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Heitor HeitorFeitosa Feitosa Feitosa
Os primeiros donos brancos do Cariri
Como a maioria dos cratenses, Heitor Feitosa Macêdo é um entusiasta da memória de seu povo. Na infância, cresceu ao som da oralidade. As lendas e mitos regionais que lhe foram contados pelos seus antepassados, despertaram nele a precoce curiosidade e questionamentos sobre a veracidade do que ouvia. Em consequência, aos 16 anos iniciou suas pesquisas. De lá para cá, mais de 20 anos de estudos que percorrem da história oficial à história oral. Advogado e atual presidente do Instituto Cultural do Cariri (ICC), Heitor já soma ao seu currículo de historiador importantes descobertas e reviravoltas sobre a história do Cariri cearense. Nesta entrevista, esclarece muitos pontos ainda obscuros sobre a colonização do Cariri, principalmente envolvendo a Casa da Torre, uma casa forte da família Garcia d’Ávila, dona de quase todo Nordeste no período do Brasil Colônia.
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Eu gostaria de saber como nasceu em você a vontade de pesquisar sobre a memória.
Desde criança, eu escutava muito os mais velhos conversarem sobre pessoas que haviam vivido em tempos passados. Mas eles conversavam isso como se tivesse ocorrido ontem. Aí citavam os nomes, locais, fatos, e quando eu comecei a despertar para leitura, aproximadamente aos 16 anos, sobre História Regional, observei que essas pessoas as quais eles tratavam, esses personagens, tinham vivido no século XVIII e XIX. Então, isso significava uma tradição muito viva ainda, porque boa parte dessa gente que eu escutava, os mais velhos, eles não eram leitores vorazes. Era coisa de memória, de geração em geração.
Oralidade!
É, exato. Então, isso me despertou muito, e daí eu enveredei nesses estudos sobre história.
Quais as fontes de pesquisa mais utilizadas na sua formação enquanto historiador, memorialista?
As fontes de pesquisa... Eu trabalho da seguinte forma, quando a bibliografia, às vezes, se torna insuficiente sobre um assunto, que foi o que me levou a aprofundar mais ainda essa curiosidade, eu ia pra documentos manuscritos, geralmente, claro, além da oralidade, fazendo entrevistas, gravando em áudio. Sobre essa documentação, eu tive a sorte de haver uma democratização com os estudos chamado Projeto Barão do Rio
Branco, ou Projeto Resgate. É uma documentação do Brasil da época colonial que foi digitalizado por brasileiros, professores doutores daqui do Brasil, e trazidos para universidades, instituições, e por volta de 2006, 2007, eu consegui obter alguma parte desses documentos manuscritos da Torre do Tombo, em Portugal. Daí eu comecei. Aprendi a fazer a paleografia, que é a leitura da escrita antiga, e descambei, porque a gente passa a não mais estar limitado àquele espaço, aquele limite predeterminado pela historiografia já existente. A gente pode ampliar esses horizontes porque um manuscrito daquele, às vezes uma frase, pode ajudar a recontar toda uma história. Então, as fontes que eu uso: oralidade, bibliografia... Principalmente de assuntos regionais que é o que mais me interessa, o Cariri, o entorno da Chapada Araripe, desse espaço, e o Sertão dos Inhamuns também que é um território aqui próximo. Então, bibliografia, oralidade e fontes manuscritas também.
Como você pensa a importância de estudar a memória, de ouvir os mais velhos, a memória individual, a oralidade e o estudo da história?
Importantíssimo. Principalmente aqui, nesse espaço onde a gente vive, um sertão, um interior, no sentido de interior como esse aqui no Cariri, quase equidistante das principais capitais. Ele guarda desde a época das primeiras Bandeiras, usos e costumes antiquíssimos, arcaicos, coisas que ainda vieram com as Caravelas. E, inclusive, por meio da língua, eles costumam ainda transferir esse conjunto de tradições através da conversa. É interessantíssimo como isso se mantém preservado, essa questão linguística. Por exemplo, entre eles a gente vê muita coisa da língua portuguesa desde a União Ibérica quando falam “barrer”, “subaco”, “assubiar”, “alevantar”, “alumiar”, “alagoa”. Então, a gente percebe uma gramática arcaica, uma fala que não pode ser considerada incorreta, mas que muitas pessoas desavisadas terminam rindo, ignorando esse laboratório a céu aberto aqui, como se a gente pudesse voltar no passado, tendo contato com o campesino daqui, o sertanejo no Cariri, no Inhamuns. E outros sertões aqui ao derredor também guardam resquícios da língua cariri, indígena. E sobre o Museu Nacional, parte da sua coleção linguística foi toda queimada. Existia uma coleção de línguas indígenas, audiovisuais, áudios, a primeira gramática da língua Tupi-guarani escrita pelo Padre Anchieta, peças também daqui da região estavam guardadas lá, por exemplo, o Angaturama Limai, salvo engano, era o maior carnívoro das Américas, fóssil encontrado em Santana do Cariri. Acredito que parte das aquarelas também, produzidas pela comissão científica de exploração que D. Pedro II enviou para o Ceará, em 1859, e ficara até 1861, perdemos tudo isso. Ainda temos algumas dessas aquarelas em Crato, que o José Carvalho dos Reis, participante da Comissão Científica, produziu. Por exemplo, a pintura em que o Crato é retratado do alto da Rua Duque Caxias, onde Pinto Madeira teria sido fuzilado, é de suma importância que essa colcha de retalhos seja trabalhada aqui no interior, para que ajude a formar ou reformar essa bagagem que foi perdida em consequência da combustão do Museu Nacional, dessa combustão da nossa memória.
