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Emanoel EmanoelAmâncio Emanoel Amâncio
O inesquecível encontro do agricultor Emanoel Amâncio com Padre Cícero e Lampião
Emanoel Amâncio, 102 anos, é agricultor e sabe muito dessa vida. Da roça e da cidade. Nesta conversa com neta, Maria Iara, aluna do curso de Jornalismo da UFCA, ele abre o coração. Mas não tanto. Preserva alguns segredos. Nem para a neta? “Não, nem pra você”. Mesmo assim, ele fala sobre trechos da sua vida, incluindo seu encontro com Lampião e Padre Cícero, na década de 30 do século passado, em Juazeiro do Norte. Leia trechos da entrevista.
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Avistei de longe aquele senhor de barba branca, sentado na calçada sobre uma cadeira de balanço e com os pés estendidos apoiados numa outra cadeira. Trajava uma simples camisa azul clara e uma calça de tecido fino na cor preta. Nos pés, estavam as suas botas. No rosto, estavam os óculos escuros e no colo um chapéu na tonalidade meio marrom. Foi como o vi naquela tarde de domingo, na cidade de Mauriti, distrito de São Miguel. Era o meu bisavô - Emanoel Amâncio Furtado Leite. Cumprimentei-o, dizendo:
— Sua benção, vovô!
Fui visitá-lo com intuito de conversar sobre suas memórias. Viajar no tempo por meio de suas lembranças. De início, confidenciei que iria conversar sobre a vida dele. Como um velhinho sincero, adian- tou:
— Eu vou responder, mas se não der me perdoe.
A partir disso, ofereceu uma cadeira para sentar e, aquele final de tarde, deu espaço a momentos de lembranças moldados por aventuras, enfrentamentos, perdas e ganhos. Tudo das lembranças do senhor Emanoel.
Dando início à conversa, pergunto.
— Se lembra o ano em que nasceu?
— É, é preciso dos documentos. Não tô mais alembrado, não. Agora quer que eu vá buscar os documentos lá dentro de casa? Tenho 101 anos e agora tô caminhando para 102 anos. Só não sei se me levanto dessa cadeira.
De fato, conseguiu lembrar a sua idade, mas não da data do nascimento. Eu fui quem o lembrei do ano do seu nascimento, 16 de maio de 1916.
Sobre a família, a raiz de um homem, relatou:
— Meu pai se chamava Amâncio Furtado Pereira e ele trabalhava na roça e no campo, plantando a batata, a macaxeira e a mandioca. O caba não passava fome, não.
Logo depois, deu risadas ao recordar de tamanha fartura.
— Já minha mãe chamava Maria Pereira Leite. Era dona de casa e cuidava dos filhos.
De estudo, não aproveitou nada. Ele conta:
— Meu estudo foi um gibão e uma peneira.
E sobre a idade que começou a trabalhar? Silêncio. Viagem no pensamento para recordar o momento em que começou a ter maiores responsabilidades. Só depois de alguns minutos, falou:
— Com 20 anos. Brocando mato, plantando arroz, feijão e milho. E tem uma coisa, eu me dei bem, porque era no tempo que o caba ajudava um ao outro, mas hoje sabe quem me ajuda. Quer saber quem é? Deus. E quando não tava na roça, tava no campo tomando de conta das coisas. Mas eu não ia pra roça ser peão não, que eu não tinha tempo, quem ia eram os trabaiadores. Lutava com cinco cabas. Dava a cada um deles um chapéu de couro que Dodô do Bonito fazia (artesão que confeccionava sandálias e chapéu-de-couro) e mais cinco pares de alpercata, e eles me ajudavam a guardar feijão para nós comer. Nas idas a Juazeiro, ele destaca o encontro com Padre Cicero Romão.
