agltp __ .:. _3§}!)!;5!).1_ + - - - - - -- --1
I
Materiais
I
Utosfera
100-150f<m :Sólidos Rígidos I
~---------------+------- ~---------
Astenosfera
Ferro
670Km
:
Sólidos
1---------+--·----- ~- P~f~H~<Í'!~is_
e
2900Km
Magnós10
I I I
Manto
,
tJlesosfera
29001<m
:
I
I
I
I
Rig!dos
- .. -- -·--- .. -·:-·-- --·--- +----------+------------1-- -- -----:-- --- -· - -· Núcleo Externo
:
Ferro e Níquel :
6370I<m
5'150Km
:
Liquidas
- ··----- ~- --- - ----
Nucleo Núcleo Interno
63701<m
:
Sólidos
-----------1------~----------------~---------------~------~----~
Fonte: Adaptado de Pidwirny, Michael, "Structure of the Earth", in Fundamentais of Physical Geography, Okanagan University College, Kelowna, British Columbia, Canada, 2006, pp. 271-272. Para o raciocínio que se pretende expOr, interessa sobretudo o modelo físico e, dentro deste, as camadas da Litosfera e da Astenosfera. A primeira, mais rígida, engloba a crosta e a parte superior do manto, enquanto a segunda é composta por matéria mais flexível, passível de sofrer deformações. É na relação entre estas duas que se concentra a atenção, sendo de realçar que as placas tectónicas também são denominadas de placas litosféricas e que se deslocam sobre a Astenosfera, cujas características físicas - materiais que formam um composto algo similar à gelatina - possibilitam a sua movimentação. A interacção entre o interior da Terra e a sua camada mais superficial assemelha-se a um movimento circulm~ representado graficamente na figura seguinte, que nos permite visualizar as forças subterrâneas em presença e as suas consequências na superfície.
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Figura 2 - Correntes de Convecção e Repercussões na Litosfera Fossas e Rifts Litosfera Astenosfera
v
c----~
Mesosfera
Â
c=~
Núcleo Externo Núcleo Interno Teoria 1 Convecção Apenas na Astenosfera
Teoria 2 Convecção na Astenosfera e na Mesosfera (rvtanto)
Fonte: Adaptado de Monroe, James & Wicande1~ Reed, The Changing Earth: Exploring Geology and Evolution, Brooks I Cole, Cengage Leaming, Belmont, California, USA, 2009, p.52.
O motor da dinâmica de placas é o calor emanado do interior da Terra, que provém da "decomposição de elementos radioactivos( ... ) no núcleo e na parte inferior do manto" 4 ou Mesosfera. Sob pressão, a rocha aquecida da Mesosfera tende a emergir naturalmente na Litosfera, sob uma forma viscosa (a lava), onde arrefece e se torna mais d ensa e pesada, tendendo posteriormente a "afundar-se" na sua camada original, a Astenosfera e o Manto. Este ciclo é infinito e perpetua·-se pelas correntes de convecção termais - ainda sendo objecto de debate se se cingem à Astenosfera ou abrangem todo o Manto - que explicam a emergência e a submersão da rocha magmática entre a Litosfera e a Mesosfera, um pouco à semelhança das correntes marítimas, neste caso originando cadeias montanhosas e fossas oceânicas. E é no âmbito deste processo que, na Litosfera, se enquadram os fenómenos d as placas tectónicas e do vulcanismo, em que existem paralelismos óbvios. Existe uma multiplicidade de p lacas tectónicas, de diferentes dimensões e interligadas, no sentido em que a deslocação de uma se repercute nas outras, • Monroe, James & Wicander, Reed, The Changing Earth: Exploring Geology and Evolution, Thomson Brooks I Cole, Cengage Learning, Belmont, California, USA, 2009, p.Sl.
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num efeito dominó à escala global,S As fronteiras das placas são usualmente turbulentas, em termos geológicos, tendo sido categorizadas em três agrupamentos: divergentes, convergentes e transformantes} a seguir detalhadas e acompanhadas de uma visão gráfica, complementar à da figura 2. a)
b)
c)
Fronteiras Divergentes ou Construtivas: Localizam-se nos rifts, ou dorsais terrestres e oceânicas, onde se processa a criação de novo materiallitosférico, como se explanou brevemente a propósito da teoria da expansão dos fundos oceânicos de Hess; Fronteiras Convergentes ou Destrutivas: Usualmente associadas a fossas oceânicas, que surgem devido à destruição da Litosfera, que regressa à Astenosfera e à Mesosfera, razão pela qual tais zonas também são denominadas de subducção. Em terra firme, este fenómeno resulta na formação de cadeias de montanhas; Fronteiras Transformantes ou Conservativas: Nesta categoria não existe criação nem destruição da Litosfera, apenas contacto, deslizante, entre placas, como ao longo de falhas (transformantes) transversais a rijrs.
Cada tipologia de limites entre placas está associada a diferentes fenómenos que ocorrem na crosta terrestre. No caso das fronteiras em que as placas divergem, que constituem pólos de construção da crosta terrestre, a enorme energia das correntes de convecção provoca falhas, fissuras, que assumem a forma de vales ou rifts, oceânicos ou terrestres, como sucede no Atlântico e na África Orientat respectivamente. Em relação às fronteiras em que as placas convergem, ou colidem, se tal envolver placas com diferente densidade, a situação mais comum é de que a mais compacta - usualmente oceânica, por contraposição com uma terrestre, ou continental- desliza para baixo, para a Astenosfera, sendo o oposto das zonas de criação da crosta, ou seja, são locais de subducção, em que a Litosfera se dilui no caldo magmático, originando uma fossa (como as Marianas) ou uma cadeia de montanhas (os Andes, por exemplo), consoante o embate decorra nos oceanos ou em terra firme. Independentemente de o meio ser líquido ou sólido, as áreas de subducção estão frequentemente relacionadas com a existência de vulcões. Estes emergem no contorno morfológico das placas, como é o caso do Anel de Fogo do Pacífico, sendo as ilhas vulcânicas outro dos sinais a ter em consideração, reflectindo neste caso a colisão entre placas oceânicas. No tocante às fronteiras transformantes, em que as placas registam um atrito paralelo entre si, a energia acumulada liberta-·se sob a forma de terramotos e de deformações no terreno, sendo o exemplo mais notório o da Falha de Santo André, na Califórnia.7 'Sobre esta questão é útil a leitura da obra de Athelstan Spilhaus, Atlas of the World with Geophysical Boundaries, publicada em 1991 pela American Philosophical Society. 6 Cf. Lev:in, Harold, Tile Em·th Through Time, John Wiley & Sons, Hoboken, New Jersey, USA, 2010, p.l87. 7 Consultm; por exemplo, Silverstein, Alvin, Silverste.in, Virgínia & Nunn, Laura, Plate Tectonics, Twenty-First Centuq Books, Mirmeapolis, USA, 2009, pp.35-42.
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Figura 3 - Fronteiras entre Placas e Fenómenos Associados Tipo de Fronteara
Impacto na litosfera
Divergente I Construtiva
Criação de Nova Crosta, Formação de Vales Oceânicos e Terrestres rlfts . Terramotos, Ilhas Vuldlnicas
Convergente I Destrutiva
Destruição da Crosta, Formação de Fossas, Cadeias de Montanhas. Vulcões, Ilhas e Eru ões Vulcânicas
Transformante I Conservativa
Falhas, Deformação do Terreno Terramotos
Agregando os dados acima expostos, obtemos a seguinte visão panorâmica do dinamismo do nosso planeta.
Figura 4- O Ciclo Tectónico (IIQ5TR
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Fontes: Adaptação a partir das obras de Lowrie, William, Fundamentais of Geophysics, Cambridge University Press, Cambridge, UK, 1997, p.330, Pidwimy, Michael, "Structure of the Earth", in Fundamentais ofPhysical Geography, Okanagan University College, Kelowna, British Columbia, Canada, 2006, pp. 277-278, Williams, Linda, Earth Science Demystified, McGraw-Hill, New York, USA, 2004, p.65 e Bridge, John & Demicco, Robert, Earth SU!face Processes, Landfonns and Sediment Deposíts, Cambridge University Press, Cambridge, UK, 2008, pp.10-11.
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2. Ethnos: A Construção Étnica Não obstante possuirmos uma linha evolutiva ancestral comum, enquanto elementos da espécie homo sapiens, bem como uma tendência inata para a vivência grupal, ao longo da nossa existência fomos divergindo em termos de características físicas e culturais, em virtude de processos migratórios, de adaptação a diferentes ambientes climáticos e da consequente emergência de mundividências e modos de vida distintos. Na realidade, à semelhança da vertente geológica, também as identidades sociais, que assentam nas especificidades face a outrem, se pautam por uma dinâmica de construção, de engenharia identitária, em que todos participamos, de forma mais ou menos consciente. Efectivamente, qualquer identidade social, individual ou colectiva, remete sempre para as diferenças em relação aos outros, mormente no reconhecimento destas, tanto por parte dos que as partilham como p elos que lhes são estranhos. Tal implica contacto entre grupos ou tecidos sociais culturalmente distintos e que se concebem como tal. Denominam-se etnias, termo que deriva da palavra grega ethnos, que significa, literalmente, povo. Assim, quando nos referimos a etnias, estamos de facto a reportarmo-nos a povos detentores de uma identidade própria. A ligação a um espaço territorial é fundamental, não só por este se constituir como o berço geográfico da identidade étnica como por ser palco da sua gradual emergência, mormente no tocante a tecidos sociais adjacentes. Por outras palavras, uma identidade étnica é também resultado de um processo de construção, endógeno e exógeno, abrangendo esta última vertente as relações com grupos vizinhos, que por sua vez contribuem para a constatação de diferenças entre as partes. A cristalização destas experiências de interacção torna-se parte integrante da memória histórica das etnias, que sem esta se desvanecem. E por este motivo que não há etnias sem História, sendo as suas raízes o seu passado concreto. Quanto à vertente endógena, para Smith, a formação e distinção das comunidades étnicas é um fenómeno estreitamente enraizado nas famílias, na cultura e na tradição, emergindo da partilha, por parte das células familiares, de um conjunto de valores, mitos ancestrais, símbolos e memórias históricas, que designa por "complexo mito-símbolo" ou núcleo da etnicidade. Subjacente está uma forte ligação à tradição, expressa num desejo de protecção da herança cultural face a outros grupos, bem como de transmissão de tal legado aos descendentes.8 Cohen também privilegia esta abordagem simbólica da etnicidade, situando as fronteiras de uma comunidade nas mentes dos seus membros e relevando, tal como Wallerstein,9 a interacção com outros grupos, ao considerar que qualquer "diferença [face ao] mundo exterior pode ser ( ... ) utilizada como recurso para a sua fronteira. [... ] As pessoas constróem simbolicamente a comunidade, tornando-a "Cf. Smith, Anthony, Tlu Etlmic Origins ofNations, Blackwell Publishers, Oxford, UK, 1996, p . 15. 9 Consultar Wallerstein, Immanuel, 'Ethnicity and National Integration in West Africa' in Cahiers d' Études Africaims, N.0 3, Paris, France, 1960, p. 129.
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um ( ... )repositório de significado e um referencial da sua identidade,"10 individual e colectiva. Por outras palavras, as diferenças culturais constituem fronteiras simbólicas, mas ao mesmo tempo reais, emergindo "o passado [como] um mapa [cognitivo] para a acção contemporânea." 11 Explicitando, a consciência étnica é a expressão contemporânea de relações sociais (do passado) petrificadas no tempo e culturalmente memorizadas. A etnicidade não seria politicamente operacional, no presente, sem a memória histórica (por vezes longínqua), o que origina formas de mobilização social que não correspondem objectivamente ao contexto actual mas sim à visão deste condicionada pelas formações sociais do passado. Assim, a expressão étnica é efeito subjectivo de um contexto presente na estrutura social mental e historicamente produzida, que provoca o comportamento e a resposta do grupo relativamente ao fenómeno contemporâneo. A etnicidade não só resulta de uma trajectória histórica como constitui um fenómeno social de permanente construção-descontrução e mestiçagem, que conduz gradualmente à distinção do Outro. É diferente de outras identidades, como a classe social ou a especialização profissional, que são elementos socialmente identificáveis, objectivos e que existem independentemente de uma consciência étnica. Surge aqui um potencial problema que é pertinente endereça1~ dado que é passível de suscitar dúvidas quanto à unidade grupal. Alguns autores acreditam que a classe social se tornou a principal linha divisória nas sociedades modernas, mais relevante do que a própria etnicidade, enquanto outros defendem a solidez das "afinidades primordiais que derivam da pertença a um grupo étnico."12 O conceito de ethclass, idealizado por Gordon, permite ultrapassar esta questão, ao fundir etnia e classe num "binómio estruturador das identidades. [Assim,] se em algum momento (... ) a classe parece sobrepor-se ao efeito da etnia, noutros ( ... )dilui-se para se afirmar uma identidade étnica que confere coesão simbólica à comunidade."13 E, como refere Cohen, são as diferenças entre membros de uma comunidade que proporcionam a vida social quotidianaY As contribuições de Ranger e Hobsbawm sublinham o aspecto da união entre os membros d e um grupo a partir da. noção de tradição, definida como um leque de práticas reiteradas, impregnadas de simbolismo e de referências ao passado, visando inculca1· crenças, valores e comportamentos exclusivistas.15 Neste sentido, as tradições simbolizam e asseguram laços de lealdade, de coesão de um grupo com uma identidade própria, sendo muito adequadamente designadas por Ranger d e rituais de exclusividade.
°Cohen, Anthony, The Symbolic Construction ofCommunihJ, Routledge, London, UK, 1985, pp.117-118.