“Plantei fava!”.
“Como é que tá a fava?”
“Meu fí, tá fazendo um “gererê” danado”.
Eu, meio que sem jeito, já com meus 30 e poucos anos, formado em Direito, pesquisador com livro publicado, já havia consultado o dicionário algumas milhares de vezes, então, eu fui e disse: “Dona Tica, o que é “gererê”?”. “Meu fí, é enramar”, explicou. Aí piorou: “Dona Tica, e o que é enramar?”. Ela disse: “Meu fí, é subir assim (fazendo roda com os dedos)”.
A família Garcia d’Ávila eram sertanistas riquíssimos, eles foram donos de quase todo o Nordeste. Desde a Bahia, se espalharam pela região em busca de riquezas e escravização dos índios pois, os netos deles vão se casar com os netos de outro português que havia se instalado lá e que também tinha se casado com uma índia. Porque quando eles chegam aqui (no Brasil), nesse período, era muito difícil haver mulher branca. Eles vão construir essa casa em Tatuapara, que na língua indígena significa Tatu-bola. Hoje eles chamam Praia do Forte, fica entre Salvador e Ca-
Eu fiquei com aquilo na cabeça. Quando cheguei em casa fui direto na gramática da língua Kiriri, produzida por um padre capuxinho, italiano, por volta de 1698. Ele convivia com esses índios nas margens do [rio] São Francisco. Então, eu abri essa gramática e lá estava a palavra “tererê”, que quer dizer redemoinho. Depois fui para a gramática Tupi-guarani, do Leon Clerot, e lá tinha “Pererê” e Saci-pererê, que quer dizer, também, movimento circular e demônio, ou seja, “pererê”, “tererê” e “gererê” se tratavam da mesma coisa. O que comprova que temos resquícios dessa língua Cariri. Aqui entre nós não percebemos, por isso penso que às vezes basta um pouco de sensibilidade, conhecimento sobre essa língua que tanto ignoramos. A gente estuda inglês, espanhol, francês para poder se adaptar a esses tempos modernos da globalização, mas esquecemos dessa coisa importante que nos cerca. Passado e presente se misturando, essa etnia que ainda subsiste. Existe uma invisibilidade aí imposta por essa falta de sensibilidade.
Para começarmos a falar sobre como se deu a colonização do Cariri, faz-se necessário voltar um pouco mais no tempo e relembrarmos os fatos que despertaram o acontecimento. No artigo, você propõe os dois lados da moeda, digamos assim, são apresentados os que acreditam e os que não acreditam na presença de pessoas a serviço da Casa da Torre... Mas para darmos início a nossa conversa: O que foi a Casa da Torre?
Por que o salitre?
Porque o salitre fazia parte da composição da pólvora, e como esse pessoal vivia em guerra, tanto com estrangeiros, quanto com os próprios índios, que eram “barreiras humanas” para adentrar o interior, então, eles precisavam da pólvora. E essa era a cobiça principal.
Alguma vivência em relação a isso e que possa nos relatar?
Numa outra vez, eu estava num lugar chamado Palmeirinha, distrito aqui do Crato, e conversando com uma cliente minha, que é uma pessoa baixinha, tem pele acobreada, os cabelos lisos como “setas”, olhos repuxados, o nome dela é Tica de Jorge. Então, eu perguntei: “Dona Tica como tá o inverno esse ano?”.
Ela disse: “Meu fí, o inverno tá bom”.
“Plantou alguma coisa?”, continuei.
“Plantei”, respondeu.
“O que é que a senhora plantou?”.
A Casa da Torre era uma casa forte, construída pela família Garcia d’Ávila. Por isso que virou quase um sinônimo falar Garcia d’Ávila e Casa da Torre. Falar numa coisa era falar noutra.
Como a Casa da Torre foi construída pelos Garcia D’Ávila?
No final de 1500 chega aqui no Brasil, mais especificadamente na Bahia, um indivíduo chamado Diogo Álvares Correia, o “Caramuru” ou “filho do trovão”.
E ele ganha simpatia dos índios e acaba por viver com uma índia do tronco Tupi, chamada Paraguaçu, que depois toma o nome de Catarina Álvares. Eles se casaram e tiveram uma porção de filhos mamelucos. De- maçari. Agora, a casa está em ruínas, são ruínas tombadas pelo IPHAN [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional]. E voltando para época de 1500, até o final do século XVIII, eles vão formar o núcleo da família mais rica de todo o Brasil.
Qual era a principal fonte de renda deles?
A principal fonte deles era investir sobre o interior do continente para conseguirem terras para criar gado, colocar engenhos, prospectar metal precioso, para escravizar índios e vender, e também procurar salitre.
Quem eram os Garcia d’Ávila?
