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Primavera de uma juventude de 1978
As lembranças e a beleza do reencontro de estudantes, egressos do antigo Colégio Agrícola do Crato, 40 depois da conclusão do curso técnico. Nesta matéria, a “Memórias Kariri” registra o reencontro e a euforia dos capagatos, apelido dos técnicos agrícolas, da turma de 1978 do Colégio Agrícola do Crato, hoje o Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE). Entre 50 e 60 anos, eles celebraram uma amizade de quatro décadas e relembram velhas e boas histórias.
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Pela primeira vez eu estava na Chapada do Araripe e não ouvia o cântico dos pássaros. Parecia-me que até mesmo a vida da floresta havia silenciado para contemplar a felicidade daqueles que se reencontravam 40 anos depois da última troca de olhares. De longe, notava-se a euforia dos capagatos, apelido dos técnicos agrícolas, da turma de 1978 do Colégio Agrícola do Crato, hoje o Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) na cidade.
Passava das 8h da manhã do dia 21 de julho de 2018. O sol brilhava na Floresta Nacional do Araripe. Ali reunidos em uma das alas do IF, aqueles adultos no auge dos seus 50, 60 e poucos anos mais pareciam crianças eufóricas ensaiando suas primeiras brincadeiras de infância. Nenhum capagato chamava o outro pelo nome, mas pelo apelido que não só fizeram questão de estampar nos crachá ao peito, como também nas linhas desta narrativa.
Aos poucos um velho, sempre novo, colega chegava ao local e logo se juntava ao grupo para alimentar as lembranças que viam aos montes e aos sorrisos retratadas nos rostos dos egressos. É verdade que a mocidade não mais se fazia presente em suas peles, mas o espírito jovial pulsava como nunca nos seus semblantes. Era a felicidade do reencontro.
Aquela alegria começará a crescer desde quando surgiu a possibilidade de reunir todos os integrantes da quarta turma a ingressar no Colégio Agrícola. A iniciativa do Instituto de promover o Encontro dos Egressos já vinha acontecendo desde 2010, mas esse seria diferente. Além de terem recebido o aval da direção do IF para montarem a programação de forma autônoma, a turma queria reunir todos os ex-alunos, daquele período: à época eram 83 estudantes, dos quais 81 eram homens e duas eram mulheres.
grupos, antigas panelinhas, para recordar. E eu, assistindo a aquilo tudo e de algum modo desejando fazer o mesmo nos próximos 40 anos, logo me aproximei das memórias que não eram minhas, mas que me deixaram nostálgico como se fossem.
“Do primeiro dia de aula lembramos bem do professor José do Vale, de português. No início da aula ele mandou todo mundo levantar e cada um dizer seu nome e sua cidade. Após todos terminarem, ele levantou e pediu que, novamente de um por um perguntassem a ele de onde eles eram e de qual cidade vieram. Ele já havia aprendido o nome e o local de origem de todos. Era um professor fora de série, um pai pra gente”, recorda o capagato Duas Semanas, José Nóbrega.
Os retratos temporais daquele momento em grupo resgatavam os perfis dos mestres e de outros educadores do Colégio Agrícola de personalidades marcantes, que impactaram a vida daquela juventude.
“Tem uma pessoa que nunca vamos esquecer: Tia Astrês, era a professora de Programa de Saúde”, rememora Zé Mocó, Adroaldo Olinda, em meio à concordância unanime do grupo. “Ela era a nossa mãe, aquela que nos dava conselhos, que ensinava a gente sobre o mundo. Naquela época sexo era tabu, mas ela conversava com a gente sobre tudo”.
Nós ficávamos numa expectativa muito grande pra ir no quadro saber onde íamos ficar. A gente podia ficar na pocilga, na apicultura, na horta, na avicultura e na cozinha, que era a preferida. Todo mundo queria ir para a cozinha, porque comia mais
O já conhecido advento das redes sociais ajudou a dar início ao audacioso projeto, com a criação de um grupo no WhatsApp, tão logo Cego Aderaldo, Evilásio Martins, soubera do Evento. Ele começou a ligar e a enviar mensagens para alguns poucos amigos, os quais ainda mantinha relação, mesmo que fosse tênue. De um em um, como diz o ditado, foram surgindo integrantes da turma e o grupo chegou a ter mais de 60 membros.