1
Cohen, Anthony, op.cit., p. 99. Hutnik, Nimmi, Ethnic Minority Identihj, Oxford University press, New York, USA, 1991, p.17. Ver também Maphai, Vincent T., 'Liberal Democracy and Ethnic Conflict in South Africa' in Glickman Harvey (ed.), Etlmic Conflict and Democratization in Africa, African Studies Association Press, Atlanta, USA, 1995, p. 76. 13 Saint-Maurice, Ana, Identidades Reconstruídas: Cabo-Verdianos em Portugal, Celta Editora, Oeiras, 1997, p. 2. 14 Cf. Cohen, Anthony, op.cit, p . 88. 15 Cf. Hobsbawm, Eric & Ranger, Terence (eds.), The Invention of Tradition, Cambridge University Press, Cambridge, UK, 1997, pp. 1-19. 11
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A etnicidade é uma expressão identitária globalizante de segmentos de populações e implica a afirmação de quem se é. Paralelamente, esta declaração voluntária remete para um passado colectivo mitificado, sendo precisamente por isso que há uma ligação acentuada com o transcendental, com a religião, não sendo raros os povos que atribuem eventos pretéritos e mesmo a sua própria existência ao divino. Estas constatações enquadram a vertente política da etnicidade. A manipulação ou a rejeição da etnicidade é muitas vezes uma estratégia política para a aquisição e retenção do poder político. A mobilização política da etnicidade ocorre quando um movimento étnico se politiza ou quando um movimento político tende a explorar o facto étnico na sua estratégia, em conjugação com a componente ideológica. É pertinente realçar que a identidade étnica, enquanto reflexo de um leque de adesões identitárias, não constitui a forma determinante da acção política, mas a opção pela sua activação está ligada aos enredos sociais do momento. Vail afigura-se como particularmente interessante na análise das causas da criação, da manutenção e do crescimento da consciência étnica, dissertando sobre o seu apelo ideológico e perspectivando-a como instrumento de domínio político. 16 Do seu raciocínio importa reter as noções de corretores culturais, os responsáveis pela mensagent étnica, identificados sobretudo como intelectuais e clérigos, aos quais compete o delinear das directrizes culturais e assegurar a socialização dos jovens, visando manter a unidade e as fronteiras do grupo étnico. Quanto à atracção da ideologia étnica importa compreender a sua duplicidade, uma vez que tanto remete para o passado (de que deriva) como para a adaptação a transformações sociais em curso. Constitui assim um mecanismo de adaptação a uma realidade dinâmica mas também de garantia de que esta se processa alicerçada na manutenção d e um conjunto de valores tradicionais que favorecem a organização social do grupo. Esta assume-se como uma base de conforto, de estabilidade e de tentativa de controlo da mudança. É neste sentido que Vail afirma que uma comunidade está, ou procura, ancorar-se na etnicidade, conduzindo-nos a remissão para o passado aos agentes culturais mencionados, mormente à sua acção em prol da preservação de uma forma de vida. Este último aspecto desemboca novamente nos pilares sobre os quais assenta a coesão de uma comunidade, permitindo-lhe funcionar como um grupo étnico, assim como a sua auto-percepção. O estudo de Anderson sobre os processos pelos quais as nações são imaginadas e modeladas, de forma a corresponderem às exigências das alterações sociais, constitui uma outra abordagem a considerar. Da sua obra destacam-se os aspectos relacionados com a língua, que situa na base das consciências nacionais devido "à sua capacidade para gerar comunidades imaginárias, construindo de facto solidariedades particulares."17 Assim, a exlusividade linguística constitui Consultar Vai!, Leroy (ed.), 11'le Creation ofTribalisnz in Southem Africa, Universily of Columbia Press, Berkeley, USA, 1991, pp. 1-19. 17 Andersen, Benedict, Imagined Communities: Rejlections on the Origin and Spread ofNationalism, Verso, New York, USA, 1991, p. 133. 16
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uma das variáveis mais importantes d e diferenciação e de coesão dos grupos. Smith acrescenta que "os factores religiosos [também são] elementos centrais na cristalização e manutenção da identidade étnica/'~8 atribuindo aos clérigos a função de guardiães comunitários. De facto, múltiplos autores convergem na visão d e que os factores que mais contribuem para a distinção das etnias são a língua, a religião, as práticas tradicionais e os ritos e símbolos associados a m emórias históricas. A vida familiar também se insere nesta dimensão cultural, tal como outras instituições e vertentes, como o sistema educativo e os meios de comunicação social. Em termos gerais, podemos designar este aglomerado como um conjunto de valores étnicos fundamentais, que constituem as linhas de fractura culturais- fronteiras- do grupo face ao exterior. Este repertório (matriz) cultural é transmitido às novas gerações por todos nós, desde o lar às instituições do Estado. Todos somos construtores étnicos, desde logo na família, o bloco nuclear de qualquer grupo humano, no seio do qual nascemos e somos socializados, alargando-se paulatinamente os elos ao tecido comunitário e à sociedade em geral. Se inicialmente somos sujeitos passivos neste edifício identitário que vai sendo edificado, posteriormente tornamo-nos activos na reprodução de uma forma de vivência, designadamente no que respeita aos nossos descendentes. Assim, existe um ciclo de influências e de reprodução de aspectos culturais que são inerentes ao grupo étnico em que nos inserimos e de que fazem também parte as relações com o Outro. A nossa impressão digital cultural expressa-se na assimilação da língua, instrumento de comunicação que constitui um dos aspectos mais relevantes da identidade étnica, nas crenças religiosas que absorvemos assim como em aspectos mundanos mas que denotam as diferenças fazem a outras comunidades, como a gastronomia. Tudo isso recebemos desde que o nascimento e reproduzimos quando atingimos a idade adulta. Não é algo imposto, é simplesmente assim que se processa a reprodução das identidades, através da construção subconsciente de indivíduos semelhantes na sua visão do mundo e na forma de estar e viver.
3. Pangeia e Babel Nos pontos anteriores descreveram-se processos, geológicos e humanos, que, não obstante a sua génese diferenciada, em comum possuem o facto de serem resultado de uma construção, sendo certo que a destruição é uma variável também presente, como a outra face de uma mesma moeda. Existem ciclos, de criação e destruição, tanto no que concerne à crosta terrestre como os relacionados com a actividade humana. Se no primeiro caso tal nos conduz ' às correntes d e convecção e a movimentos de forças naturais em constante convulsão, designadamente aos pontos em que o magma ascend e à superfície, regressa às profundezas e às alterações morfológicas resultantes da colisão entre 16
Smith, Anthony, op.cit., p. 124.
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placas tectónicas, no segundo descortinamos um paralelismo no caldo cultural subjacente à emergência das etnias, um magma cultural se quisermos, um substrato primordial derivado da necessidade inata do ser humano para viver em colectivo, surgindo gradualmente diferentes moldes grupais, resultado de díspares experiências comunais e face ao Outro, que lentamente vão edificando mundividências e identidades próprias, distintas. A relevância das diferenças entre grupos justifica que alguns autores tenham tido um impacto tão assinalável, devido às suas perspectivas sobre relações internacionais e abordagens da conflitualidade. A obra seminal de Samuel Huntington19 constituiu um primeiro exemplo, sendo o mundo dividido em grandes massas civilizacionais, agregando povos culturalmente mais próximos em placas similares às tectónicas. Apesar de todas as categorizações serem subjectivas, o raciocínio de Huntington suscitou enorme interesse, talvez pela sua firme convicção de que os conflitos do pós-Guerra Fria ocorreriam de acordo com as linhas culturais e religiosas. Outros académicos, como Niall Ferguson/0 H.íchardson e Resendiz/1 Mohan Guruswamy/2 Beck e Cowan23 ou Gangale/4 procuraram aplicar uma fórmula similar ao estudo de fracturas geopolíticas, frequentemente apenas com referências ténues às placas tectónicas e às repercussões das suas colisões, para compreender a dinâmica económica, o grau de violência presente nas confrontações etno-religiosas e fenómenos como o terrorismo. É pertinente enfatizar que, não obstante as comparações entre placas tectónicas, grupos culturais e conflitualidade não constituírem exactamente algo inédito, neste artigo a abordagem em si é original, resultando de um raciocínio multidisciplinar próprio edificado ao longo dos anos, que não pretende ser uma descrição trivial de paralelismos mais ou menos óbvios e laterais, antes se concentrando no aprofundamento das vertentes menos visíveis que sustentam o dinamismo tectónico e das identidades sociais. Partindo deste ponto, o objectivo não é o de desenvolver uma tese exaustiva, mas sim o de proporcionar uma grelha analítica útil para o entendimento de uma variedade de fenómenos internacionais, sendo de realçar que existe uma potencial aplicabilidade a um vasto leque de patamares, desde a matriz do sistema mundial, à economia, à organização da sociedade, aos partidos políticos e até à esfera individual. De facto, enquanto indivíduos também nos podemos conceber como uma placa tectónica, que durante a sua vida se edifica, solidifica e interage com múltiplas The Clash of Civilizations and the Remaking ofWorld Order, Simon & Schuster, New York, USA, 1997. The War of the World: Twentieth-Century Conflict and the Descent of the West, Penguin Press, New York, USA, 2006. 21 On the Edge of Law: Culture, Labor and Deviance on the South Texas Border, University of Texas Press, Austin, USA, 2006. 22 "The Looking Glass War in the Himalayas" in Scaling Himalayan Peaks, India Defence Consultants, New Delhi, India, 2003. 23 Spyral Dynamics: Mastering Values, Leadership and Change, Blackwell Publishing Ltd., Malden, Massachusetts, USA, 1996. 2 " Economic Tectonics: The Charzging Map ofGlobalízation, San Francisco State University, San Francisco, California, USA, 2003. 19
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outras. Acresce que hoje é usual constatar-se que a História se repete- não existe um fim da História, como defendia Fukuyama,25 mas um reinício de ciclo- e, mesmo inconscientemente, no nosso quotidiano tendemos a recorrer a expressões geológicas como "terramoto" político, "abalo" económico ou "erupção" social para classificar fenómenos que ocorrem na sociedade. Geneticamente somos idênticos, enquanto espécie, emergindo as diferenças ao nível fenotípico - do foro do observável, ou seja, as características físicas que derivam da mencionada adaptação a diferentes zonas geográficas. Assim se explica a existência de diversas raças - como a caucasiana ou a negróide na nossa espécie e, dentro daquelas, dos grupos étnicos. Como anteriormente referido, estes distinguem-se em virtude da sua exclusividade linguística, das crenças religiosas, da fidelidade a práticas tradicionais, ritos e símbolos associados a mitos ancestrais26 e a memórias históricas. Estes factores formam o conjunto de valores étnicos fundamentais que estabelecem as fronteiras -as linhas de fractura culturais- face ao exterior e que são reproduzidas pelas famílias e pelo colectivo do grupo. Neste sentido, existe de facto uma construção de pilares culturais, alvo de cuidados permanentes e em que todos participamos, como membros de uma etnia. A pangeia genética humana fragmentou-se ao longo da nossa evolução, formando placas étnicas, icebergs humanos se quisermos, que se deslocam e interagem, seja através de movimentos migratórios27 ou por possuírem fronteiras entre si, que não são imutáveis mas sim dinâmicas. Em numerosas culturas, os ciclos são a forma representativa de múltiplas facetas da sua vivência, desde as etapas da vida dos indivíduos, à astronomia, à religião - por exemplo, a noção de reencarnação - à agricultura, à economia, à política e a períodos históricos. Ao nível da sociedade internacional podemos perspectivar os movimentos circulares das correntes de convecção como ciclos de alternância entre fases áureas e de decadência dos povos, tendo subjacentes a capacidade de empreendedorismo, a inovação tecnológica, o modelo económico e mesmo político. Se não existisse dinamismo, fruto da competição entre povos, tendo subjacente o pod.et~ nas suas mais variadas formas, civilizações que na Antiguidade predominavam 1 claramente no panorama regional, mormente no Mediterrâneo, ainda manteriam ~ idêntica posição. A noção de ciclo proporciona-nos uma visualização gráfica do percurso I dos povos e dos choques entre estes, na forma de conflitos, cuja força motriz é o nacionalismo, mais especificamente o etno-nacionalismo. Em grupos culturais com raízes similares e que normalmente são adjacentes, poderíamos pensar que .. o relacionamento se assemelharia ao das placas transformantes, enquanto que as , convergentes e divergentes expressariam zonas de elevada conflitualidade, sendo ~ que nas últimas a colisão resultaria no predomínio de um povo sobre outro. Mas ; 25
No seu artigo "The End of History?", publicado na revista The National Interest de 1989, transposto ~ em maior detalhe para a obra de 1992 The End of Hístory rmd the Last Man. 26 Alguns, como catástrofes diluvianas e eras planetárias, surgem como uma herança comum. 27 As diásporas são um caso paradigmático do apego à identidade original, transportada como r bagagem cultural para outro território pelas primeiras gerações.
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a realidade é mais complexa e, talvez porque a proximidade geográfica derivou numa acumulação de memórias traumáticas e devido a intuitos expansionistas, verificamos amiúde que as maiores atrocidades são frequentemente cometidas contra povos que supostamente seriam culturalmente menos distantes, constituindo o exemplo extremo uma guerra civil, entre membros de uma mesma placa étnica, usualmente por motivações ideológicas, como sucedeu em Espanha, na década de 1930. Tal não invalida que se edifiquem unidades políticas, económicas e culturais como a União Europeia, mas espelha contradições inerentes ao ser humano e que podem conduzir-nos ao que designamos por "interesse nacional". Não raramente, este conceito constitui uma justificação para os meios a que as unidades políticas recorrem para atingirem os seus objectivos, independentemente do seu cariz. Na origem da esmagadora maioria dos conflitos que ocorreram ao longo do historial da Humanidade estão alguns factores cuja omnipresença é difícil de ignorar: o instinto de sobrevivência, o desejo de expansão territorial e o prestígio face ao Outro. Estas vertentes possuem mmificações múltiplas e que importa registm~ como sucede com a ambição de auto-determinação, o acesso a recursos naturais e, não menos importante, a consolidação ou a amplificação do poder já detido. Dito de outra forma, sendo o objectivo primário de qualquer espécie a sua sobrevivência, tal pode conduzir a projectos de poder e a desejos interligados, como o da obtenção de prestígio, de recursos e o da dominação - por vezes assimilação ou a destruição -do Outro. Esta última vertente pode assumir diferentes contornos, constituindo exemplos a matriz dos impérios coloniais europeus, a ideia de" espaço vital" germânica na II Guerra Mundial ou a ocupação efectiva do Tibete. No seu aspecto mais sombrio, em que frequentemente temos de contemplar a vertente religiosa, podemos incluir as "limpezas étnicas" e o genocídio, sendo que no primeiro caso seria mais adequado o termo purga ou desertificação étnica de um território, enquanto que no acto genocida o objectivo é a destruição do Outro, a sua obliteração enquanto grupo diferenciado, como sucedeu com a atitude de Roma perante Cartago. A História do homo sapiens é essencialmente uma de competição pelo poder, constituindo o prestígio o reflexo do mesmo, um reconhecimento pelo status que se conseguiu atingü~ algo visível em obras arquitectónicas mais ou menos monumentais, edificadas para tentar eternizar a etnia, os seus governantes e eventos mais marcantes, o mesmo se aplicando aos épicos escritos. As etnias mais poderosas tendem a subjugar as mais frágeis, alcançando certos objectivos e procurando certificar-se de que o Outro não o esquece. Em parte, a diplomacia ainda possui reminiscências desta forma de estm~ procurando-se que a representação oficial no exterior espelhe a relevância do Estado (na verdade, do povo) a que se pertence. O poder é assim uma variável transversal e expressa-se em quase tudo o que fazemos e desejamos: quem melhor do que os indivíduos integrantes de um grupo diferenciado para delinear estratégias de auto-preservação? Para tal, têm de ser livres para tomar decisões sobre o seu destino, ou seja, têm de deter a capacidade para exercer controlo (poder) sobre o mesmo. Se tal incluir a opção pela aquisição de território ocupado por outrem e tal for
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considerado imperioso, devido ao crescimento populacional, à necessidade de obter mais recursos naturais e, em consequência, resultar num poder acrescido, na História verificamos que poucos líderes hesitaram em iniciar conflitos. Tais indivíduos são catalisadores das identidades, focando-as em objectivos precisos, recorrendo à planificação de uma acção política assente numa matriz cultural exclusivista que, não raro, se conjuga com uma percepção de superioridade, ou primazia- por vezes assente em argumentos divinos -face ao Outro. No pós-Guerra Fria, que significou a desagregação de gigantescas placas políticas, sociais, económicas e militares antagónicas/8 o desanuviamento das relações internacionais derreteu" glaciares humanos" e linhas de comportamento cristalizadas derivadas de ideologias totalizantes, causando o estilhaçar da placa da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e a consequente reemergência de Estados soberanos. E nestes assistimos a separações pacíficas, como sucedeu com os checos e os eslovacos, ou ao violento ressurgir de fissuras etno-religiosas, despertadas por políticos radicais mobilizadores das identidades parcelares, como na ex-Jugoslávia. Ainda hoje se verificam tendências secessionistas em diversas áreas do globo que, tal como as guerras, visam deslocar fronteiras, espelhando o poder militar de uma unidade étnica. Quanto ao fenómeno do terrorismo, está frequentemente associado à ânsia de possuir um território próprio, ou de impor ao Outro a sua mundividência, mormente religiosa, o que na prática também deriva em estratégias expansionistas. As fronteiras dos Estados não são apenas culturais, ou civilizacionais, são políticas - abrangendo o subsolo, o espaço aéreo e marítimo. As "terras de ninguém" remanescentes no globo são as águas e o espaço aéreo internacionais, mas já não há terra firme disponível. E é sobretudo aqui - sem desvalorizar as disputas por limites marítimos e recursos- que encontramos zonas de colisão entre placas humanas, onde se luta pelo direito à auto-determinação ou pela posse ancestral de um território. Nesta última situação, é extremamente difícil evitar um conflito, devido à reclamaçã.o de um mesmo berço geográfico identitário, pelo que assistimos a um clima de tensão, similar à pressão geológica, · sem um fim previsível, como sucede há décadas entre israelitas e palestinianos 1 e, mais recentemente, entre sérvios e albaneses no Kosovo, não se vislumbrando ~ neste espaço uma data de retirada das forças internacionais, único factor que , impede novos confrontos. Note-se que o núcleo geo-histórico de um grupo 1 equivale ao útero materno, é o local onde emergiu a etnia cujas raízes assentam nos sedimentos dos seus antepassados, semelhantes a estratos geológicos. Constituem o nosso húmus e por isso os epicentros geográficos das identidades das nações são .; tão fundamentais, justificando que nenhuma etnia se predisponha a prescindir , dos mesmos, seja em que circunstância fôr. Ocasionalmente, como sucedeu com ~ os israelitas, o elo com o território interrompe-se, mas não psicologicamente, ~ 1 permanecendo as memórias na mente e nos escritos (muitas vezes sagrados) da etnia. O seu país torna-se mental, mas nem por isso menos real. a Na maior parte dos Estados a etnicidade tem uma conotação negativa 28
Grosso modo, os blocos ocidental, de leste e do Movimento dos Não Alinhados.