A família Garcia d’Ávila eram sertanistas riquíssimos, e eles foram donos de quase todo o Nordeste. Para você ter uma ideia, eles foram donos do Exu, lá o Leonel, avó da Bárbara de Alencar, quando se instala no Exu, ele vem através de arrendamento, ele assina o contrato de arrendamento com a Casa da Torre, na Bahia, e vem ocupar as terras dela. Aquela terra não era dele, ele pagava fórum anual. Pois bem, nessa porção pernambucana da Chapada do Araripe, era da Casa da
Torre, na porção oeste, indo para o Piauí também pertencia à Casa da Torre, o Intaim, e na porção leste, na Paraíba, que se divide com o Ceará, também era da Casa da Torre. Isso é comprovado por uma documentação farta, sesmaria citada por eles por várias vezes, inclusive na Casa da Torre existia um morgado. O que era o morgado e como ele funcionava?
Morgado era um instituto jurídico pelo qual todo patrimônio passava para o filho primogênito, o filho mais velho. Isso para poder manter essa fortuna e não ir se fragmentando através da herança. Afinal, na época, era comum o indivíduo ter dez, 15 filhos e quando dividiam as terras, esses bens, a tendência era empobrecer. Então, a universalidade passava para aquele filho mais velho. O morgado foi extinto no século XIX, mas foi muito comum nas famílias ricas.
Qual a ligação da Casa da Torre com o Cariri cearense? O que dizem os que acreditam e os que não acreditam nessa aproximação?
Logo após a Guerra Holandesa muita gente se refugiou na mata. Parte dos soldados mercenários que lutavam a favor dos holandeses, mas também as tri- bos indígenas que eram inimigas dos portugueses e de outros índios. Geralmente, os portugueses lutavam na companhia dos Tupis (Tupinambás, Tupiniquins). Enquanto que os holandeses, lutavam ao lado dos Kariris e os Tapuias em geral (Tremenbés, Janduins, etc) e, por uma certa lógica, quando os holandeses são expulsos, finalmente, de Pernambuco, onde ficaram de 1630 até 1654, começam uma série de retaliações, de vinganças. Esses índios Kariris sentem a necessidade, os Tapuias em geral, de se refugiar no meio das matas, no cerne do continente, no interior, no Sertão, no que era chamado de Sertão, na verdade. Então, esse ponto aqui [o Cariri], ele quase que é equidistante, porque se o indivíduo tirava numa reta do litoral no sentido do interior, ele quase que ia se encontrar nesse ponto aqui, né?! Iam se cruzar. Há registros atuais, na documentação da Torre do Tombo que comprovam que, por exemplo, índios da tradução Tupi se refugiaram aqui, no Cariri, porque existe uma carta do Ascenço Gago, padre jesuíta, pedindo autorização ao rei, em 1722, para vir aqui com alguns índios da Serra da Ibiapaba, já no Norte do Ceará, encontrar alguns parentes desses índios – índios da Ibiapaba eram índios do tronco Tupi, os Tabajaras – e encontrar com parentes que tinham ficado aqui há mais de 100 anos, numa retirada que eles fizeram da Bahia. Inclusive, a arqueologia feita aqui hoje, pela Fundação Casa Grande no Instituto de Arqueologia, está encontrando muitas igaçabas, muitos artefatos cerâmicos que são, muito provavelmente, de tradução Tupi.
Por quê?
Porque até então o mais comum era encontrar artefatos, por exemplo: cerâmico, muito grosseiro, eles atribuíam aos Tapuias. Tapuias são aqueles que não falam Tupi, não são do tronco Tupi. Um bojo grosso, o rebordo bastante grosso, sem pintura. Raras exceções tinham encontrado igaçabas e cerâmicas aqui [no Cariri] com pinturas, só que agora está se avolumando isso. E os traços dessas pinturas, o revestimento desse material cerâmico com tabatinga, né?! Indicam uma tradição Tupi, uma habitação desses índios Tupi. Figueiredo Filho, por exemplo, na década de 50 para 60, bateu uma foto e fez uma matéria para uma revista, acho que para uma revista baiana, em que ele está com um colar indígena, encontrado em uma igaçaba aqui (no Cariri) de jadeíte. A pedra jadeíte não é encontrada aqui no Ceará. Sabe-se que ela existe em Minas Gerais e na Bahia, então, isso de certa forma aponta que havia uma migração, um curso migracional aqui para esse interior. Agora, por que eu estou falando primeiro dos índios, dos conflitos? Esses conflitos pelo território, entre portugueses e holandeses, ajudam a empurrar essa gente para o interior. E logo após esse conflito, esse pessoal tem mais condições de montar tropas, burros, escravos, para poder investir pelo interior, guerreando com índios, enfrentando as diversidades da natureza e poder adentrar o Sertão para angariar a terra, para produzir, para criar gado, para montar engenho, para explorar ouro e pedras preciosas, que eram os três ciclos econômicos da época: ouro, gado e metal precioso. Segundo ponto da importância do que falei anteriormente, o índio é quem vai guiar esse pessoal pelo interior, ele vai ciceronear esse pessoal porque ele era o conhecedor do território. Então, a Casa da Torre vai penetrar aqui no Cariri. Hoje eu comprovo isso, só que até pouco tempo existia uma discussão de quase 150 anos. Explique melhor.