Morada da lembrança
Chegado o grande dia, os capagatos fizeram dele a morada das melhores lembranças, que os trouxeram ali para celebrar uma amizade de quatro décadas. Sentados ou em pé, eles formavam pequenos
De supetão Bitu, Cosme da Silva, atingido pelo soco da memória, evoca outro amado professor. “Quem se lembra de Tendeu [Alberto Prof. de Educação Física]?”, indaga lembrando que embora esse mestre tivesse postura rígida era querido no coração de todos. “Às 5h ele batia numa cachorra velha, [cano metálico] que tinha aqui, para acordar a gente”, relembra. Bitu ainda resgata um dizer recorrente dos capagatos para Tendeu. “Nós dizíamos: ‘Tendeu, Tendeu você não tem moral’. Ele respondia: ‘Vocês é que não sabem o que é moral meninos”. A rotina dos mocózeiros, assim também chamados por alguns furtarem e esconder alimentos para serem comidos depois, começava com as aulas do prof. Tendeu. Quando retornavam da Educação Física, tomavam café às 7h e em seguida começavam a assistir aula até às 11h30, quando havia a pausa para o almoço. À tarde, as turmas que haviam tido aula pela manhã realizavam as atividades práticas do Programa Agrícola Orientado (PAO), enquanto os que estavam na prática pela manhã assistiam à aula.
Toda semana saía a relação do PAO com os nomes dos alunos e os locais que eles ficariam durante a semana. “Nós ficávamos numa expectativa muito grande pra ir no quadro saber onde íamos ficar. A gente podia ficar na pocilga, na apicultura, na horta, na avicultura e na cozinha, que era a preferida. Todo mundo queria ir para a cozinha, porque comia mais”, relembra Bitu às gargalhadas.
À noite, a revelia do que se pode pensar após um dia repleto de afazeres, os mocózeiros continuavam a rígida e metódica rotina de estudos: hora do Estudo Obrigatório. Das 19h às 21h, eles se dedicavam a realização das “tarefas de casa” ou de leituras e pesquisas relacionadas aos conteúdos apresentados em sala de aula. Fugir do estudo obrigatório? Jamais. “Havia inspetores responsáveis por fiscalizar o comportamento e dedicação dos estudantes nesse horário, como seu Fernando da chibata, rígido e sério, seu Zé Gomes, seu Aluízio e seu Gustavo”, conta Bitu.
As brincadeiras
Depois da primeira, mais extensa e inestimável reunião de fomento às lembranças, partimos para um passeio de ônibus pelo terreno do Colégio Agrícola. O passeio durou pouco mais 15 minutos, mas a cada instante um capagato apontava na direção de um prédio ou de um terreno limpo de matos, fazendo-me lembrar de uma afirmação dita antes por Bitu. “Nós que desbravamos isso aqui [campus IFCE Crato] na enxada, na roçadeira. Nós que fizemos essa escola”. Retornamos do passeio, fazimos algumas sessões de fotos, o almoço foi servido. Após a refeição, convidei, novamente alguns mocózeiros para falarmos daquela época e sobre o encontro. Agora, a vez, ou a memória, pertence às brincadeiras.
Mesmo com uma rotina de estudo teórico e prático intenso, e com afazeres domésticos diversos, os capagatos arrumavam um bom tempo para as brincadeiras e “arrumações”, no bom cearensês, para sacanear os amigos e, às vezes, até mesmo os professores. Cego Aderaldo que o diga. Ele recorda que certa vez “ganhou o dia”, inventando para o professor Tendeu que estava com uma curuba, sarna. O professor amedrontado com a possibilidade de também contrair a coceira, logo determinou que o danado ficasse em repouso.