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porque é associada a tendências separatistas, que se constituem como elementos de disrupção das fronteiras historicamente estabelecidas ou acordadas. A atitude generalizada, compreensível até certo ponto - mas que colide com premissas basilares do direito internacional, designadamente no que respeita à auto-determinação dos povos- é a de que o Estado-Nação, unidade básica do sistema internacional, não pode ser posto em causa, sob pena de se abrir urna caixa de Pandora identitária que impulsionaria um tsunami de conflitos relacionados com a revisão das actuais fronteiras políticas. O problema é que estas são, amiúde, meramente formais, não correspondendo às fracturas identitárias, pelo que não conseguiremos evitar futuras erupções grupais etno-religiosas, que estão destinadas a ocorrer sobretudo no que concerne aos povos que na actualidade são órfãos territoriais, desde que mantenham as suas memórias, seja na forma escrita ou transmitidas oralmente.
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DINÂMICAS REGIONAIS E DESAFIOS PARA A COMUNIDADE INTERNACIONAL
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Resumo: Desde Dezembro de 2010 que a região do Médio Oriente e do Norte de África tem atravessado momentos de grande turbulência política, sendo tema d e abertura dos jornais televisivos e ocupando as primeiras páginas de imprensa. É, sem dúvida, um momento histórico sem precedentes naquela região, com repercussões não só a nível regional mas também internacional. Este artigo procura analisar alguns elementos inovadores que caracterizam as revoltas contra os regimes autocráticos na regiã.o e as suas implicações para a estabilidade regional. Dada a sua relevância., analisa igualmente a postura de Israel face a estes acontecimentos bem como o papel do Irão e da Turquia. Por fim aborda , os desafios que se têm colocado à comunidade internacional e à política externa portuguesa na gestão destas crises. Palavras chaves: Primavera Árabe, Revoltas, Ditadura, Médio-Oriente Abstract: The politicai upheavals in North Africa. and the Middle East have dominated international headlines in newspapers around the world. The i Arab spring undoubtedly brings unprecedented change to the region bearing significant regional and international repercussions. This article assesses some of the new elements of the Arab uprisings against autocratic regimes anel their implications for regional stability. It a.nalyses Israel's posture regarding these elevelopments anel eliscusses the role of Turkey and Iran in the region. The article also examines the challenges poseel to the international community and to Portuguese foreign policy in managing these crises. Key-words: Arab Spring, Uprising, Dictatorship, Middle East
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Desde Dezembro de 2010 que a região do Médio Oriente e do Norte de África tem atravessado momentos de grande turbulência política, sendo tema de abertura dos jornais televisivos e ocupando as primeiras páginas da imprensa. É, sem dúvida, um momento histórico sem precedentes naquela região, com repercussões não só a nível regional mas também internacional e que só agora podemos começar a avaliar. Este artigo procura analisar alguns elementos inovadores que caracterizam as revoltas contra os regimes autocráticos na região e as suas implicações para a estabilidade regional. Dada a sua relevância, iremos analisar igualmente a postura de Israel face a estes acontecimentos bem como o papel do Irão e da Turquia. Por, fim abordaremos os desafios que se têm colocado à comunidade internacional e à política externa portuguesa na gestão destas crises. Em primeiro lugar, será importante realçar que o que caracteriza a situação actual no Médio Oriente e no Norte de África é uma grande instabilidade e uma grande incerteza. Esta imprevisibilidade dificulta a tarefa de qualquer observador ou decisor político, sobretudo para delinear prognósticos, estratégias e políticas precisas. Desconhece-se ainda que tipo de governos irão emergir desta turbulência, colocando-se um conjunto de interrogações para as quais ainda não há respostas. Irá desenvolver-se um processo de transição democrática, em particular na Tunísia e no Egipto? Qual a força ou o papel de grupos islamistas no mapa político futuro destes países? Vamos assistir na Líbia a uma capitulação do Coronel Kadhafi ou à partilha do país? Vão alargar-se os protestos na Síria, ou conseguirá Bashar-Al-Assad amordaçar os revoltosos? Qual o destino das tensões e conflitos latentes noutros países vizinhos como o Bahrein e o Iémen? E, finalmente, que tipo de alinhamentos políticos e estratégicos se vão desenhar na região? Seja como for, há que realçar o facto d e, num contexto de regii.nes autocráticos empedernidos, com décadas de domínio do poder e sem qualquer abertura à sociedade civil, se estar face a uma revolta espontânea de grandes franjas d a população, especialmente dos jovens, sem iniciativas externas. Esta revolta espontânea abalou tudo: as estruturas dos regimes, os alinhamentos políticos, os apoios externos e, sobretudo, a convicção a ocidente que só os extremistas islâmicos teriam influência nas grandes massas árabes. No entanto, e apesar do efeito dominó na região e das semelhanças que possam existir entre os vários movimentos em cada país, é também importante relembrar que cada processo é um caso que requer uma abordagem e um tratamento específico por parte da comunidade internacional. As motivações que levaram às revoltas podem ser semelhantes mas o contexto histórico, político e social de cada país é diferente.
Dois cenários: Tunísia e Egipto, Líbia e Síria Neste preciso momento assistimos a dois tipos de cenários diferentes. De um lado, a situação do momento pós-revoltas na Tunísia e no Egipto a qual, apesar de se caracterizar por momentos de turbulência interna, parece a caminho de
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uma transição política e democrática. Do outro lado, alastram-se os conflitos na Líbia e na Síria, onde há um violento confronto armado em ambas as frentes, com ditadores que se agarram ao poder, reprimindo de forma violenta o seu próprio povo. Face a estes últimos desenvolvimentos a comunidade internacional hesita nas medidas a tomar, divide-se e dificilmente fala a uma só voz. A Tunísia foi a pioneira das revoltas árabes. Os protestos que levaram à queda do Presidente Ben Ali em Janeiro de 2011 serviram de fonte de inspiração às revoltas noutros países da região e sobretudo deram um impulso à revolução egípcia, provocando a queda de Hosni Mubarak. Este é um elemento fundamental pois a experiência tunisina vem precisamente dar confiança às populações da região, mostrando que a vontade popular é capaz de produzir mudanças e que os ditadores não são eternos. No Egipto, após a queda de Mubarak, as forças militares assumiram o poder e prometeram levar a cabo nos meses seguintes, uma transição democrática. Apesar de contestado pelos segmentos mais progressistas e liberais d a população, principais impulsionadores da revolução, foi aprovado um referendo sobre a reforma constitucional no Egipto. Eleições parlamentares e presidenciais estão agora previstas para Setembro e Outubro. É provável que o grupo islamista, Irmandade Muçulma na, saia bem posicionado das eleições, apesar de não pretender apresentar nenhum candidato às eleições presidenciais. A grande preocupação do designado movimento democrático da praça Tahrir é precisamente a de não ter tempo para formar uma frente política coerente e estruturas de partido sólidas, o que poderá beneficiar a Irmandade Muçulmana. Resta também saber qual o papel que as forças armadas vão assumir na vida política futura do país. Na Líbia, a revolta contra o Coronel Muammar Kadhafi transformou-se num conflito armado entre as forças rebeldes e a liderança de Kadhafi e conduziu à intervenção de uma coligação de forças liderada pela NATO, com um mandato das Nações Unidas cuja missão se centra essencialmente na protecção de civis contra a chacina de Kadhafi. Os rebeldes queixam-se que precisam de mais apoio da NATO mas o mandato conferido pela resolução das ONU não o permite. O debate internacional centra-se em torno da possibilidade das forças do ocidente armarem os rebeldes, o que ultrapassa os limites da Resolução 1973 do Conselho de Segurança. Um apoio aos rebeldes implica uma participação numa guerra civil, deixando esta de ser uma intervenção de cariz meramente humanitário. Na Síria, as manifestações começaram em meados de Março e têm sido violentamente reprimidas pelo regime de Bashar Al-Assad assente na minoria alawita e que conta com a fidelidade do exército1 e do partido Baath. Estima-se que terão sido assassinados centenas de manifestantes nas últimas semanas. Cerca de 200 membros do partido Baath sírio no poder apresentaram a sua demissão colectiva sob forma de "protesto" contra a violência usada pelas autoridades, causando uma dissidência dentro do próprio regime. 1 O exército sírio, apesar de fortemente controlado pela minoria Alawita, integra pessoas das várias etnias que compõem a sociedade síria como os Sunitas, Druzos e Cristãos.
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A questão da Síria tem também a particularidade de o regime de Bashar Al-Assad ser fortemente apoiado pelo Irão, inclusivamente na repressão das manifestações. Qualquer desenvolvimento na Síria, um dos principais inimigos de Israel, pode ter sérias implicações regionais. Urna situação de desordem caótica na Síria pode rapidamente alastrar-se ao Líbano, dada a forte influência que a Síria tem no grupo militante Hezbollah, hoje com um peso significativo no próprio governo libanês. A Síria é também um elemento chave na aliança que junta o Irão, o Hezbollah e o Hamas. Qualquer alteração de regime na Síria interferirá com este eixo, alterando substancialmente a relação de forças na região. Por estas razões, há ainda a percepção que países como a Turquia, a Arábia Saudita, os Estados Unidos, Israel e o Irão, parecem preferir manter o regime de AI Assad no poder do que se terem de se confrontar com as consequências imprevisíveis de uma mudança de regirne. 2 O que é inovador nestas revoltas?
Mas, se cada um destes cenários tem as suas particularidades, importa salientar alguns elementos comuns a todas estas revoltas: • Em primeiro lugar, a mudança de regimes vem de dentro dos países e não é imposta ou instigada por fora pelas forças ocidentais, como foi o caso tão polémico do Iraque. São movimentos endógenos que seguem urna lógica interna e que foram despoletados pelas populações locais. Há uma massa crítica de jovens e outros sectores da população que hoje têm acesso a mais informação, a mais educação, muitos deles em contacto com o ocidente e com regimes democráticos e por isso têm um termo de comparação. Há actualmente uma geração que exige mais direitos, mais liberdade de expressão, mais justiça social, eleições livres, separação de poderes, melhores condições de vida, o fim da cotTupçã.o das elites no poder e o fim. de regimes repressivos. Este é sem dúvida um elemento sem precedentes naquela região. • Em segundo lugar, contrariamente à prática de protestos em alguns destes países onde era comum queimarem-se bandeiras americanas e israelitas, estas não são na sua essência manifestações motivadas por sentimentos anti-americanos, anti-israelitas ou anti-oddentais, o que revela que não são esses os alvos centrais das suas preocupações, nem do seu combate. • Em terceiro lugar, vemos também que, apesar de motivadas por grupos liberais, o Islão não desaparece do debate político, pelo contrário, ele emerge com mais força. A questão não é se o Islão vai desempenhar um papel ou não mas que tipo de papel irá desempenhar. Na realidade, grupos Islamistas como a Irmandade Muçulmana têm agora a oportunidade 2
BHALLA Reva - "Making Sense of the Syrian Crisis." In Stratfor Globallútelligence, 5 de Maio de
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ideal para participarem no jogo político e democrático nos países onde estão implantados, como é o caso do Egipto. A sua força social e política e a islamização do seu discurso ainda está por verificar. Por agora, estes grupos utilizam a linguagem da democracia e da unidade nacional, mas resta saber como vão evoluir. Neste contexto, não é impossível que se assista a uma polarização da cena política nestes países entre um campo laico, mais liberal, e outro islâmico, mais conservador. A postura de Israel face às revoltas
Israel tem observado com muita atenção e apreensão os desenvolvimentos políticos no Médio Oriente e no Norte de África, tendo em conta a incerteza de quem vai liderar estes regimes a longo prazo, a direcção que estes vão tomar e que relação de forças resultará na equação estratégica regional. As principais preocupações de Israel prendem-se com os seguintes factores: • Apesar de, como já foi dito, as revoltas árabes não serem na sua essência motivadas por nenhum sentimento anti-israelita, há o risco de as mesmas serem instrumentalizadas pela retórica anti-ocídental e anti-sionista pelos grupos islamistas, ou outras forças na região.3 • Uma das preocupações fundamentais de Israel prende-se com a possibilidade de revisão do tratado de Paz com o Egipto. Independentemente do resultado das eleições presidenciais e parlamentares no Egipto, não é impossível que o próximo governo exija uma revisão de alguns elementos do acordo de Paz de 1979. A Irmandade Muçulmana já sugeriu inclusivamente que se submetesse o acordo a um referendo nacional. Por outro lado, o movimento mais liberal pode ter a necessidade de assumir posturas mais nacionalistas anti-americanas e anti-israelitas para poder competir com a Irmandade Muçulmana e apelar ao eleitorado mais radicalizado e conservador nas próximas eleições. • Outra preocupação prende-se com a eventualidade de uma maior volatilidade na Península do Sinai e desta se tornar numa fronteira instável, um safe haven para traficantes de armas locais e grupos jihadistas migratórios. Na óptica israelita, esta península pode tornar-se mais permeável à circulação de grupos como o Hamas e o Hezbollah e à entrada de armamento, possibilidade inquietante para Israel, sobretudo se as forças egípcias se mostrarem incapazes de conter a ameaça terrorista4 • 3
Por exemplo a reacção do Líder Supremo do Irão Ayatollah Ali Khameinei nas suas declarações oficiais em reacção à revolta no Egipto terá acusado o Presidente Hosni Mubarak de cooperar com os Sionistas. Ver "Iran: Riots signs of Islamic awakeníng" ín Ynetnews, 2 de Abril de 2004. Disponível em http: I I www. ynetnews.com IExtl Comp I ArticleLayou ti CdaArticlePrintPreview I 1,2506 ,L-4023909,00.html 4 YAARI Ehud - "The Arab Revolutions: An Israeli Perspective." ln 77w Washington lnstitute for Near East Policy, Policy Watch N" 1778, 15 de Maio de 2011.