Porque a tradição oral, aqui no Cariri, apontava que a Casa da Torre tinha vindo. E são duas tradições orais que nós temos: uma oriunda do Brigadeiro Leandro Bezerra Monteiro, que foi um cara que nasceu ainda no século XVIII, participou da Contrarrevolução de
1917 aqui no Cariri, e é descendente direto de muitos políticos, das elites da região que são os Bezerra Monteiro ou Bezerra de Menezes, é a mesma coisa. E ele vai contar a um dos filhos dele, o terceiro Capitão Mor do Crato Joaquim Bezerra de Menezes, uma história que a Casa da Torre teria vindo da Bahia para o Cariri, claro que falando metaforicamente, já que a casa não ia se deslocar, mas os representantes de lá, os empregados, os procuradores, para conquistar terra para ela.
Como eles descobriram a existência do Cariri?
Um negro escravo da Casa da Torre teria sido sequestrado pelos índios Tapuias Kariris ainda muito jovem e foi trazido para o Cariri. Como os Kariris viviam em conflitos com outras tribos, ou nações, eles guerreavam, diz a tradição oral, os Inhamus, Calabaças e Cariús e estavam em desvantagem na época. Então, esse negro disse aos Kariris: “olha, vamos lá para a Fazenda Várzea, dos meus patrões que lá eles têm armas de fogo, têm trabucos, bacamartes. Vamos lá, escapamos e voltamos para cá para guerrearmos com o inimigo”. E assim foi feito. O negro havia caído nas graças dos índios, já fazia parte da comunidade, então, foram na Fazenda Várzea e encontraram tal de Medrado, que era procurador da Casa da Torre – como se fosse um capataz.
Onde se localizava a Fazenda Várzea?
Até hoje ninguém descobriu onde era essa fazenda, acredita-se que ou em Pernambuco ou na Bahia. Existem vários lugares até hoje com o nome Várzea e a Casa da Torre era dona de um território imenso, então podia se repetir. Isso é ainda um problema a se resolver. Eu penso que era próxima a Casa da Torre, mas é certeza que a fazenda pertencia a ela. O escravo foi sequestrado da Casa da Torre ou de uma de suas fazendas?
De uma de suas fazendas. Então, vieram aqui, combateram, ajudaram os Kariris a combater os inimigos e aqui encontraram um indivíduo se balançando em uma rede, um indivíduo branco já entre os índios, chamado Manuel Rodrigues Ariosa.
Quem era o Manoel Rodrigues?
Era um criminoso da Bahia que veio se esconder aqui nesse interior. Na hora que a bandeira estava aqui, toda bandeira tinha um regimento, uma disciplina, tinha o que podia e o que não podia esclarecido, e se cometesse qualquer ato, qualquer infração, o indivíduo poderia ser até morto pelo chefe da bandeira. Ocorre que o João Correia Arnaud vinha nessa bandeira, e só fazendo um parêntese, João Correia Arnaud era parente dos Garcia d’Ávila, era uma “Caramuru”, como chamavam. “Caramuru” por causa de Diogo Álvares Correia - os Bezerra de Menezes, os Garcia d’Ávila, os Arnaud, essas famílias eram chamadas “Caramuru” porque faziam parte, se entroncavam com a Casa da Torre, portanto, o brigadeiro Leandro Bezerra Monteiro também era parente deles. Então, o João Correia
Arnaud vai contar isso, vai passar de geração para geração a mesma história, que é a segunda tradição oral, e isso vai cair nos ouvidos de uma bisneta dele. Essa bisneta era casada com o professor Bernardino Gomes de Araújo – esse cara nasceu no Sertão dos Inhamuns, mas viveu como professor em Missão Velha, na Fazenda Ossos. Ele escriva para o jornal “O Araripe” (séc. XIX entre 55 e 65), lá ele coloca uma dessas tradições orais. Muito do que ele fala se coaduna com a primeira tradição do brigadeiro Leandro Bezerra Monteiro. O que mais fala essas tradições orais?
Que várias Bandeiras vieram por aqui. A Casa da Torre teria sido a primeira, alguns falam na data de 1590, só que eu acho um anacronismo e acabo por mostrar na minha pesquisa que isso não confere. Mas daí em diante o que é que ocorre?
Estribado nessa versão oral, João Brígido e outros historiadores como o conselheiro Tristão Gonsalves de Alencar Araripe – que foi membro do STF, era filho do primeiro Tristão, nascido em Icó, mas terminou indo morar no Rio de Janeiro onde se formou em Direito e se tornou um ícone da intelectualidade. Outros indivíduos além desses dois, foram o médico francês Pedro Théberge, que morava no Icó, a partir da primeira metade do século XIX, e o Bernardino começaram a escrever intensamente essas histórias sobre o Cariri unindo fontes primárias, indo a arquivos e também, claro, escutavam o que era conversado na época, a oralidade, né!? E começaram a publicar isso. Só que no final do século XIX, início do século XX, a corrente científica positivista começa a se acentuar, principalmente em Fortaleza, onde a partir de 1887 é formado o Instituto do Ceará, fazendo parte o Barão de Studart, Antonio
Bezerra, Tomás Pereira, entre outros. E essa corrente positivista só acreditava no que o documento podia provar. Então, nessa época eles começam a vasculhar a documentação relativa à sesmaria aqui no Ceará. Quem e como eram concedidas as sesmarias?