— Ia para Juazeiro com as alpargatas no pé fazendo lepo, lepo, lepo. Só tinha vereda, não tinha estrada, não. Eu tô com 101 anos. É por que o mundo mudou. No tempo que fui pra Juazeiro só tinha trem e eu não quis pegar, que eu ia com um carneiro, ó o tamanho. Tinha feito uma promessa. Levei para dar ao Padim Ciço. Quando cheguei lá mandei procurar o guarda para saber se eu podia dormir com o carneiro; ele disse que podia e que não precisava ter cuidado que ninguém vinha pegar o carneiro, não. Fiz uma promessa, não sei como era que eu tava. Mas eu não vou contar a promessa, não. Você conhece o caba que trabaia com o cão, você conhece? O cão tá naquele canto que Jesus botou e só sai no dia do juramento. Fui mais compadre Germano pra Juazeiro pagar a promessa. Ficamos hospedado numa barraca que não tinha nada. Só os poder de Deus e meu Padim Ciço. Dormi numa barraca e o carneiro bem assim (faz um gesto demonstrando presença do carneiro ao lado da barraca). O carneiro gordo podia até com um homem. Ai eu disse a dois romeiros: ô nego, será que os caba carrega esse carneiro? E eles disseram: se carregar, nois toma.
Seu Manoel passa as tardes de domingo sozinho na sua varanda relembrando do tempo que a casa era cheia de pessoas, das fartas plantações
Eu encontrei Padim Ciço na casa dele. Cheguei lá, entrei, tomei a benção e me ajoelhei. Padim Ciço estava numa rede na varanda com couro pro caba se ajoelhar. Ajoelhado, ele botou a mão na minha cabeça e disse “ô meu filho, tô recebido do carneiro”. Botou a mão na batina assim (no bolso) e me deu um tubo num papel bem grosso sem mostrar o dinheiro. Fui contar o dinheiro em casa. Ele me deu 10 mil réis e eu podia ter comprado uma casa no Juazeiro. Taria tão bem hoje. Eu fiz uma promessa e fui valido. Num tem o cão? Quiseram me pinicar, mas não me pegaram, graças a Deus. Passei no Juazeiro três dias assistindo as missões dele. A mãozinha dos romeiros, ó (mão balançando). Voltei pra casa com quatro dias. Achei foi bom o Juazeiro.
Depois disso, sorriu lembrando dos momentos rememorados. E do encontro com Lampião.
— Foi o seguinte, eu vou contar e você pode escrever. Lampião chegou ao Gravatá (sítio de Mauriti) e pai tinha 20 tarefas de baixio e era vereda por todo canto. Lulu e Senhô (cabras de Lampião) disseram: “Me diga uma coisa, você tem coragem de dá de comer a nós aqui essa semana?”. Meu pai disse que tinha. E eu levava o almoço lá para eles comer. Me lembro bem dos nêgo. Agora, era nêgo pra conversar de considerar.
Contando nos dedos, ele nomeou os cinco homens que acompanhavam Lampião.
— Nêgo Massa, só num virou xerém, mas já morreu. Pretinho. Mané Valdivino. São três, é? Paulo. João Novato, nêgo homem e não bulia com ninguém, mas tirava leite do gado. Se a vaca fosse valente, ele tirava o leite dela. É cinco caba que eu vi. Lampião respeita Senhô Pereira (um fazendeiro poderoso) e Lulu Padre. Lampião dizia: “vocês tão fazendo muita festa pra nós”. Aí pai dizia: “carneiro gordo pra nós comer tá os montes e se faltar tem as ovelhas”.
Diante da idade avançada, seu Manoel apresenta apenas fragmentos da memória quando se refere a Lampião.
— Lampião fazia assim ,“ô primo vei”, mandava o recado por um caba chamado “criança” (homem de confiança do cangaceiro). Numa carta pedia uma ajuda. No dia que o caba pedia uma ajuda, ele tava. Ajudamos.