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• Israel teme também uma política diferente face ao Hamas em Gaza, nomeadamente depois do acordo entre a Fatah e o Hamas. O governo interino egípcio já anunciou o fim do bloqueio a Gaza e a abertura da fronteira de Rafah, o que constitui um motivo de alarme para Israel que mantém um bloqueio à Faixa de Gaza desde que o Hamas assumiu o controlo do território5. • De um certo ponto de vista, as divisões na região - entre por um lado um Irão chiita e por outro, estados sunitas mais pró-ocidentais como a Arábia Saudita e o Egipto de Mubarak -,beneficiavam Israel, mas agora o novo alinhamento estratégico pode mudar essa relação d e forças. Os novos regimes podem ser mais favoráveis e conciliatórios com o Irão ou menos alinhados com o Ocidente. O governo interino no Egipto já anunciou inclusivamente planos de restabelecimento de embaixadas nos respectivos países. • Finalmente a redução da influência americana e do ocidente na região e o aumento de influência de potências regionais como o Irão e a Turquia, cada um à sua escala e de formas diferentes, não são favoráveis a Israel. A propósito, é importante realçar um aspecto que diz respeito à persistente associação que é feita entre as revoltas contra os regimes autocráticos e o conflito israelo-palestiniano. Muitas vozes invocam a centralidade da resoluçã.o do conflito no contexto desta crise. Ainda recentemente, o Presidente Gül da Turquia publicou um artigo no New York Times sugerindo que o "sofrimento dos Palestinianos tem sido a raiz dos problemas e conflitos na região" ( .. .) e que o futuro destas sociedades "dependerá de uma solução pacífica do conflito Israelo-Palestiniano."6 Líderes ocidentais, inclusivamente de Estados-Membros da União Europeia também alimentam essa narrativa. Ora, se h á lição a retirar destas crises é precisamente que estas nada têm a ver com o conflito Israelo-Palestiniano. Como já foi referido, estas foram revoltas despoletadas por problemas endémicos a estas sociedades e não estão relacionadas com o combate palestiniano pela sua auto-determinação. Insistir recorrentemente nessa associação, está-se a alimentar u ma retórica que camufla as causas principais dos problemas com que se defrontam as sociedades árabes. Uma resolução do conflito israelo-palestiniano é essencial para o futuro dos dois povos e poderá aliviar algumas tensões regionais, mas estas são duas realidades separadas que exigem respostas e abordagens específicas. O papel do Irão e da Turquia A Turquia e o Irão são importantes porque os dois países têm ambições de exercer a sua influência na região. Nesse sentido, as revoltas e a mudança de regimes na região são uma oportunidad e que ambos vão procurar aproveitar em 5
Ver: "Egypt to open Rafah border crossing border" ln Middle East Online 29 de Abril de 2011. Dispotúvel em http:/ /www.middle-east-online.com/ english/?id=45857. 6 GUL Abdullah- "The Revolution's Mission Peace." In New York Times, 20 de Abril de 2011.
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seu benefício. O regime iraniano começou por apoiar as revoltas no Egipto e na Tunísia, caracterizando-as como um 'despertar islâmico' à semelhança da revolução Iraniana de 19797 • No entanto, temendo um contágio das revoluções no seu próprio país, a sua retórica foi mudando à medida que aquelas alastravam para outros países. Perante o desenrolar dos acontecimentos na Líbia, o Irão criticou a intervenção militar aérea das forças da NATO, designando a postura do ocidente como 'colonialista.'8 Relativamente à Síria, o regime iraniano denunciou os manifestantes como "agitadores" e "terroristas"9 apoiando o regime de Bashar Al-Assad na repressão das manifestações. O Irão tem também uma preocupação particular com os desenvolvimentos nas monarquias do Golfo como o Bahrein onde há uma grande maioria chiita. Nesta zona, o Irão vive em competição de influência com a Arábia Saudita que apoia a minoria sunita no poder e inclusivamente interveio no Bahrein enviando um contingente militar de centenas de homens em apoio ao regime para restabelecer a ordem e reprimir as revoltas. Este confronto entre o Irão e a Arábia Saudita já levou inclusivamente alguns observadores a falarem na guerra por procuração, a 'proxy war' entre os dois países.U 0 A Turquia foi dos primeiros países a apelar à demissão de Mubarak e a apresentar-se como defensora dos povos egípcio e tunisino. No entanto, à semelhança do Irão (mas por motivos diferentes), a sua retórica foi-se suavizando e colocando o ênfase na não ingerência nos assuntos internos, voltando à sua abordagem de 'zero problemas' na região. Opôs-se à adopção da Resolução 1973 do Conselho de Segurança, tendo alterado a sua posição apenas depois do aval da Liga Árabe. Tem também acompanhado os desenvolvimentos na Síria com muita apreensão e feito diligências junto a Bashar Al-Assad no sentido de incentivar reformas e liberalização política de forma a salvar o regime. Com efeito, um foco de instabilidade na Síria pode rapidamente alastrar-se à Turquia tendo em conta a longa fronteira de aproximadamente 800 quilómetros que ambos os países partilham, com consequências imprevisíveis para o país.
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Ver: "Iran: Riots signo of Islamic awakening" in Ynetnews, 2 de Abril de 2004. Disponível em http:ll www.ynetnews.com IExt I Comp I ArticleLa youtl CdaArticlePrintPreview /1,2506, L-4023909 ,00. html 8 Ver: "Libyan air strikes: reactions arOLmd the Middle East" In The Guardian. 21 de Março de 2011. Disponível em hí.q2;_L /www.guardian.co.uk~2011/mar LllLJ.ilzy~.J.:ike.5-middle-east
:Ieacti.Qll 9 Ver DEHGHAN, Saeed Kamali: "Tehran supports the Arab Spring...but not .in Syria." ln The Guardirm. 18 de Abril de 201. Disponível em 1 hllp.;L_~gmu:diillu;Q,_!JkL.mnlmenfuir.e.efl!l.ll/qpr/18/
~ Ver: "Proxy War in the Middle East." ln Today's Zaman. 4 de Abril de 2011. Disponível em h.t.ij;2;.LL www.todayszaman.com/colurnnist-240126-proxy-war-in-the-middle-eMthlml
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Desafios para a comunidade internacional As revoltas árabes revelaram, mais uma vez, a dificuldade da comunidade internacional em apresentar uma frente unida com mensagens claras e assertivas, pondo a nu as divisões existentes entre os países membros das diversas instituições multilaterais, como a UE, a ONU e a NATO. Mais uma vez, os interesses nacionais sobrepõem-se à necessidade de apresentar uma mensagem comum, o que tem como consequência uma política algo incoerente: se a comunidade internacional intervém na Líbia para proteger a população civil em nome da defesa dos direitos humanos e então porque não o há-de fazer na Síria, onde o número de vítimas civis não pára de aumentar? Relativamente à Líbia, cada estado membro defende um nível de envolvimento da NATO diferente. Enquanto que o Reino Unido, a Franca e Portugal votaram a favor da Resolução 1973, a Alemanha vetou, juntando-se ao Brasil, à Rússia e à China. Neste momento, só a França e o Reino Unido são a favor de uma escalada militar para apoiar os rebeldes contra as forças de Kadhafi. Quanto à Síria, o Conselho de Segurança da Nações Unidas não chegou a acordo relativamente a um texto proposto pela França, Reino Unido, Alemanha e Portugal que previa uma condenação da violência contra civis e apoiava os pedidos do secretário-geral da ONU Ban Ki-moon de uma investigação independente e "transparente" às mortes ocorridas durante os protestos. Se do lado americano e europeu existe a vontade de impor sanções e medidas punitivas caso as exigências de mudança não sejam cumpridas, o mesmo não se passa com os restantes membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Neste sentido, a resposta a esta crise põe mais uma vez em causa a capacidade de instituições multilaterais de resolverem situações de carácter urgente e do lado da União Europeia, a capacidade para apresentar uma política externa comum. Conclusão As revoluções árabes do Norte de África e do Médio Oriente mostram que nada pode ser tomado por garantido, muito menos a 'estabilidade' de regimes ditatoriais. A ideia que pode prevalecer nalguns sectores e establishments de segurança na Europa, nos Estados Unidos ou Israel, de que é preferível uma autocracia estável a uma democracia frágil caiu por terra com estes últimos desenvolvimentos. Nem o ditador mais torcionário ou o regime aparentemente mais sólido do mundo estão imunes à contestação popular. Se há uma lição a tirar desta crise é que do ponto de vista ocidental as relações bilaterais não podem ser exclusivamente baseadas nos interesses nacionais, nem ignorar a natureza dos regimes com os quais se relacionam. A questão deve centrar-se no papel que a comunidade internacional pode desempenhar na transição democrática e na estabilização destas sociedades. Toma-se também importante realçar que uma transição d emocrática bem sucedida nã.o se esgota meramente na mudança de liderança, num acto eleitoral ou em elites que assumem as estruturas do Estado, mas sim num desmantelar Lusíada. Política Internacional e Segurança, n.0 5 (2011)
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das estruturas autocráticas e na implementação de mecanismos de controlo democrático. Só no contexto de um regime democrático e livre, com separação de poderes, poderão os grupos fundamentalistas deixar de constituir uma ameaça. Para Portugal, é do interesse nacional que tanto o Médio Oriente como o Norte de África se tornem regiões seguras, estáveis, menos voláteis e mais previsíveis. O Mediterrâneo, especialmente o Norte de África, é geopoliticamente mais importante para Portugal, dadas as relações históricas e de proximidade geográfica que temos com estes países, assim como a cooperação desenvolvida no âmbito económico, político e técnico-militar. Quanto ao Médio Oriente, a sua importância releva do facto de se ter tornado ao longo de décadas num grande foco de instabilidade para a segurança internacional e agente das principais ameaças com que se defronta hoje o mundo ocidental. Nesse sentido, é importante reforçar a vertente de direitos humanos e de defesa dos valores democráticos na política externa portuguesa, tanto no quadro bilateral como no quadro multilateral. No plano político, Portugal deve defender uma cooperação maior com as forças moderadas destes países, apoiar o desenvolvimento das suas sociedades civis, partindo do pressuposto que a democratização é o primeiro ponto de partida para o desenvolvimento, a estabilidade, a paz e a segurança. A abordagem bilateral tem que ser coerente com as políticas desenvolvidas ao nível multilateral tanto na União Europeia como na ONU. Como membro da União Europeia, e dada a proximidade geográfica de Portugal com o Norte de África, podemos estimular o debate no seio da União no sentido de exigir maior rigor no cumprimento de determinados critérios e práticas democráticas como condição para o estreitamento de relações entre a União Europeia e os países da região. Portugal goza também de uma excelente oportunidade, como membro não permanente do Conselho de Segurança, de pôr essa política e postura em prática. Resumindo numa frase, Portugal tem hoje mais visibilidade e, em consequência, mais responsabilidade. Tal como a situação no Médio Oriente e no Norte de África acaba de comprovar, a procura do equilíbrio entre a defesa dos nossos interesses, por um lado, e a promoção dos nossos valores, por outro, deverá ser uma importante linha orientadora da nossa política externa.
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A "ORFANDADE" DOS JOVENS DELINQUENTES
Ângela Lisboa Professora Auxiliar F.C.H.S., Universidade Lusíada 13000964@edu. ulusiada.pt
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.....
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Resumo: Num trabalho de investigação anterim~ decidimos aprofundar o conhecimento sociológico relativo à problemática da delinquência juvenil. Pretendíamos conhecer, não só algumas das causas que levaram os jovens internados nos Centros Educativos de Vila Fernando e Padre António de Oliveira à delinquência, mas também analisar as suas trajectórias, expectativas, aspirações e projectos de vida. No presente artigo, iremos analisar a família, por considerarmos que as práticas delinquentes dos jovens foram influenciadas pelas estratégias educativas que esta accionou. Palavras chave: estratégias educativas, relacionamento parental, família desestruturada, delinquência juvenil, estratégia de encobrimento. Abstract: During a previous investigation essay we decided to go deeper into the sociological knowledge related with problematic juvenile delinquency. It was our intention to understand not only the causes that lead young people from Educational Centers like Vila Fernando and Padre António de Oliveira to delinquency but also to analyze their life trajectories, expectations, goals and future life projects. ln the present article we will analyze Family as a concept, because we consider that juvenile delinquency and its actions are under influence of wrong educational strategies carried out by each family. Key words: Educational strategies, parental relations, unstructured family, juvenile delinquency, cover up strategy.
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A "orfandade" dos jovens delinquentes, pp. 109-124
Introdução Num trabalho de investigação anterior, debruçámo-nos sobre os jovens que se encontravam internados em dois Centros Educativos: Padre António de Oliveira (C.E.P.A.O.) situado em Caxias e o de Vila Fernando (C.E.V.F.) que dista poucos quilómetros de Elvas. Estes jovens encontravam-se a cumprir medidas tutelares por ordem do Tribunal de Menores em virtude de terem desenvolvido práticas delinquentes de grande perigosidade. Interessava-nos analisar este tipo de população, oriunda de meios desfavorecidos para compreender quais eram os mecanismos sociais que levavam os jovens a enveredar pela delinquência. Neste artigo, explicitaremos alguma informação relativa à família, conseguida através do testemunho dos jovens. Analisaremos estas famílias, na tentativa de conhecer o seu grau de estabilidade, as causas que levaram à destruturação do agregado doméstico, as razões da ruptura e as estratégias accionadas pelos jovens e suas famílias quando confrontados com situações deste tipo. Daremos, ainda, conta do modo como os pais exercem a autoridade, por julgarmos que determinadas estratégias educativas conduzem à delinquência. Também não esquecemos a reacção das famílias face ao comportamento dos jovens nem a atitude demonstrada aquando do seu internamento num Centro Educativo.
1. Jovens delinquentes e estruturas familiares 1. A "minha" família 1.1. Estrutura interna das famílias dos jovens delinquentes Decidimos, para melhor conhecer o grau de estabilidade da família de origem, perguntar aos jovens internados nos Centros Educativos de Vila Fernando e Padre António de Oliveira, se sempre tinham vivido com os progenitores. Verificámos, mediante a utilização de um inquérito por questionário, que um número muito significativo de jovens (22) deixou de viver com os pais a partir de um determinado momento da sua vida (Anexo l /Quadro A). Ficámos também, a saber que a maior parte dos jovens deixou de viver com um dos progenitores muito precocemente. Alguns destes 50 indivíduos (3) ficaram a cargo de um único progenitor ainda bebés, enquanto que para outros 25 jovens, tal situação ocorreu numa idade mais tardia (Quadro n°l).
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Ângela Lisboa
Quadro n °1 - Idade em que deixou de viver com o pai o
3 9 8 8
<1 1-5 6-10 >11
28
Das principais razões apontadas para não viverem com os pais (Quadro n° 2 ), os jovens referiram a existência de problemas não especificados dentro da família, (embora um dos jovens do C.E.V.F. tenha referido o mau relacionamento entre pais e filhos), a "separação dos pais" e o "abandono". Quadro n°2- Porque não vive com pais No
VaTia.