Sesmaria era uma porção de terra doada pelo capitão-mor com a chancela do rei para que o pensionário se compromissasse a ocupar a terra, ou seja, a Coroa Portuguesa queria que o interior do Brasil fosse ocupado com capital privado porque não queria financiar, porque era caro. Então, eles doavam léguas de terras enormes. Inclusive, isso vai lastrear a origem dos nossos latifúndios. Uma sesmaria era uma medida antropométrica, na época, mas ela tinha três léguas de comprimento, na beira de um rio, por uma légua de largura, meia légua de largura para cada margem do rio. E tiveram pessoas que tiveram 10, 20... Encontrei um indivíduo aqui, o Lourenço, que possuía 35 sesmarias. Trazendo para as convenções atuais, uma légua significa quantos quilômetros?
Depois da adoção do Sistema Métrico Decimal, feito apenas em 1862, sabe-se que uma légua tem seis quilômetros. Mas na época a légua era uma medida herdada da civilização romana. Légua vem de leuk, que eram umas pedrinhas brancas comuns em Roma para medir as terras, para delimitá-las. E a légua se subdivide em braças. Até hoje o sertanejo mede dessa forma. Se você chegar: “fulano, quanto é que tem uma braça?”. Esse indivíduo vai ficar em pé, erguer a mão e cortará uma vara, seja de marmeleiro ou mororó, e sairá medindo o território. Então, é um arcaísmo que ainda é praticado no Cariri. Na época, a légua já se subdividia em braça e essa braça podia variar: uma légua podia ter 2.400 bra- ças, 2.800 braças e até 3.000 braças. Obviamente que, se fosse um homem grande seria uma braça grande, e se fosse um homem pequeno seria uma braça pequena. Voltemos para a Casa da Torre e para as teorias que afirmam e desacreditam na presença de indivíduos de lá aqui no Cariri...
Pois bem, aí os positivistas não encontraram nenhum documento sesmaria aqui, doada à Casa da Torre que comprovasse isso, pelo menos no livro de sesmarias aqui do Ceará, da capitania. E quando os documentos não são encontrados eles afirmam que a Casa da Torre não esteve aqui, que tudo era mentira daqueles “cronistas”, como foram chamados os historiadores da época, o João Brígido, o Théberge, como já falei. A partir daí, começa um trabalho de desqualificação desses primeiros autores, das tradições orais. E isso ganha corpo.
O que acontece?
Na época, claro, não existiam universidades aqui, esse conhecimento era feito quase sempre por uma elite branca, e os debates vão se estendendo ao longo de décadas, sem encontrar uma resposta. Na própria academia, as pessoas se dividem na presença ou não da Casa da Torre no Cariri. Para aqueles que acreditam na presença, utilizam-se de fontes como João Brígido, Théberge, o Conselheiro Tristão e, aqueles que não acreditam na presença da Casa baseiam-se no Barão de Studart, Antonio Bezerra, etc. Esse discussão virou quase que um ciclo vicioso que não evoluía, e foi por aí que me interessei pela pesquisa. O que foi descoberto na sua pesquisa?
Encontrei há alguns anos um documento em que a Casa da Torre peticiona como sesmaria a Região do Cariri cearense. Ela havia sido dona de Pernambu- co, Piauí, Paraíba, mas do Cariri cearense não existia documentação, como falei anteriormente. A sesmaria que encontrei era datada do dia 22 de julho de 1658, em que o André Vidal de Negreiros (capitão-mor da capitania de Pernambuco e ex combatente da Guerra Holandesa) vai doar para os Garcia d’Ávila uma faixa de terra enorme, em que a Serra do Baripê, Varipê ou Aripê fazia pião. Fazer pião era fazer centro. Ele cita nas imediações o Sertão do Rio do Peixe que é Paraíba, Piancó, Pajeú que é Pernambuco, ou seja, tudo leva a crer que era a mesma Serra do Araripe, só que ainda restava dúvida. Inclusive o Capistrano de Abreu já tinha lido esse documento, só que não atinou para esse fato e fez a paleografia da palavra Baripe ou Aripe, ou Varipe, como se fosse Raripe. Então, comecei a fazer mais pesquisas e encontrei uma documentação em que há um conflito entre a família Garcia d’Ávila, em 1808 ou 1809, com a família Burgos Pacheco. Esse conflito ocorreu na Bahia?
O conflito por terra entre essas duas famílias já era em Pernambuco, mas parece que já englobava parte aqui do Araripe, da Serra do Araripe. E os d’Ávila vão alegar na contestação, na litigância judicial, dizendo o seguinte: “olha, nós somos donos dessas terras há mais de 200 anos, desde 1658, e a Serra do Araripe”. Na época, se chamava Aripe, né?! Bem próximo a Uaripe, Baripe e Varipe. Além disso, eu vou encontrar outros documentos inéditos que vão tratar de invasões que a família Garcia d’Ávila havia promovido no começo do século XVIII aqui no Cariri. Certa feita, a Leonor Pereira Marinho (1661-1714), a “Senhora da Torre”, dona da casa, do morgado e viúva de Francisco Dias d’Ávila (1648-1694), vai enviar homens armados para destruir casas, quebrar telhas, para despovoar o território que já estava sendo ocupado por brancos. Qual era a realidade territorial e social do Cariri nessa época?