Mas a verdade é que nem sempre os capagatos saiam recompensados. De tanto se querer lucrar, por vezes o ganho era controverso. O próprio Cego Aderaldo no primeiro dia de trabalho na cozinha, local onde todos queriam estar, cometeu “o vacilo de colocar um caneco sujo dentro do tacho de leite, que tinha acabado de chegar. Na hora, cortou o leite! ”, rememora Paulo Romero que apelidou, praticamente a todos, mas que ninguém conseguiu carimbar um apelido seguro nele. O ganho desça vez foi dado, pessoalmente pelo diretor do Colégio à época, Jorge Ney, que determinou a Cego Aderaldo, a incumbência de capinar o terreno atrás da cantina durante o resto da semana.
Duas Semanas recorda de quando a turma armou para salvar a nota da primeira prova de química. A maioria da sala havia tirado notas que não passavam do três. Preocupada, a querida Tia Astrês, convenceu-se da sugestão dos mocózeiros de fazer uma segunda atividade, dessa vez em grupo, para re-
Amigos da Colégio Agrícola do Crato se confraternizam com enstusiasmo no reencontro após 40 anos cuperar a nota. “Dividimos a turma em duas equipes e combinamos as perguntas de um lado e do outro. Um fazia a pergunta do lado de cá e o outro já sabia a resposta do lado de lá”, relembra.
A dinâmica da amizade
Por mais que se construam formulações diferentes a respeito da dinâmica da amizade, todas irão convergir em um ponto comum: o reencontro. É o encontro que oportuniza o nascimento das amizades, mas só o reencontro, seja ele próximo ou distante em tempo do primeiro encontro, que demarca o terreno em que serão fincadas as sólidas raízes responsáveis por manter firme o elo entre amigos.
Todos juntos na quadra poliesportiva do IF, os mocózeiros se reuniram em um círculo de mãos dadas para realizarem uma dinâmica da amizade. O momento era para celebrar, celebrar a vida de todos aqueles que ali estavam presentes, “celebrar a memória daqueles que subiram ao andar superior”, nas palavras de Paulo Romero.
Adentrei o círculo e acompanhei as palavras de todos que, agora, formalmente faziam as apresentações, nome, idade, profissão, família, morada. Observei o comportamento do grupo, enquanto o extinto me dizia para perguntar, procurar um depoimento, que significasse em palavras, o que se passava nas cabeças daqueles técnicos agrícolas; o que a energia, transferida por mãos que tocavam umas às outras 40 anos depois, fazia sentir.
Foi, então, que desisti, após ouvir uma frase. “Esse foi o dia mais feliz da minha vida, depois que terminei o curso”. Não soube quem a disse, mas soube que aquele dia representava a retomada ou o início da primavera de uma juventude egressa de 1978.
“Vamos nos aproximar”
“O que eu mais queria na vida era ser um técnico agrícola ou agrônomo” declara com um tom de voz meio deprimente Antônio Alves, conhecido pelos outros mocózeiros como Surrão. Ao contrário dos colegas, Surrão só concluiu metade do curso. Uma difícil decisão que ele tomou para ajudar seus pais e irmãos. “Eu estudava de coração apertado, por saber que tinha café, almoço, e janta e meus irmão não tinham”, rememora, em lágrimas, o policial civil aposentado, natural de Cedro-PE.
“Os melhores anos da vida”
Até hoje eu digo, “gente que saudade do Colégio Agrícola”, afirma Maria Ademaísa, uma das 4 mulheres que estudavam no Colégio Agrícola naquela época e única da turma de 1978 presente no encontro dos egressos. Quando perguntada como era ser mulher em meio a tantos homens, se sofreu algum assédio ela responde enfática. “Eu nunca me senti inferior ou mal tratada. Nós éramos como uma família, e a direção do colégio era muito rígida, não permitiria isso [o assédio]”, replica com veemência Maria, que atuou 3 anos na profissão.
Maria Ademaísa