Problemas familiares especificados Separação pais Abandono Prisão I Outro
. Não sabe/não responde Total
não
8 7
7 2
3 23 50
Em caso de separação ou abandono, só um número reduzido de jovens foi viver com o pai, ficando os restantes a cargo da mãe e dos avós. Estes dados permitem-nos avaliar o tipo de relacionamento que os jovens mantiveram com os progenitores. Verifica-se o apagamento ou a ausência da figura masculina, substituída, largamente, pela da mulher (mãe ou avó). 1.2. Relacionamento, convivialidade e memórias familiares Existe uma ideia generalizada de que os jovens delinquentes vivem no seio de uma família destruturada, onde predominam o abandono, a negligência, e a falta de afecto. Tendo em conta esta hipótese, procurámos conhecer melhor o modo corno os jovens se relacionam com a família com quem passam a maior parte do seu tempo; como partilham os tempos livres; que memórias guardam da família. Urna vez que muitos destes jovens vivem só com a mãe, seria de esperar que fosse com ela que passassem a maior parte do tempo. Sabemos, porém, que a figura materna é muitas vezes, o único adulto na família, cabendo-lhe a ela, o papel de prover o sustento do lar. Também não podemos esquecer, que muitas
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destas mulheres desempenham funções indiferenciadas, enquanto empregadas domésticas, o que as obriga a despender muito tempo fora de casa. Estas mulheres que saem de casa muito cedo e regressam noite dentro, têm pouco tempo para se ocupar da educação e do bem-estar dos filhos. Apesar destes condicionalismos, 20 dos nossos jovens disseram passar muito tempo com a mãe (Anexo l/Quadro B). Estas respostas podem não ser mais do que uma estratégia de encobrimento tendente a iludir a investigadora, a dispersar a sua atenção de uma eventual culpabilidade da progenitora nas situações de crime e coação institucional vividas. Alguns dos nossos informantes privilegiados no C.E.V.F., explicaram que os jovens ficavam entregues a si próprios durante um largo período de tempo, em virtude dos afazeres profissionais dos progenitores. As respostas dos jovens procuraram, ao contrário, dar a ideia de um relacionamento e de uma convivialidade muito estreita com os pais, na tentativa de se aproximarem, do padrão socialmente aceite de família . Na ausência dos progenitores, o grupo de amigos pode funcionar como suporte moral e afectivo entre os nossos jovens. Vinte e três do total dos jovens declararam passar grande parte do seu tempo com os amigos (Anexo 1 I Quadro C). Conhecendo-se desde sempre e partilhando o mesmo destino, estes indivíduos ter-se-ão organizado em torno dos amigos, que constituirá o seu grupo de referência privilegiado. Tendo em conta a estrutura familiar dos jovens internados nos C.E.V.F. e C.E.P.A.O., julgámos interessante conhecer o tipo de actividades que partilhavam com os adultos. Para este efeito, definimos a categoria "convivialidade com familiares" de onde destacamos a ida às compras, ida à praia, passear/viajar, ir a bares. Ao invés do que se costuma pensar, os jovens não mantêm uma relação distante com a família, já que desenvolvern estas actividades em conjunto. No entanto, não foi sem alguma perplexidade que soubemos que um dos rapazes, ainda menor, costumava frequentar bares na companhia do pai. Para este pai, a idade dos filhos não parece marcar a distância. Talvez este homem tenha esquecido o seu papel paternat preferindo ver o filho, enquanto companheiro de diversão e não como uma criança a quem devem ser vedadas certas experiências. Não podemos deixar de assinalar a atitude de um dos jovens em relação à família. Foi o único que explicou não d esenvolver uma actividade lúdica com os pais, argumentando a sua idade avançada. O que terá a idade a esconder neste caso? O jovem teria vergonha dos país? Haveria uma impossibilidade de diálogo? Ou a rejeição dos pais face ao seu comportamento, tê-los-ia afastado irremediavelmente? Procurámos, ainda, conhecer as recordações que os jovens guardavam da família. Ficámos surpreendidos por essas memórias serem inexistentes ou incidirem sobre casos dramáticos, geralmente, associados a um afastamento físico como a prisão ou a morte. Tais recordações traumáticas terão contribuído para modelar a sua personalidade, já que recaem sobre familiares muito próximos,
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com quem mantinham uma boa relação afectiva. As marcas deixadas pela morte ou pela ausência (prisão) são bem visíveis nos excertos das entrevistas que passamos a transcrever. "Quando .. .prontos .. .quando pessoas da minha família morreram. Três delas ... pessoas mais ligadas a mim. Uma delas criou o meu irmão e os outros dois ajudaram-me a criar a mim (...)São as coisas que me marcaram mais" (E8, 18 anos, 4°ano, C.E.P.A.O.) "Quando os meus pais foram presos. Fiquei triste ... Numa Associação lá em Setúbal" (E9, 16 anos, 4°ano, C.E.P.A.O.) Há, aparentemente, processos variados de isolamento social sofridos previamente pelos jovens antes do seu internamento compulsivo ser o último e mais radical. 1.3. Relações familiares
Com base num inquérito por questionário, apurámos que 26 dos jovens internados nos dois Centros Educativos referiu ter urna relação amigável com o pai. Tendo em conta que 28 jovens afirmaram não viver com o pai, julgamos que, também aqui, os jovens desenvolveram urna estratégia de encobrimento (mais provavelmente inconsciente) tendente a esconder da investigadora, a realidade das suas vidas. Sabemos, através dos informantes privilegiados, que muitos destes jovens foram abandonados pela família. Tivemos conhecimento que um jovem passou o Natal no C.E.V.F., porque não teve nenhum familiar que o quisesse receber. Portanto, ao dizerem que a sua relação com o pai é amigávet estes jovens podem apenas estar a procurar manter para si próprios o máximo de sinais de urna boa integração no seio da família e talvez exorcizarem o desgosto de não terem o pai tão presente quanto desejassem. Mas nem todos os jovens consideram ter urna boa relação com o progenitor. Alguns inquiridos, nomeadamente, os que foram abandonados, afirmam que a sua relação com o progenitor é conflituosa ou indiferente (Quadro n°3). Quadro n°3 - Tipo de relação com pai No
Relação com o pai Total
Conflituosa Indiferente Calorosa Amigável
9 9 2
26 46
As entrevistas sugeriram-nos a construção das categorias de formas de relacionamento com a família (Quadro n°4).
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Quadro n °4 - Categorização Semântica Categorias
Formas de relacionamento com a família
-
Componentes
Exemplos
Distanciamento
Há pais que metem muita ordem. Mas o meu pai, não.
Conflitualidade
Não gosto da minha família. Não me dou bem com eles.
Proximidade
Quero ir estar junto da família. Ainda por cima, tenho uma ligação grande com a minha família.
Verificámos que um dos jovens referiu ter uma relação de grande proximidade com a família. Mas como poderá ele ter uma relação tão estreita com a família se passou uma grande parte da sua vida num Centro Educativo? Será possível manter boas relações com a família quando se vai a casa muito esporadicamente? Sabemos, também, que os pais deste jovem estiveram presos durante um largo período de tempo, ficando a sua educação a cargo dos avós. No nosso entender, este jovem concretizou uma estratégia de encobrimento, de que temos notado anteriormente poderem existir razões justificativas para tal, para mostrar a si própria, à investigadora e a terceiros a sua boa integração no seio da família. Por outro lado, este rapaz deve temer que a investigadora avalie mal a família, atendendo ao seu passado criminógeno. No fundo, o jovem procurou mostrar-se solidário, e valorizar a família perante o olhar de estranhos. Vimos, também, que um outro jovem achava que o pai não era uma pessoa que lhe impusesse muitas regras. A idade avançada do pai e o afastamento físico que os separa podem ajudar a explicar isso. Este rapaz explicou ter sido abandonado pela mãe e ter vivido muito tempo com os tios. No entanto, pudemos verificar que este jovem sempre esteve muito entregue a si próprio, o que o obrigou a desenvolver um comportamento de adulto. Ausentava-se para uma casa, onde vivia com amigos. Com estes dedicava-se a consumir estupefacientes e a roubar. Apesar do abandono a que a. família. o votou, os tios castigavam-no severamente, sempre que ele cometia um acto ilícito, acabando por o internarem numa instituição d e reeducaçã.o.
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Não nos parece, portanto, que o pai deste rapaz se tivesse preocupado muito com ele, nem com o seu futuro. Mais do que permissivo, o seu comportamento pode ser classificado de indiferente dada a pouca atenção que sempre dispensou ao filho. Por fim, um outro entrevistado confessou ter uma relação conflituosa com os pais. Sentia-se revoltado por estes terem vergonha do seu comportamento delinquente, muito embora, a seu ver, não conseguissem ditar regras de conduta. Como forma de atenuar um comportamento indesejado, os tios tentaram, sem sucesso, ocupar-se da educação do rapaz, que acabou por sofrer uma medida de internamento em Centro Educativo.
1.4. Autoridade parental
A literatura sociológica afirma que os pais dos delinquentes, oriundos das classes desfavorecidas, não costumam puni-los quando estes manifestam comportamentos indesejáveis. Também afirma que nestas famílias, os pais p ermanecem passivos e não condenam os filhos quando estes cometem algum acto ilícito, porque são demasiado fracos e pouco intervenientes (Cusson, 1990). O que se passará com os pais dos nossos jovens? Como exercem eles a autoridade? Como reagem face ao comportamento delinquente dos filhos? O nosso estudo indica que os pais dos nossos jovens são pouco tolerantes face a um comportamento menos apropriado. Com efeito, verificámos que um número significativo de pais (42) castiga os jovens quando estes cometem um acto ilícito (Anexo l/Quadro D). No que concerne ao protagonismo, o Quadro n°5 mostra ser a mãe quem castiga com mais frequência (22), porque é sobretudo, com ela que os jovens coabitam. E mesmo quando os jovens vivem com os avós, é a mulher quem os castiga com mais frequência, o que nos permite reforçar a ideia de que esta continua a desempenhar um papel preponderante na educação dos mais novos. Quadro n°5 - Quem castiga
Valid
I
Missmg Total
Pai Mãe Avó Avô Outros Total System
No 14 22 4 1 1 42 8 50
Ao invés de imporem regras de conduta e de zelarem pelo seu cumprimento, os pais dos nossos jovens privilegiam o castigo como forma de punir um
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comportamento que consideram indesejado. Em primeiro lugar, os pais (22) mantêm os filhos encerrados em casa (Anexo l/Quadro E). Este castigo é muito mal aceite, de tal modo que os jovens acabam por desenvolver, tal como nos confessaram, estratégias de encobrimento por forma a contornar a situação. Estes jovensfogem pela janela ou esperam que os pais se deitem para saírem clandestinamente de casa. Em seguida, os pais (12) utilizam os castigos corporais (Anexo l/Quadro F). Estamos em crer que este tipo de castigo esteja mais generalizado do que aquilo que os rapazes quiseram divulgar. Pensamos que mais uma vez, os jovens accionaram uma estratégia de encobrimento tendente a esconder da investigadora o que se passava dentro de suas casas. Terão escondido a verdade, por vergonha de serem mal avaliados e por não quererem admitir que os pais os punem com castigos corporais, tão mal aceites pela sociedade. No entanto, em conversa informal, muitos jovens disseram que os pais lhes batiam com frequência. Sabendo da dificuldade em pôr os jovens a falarem de castigos corporais, também nós usámos uma estratégia de encobrimento, e inserimos esta temática numa mais geral, a da violência doméstica. Perguntámos aos jovens o que achavam desta prática e se conheciam alguém que tivesse sido vítima de violência doméstica. Só um rapaz não condenou tal prática. A maioria afirmou conhecer pessoas vítimas de violência doméstica, nomeadamente as que viviam no seu bairro e alguns familiares (avó). Posteriormente, perguntámos aos jovens se os pais já lhes tinham batido com mais violência. Ficámos, então, a saber que os nossos jovens têm sido alvo de castigos corporais, assumindo alguns deles grande intensidade. No entanto, os rapazes desculpabilizam os familiares e não encararam tais actos como violência doméstica. Apesar de alguns jovens terem ficado feridos, afirmam que o castigo a que foram sujeitos, era merecido porque se tinham portado mal. Os excertos das seguintes entrevistas mostram como os jovens desculpabilizam a família e como parecem aceitar o castigo. "Já me bateram. Já fiquei com marcas, claro. Mas foi só pra eu depois recordar. E nunca mais fazer aquilo (...). Depois, os meus avós podiam nunca mais gostar de mim. (.. .). Eu chorei, mas agora, acho que as merecia". (Ell, 15 anos, 6°ano, C.E.P.A.O.). "Uma vez, a minha mãe deu-me com um cinto e partiu-me a cabeça, mas foi sem querer".(El, 14 anos, 5°ano, C.E.P.A.O.). "Os meus pais já me bateram. Foi justo terem-me batido" (E4, 16 anos, 5°ano, C.E.V.F.). Vistos a uma certa distância temporal, os castigos corporais parecem ser bem aceites. Mas sê-lo-ão na realidade? Não quererão os jovens mostrar que a família se preocupava com a sua educação, utilizando para esse efeito, os castigos corporais? Mas se aceitam os castigos, como se justifica, então, que um dos jovens tenha chorado quando recordou o acontecido? O choro pode revelar dor física. Mas no caso representou uma manifestação de mau-estar psicológico, muitas vezes, associado a um sentimento de injustiça, impotência ou revolta. Por ouh·o lado, se
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os jovens acreditam no poder disciplinador do castigo corporal, como se explica não terem melhorado o seu comportamento?
1.5. Delinquência e controle familiar Alguns autores afirmam que nas famílias onde existem jovens desviantes, os pais dispensam pouca atenção aos filhos, não exercem qualquer tipo de vigilância sobre eles, estão pouco empenhados no seu processo educativo, desconhecem o que estes fazem, onde vão e quem são os seus amigos (Fréchette e LeBlanc, 1987; Loeber e Dishion, 1983; Rutter e Giller, 1983). Qual será o comportamento dos pais dos jovens internados nos C.E.V.F. e C.E.P.A.O. em termos de controlo familiar? Muitos dos nossos jovens (28) afirmaram dizer aos pais para onde vão após a sua saída de casa (Anexo l/Quadro G). No entanto, alguns jovens explicaram à investigadora que por vezes, fugiam de casa para cometer actos ilícitos. Se os jovens contassem tudo aos pais, como se justifica que estes só tenham conhecido a trajectória delinquente dos filhos através dos agentes da autoridade ou dos Tribunais? Neste estudo, muitos jovens (36) declararam que os pais conheciam os seus amigos (Anexo l/Quadro H). Parece-nos plausível esta informação, uma vez que a maioria dos amigos vivem, tal como os jovens nos explicaram, no mesmo bairro. Tendo em conta que estes jovens vivem em bairros degradados (como a Cova da Moura, ou o Bairro do Fim do Mundo) e em bairros sociais (Mem Martins, Setúbal, Seixal), não surpreende que a forma de organização espacial, o tipo de sociabilidade e de solidariedade potencie o interconhecimento dos seus moradores, o que justifica os pais conhecerem os amigos dos filhos.