Segundo o Padre Antonio Gomes de Araújo, que é um dos maiores estudiosos sobre a colonização do Cariri, ele fala que o povoamento regular começa em 1703, o povoamento branco, claro, existiam índios. Em algumas sesmarias, de 1702, a gente encontra também gente da família Mendes Lobato, que eram brancos lá das margens do São Francisco, da região do Porto da Folha, hoje Sergipe, invadindo aqui o território e se unindo aos índios Calabaças para poder investir contra outros índios e ocupar a terra. Numa das sesmarias da Casa da Torre, outra que eu encontrei porque acabei por encontrar mais de uma durante as minhas pesquisas, do ano de 1688, ela alega que não pôde adentrar o território aqui do Cariri cearense porque os índios faziam resistência, ou seja, o índio era uma barreira humana e até parece que próximo a esse período. Em alguns anos esses índios vão se rebelar como em 1713, aqui no Cariri, e vão colocar parte desses brancos para correrem. Então, nessa época do século XVIII esse povoamento era muito caldeado, era muito misto. Existiam ainda tribos indígenas no seu estado primitivo, esses brancos invadindo, já existiam também índios fazendo alianças, já existia miscigenação entre índios e brancos, os mamelucos que vão ser peça importante nessa invasão porque eles eram parentes de ambos os lados, conheciam a língua, o português em sua língua originaria: autóctone, e assim estabelecia a comunicação que era importantíssima para a formação dessas alianças. Então, o povoamento nessa época aqui tinha essa cara. Como se estabeleceu essa comunicação entre índios e brancos?
Aí eles já vinham bastante cansados e precisavam de alguém para poder conversar com aquelas tribos indígenas que estavam ali estabelecidas para evitar um enfrentamento armado, porque aquilo causaria prejuízo. Então esse “língua” era o responsável por estabelecer a comunicação.
Você falou anteriormente que naquela época os índios já faziam alianças com os homens brancos... Que tipo de aliança? Era troca de favores?
Essas alianças se efetivavam principalmente em trocas de objetos, eles iam comprar os índios com foices, machados, facões e facas. Inclusive, a tradição da faca nordestina, ela começa a se consolidar nessa época, rito da sangria, tanto usada pelo Cangaço Lampiônico. Em geral, os índios que aqui já se estabeleciam eram amigáveis, abertos para conversa?
Nem sempre. Existia a possibilidade da aliança a depender de quem viesse estabelecê-la e quais as vantagens eles iriam oferecer aos índios.
Várias Bandeiras vieram por aqui. A Casa da Torre teria sido a primeira, alguns falam na data de 1590. Só que eu acho um anacronismo e acabo por mostrar na minha pesquisa que isso não confere
Como foram evidenciadas e comprovadas essas negociações aqui no Cariri?
Geralmente, quando os brancos botavam uma bandeira eles traziam nela um cara que eles chamavam de “o língua”. “O língua” era o indivíduo prático do Sertão que dominava a língua indígena. Porque não era vantagem para eles chegarem numa certa região, no interior, já sofrendo com privação de água, de alimentos, tendo que comer raízes e “imundices”, como eles consideravam, na época, cobras, lagartos. E sem o conhecimento da terra, ainda corriam o risco de se alimentarem de raízes venenosas, a exemplo da mandioca que era o principal alimento de lá, e nós sabemos que a mandioca precisa ser lavada em nove águas para poder retirar o ácido cianídrico, caso contrário, ela mata.
Em uma igaçaba encontrada na calçada do Museu Vicente Leite, em Crato, lembrando que igaçabas eram urnas indígenas, existia uma colher de metal, ou seja, representa já um contato entre os índios e os brancos. A gente encontra, por exemplo, o mercenário holandês Roulox Baro, que foi um “língua” em 1637, ele entrando em contato com Janduins, que lutavam ao lado dos holandeses, e os Janduins pedindo presentes como cães de raça de origem europeia, menoscabando um presente em metal que o Roulox Baro tinha dado a eles, dizendo: “não, os holandeses já nos deu presentes melhores cravejados aqui em pedras”. Eles eram pessoas que também tinham suas cobiças, naturalmente, tinham sentimentos que o branco também possuía. O desejo de possuir, a inveja, o ódio, o amor, a alegria, tudo isso é humano, né?! Mas existiam índios em estado selvagem, era a regra aqui, tanto é que no século XIX ainda vão ser encontrados índios em estado bravio, como por exemplo, os Xokós, tanto é que vai ser promovido um massacre contra eles na Serra da Cachorra Morta, divisa Ceará e Paraíba, em 1867. Esses autos processuais estão aqui conosco, no Instituto Cultural do Cariri, os manuscritos. Então, era comum, até o século XIX, esses índios em estado bravio. Existia aqui um indivíduo chamado Simplício Pereira da Silva que vivia no Sertão de Pajeú, em Pernambuco, que era conhecido como caçador de índio, isso no século XIX, viu?! E a melhor época que ele espera para caçar os índios era no período de estiagem, de seca.
A Casa da Torre escravizou muitos índios?
Ela escravizou muito índio. Agora assim, ela escravizava, mas também existia, por outro lado, o intercurso sexual porque há gente da Casa da Torre, dos d’Ávila que, salvo engano, o terceiro Francisco Dias d’Ávila ele vai ter uma filha bastarda ou ilegítima, como chamavam na época, com uma índia aqui no Pernambuco e vai doar uma faixa de terra enorme para ela que, na época, chamava-se Riacho das Contendas e hoje tem o nome de Riacho da Brígida. Então, era muito comum que esses indivíduos bandeirantes, mesmo que da elite eles mantivessem relações sexuais com essas aborígenes, autóctones, as mulheres indígenas.