Veio bem, umas duas vezes. Ele caiu nessa luta por causa de um chocalho. O vaqueiro tirou e colocou noutra vaca. Aí quando botou o chocalho na vaca e foi puntá Senhô e Lulu que já tava, o vaqueiro disse “meu patrão, a vaca não tá com chocalho, tiraro da vaca”. Tiraro, a amarra era nova, dava duas voltas no olho do peixe. A chuva caía no chão num engiava, não. Ele foi na casa do Rico e ele chamava baião, e ele disse: “eu sou baião de dois” e “Por que você diz isso?”, “Por nada, pode ficar ciente que eu sou baião de dois”. E eu não sei o que ele fez não.
— Lampião dormia dentro duma mata fechada de num sei quantas tarefas. Ele pediu uma ajuda de dinheiro a Padre Lacerda, e ele disse a Lampião: “Vá trabaiá”. Lampião disse ao Padre Lacerda que podia esperar por ele que ia trocar bala um dia com uma noite. Disse que vinha trocar bala mais Padre Lacerda e foi.
E Lampião trocou bala mesmo com o Padre Lacerda? Pergunto.
— Padre Maranhão tinha um nêgo muito disposto e pediu: “Sucupira, você vai levar essa carta a Lampião” E Sucupira foi. Na carta, Padre Maranhão pediu para Lampião: “Faça isso não meu afiado, atenda meu pedido”.
O Lampião fazia assim, "ô primo vei", mandava o recado por um caba chamado criança
Em resposta, Lampião falou o quê?
Sobre a hospedagem do cangaceiro, meu avô contou:
— Já tava feito, mas eu vou passar mais um pedacinho. Lampião desistiu do tiroteio. Pegou um tocador pra ir pra fazenda Araticum e tocar lá. Chegou lá nos vaqueiro Zé de Viagem e Mané Gonçaives. Foi e disse “cadê André Cartaxo (dono da fazenda)?”. E os vaqueiro dissero que ele num tava lá. Lampião falou perguntando dos dez bois que ele tinha dentro duma manga (tipo um cercado) e os vaqueiro dissero: “tem dez bois, agora escolha um, mate e vá comer”. Botaram o forró e balançaram. Botaro pra correr o caba que eles levaro dizendo: “Vá simbora que você já tocou demais e quanto é sua viagem?”. O tocador foi tocando apulso ou ia ou morria.
Depois de contar a história de Lampião, deu risada da situação. E continuou a contar os acontecidos: — Do Crato, mandou perguntar “Ô André Cartaxo, eu matei um boi dos teu e queria conversar com o senhô, quanto foi o boi?” Foi o que ele mandou dizer. E André Cartaxo respondeu falando que podia era matar os dez que cá num vinha, não. Aí é homi! Adepois Lampião mandou pagar o boi. Era homi, nêga, homi é homi.
Sobre a morte de Lampião, ele relatou: — Não. Eu não me lembro, não.
E assim, seu Manoel passa as tardes de domingo. Sua memória é fragmentada, a importância é o registro linguístico. Sozinho na sua varanda relembrando do tempo que a casa era cheia de pessoas, das fartas plantações (batata, macaxeira, arroz, feijão, milho), dos filhos e até da mulher – Estela Pereira Leite. Ela o deixou e foi morar no Rio de Janeiro, depois de mais de vinte anos de casado. Ficou por lá durante 30 anos, voltando para Mauriti em 2014, quando tinha mais de oitenta anos. Dona Estela morreu em 2015. Talvez, seja ela o maior rancor da vida de seu Emanoel. Depois da partida da mulher, sua filha, Geusa, cuidou dos dois irmãos mais novos e do pai. Geusa morreu no ano passado. Agora, uma das netas, Silda, cuida do seu Manoel. De uma coisa ele não abre: gosta de viver sozinho na sua casa no distrito de São Miguel, em Mauriti.
Já minha mãe chamava Maria
Pereira Leite. Era dona de casa e cuidava dos filhos. De estudo, não aproveitei nada. Meu estudo foi um gibão e uma peneira