2. A família e a entrada no Centro Educativo Tendo em conta a informação anterior, pensámos ser importante conhecer a atitude demonstrada pelos familiares aquando do internamento dos jovens num Centro Educativo. A atitude dos pais face ao internamento dos jovens é bastante desigual. Alguns pais manifestaram tristeza embora acabassem por internar os filhos num Centro Educativo, acatando, assim a decisão do Tribunal. Houve, ainda, pais que se regozijaram com a decisão do Tribunal. Segundo informação recolhida junto dos jovens, estas pessoas tinham-se revelado incapazes de os educar e controlar, e, por isso, acreditavam que um Centro Educativo conseguiria cumprir essa função eficazmente. Outros pais que condenavam o comportamento dos filhos, aceitaram de bom grado a medida de internamento, tendo-a como uma forma de punição. Por fim, temos os indiferentes, os pais que tal como tinha acontecido noutras situações (como por exemplo, a turbulência dos filhos na escola) pouco se importaram com o internamento dos filhos, talvez porque o relacionamento
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entre ambos era frouxo ou porque já estavam acomodados à ideia de que os filhos dessem entrada num Centro Educativo. Conclusão
Partimos do pressuposto que os jovens internados no C. E. V.F. e no C.E.P.A.O. oriundos dos extractos sociais mais desfavorecidos da população, mantiveram ao longo da sua vida uma relação de conflitualidade com diversas instituições, nomeadamente a família. Muitos destes jovens vivem, tal como já referimos, no seio de uma família onde o pai é uma figura ausente, o que justifica ser muito distante ou nula a relação que com ele mantêm. Estes jovens deixaram de viver com o pai numa idade ainda precoce. A investigadora sabe através dos informantes privilegiados, que mesmo aqueles jovens que sempre viveram com os pais, apesar de querem ocultar, acabam por deixar transparecer um sentimento de abandono, justificado, não raras vezes pelos afazeres profissionais dos progenitores. Afastados, compulsivamente mas nem sempre de uma forma intencional da família, os nossos jovens procuram nos amigos a afectividade que desejavam encontrar em casa. Mas o que poderá acontecer a um jovem carente, mal amado, e quase sempre negligenciado? A Escola de Chicago já tinha mostrado que o desmembramento dos alicerces que estruturam a sociedade americana, nomeadamente os mecanismos tradicionais de controlo social como a família, foram responsáveis pela emergência de novas condições sociais propícias ao desenvolvimento de comportamentos delinquentes. Mais recentemente, Malewska e Peyre (1973) concordam que os pais dos jovens desviantes não estabelecem uma relação afectiva calorosa com os filhos, o que os impede de assimilarem e interiorizarem de um modo adequado as normas sociais. Cusson (1990), por seu lado, explica que nas famílias onde existem jovens desviantes, os pais dispensam pouca atenção aos filhos, não exercem qualquer tipo de vigilância sobre eles, estão pouco empenhados no seu processo educativo. Talvez a pesquisa efectuada a propósito da influência da família sobre os comportamentos desviantes dos jovens seja insuficiente e inconclusiva. No entanto, e tendo em conta que as disposições adquiridos ao longo de determinadas experiências, nomeadamente as familiares, têm efeitos sobre outras esferas da nossa trajectória pessoal, seria interessante avaliar, numa pesquisa futura, em que medida o habitus nascido de um mau relacionamento e desinteresse paterno pode potenciar a delinquência. Na verdade, somos obrigados a admitir que o "habitus primário", ou seja, as estruturas sociais da nossa subjectividade, construído ao longo das nossas primeiras experiências, pode justificar muitas das nossas acções futuras. Porque não explicará o habitus a prática delinquente? Se chegarmos a essa conclusão, poder-se-ia pensar que o habitus é um mecanismo reprodutor das estruturas sociais. Sabemos, contudo, que o habitus é constituído por "princípios geradores". Portanto, e como refere Bourdieu, os indivíduos reproduzem acções passadas quando confrontados com situações
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habituais e tendem a inovar face a situações inéditas. No que se refere aos nossos jovens, as disposições criminógenas nascidas de um relacionamento deficiente com a família poderão manifestar-se caso as circunstâncias o permitam, nomeadamente aquelas que se prendem com a pobreza. Em contrapartida, se o jovem se conseguir movimentar num espaço social mais favorável onde possa satisfazer muitas das suas necessidades económicas, educativas e culturais, e onde consiga realizar-se pessoal e profissionalmente, poderá não delinquir. Daqui decorre que a delinquência não será, apenas, o resultado de um habitus inculcado por um mau relacionamento familiar, mas de um conjunto de factores internos e externos ao sujeito. Porque se as acções dependessem de um habitus adquirido ao longo das condições de existência e das trajectórias do grupo social de pertença, nomeadamente a família, seria de prever que as mesmas condições sociais produzissem, necessariamente, um mesmo tipo de indivíduo. Teríamos, assim, uma espécie de clonagem social. Mas estamos conscientes que cada habitus individuat ainda que fortemente enraizado em nós, combina de maneira específica uma diversidade de experiências sociais. Portanto, mesmo que a família potencie a delinquência, outras experiências poderão fazer inverter essa prática. Bibliografia BECKER, H. (1973), Outsiders: Studies in the Sociology of Deviance; Nova York, Free Press. BIRON, L. (1974), Famille et Délinquance: Mémoires de Maftrise, Montréat Université de Montreal. BOURDIEU, P. (1979). La distinction; critique social du jugement Paris: Minuit. CUSSON, M. (1990), Croissance et Décroissance du Crime, Paris, PUF. DUBAR, C., (1991), La Socialisation. Construction des Identités Sociales et Professionnelles, Paris, A. Colin. FERREIRA, P., M . (1999), Desvio e Juventude: Causas Sociais da Delinquência Juvenil, Tese de Doutoramento em Sociologia, ISCTE. HIRSCHI, T. (1969), Causes ofDelinquency, Berkeley University of California Press. MALEWSKA, PEYRE, H. (1973), Délinquance Juvénile, École et Société, Vuacresson, Centre de Formation et de Recherche de l'Éducation Surveillée. NYE, F.J. (1958), Family Relationships and Delinquent Behaviour, New York, Wiley. SHAW, C., McKay, H., D ., (1931). Social Factors in Juvenile Delinquency. Vol. II Report on the Causes of Crime,. National Commission on Law Observance and Enforcement Report No. 13. Washington, D.C.: U.S. Government Printing Office. SUTHERLAND, E., H (1934), Príncipes de Criminologie, Publisher: J.B. Lippincott.
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Anexol Quadro A Viver sem pre com os pais
No Valid
Sim 1 Não 1
Total
22 28
50
Quadro B Com quem passa mais tempo - mãe No Valid 1 Mãe 20 Missing 1 System 30 Total 50 Quadro C Com quem p assa mais tempo - Amigos
No Valid Missing
Amigos 1 System
23
1
T otal
-- - - -27- - - 50 - · -
Qua dro D Pais castigam
No Valid
Sim
42
.I Não
8 50
1
Total
Quadro E Tipo castigo - não deixar sair de casa
No Valid
Não deixar sair
22
Missing
System
28
Total
~}_21síada .
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50
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Quadro F Tipo castigo - bater No
Valid Missing
1
1
Bater System
12 38
Total
50
Quadro G Diz aos pais onde vai No
Valid
1-
Sim Não
Total
28
---
22
50
·-·
Quadr o H
_
Pa;, conhe<em am~:"' ~
Valid
Total
124
Sim I Não 1
36 14 50
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DUAS DÉCADAS DE MERCOSUL: VALEU A PENA? Elizabeth Accioly Doutora em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo, Professora de Direit0 Internacional e Direito da União Europeia na Universidade Lusíada de Lisboa, Professora de Integração Latino-Americana no Instituto Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Professora do Centro de Excelência Jean Monnet da Faculdade de Direito de Lisboa, Advogada no Brasil e em Portugal.
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125
,..
Duas décadas de Mercosul: Valeu a pena?, pp. 125-140
Resumo: Traz-se aqui à reflexão a trajectória da integração sul-americana, após duas décadas de existência. Os avanços e os reh·ocessos do MERCOSUL. O caminho já percorrido e o caminho a percorrer. A busca pela identidade do blóco regional: mercado comum, união aduaneira ou livre comércio? Alargamento ou aprofundamento? Modelo supranacional ou intergovernamental? Traçamos no presente artigo os cenários para o futuro do MERCOSUL. Palavras chave: blocos regionais, integração regional, MERCOSUL, União Europeia, fases de integração económica, zona de comércio livre, união aduaneira, mercado comum, alargamento, aprofundamento, poder supranacionat poder intergovernamental. Abstract: We bring the discussion o ver two decades of economic integration in South America. MERCOSUR advances and setbacks. The progress already made and the need to keep walking the path. The search for an identity of the regional bloc: common market, customs union or just free trade? Enlargement or deepening? Supranafional or intergovernmental governance? This article intends to design the MERCOSUR scenarios. Key words: regional blocs, regional integration, MERCOSUR, European Union, economic integration phases, free trade area, customs union, common market, enlargement, deepening, supranational governance, intergovernmental cooperation.
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O Mercado Comum do Sul, mais conhecido por MERCOSUL, bloco económico de maior êxito na América do Sul, acaba de completar duas décadas de existência. Pretende o presente trabalho trazer à reflexão a status quaestio do MERCOSUL: afinal esta integração tem valido a pena? Para iniciar, il faut trazer à baila a trajectória da Europa unida que, pela evolução e estádio de integração alcançados, tem sido a grande inspiradora de blocos regionais que surgem, nomeadamente a partir da segunda metade do século XX. Vassili Christianos, Professor da Universidade de Atenas e ex-advogado geral do Tribunal de Justiça Europeu, compara a construção europeia, que já ultrapassa meio século de existência, com a construção de uma das mais belas catedrais da Europa, a Catedral de Reims, que demorou quase três séculos para ver-se acabada: "fue así con la construcción de la Catedral de Reims: la mayoría de los obreros creía que tallaba piedras, pocos sabían que erguían una catedral". 1 O sucesso dessa arquitectura europeia transformou o velho continente no mais emblemático processo integracionista de que se tem notícia até os dias actuais. Daí não causar estranheza em se verificar o fenómeno da mimese europeia na construção de outros blocos económicos. Mas, se por um lado, uma das vantagens do poder civilizatório é a de seguir por caminhos já trilhados, invocando a máxima de que ninguém nasce num vazio de História, por outro lado convém sempre estar alerta para o fato de que os processos de integração e de construção de blocos económicos não são fenómenos "camaleónicos". Há que se ter em conta, antes de mais, a indissociável história e geografia daqueles que pretendem associar-se, pois são os povos e as suas circunstâncias que constroem as instituições, e não o contrário. E na esteira da propagação de blocos económicos, quatro países sulamericanos resolveram unir-se, a começar por uma conjunção de vontades bilaterais, somada posteriormente ao cenário de expectativas comuns: Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai firmaram, em 26 de Março de 1991, o Tratado de Assunção, certidão de nascimento do MERCOSUL. O MERCOSUL, como o próprio nome denuncia, pretende galgar o estágio de mercado comum, e, neste aspecto, é necessário ter em atenção que tanto uma zona de livre comércio como uma união aduaneira ou um mercado comum não podem prescindir de uma interdependência, sempre guiada pelos limites do possível, levando-se em conta o hermetismo e a delicadeza da opção de um maior ou menor aprofundamento, a depender da cultura política e cultural dos sócios. E, afora o contexto político, há todo um complexo jurídico e constitucional que deve permitir o funcionamento da escolha da fase de construção do bloco regional, se se quiser uma integração fundada em alicerces duradouros. O MERCOSUL optou pela via intergovernamental para a edificação da união aduaneira, primeiro patamar a alcançar. Para tanto, o Protocolo de Ouro Preto, de 17 de Dezembro de 1994, criou uma estrutura orgânica muito concisa e com 1 ln
Accioly, Elizabeth. Mercosul e União Europeia - 4" Edição. Curitiba: Ed. Juruá, 2010, p. 61.
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custos reduzidos, com apenas meia centena de funcionários "mercosureií.os" -os demais são servidores do quadro ministerial de cada Estado-parte. Pese embora tenha sido esse caminho criticado por aqueles que esperavam uma transfusão do modelo europeu, foi festejado por outros que crêem ter sido a escolha acertada para a actual fase de integração a que se propõem alcançar: a união adu aneira. Trata-se, portanto, de uma proposta programática, vale dizer, de implantação distendida no tempo, não com as imprecações europeias de um mercado comum tout court, com todas as suas sofisticações e aprofundamentos. O MERCOSUL encontra-se na fase de união aduaneira imperfeita, ou seja, entre uma zona de comércio mais ou menos livre e uma união aduaneira ainda com muitas perfurações - uma integração à la frornage suisse, por assim dizer. Pretendem os quatro partners, após consolidar essa fase, rumar para o mercado comum, com as nuances da realidade política e cultural da América do Sul. Primeira questão para reflexão: zona de comércio livre, união aduaneira ou mercado comum? Há duas décadas, o MERCOSUL sobrevive entre uma zona de comércio livre e uma união aduaneira. Ou seja, dois caminhos já trilhados, ainda que com alguns percalços, e por um caminho que está por desbravar: o mercado comum. Qual indicação o MERCOSUL deveria escolher? Porventura o mais prudente seria parar numa estação de serviço, abrir o mapa traçado no Tratado de Assunção e no Protocolo de Ouro Preto, e repensar sobre o seu futuro. Talvez permanecer na etapa da união aduaneira, fortalecendo-a, aproveitando a perspectiva da recente aprovação do Código Aduaneiro do MERCOSUL, que, por mais de quinze anos, manteve o trajecto intransitável; ou ainda, pelas crises recorrentes que assolam a comunidade internacional, fosse mais cauteloso optar pelo estágio mais primitivo - a zona de comércio livre. Se o MERCOSUL escolher o caminho da zona de comércio livre, uma coisa é certa, o fantasma da Área de Livre Comércio Americana - ALCA está adormecido, pelo menos por enquanto. Ora, se esta integração fosse concretizada, com a intenção de criar uma zona de comércio livre entre todo o continente americano, à excepção de Cuba, fragilizaria esta bolha aduaneira. José Serra, economista, ex-ministro da Saúde e candidato não-eleito à presidência do Brasil, é um dos grandes defensores da zona de comércio livre, e justifica: "quando Ministro da Saúde [no Governo do então Presidente Fernando Henrique Cardosot tentei firmar com a Índia um acordo comercial para a produção de me-
dicamentos genéricos em troca da venda de aviões e de ônibus brasileiros. Não podia porque tinha de dar compensação à Argentina, ao Uruguai e ao Paraguai, que não tinham assunto com a Índia. E não pudemos fazer. Ficar carregando o Mercosul não faz sentido. Eu sou contra o Mercosul? Não. Só que o Mercosul tinha de ter começado corno zona de livre comércio, comércio livre entre os países. Nos últimos oito anos no mundo, houve 100 tratados de livre-comércio. O que é tratado de livre-comércio? Acesso ao mercado. Sabe quantos o Brasil fez? Dos 100? Um. Não podemos fazer tratado fora do Mercosul. O Mercosul é uma barreira para o Brasil fazer acordo, a zona aduaneira, hoje, é uma farsa,
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que só atrapalha. Temos de mudar para salvar o Mercosul". 2 A recente aprovação do Código Aduaneiro do MERCOSUL, em 3 de Agosto de 2010, que esperou mais de uma década por esse momento, foi, sem dúvida, uma grande vitória, mas o MERCOSUL ainda enfrenta muitas barreiras não tarifárias e alguns conflitos económicos pontuais. Desde já é importante ressaltar que os conflitos sempre são salutares quando há integração- isso significa que há vida no bloco-, e o seu reflexo encontra-se estampado, com alguma regularidade, nas primeiras páginas dos jornais, e atende pelo título de "guerras comercias", na maioria das vezes com dois protagonistas recorrentes - o Brasil e a Argentina. Dentre estas, a guerra dos calçados, a guerra da linha branca de electrodomésticos, a guerra dos pneus, a guerra das bicicletas entre tantas outras. Por óbvio, o MERCOSUL, com o Código Aduaneiro, segue com mais músculos em busca da consolidação da união aduaneira, que, é bom que se diga, já é uma ambiciosa modalidade de acordo comercial, pois exige de seus membros não só o compromisso de abolir todas as barreiras internas ao comércio, mas a de adoptar uma pauta aduaneira comum em relação a Estados terceiros, para além de uma política comercial comum, passos que só se alcançam após muitos anos de árduos esforços e muita vontade política. Exemplo disso foi a consolidação dessa etapa de integração pela então Comunidade Económica Europeia, que, nascida em 1957, alcançou a união aduaneira onze anos mais tarde, em 1968. Porém, se o MERCOSUL pretender rumar para o mercado comum, deve ter em mente que este caminho não se percorre em poucos anos, como previu imaturamente o Tratado de Assunção3 . Lembre-se que a Europa comunitária demorou mais de trinta e cinco anos para o alcançar, quando, em 1 de Janeiro de 1993, abriram-se as fronteiras para o tão esperado mercado interno, que ainda carece de alguns ajustes pontuais quanto à livre prestação de serviços, a livre circulação de capitais, e mais recentemente a uma das mais caras liberdades, esteio de toda a construção comunitária: a livre circulação de pessoas, com alguns Estados a tentar levantar barreiras e restrições ao Espaço Schengen. A segunda. questão: aprofundamento ou alargamento? 2
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Serra faz críticas ao Mercosul. Correio Bmziliense, 20.04.2010 ARTIGO 1°: Os Estados Partes decidem constituir um Mercado Comum, que deverá estar estabelecido a 31 de Dezembro de 1994, e que se denominará "Mercado Comum do Sul" (MERCOSUL). Este Mercado comum implica: A livre circulação de bens, serviços e factores produtivos entre os países, através, entre outros, d a eliminação dos direitos alfandegários e restrições não tarifárias à circulação de mercadorias e de qualquer outra medida de efeito equivalente; O estabelecimento de uma tarifa externa comum e a adopção de uma política comercial comum e relação a terceiros Estados ou agrupamentos de Estados e a coordenação de posições em foros económico, comerciais regionais e internacionais; A coordenação de políticas macroeconómicas e sectoriais entre os Estados Partes - de comércio exterior, agrícola, industrial, fiscal, monetária, cambial e de capitais, de outras que se acordem-, a fim de assegurar condições adequadas de concorrência entre os Estados Partes, e O compromisso dos Estados Partes de harmonizar suas legislações, nas áreas pertinentes, para lograr o fortalecimento do processo de integração.