A capitania do Ceará Grande é o que hoje corresponde ao Cariri ou todo o estado do Ceará?
A capitania do Ceará Grande é o que hoje corresponde ao Ceará, porque quando dividem o Brasil em capitanias hereditárias existia uma linha de testada que era feita no litoral de 50 léguas, cada capitania tinha de ter de regra 50 léguas no litoral e elas tinham que caminhar acompanhado essa linha, esses paralelos, pelo interior. Você já deve ter visto aquele mapa dividindo as capitanias hereditárias, né?! Só que elas vão tomar outra forma geográfica, outro território a partir das invasões dos bandeirantes, porque o território vai começar a ser dividido, como era a regra desde a civilização romana a partir das águas, do divisor de águas. Ou seja, às vezes, em cima de uma serra dessa daqui a água que
Inventário de 1753 do terceiro Garcia d’Ávila, em que ele inclui as terras de Jardim-CE escorre para esse lado é cearense, a água que escorre para o lado pernambucano é de Pernambuco. Na história oficial contada nas escolas, pelo menos nas quais estudei aqui em Crato, conta-se que “a descoberta” do Cariri se deu principalmentepela necessidade de alimentar e hidratar as criações de gado... Isso é real? ouvidoria do Ceará. A ouvidoria era como se fosse criar um órgão jurisdicional. E foi nomeado e empossado o primeiro ouvidor do Ceará, isso em 1723. Esse ouvidor era um cara que havia estudado na faculdade de Coimbra, em Portugal, ouvidor geral era um juiz, e veio aqui tratar das leis, dos processos, de inquéritos, inclusive ele era responsável por arrecadar os tributos. Quando ele chega aqui, o Ceará, a capitania do Ceará Grande era dividida em três ribeiras.
Sim, sim, é real. Aqui é um oásis, né?! Até hoje temos centenas de fontes de água doce ao redor da Chapada do Araripe... A Casa da Torre já tinha alguma ligação?
Ah, sim, com certeza. A Casa da Torre não tinha como criar gado no litoral, na Zona da Mata porque além da mata ser muito densa, a floresta, Mata Atlântica, né!? A pastagem ficava ruim de criar, e outra, com a plantação da cana-de-açúcar foi necessário afastar o gado porque senão o gado ia comer toda a plantação. Aí então, eles começam a investir pelo interior e a parte do semiárido era perfeita para criar gado, afinal, existia a pastagem natural, monocotiledôneas como, por exemplo: capim mimoso, panasco, as milhãs, o vermelhão. E aqui é um bebedouro natural, né?! Ocorre que aqui no sopé da Chapada vai ocorrer algo bem peculiar porque além da criação do gado vai haver também o estabelecimento de engenhos e, lógico, se há plantação de cana tinha que afastar um pouco o gado, tanto é que no jornal “O Araripe” a gente vai encontrar muito conflito, no século XIX, pelo fato do gado estar entrando nessas roças de cana, para comer a cana, né! E isso causava prejuízo aos engenhos. A mola mestra da economia ao sopé da Chapada, pelo menos na parte cearense, era o engenho, isso desde o século XVII, mas esses donos de engenho também eram criadores de gado nos sertões vizinhos, em terras vizinhas, porque o gado movia as moedas, o gado alimentava, o gado vestia, o couro do gado era essencial para ter a sela, para poder cavalgar. O único contra-argumento para aqueles que não acreditam na presença da Casa da Torre no Cariri é o fato de não considerarem a oralidade?
Os tributos são os impostos?!
Quando o indivíduo resistia, era muito comum que a Casa da Torre, os encarregados deles, cometessem crimes bárbaros. Inclusive, alguns procuradores que tinham feito isso para a Casa da Torre ficaram à beira da loucura
Exato. Eles consideram que a rainha das provas seria o manuscrito, o documento escrito, ou então uma testemunha ocular da época, o que seria impossível (risos). E por isso eles negam, subestimam a oralidade, que hoje está sendo confirmada, em parte.
Além das até então apresentadas, existem outras evidências da presença da Casa da Torre no Cariri? Quais?