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Parte da desaceleração do MERCOSUL pode estar relacionada com o seu inchaço sem planeamento. Hoje, o MERCOSUL está composto por quatro sócios e meio4, porque a Venezuela está na iminência de ingressar como sócio pleno, faltando apenas a aprovação da República do Paraguai, onde a questão está sobrestada no Senado paraguaio. Para além desses sócios, há mais cinco Estados associados à zona de livre comércio, vindos da Comunidade Andina de Nações: a Colômbia, o Equador, o Peru a Bolívia e o Chile- este último já fez parte da CAN, quando essa atendia pelo nome de Pacto Andino, tendo se retirado no início dos anos 70 do século XX. Essa questão é importante pelas assimetrias dos Estados mais pequenos que necessitam de atenção e ajuda financeira para galgarem o patamar dos demais, e ainda pelas dificuldades acrescidas pelo fato desse bloco económico contar com dez Estados: cinco deles ingressando tão-somente na fase de comércio livre, quatro sócios atrelados a uma pauta aduaneira comum, por conta da exigência imposta pela união aduaneira, e um sócio pleno em processo de adesão. No que diz respeito ao ingresso da Venezuela, com o inusitado status de "sócio pleno em processo de adesão", é de todo oportuno alertar que tal categoria deu-se à revelia do Tratado de Assunção, que não a prevê: a Venezuela, após a assinatura do Protocolo de Adesão, em 4 de Julho de 2006, tornou-se membro pleno em processo de adesão. Esse status permite aos representantes daquele país participar de todas as reuniões, inclusive de negociações de acordo comercias, com direito a voz, mas sem direito a voto. Sem embargo, o ingresso de qualquer membro como sócio pleno do MERCOSUL, pela complexidade, pelas implicações institucionais e pelas negociações de acordos comerciais com outros Estados, deve ser, inicialmente, objecto de uma análise isenta e objectiva, deixando-se de parte considerações de ordem política ou ideológica. Antes de se aprovar o ingresso como membro pleno, h á necessariamente uma etapa prévia, justamente para dar prazo a9 país candidato adequar-se às exigências do bloco regional, para, posteriormente, ser ou não admitido como sócio efectivo do bloco económico. O artigo 4° do Protocolo de Adesão da Venezuela ao MERCOSUL prevê: no mais tardar em quatro anos contados a partir da data da entrada em vigência do presente instrumento, a República Bolivariana da Venezuela adoptará a Nomenclatura Comum do MERCOSUL (NCM) e a Tarifa Externa Comum (TEC). Para esse fim, o Grupo de Trabalho criado no Artigo 11 deste Protocolo estabelecerá o cronograma de adoção da TEC contemplando as eventuais excepções à mesma, de acordo com as normas pertinentes do MERCOSUL. É a redacção do art. 11 o do referido Protocolo: A fim de desenvolver as tarefas previstas no presente Protocolo, cria-se um Grupo de Trabalho, integrado por representantes das Partes. O Grupo de Trabalho deverá realizar sua primeira reunião dentro de trinta (30) dias contados a partir da data de subscrição do presente Protocolo, e concluir tais tarefas no mais tardar em um prazo de cento e oitenta (180) dias, a partir da realiza4 A Venezuela já participa como sócio pleno em processo ele adesão do MERCOSUL, dependendo apenas da chancela parlamentar paraguaia para tornar-se membro efectivo.
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ção da referida reunião. Ora bem, o cronograma para a adopção do conjunto de normas do MERCOSUL e para a adopção da pauta aduaneira comum, por parte da Venezuela, não foi ainda apresentado. E, à conta dessa pendência, há um impasse da parte do Senado paraguaio, que insiste em ver os prazos para as negociações técnicas cumpridos, para além de vozes daquela Casa legislativa, de maioria oposicionista, levantarem-se contra essa adesão, lançando mão da "cláusula democrática" do MERCOSUL, constante no Protocolo de Ushuaia, que adiante veremos. Daí se concluir que a chancela paraguaia para permitir o ingresso da Venezuela como membro efectivo deste Clube é uma questão mais técnica do que política. Um dos pontos fulcrais para o êxito de todo esse processo passa por dar a devida atenção aos sócios mais desfavorecidos, que se sentem cada vez mais marginalizados. Segundo o Embaixador Rubens Ricupero: "O nosso clube está dando a impressão dos grandes times de São Paulo e do Rio de Janeiro hoje na zona de rebaixamento. A Argentina e o Uruguai brigam nos tribunais por causa de fábricas·de papel, o Brasil auto limita as vendas ao mercado argentino apenas para ver seu lugar ocupado por chineses, o Paraguai e o Uruguai ameaçam aderir à Alca, o Uruguai assina acordo de investimento pelo qual concede aos EUA tratamento que os sócios ainda não possuem, o presidente Tabaré Vásquez, declara que, mais do que a solução, o Mercosul é que é o problema". Mais adiante conclui que "o sensato seria o Mercosul Jazer uma autocrítica, empreender esforço objectivo para tentar satisfazer aos menores, ape1jeiçoar e aprofundar suas instituições de solução de litígios, melhorar e fortalecer o secretariado e sua incipiente institucionalização, completar a integração nas áreas de serviços e investimentos. Exigiria imaginação criadora e paciência, daria trabalho, mas seria o caminho da competência e do profissionalismo. Em vez disso, prefere-se afuga para a frente, ampliar na superfície em lugar de adensar em profundidade, diluir e dissolver em retórica em vez de consolidar de modo efectivo e operacional"5 • Na esteira das críticas do Embaixador Rubens Ricupero, deve-se destacar um sopro de lucidez entre os Estados-membros do MERCOSUL, com. a criação do Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul - FOCEM, em 2006, destinado a financiar programas para promover a convergência estrutural; desenvolver a competitividade; promover a coesão social, em particular das economias menores e das regiões menos desenvolvidas, e apoiar o funcionamento da estrutura institucional e o fortalecimento do processo de integração. A intenção é dar uma injecção de ânimo àqueles Estados, na tentativa de reduzir as chamadas "assimetrias" do processo de integração, e abrir novas oportunidades de crescimento para os sócios menores. A questão é saber se haverá vontade política dos sócios de maior peso para levar o FOCEM adiante, que depende do grau de investimento que os Estados estariam dispostos a realizar6 • E aqui o ponto central é o de investir nos Estados 5 6
Metamorfose. Artigo publicado no jornal Folha de São Paulo- Brasil, em 23.07.2006 Os fundos do FOCEM são entregues em 70% pelo Brasil, seguido da Argentina, com 28%, o Uruguai com 2'Yo e o Paraguai com 1% restante. Na hora da adjudicação, esta equação se inverte, sendo o
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vizinhos quando os próprios Estados ainda não conseguiram resolver internamente ingentes problemas de base, como a educação, a pobreza e a desigualdade social. Para além do FOCEM, também foi criado um programa de substituição de importações, com o objectivo de comprar mais da região, sempre que for possível. A partir de programas como esses, surgem soluções, ainda que parcas, às assimetrias das economias entre os sócios. Nunca é demais destacar que a economia brasileira é cem vezes maior do que a do Paraguai, a terceira menor da América do Sul, só ultrapassando a Guiana e o Suriname. Outra iniciativa, desta vez liderada pelo Presidente Hugo Chávez, foi a criação, em Dezembro de 2007, do Banco do Sut para fazer frente aos órgãos multilaterais de crédito, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco Mundial. O novo Banco tem por intenção financiar a execução de projectos de infra-estrutura nos países latino-americanos, especialmente os que promovam o desenvolvimento social da região; .financiar projectos para a integração geopolítica do Sut nomeadamente quanto à infra-estrutura física terrestre, aérea e marítima; a rede de abastecimento alimentar; a rede do sistema integral de saúde; o sistema educativo para a transformação; e as conexões de oleodutos e gasodutos energéticos. A intenção é diminuir a dependência que créditos tornados junto a essas instituições acarretariam, trazendo mais força à região. O Banco está sediado em Caracas, capital venezuelana, e tem a função de ser apenas um banco de desenvolvimento, sem o comprometimento de socorrer Estados com problemas em seus balanços de pagamento. Num primeiro momento, o Brasil opôs-se ao Banco do Sul pelo fato de ser a directoria do banco estruturada para que cada país tenha direito a um voto. O Brasil propôs que o poder decisório junto ao Banco do Sul fosse proporcional ao volume de capital apartado por cada Estado em suas reservas. Porém, ficou decidido que esse aporte financeiro inicial será dividido entre os Estados7, permanecendo o direito de cada país ter apenas um voto nas decisões do Banco. Corno capital inicial para o funcionamento do Banco que deveria iniciar funções em 2009, foi estabelecido o valor de dez bilhões de dólares. A ata de fundação do Banco do Sul foi assinada em 10 de Dezembro de 2007. Resta-nos aguardar para ver se essa iniciativa corresponderá às expectativas, que, para já, não são tão promissoras, haja vista a falta de entusiasmo de alguns Estados sul-americanos, nomeadamente o Brasil, conforme notícia divulgada na revista The Economist, de 13.12.07: "Such technocrats are exactly the people Brazil insists should staff the bank - if it must be staffed at all. Brazilian diplomats have been unusually frank in revealing their
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Paraguai o principal beneficiado com projetes a serem financiados por 48% do total do Fundo, seguido pelo Uruguai com 32%. Na prática, Brasil, Venezuela e Argentina vão participar com US$ 2,9 bilhões. Equador e Uruguai com US$ 400 milhões, e Paraguai e Bolívia com US$ 100 milhões cada. No entanto, cada país ainda depende de aprovação de seus parlamentos para a liberação destes recursos.
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lack of enthusiasm for the new institution. They fear it may give soft, politically driven loans that go unpaid. Brazil already has its own well-endowed development bank, the BNDES, whose lending of 62.5 billion reais ($37 billion) in the 12 months to September was 50% greater than that of the World Bank in the same period. The Brazilians have gane along with the project only because they feel they cannot remain outside any new South American institution, especially one with money. But they luwe worked to limit the bank's remit and to slow its creation. Mr Chávez can count on the vote of Bolívia and maybe that of Ecuador on the bank's board. But other members are likely to side with Brazil- and so will Chile, Colombia and Peru if they join. So ex:pect a modest outfit that mainly finances cmssborder infrastructure. The World Bank and the Inter-American Development Bank (not to speak of the Andean Development Corporation) do that already. But competition is a fine thing - even if it is not what Mr Chávez had in mind"( The Bank of the South - Bolivarian finance. Dec 13th 2007) Felisa MiGeli, ex-ministra de Economia da Argentina e responsável pelo Centro de Estudos e Monitoramento de Políticas Públicas da Universidade das Mães da Praça de Maio, adverte:
"Passaram-se seis anos desde que foram assinados os primeiros acordos para o Banco do Sul e, apesar de já ter a sua ata fundacional, a sua capital e sua sede definidas e a colocação em funcionamento do Conselho de Administração, ele ainda não consegue ser uma realidade". Mais adiante, alerta para um dos grandes problemas que os Estados mais desenvolvidos enfrentam: o fato de, eles próprios, não terem ainda feito os deveres de casa: "A proposta do Banco do Sul fixa como objectivos a
soberania alimentar, energética e de saúde, como áreas prioritárias para financiar e sobre as quais pretende construir um novo modelo de desenvolvimento. A América Latina deve assumir um duplo desafio de integração, entre países desiguais, mas também atendendo as assimetrias internas. O conflito de países como a Argentina, que, pelo MERCOSUL, deve atender as assimetrias com o Paraguai e o Uruguai, mas, quando o propõe, recebe a reclamação das províncias do Norte da Argentina com situações sociais semelhantes às dos países vizinhos"8 . Daí que, diante desse contexto, seja muito difícil acomodar os viajantes nes·ta carrinha que segue a Dez, uns na dianteira, numa integração mais profunda, outros à reboque, a participar da primeira fase de integração, e ainda um deles sem um assento definido. Terceira questão: intergovernabilidade ou supranacionalidade? O MERCOSUL hoje é um bloco intergovernamental. Não seguiu, para já, o exemplo da UE, mas há Estados, como a Argentina e o Paraguai, com algum apelo à supranacionalidade, mecanismo já previsto nas suas respectivas cartas constitucionais. Todavia, encontra resistência por parte do Brasil, gigante pela própria natureza, que não consegue encontrar fórmula razoável para pôr em prática o modelo supranacional, o qual exige uma maioria qualificada ou 8A
Crise será Prolongada, por Raúl Dellatorre, in Periódico Página 12, de 26-11-2010 (Reportagem publicada por ocasião do "Seminário Projecto Banco do Sul", realizado em 25.11.2010, em AssunçãoParaguai).
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ponderada, matemática extremamente complicada e criada para resolver a equação do velho continente, e que não pode ser transportada tão-somente pelo mimetismo. É bom que se diga que já germinam algumas sementes supranacionais dentro do MERCOSUL, como o recém-criado Parlamento do MERCOSUL, com a previsão de parlamentares eleitos pelo voto directo; como o Protocolo de Olivos para Solução de Controvérsias, de 2002, que criou uma nova instância jurisdicional com carácter permanente, designado de Tribunal Permanente de Revisão, TPR, com sede em Assunção. Há, portanto, uma bifurcação nesta estrada a indicar caminhos distintos: poder supranacional ou poder intergovernamental? A Ministra Ellen Grade, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal do Brasil, ao abrir o 5° Encontro de Cortes Supremas do MERCOSUL, em Novembro de 2007, lamentou a ausência da supranacionalidade, relacionando-a com a lentidão desta integração regional: "Este Fórum tem por objectivo superar uma lacuna sentida desde os primeiros momentos que se seguiram à assinatura do Tratado de Assunção. Plasmado pelos Poderes Executivos, ratificado pelos Poderes Legislativos, o Tratado, como as normas posteriores -· mesmo as que cuidaram da solução de controvérsias -, não contou, para sua redacção, com a consultaria, mesmo que informal, dos Poderes Judiciários nacionais, como seria desejável. Tal fato, somado à ausência de urna instância supranacional uniformizadora da interpretação desses textos legais, leva em boa parte ao resultado de modesta integração que ternos logrado, passados todos esses anos". 9 Convém destacar que, em razão da escolha intergovernamental, o bloco regional só pode ser regido pelo Direito Internacional Público clássico, e tudo o que extrapolar esse entendimento é considerado MERCOSUL imaginário, expressão utilizada pelo Prof. Doutor Jorge Fontoura, actual presidente do Tribunal Permanente de Revisão (TPR), para o distinguir do MERCOSUL real: "Infelizmente temos assistido o imaginário caminhar muito mais rapidamente, sem os limites necessários ditados pelos fatos e pelas coisas. Não estamos preparados para o regime das 'altas autoridades', que decidem acima da autoridade do Estado, do efeito directo, da aplicação imediata das normas supranacionais, da inferioridade hierárquica do ordenamento ju-rídico nacional e de toda a sofisticada concepção comúnitário-europeia." Mais adiante justifica o seu posicionamento: "Todos os países que compõem o Mercosul são repúblicas presidencialistas ciosas de seus presidencialismos ferrenhos, com presidentes da república quase imperiais; ao contrário, todos os Estados que hoje compõem a União Europeia conformam regimes parlamentares, com todas as consequências que isso concerne. E 'pour cause', todos os países da América Latina são profundamente vinculados ao conceito de soberania, porque a história nos ensinou assim10." Talvez pelas razões acima expostas, o caminho intergovernamental tenha • Discurso proferido pela Ministra Ellen Gracie, então Presidente do Supremo Tribunal Federal, na abertura do "5° Encontro de Cortes Supremas do MERCOSUL", em 08 /Novembro/07. ln http·//www.stf~o/verPublicacao.asp?numero-245000 10 "A Revisão Institucional do MERCOSUL - Ouro Preto II". ln Revista de Estudos Europeus, Ano I, n. 1. Coimbra: Ed. Almedina, 2006, p. 294.
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sido o mais acertado para se alcançar a união aduaneira. Para além disso, este foi o único caminho possível devido aos entraves constitucionais para se acatar a supranacionalidade, nomeadamente por parte do Brasil e do Uruguai. O MERCOSUL, é bom que se frise, m esmo pela via intergovernamental, conseguiu significativos avanços, e, talvez, a leveza da sua estrutura orgânica - inerente aos modelos intergovernamentais, tenha sido uma das responsáveis pelas suas conquistas. Nessas duas décadas de caminhada, o MERCOSUL levou os países signatários a ocupar um lugar de destaque na cena internacional, nomeadamente o Brasil, que vive o eterno dilema de ser considerado um país rico entre os pobres, e um país pobre entre os ricos. É curioso constatar ainda que, apesar de todo o discurso de abertura comercial e dos avanços da sua economia, o Brasil participa no comércio mundial, paradoxalmente, com pouco mais de 1%. Aldo Fornazieri, Diretor Académico da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), em recente artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, faz o recorte do Brasil no comércio mundial, nas duas últimas décadas:
"tomando como recorte apenas os últimos 20 anos, quando se iniciou a abertura económica e comercial brasileira, cabe perguntar: o Brasil tem uma estratégia de expansão comercial? A resposta, stricto sensu, é não. Durante o governo Lula o Brasil, certamente, ganhou mais peso e relevância internacionais. Isso, contudo, se deveu mais à exportação de um activismo político-diplomático e à diplomacia presidencial, o que foi muito importante, do que a uma coerente, objectiva e realista política comercial. Mas se fazer uso do protagonismo de um estadista carismático é um instrumento expansionista válido, a força e a grandeza de uma nação perante as outras precisam se fundar na evidência interna e externa de seu poderio. O fato é que, no que tange ao comércio, o Brasil tem pouco peso, estando sua participação global em tomo de 1% apenas. Nesses termos, sabendo que existe um grau de autonomia entre política comercial e política externa, pode-se estabelecer que, se um dos objectivos centrais do Brasil no mundo globalizado deve ser sua expansão comercial, a política externa deve estar a serviço desse objectivo, e não o contrário - a subordinação da política comercial à política externa. A ausência de uma estratégia de expansão comercial pode ser percebida em ouf1'o lugar: a precária infra-estrutura e os custos portuários e de logística. Não existem no País plataformas logísticas modernas de exportação. A própria legislação é, em vanos casos, um entrave às exportações. O Brasil não patrocinou tratados de livre-comércio, bilaterais ou multilaterais, nos últimos 20 anos. Chama a atenção também a forma pouco prática como o nosso país vem tocando suas relações com a América do Sul e a América Latina. O Mercosul é um. ente que se vem arrastando ao longo dos anos, com poucos avanços".11 No presente momento encontramos um "MERCOSUL apático"- entenda-se aqui apatia como falta d e energia. Quiçá a debilidade das relações entre sócios e associados, somada à falta de coordenação das políticas externas e ao excesso retórico d e chavões ideológicos, possam justificar o parco entusiasmo. Por isso, torna-se necessário conjugar esforços, para além de impor medidas 11
O Brasil e o Com ércio Internacional. jornal O Estado de São Paulo, edição de 16.01.2011.
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que dêem confiança ao mercado e aos investidores, nunca olvidando da segurança jurídica e da transparência nas decisões políticas, para que o MERCOSUL possa dissipar as brumas que pairam naquela região. Ora bem, para que o MERCOSUL saia do estado de letargia, convém fazer uma reflexão do que já se alcançou e do que está por alcançar, para, em seguida, traçar novos rumos. E, para tanto, é de se chamar uma vez mais o astrolábio da integração, com os seus acertados passos: quando a UE viu-se encurralada, após o Não francês e holandês, no primeiro semestre de 2005, aquando do referendo para aprovação do Tratado Constitucional naqueles dois Estados, do alto da sua experiência, acumulada nessas seis décadas de caminhada, a Senhora Europa anunciou ao mundo, que tinha os olhos postos naquele continente: - "Vamos fazer uma pausa para reflexão". Dois anos mais tarde, os Vinte e Sete conseguiram ultrapassar o impasse que lhe custou três anos de paralisação institucional e política, ao assinarem no C laustro do Mosteiro dos Jerónimos, no dia 13 de Dezembro de 2007, o Tratado Reformadm~ baptizado de Tratado de Lisboa, que entrou em vigor no dia 1 de Dezembro de 2009, após alguns acidentes de percurso, como o referendo negativo irlandês e a resistência checa e polaca para a sua ratificação. Mas, diante desse admirável mundo novo que os Estados ousaram construi!~ há que se buscar acertos, consertos e concertos. O importante é não deixar que o desânimo vença a esperança de se construir um mundo mais solidário e justo, centrado, sobretudo, na união, na paz e no bem-estar de todos os cidadãos, destinatários de todo o projecto. Há muitos quilómetros a serem percorridos, muitas rotundas e bifurcações aparecerão nesse percurso, muitas paragens nas estações de serviço para analisar o mapa e decidir, talvez, por novos rumos. Mas, independentemente dessa viagem um pouco acidentada, nada incomum quando se quer chegar a destinos desconhecidos, o MERCOSUL já é um caminho sem volta. Seja pela via da intergovernabilidade, ou pela via da supranacionalidade, esta última a depender do ritmo da viagem e, nomeadamente, da ousadia dos passageiros, o importante é seguir em frente. Uma última questão: será possível alcançar os objectivos traçados a Doze, com a recente criação da UNASUL se, a completar duas décadas de integração, o MERCOSUL ainda não atingiu as suas metas a Quatro? No dia 23 de Maio de 2008, os Estados sul-americanos decidiram dar um passo em frente ao criarem a UNASUL, chamando para si os dois únicos Estados que estavam à margem da integração na América do Sul: a Guiana e o Suriname12• O objectivo da UNASUL está previsto no art. 2. 0 : 12
O Uruguai depositou, em 9 de Fevereiro de 2011, o instrumento de ratificação do Tratado Constitutivo da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) perante o Governo do Equador, depositário do documento. Argentina, Bolívia, Chile, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela haviam ratificado o documento anteriormente. Cumpriu-se, assim, o requisito de nove ratificações para a entrada em vigor do Tratado, que se efectivará em 11 de Março de 2011, trinta dias após a nona ratificação, conforme previsto no instrumento.
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Duas décadas de Mercosul: Valeu a pena?, pp. 125-140
"A União de Nações Sul-americanas tem como objectivo construir, de maneira participativa e consensuada, um espaço de integração e união no âmbito cultural, social, económico e político entre seus povos, priorizando o diálogo político, as políticas sociais, a educação, a energia, a infra-estrutura, o financiamento e o meio ambiente, entre outros, com vistas a eliminar a desigualdade socioeconómica, alcançar a inclusão social e a participação cidadã, fortalecer a democracia e reduzir as assimetrias no marco do fortalecimento da soberania e independência dos Estados". A UNASUL, numa primeira leitura, pretende ser apenas um foro de debates políticos. No entanto, o seu artigo 3° elenca uma extensa lista com objectivos específicos, dentre os quais: alcançar a integração financeira mediante a adopção de mecanismos compatíveis com as políticas económicas e fiscais dos Estados-membros; a integração industrial e produtiva, com especial atenção às pequenas e médias empresa.s, cooperativas, redes e outras formas de organização produtiva; a consolidação de uma identidade sul-americana através do reconhecimento progressivo de direitos a nacionais de um Estado-membro residentes em qualquer ouh·o Estado-membro, com o objectivo de alcançar uma cidadania sul-americana; a cooperação em matéria de migração, com enfoque integral e baseada no respeito irrestrito aos direitos humanos e trabalhlstas para a regularização migratória e a harmonização de políticas; entre outros. O artigo 4° cria a estrutura orgânica, composta pelo Conselho d e Chefes de Estado e de Governo; pelo Conselho de Ministros das Relações Exteriores; pelo Conselho de Delegados; e pela Secretaria-geral, com sede em Quito, no Equador. Também será criado um Parlamento Sul-Americano, com sede em Cochabamba, na Bolívia. A presidência pro-tempore será exercida sucessivamente pelos Estadosmembros por períodos anu ais. Segundo o seu artigo 12°, toda a normativa da UNASUL será adoptada por consenso. As Decisões do Conselho de Chefes de Estado e de Governo, as Resoluções do Conselho de Ministros das Relações Exteriores e as Disposições do Conselho de Delegados poderão ser adoptadas estando presentes ao menos três quartos dos Estados-membros. Essa normativa derivada será obrigatória para os Estados-membros uma vez que tenham sido incorporados no ordenamento jurídico de cada um deles, de acordo com seus respectivos procedimentos internos. Ou seja, depende da internalização dos Doze para que depois entre em vigor. Daí já se vislumbrar, a contar com a experiência do MERCOSUL, os entraves que surgirão quanto à questão da incorporação da normativa UNASUL. Uma das grandes questões discutidas actualmente no seio do MERCOSUL é justamente a demora na internalização da sua normativa derivada. Pese embora a retórica dos Doze, ao assinarem esse novo Tratado, as condições objectivas, que dominam o noticiário internacional quase diariamente, denunciam a incompatibilidade de alguns Estados nesse projecto, com posições aparentemente irreconciliáveis. A nosso ver, a criação de um organismo regional dessa amplitude deveria servir como corolário da consolidação do MERCOSUL e da Comunidade Andina de Nações. "He arado en el mar"- teria dito Simón Bolívar no Congresso Pan-Americano Lusíada. Política Internacional e Segurança, n.0 5 (2011)
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realizado em 1826 no Panamá, quando viu o seu sonho de integração americana esfacelado. O então Presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, aquando da criação da UNASUL, invocou ter a América do Sul finalmente conseguido realizar o sonho de Bolívar que, com o nascimento do bloco continental, ganha algum contorno de realidade, unindo toda a América do Sul, nomeadamente no que tange a questões políticas. Assim, a América do Sul passará a desenvolver instrumentos para poder falar a uma só voz. Oxalá assim seja! É de se trazer à lembrança que o embrião da integração sul-americana deve-se à aproximação entre o Brasil e a Argentina, em meados da década de 80 do século XX. A semente germinou e hoje alastra-se por todo o continente. É de se destacar, por derradeiro, um dos grandes benefícios da proliferação dessa semente integradora, algo muito caro para qualquer Estado, termómetro da seriedade, do respeito aos direitos humanos e do seu fortalecimento na cena internacional: a democracia. Em 24 de Julho de 1998, foi assinado o Protocolo de Ushuaia, por todos os Estados-parte do MERCOSUL, que prevê, no seu art. 1°: "A plena vigência das instituições democráticas é condição essencial para o desenvolvimento dos processos de integração entre os Estados-partes do presente Protocolo". Este artigo tem sido invocado pelo Senado paraguaio como obstáculo à entrada da Venezuela no Mercosul. Ainda com relação à democracia, que por vezes denota laivos de instabilidade naquela região, foi muito festejada a assinatura da Declaração de Buenos Aires, de 1 de Outubro de 2010, pelos sócios sul-americanos. Essa Declaração vinculou ao Tratado Constitutivo da UNASUL o Protocolo Adicional referente à cláusula democrática no recém-criado bloco continental. A integração sul-americana carece ainda de um GPS para garantir, com a sua precisão milimétrica, um caminho seguro. Porém, deve-se enaltecer a trajectória dessa viagem, que teve início com apenas dois passageiros, e que hoje segue a Doze, numa estrada com alguns obstáculos, marchas e contramarchas, muitas paradas nas estações de serviços, mas que, sem sombra de dúvidas, tem valido a pena. Fernando Pessoa traduziu o sofrimento, as agruras, e as conquistas daqueles que partiram à descoberta de novos horizontes, a navegar pelo "mar português", redesenhando o mapa-mundi, ainda que tenha custado as lágrimas de tantas mães, a oração de tantos filhos e a espera infinita de tantas noivas. A aventura mercosulina, a redefinir o mapa daquele continente, outrora um deserto de ideais, habitado por vizinhos invizinhos, seguirá valendo a pena, se a alma daquele continente não for pequena.
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