Existem. Aqui houve um conflito chamado Sublevação do Jaguaribe. E o que foi isso? Quando se cria a
Exato. Essa era uma divisão administrativa, mais uma herança dos bandeirantes, o nome “ribeira” porque eles andavam na beira dos rios. As três ribeiras que existiam no território do Ceará eram a do Acaraú (Região Norte), a Ribeira do Ceará (englobava Fortaleza e Aquiraz, a Vila do Forte) e a Ribeira do Jaguaribe (que açambarcava os Inhamuns, o Cariri, os Cariris novos, até então). Então, ele sai por essas três ribeiras fazendo devassas, que equivale a inquéritos e processos. Muitas pessoas da elite estavam sendo investigadas, famílias importantíssimas, por furto de gados e homicídios. Então, essas famílias ficam insatisfeitas, vão atrás desse ouvidor para querer matá-lo, rasgar os processos e tal. E dentro desse contexto, ocorre uma batalha enorme aqui em agosto de 1724 na Fazenda Caiçara, que havia sido da família Mendes Lobato, um dos primeiros bandeirantes que veio logo após a Casa da Torre aqui em Missão Velha, que se chamava Cachoeira, então essa batalha se deu lá. Muita gente morreu, virou uma guerrilha. Esse ouvidor é preso em Pernambuco e retirado para Portugal. Só que vem outro ouvidor em seguida, o Loureiro de Medeiros. Esse Loureiro de Medeiros começa a exercer suas funções de ouvidor geral, só que antes de ele acabar um triênio, para o qual ele era designado, nomearam um novo ouvidor, parece que também por pressão das famílias daqui, das elites. Então vem o terceiro ouvidor, mas o Loureiro se recusa a entregar o cargo e começa uma refrega [combate] entre eles, inclusive o Loureiro (o segundo ouvidor) quando é preso lá no Acaraú, estava com faca na cintura, pistolas (que o povo costuma chamar de garrincha hoje, com carga feita pelo cano, né?!), e com um bacamarte com uma bandoleira, ou seja, um juiz formado também em Coimbra parecendo um cangaceiro, né?! É até a consolidação do cangaço aqui na região, no Ceará, na verdade. Onde é que eu quero chegar? Vem outro ouvidor, que era o Antonio Marques Cardoso, também português, formado em Coimbra, para apurar os fatos aqui dessa sublevação. Só que antes dele chegar ao Cariri, começa um burburinho dito por um advogado, de que ele vinha para dar posse a Casa da Torre, isso por volta de 1731 mais ou menos, ou seja, era um sinal de que havia uma litigância da Casa da Torre e um interesse da Casa da Torre em possuir, em tomar, em ter o domínio dessas terras. Outra evidência a gente tem envolvendo a família Arnaud, que descendia do Caramuru, era primo dos d’Ávila, nunca teve sesmarias aqui no Cariri, no entanto, morreu em Missão Velha sendo possuidor de terras. Como ele conseguiu essas terras? Oralidade diz que a irmã dele tinha sido presenteada pela Casa da Torre, pelos d’Ávila, com algumas terras e que o irmão veio tomar de conta aos oito anos de idade, tinha vindo na primeira bandeira. Inclusive, ele teve uma desinteligência com um índio, e o índio deu uma flechada no tórax dele. Ele disparou uma arma, matou o índio e foi preso por amotinamento, só que os companheiros de bandeira pediram para que ele fosse perdoado, anistiado. E teve ainda a invasão de 400 homens aqui no Cariri para despovoar a terra, em 1706. Em 1704 a Leonor Pereira, a dona da Casa da Torre já havia mandado homens para destruir casas, em 1706 vem 400 homens para destruir casas novamente, matar gente, e tinha a questão do São Francisco. O Rio São Francisco era domínio da Casa da Torre, eles eram dono de quase todas as margens esquerdas do São Francisco. Qual eram os modos operantes, a maneira de agir da Casa da Torre? Eles simplesmente invadiam as terras e tomavam posse?
Eles eram muito ricos, por mais que outra pessoa tivesse antecedido eles na petição sesmarial, na ocupação da terra, eles chegavam e diziam o seguinte, através dos procuradores, claro, dos capatazes, dos encarregados: “Olha, fulano, você chegou aqui primeiro, mas isso não nos interessa. A terra é nossa. Ou você arrenda a terra, ou você compra, ou então você vai embora”. Quando o indivíduo resistia era muito comum que a Casa da Torre - os encarregados deles, cometessem crimes bárbaros. Inclusive, alguns procuradores que tinham feito isso para a Casa da Torre ficaram à beira da loucura. Há o relato do João da Maia da Gama que foi um cara que foi governador do Maranhão e da Paraíba e que em 1728, escreveu um diário e ele relata isso, que teve um dos procuradores da Casa da Torre que quase chegava à loucura, indo para igreja, pedindo perdão pela barbaridade que havia cometido contra sesmeiros que a Casa da Torre havia expulsado, matado. Então, eles se punham pela força de armas, pelo dinheiro, eles eram muito próximos da burocracia estatal, ou seja, eles nomeavam capitães-mores como se fosse uma espécie de prefeito, comandante militar e delegado de certa localidade, eles conseguiam carta potente para esse cara, com amizades no litoral e também na Europa, muito dinheiro, né?! Então, o aparato estatal ficava também nas mãos deles (da Casa da Torre), de certa forma havia a corrupção, ao sistema da época, qual ocorre hoje, tanto é que hoje várias elites - não irei arriscar dizer o nome dos atuais políticos (risos) - descendem dessas pessoas, no Brasil inteiro, só que no nordeste principal mente. Era um grupo poderosíssimo. Particularmente, você tem uma visão não posi tivista?! Acredita de fato na presença da Casa da Torre no processo de colonização do Cariri cearense? na revista Itaytera, eu penso que coloca uma pedra em cima dom assunto porque além da documentação que eu lhe falei, tem mais documentos como, por exemplo, o inventário de 1753 do terceiro Garcia d’Ávila, em que ele inclui entre as terras dele um lugar chamado de Jardim, que seria o Jardim aqui do Cariri, e outras localidades mais daqui, da Paraíba e do Ceará já che gando ao Cariri. Então, é uma documentação que eu penso que ela venha esclarecer ou tentar esclarecer esse assunto, pelo menos no meu ponto de vista e pelo que eu já pesquisei, já procurei bibliografias, manuscritos, até onde pude chegar, né?! Mas não posso, nem vou bancar o arrogante, e dizer que eu consegui colocar fim ao problema, mas tento, estou tentando. Apro ximando-me, trazendo elementos novos para poder servir de interpretação.