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Equação da vida, lógica da matemática

Da PUC para a UFCA: uma vida dedicada ao magistério

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Oprofessor Plácido Francisco de Assis Andrade nos recebeu em sua sala, no Bloco A, do campus da UFCA em Juazeiro do Norte. Uma sala simples, apertada, estreita, amontoada de livros e papéis em duas pequenas mesas e um armário. A mesa do professor Plácido fica localizada próxima a janela basculante, ao fundo da sala. Nossa conversa foi feita no período da tarde, passava pouco mais das 15 horas, e o sol que penetrava pelas frestas da janela parecia não incomodar o professor.

Com seu chapéu estilo panamá, Plácido, voz pausada e tranquila, foi logo contando a sua história, desde a infância. Afinal, a entrevista era sobre sua trajetória, os embates na academia, gostos, visão de mundo e a Universidade Federal do Cariri. Logo vai dizendo que é de Fortaleza, eram rígidos quando se tratava de estudos e diz que “na sua época o ensino não era brincadeira, não; que antigamente era mais rigoroso em termos de estudo”. Depois de uma maratona de aulas, voltava para casa, descansava meia hora e estudava, estudava muito. Esse era o cotidiano de todos os irmãos, enquanto os pais trabalhavam para sustentar os cinco filhos.

E os colégios da época? “Ah. Também eram rigorosos”. Cita o Liceu, Escola Normal, 7 de Setembro e Colégio Cearense (hoje extinto). No 7 de Setembro, ele fez o antigo ginasial da primeira à quarta série; e no Cearense, o científico.

Mas nem tudo eram estudos na vida do professor Plácido. Sua família morava no bairro Antônio Pompeu, no Centro. O futebol foi o seu

Na Universidade Federal do Cariri, como em qualquer outra instituição de ensino, os conflitos sempre se farão presentes. Nem todas às decisões da UFCA, mesmo tomadas por colegiado, foram prudentes e que até hoje a instituição paga um preço alto não do Cariri, mas que não pensou duas vezes em ensinar na universidade.

Fala com uma ponta de saudade do passado. “Ah, meu pai. Era um servidor público do Ministério da Agricultura, nível médio, Hugo Andrade. Ele trabalhou sempre no fomento agrícola, na Rua Luciano Carneiro. E minha mãe, dona Maria de Lourdes, era uma mistura de dona de casa, mas trabalhava com bordados, bordados de camisa de neném. Tinha uma equipe que trabalhava com ela. Éramos cinco filhos e três são professores de ensino superior, de universidade, a mais velha de Matemática, outra de Arquitetura. Eu tenho mais um irmão que é médico, e uma irmã que é também professora, dona de uma creche para a primeira infância”.

Os três irmãos seguiram a carreira do magistério, mas os pais de Plácido em nada influenciaram. O professor lembra que ambos esporte preferido, mas também tinha o jogo de bila, esconde-esconde e, lógico, traquinagens, muitas traquinagens nas ruas - brigas, pular no quintal dos outros para roubar frutasbrincadeiras comuns aos garotos da época.

Rock e Zé Trindade

A quadra histórica era também de mudanças no campo da cultura no Brasil – teatro, música, cinema, artes plásticas. No teatro, os grupos Arena e Oficina revolucionavam à cena. No cinema – além da indústria cultural já firmada no País desde o final da Segunda Guerra, filmes de arte, Hollywood, Cinema Novo e as famosas chanchadas da Atlântida disputavam o público – ou dos chamados cines poeiras localizados nos bairros – ou as belas salas da Sétima Arte construídas em todo o País, geralmente localizadas nos Centros das capitais do País, como o Cine São Luiz, de Fortaleza. O rádio e suas radionovelas também pontificavam como

Pl Cido Andrade

principal atração de entretenimento entre os jovens da época.

O professor Plácido relembra às sessões de sábado no São Luís - “sábado sagrado, quando vestia a minha melhor roupa, uma camisa social ballon” . Ou dos filmes de arte exibidos pelo Cine Diogo. Sem esquecer as Chanchadas e Zé Trindade, criador do famoso bordão - “Meu negócio é mulher”. Além dos vários cantores famosos da época de ouro do rádio – “que só se via no cinema”. E das radionovelas, uma que até hoje ele tem na memória é “Jerônimo, o Herói do Sertão”.

O rock começava também a dar as caras no Brasil, numa Fortaleza ainda provinciana, com Elvis Prelsey e as famosas tertúlias comandadas por Ivanildo (o Sax de Ouro e seu conjunto). Ora no clube do Náutico, ora no extinto Maguari. Tempos dos anos verdes.

Pequeno destino

E assim foi se passando o labirinto do tempo na juventude do professor Plácido – entre estudos, brincadeiras de rua, tertúlias e sessões de cinema. Chegou outro tempo, o de encarar a vida, a universidade, ou melhor, a matemática.

Volto a pergunta. Por que a Matemática? A carreira do magistério? Se não foi a influência dos pais, foi então o destino que levou quase todos os irmãos a seguirem carreira de professor?

“É como se diz tem o grande destino e tem o pequeno destino. No grande destino ninguém manda, mas no pequeno a gente pode influenciar, né. Conhece a pintura do Sartre sobre isso? O grande destino não, não, do Sartre não do Dalí?

Ele se refere ao famoso quadro de Dalí, “Destino”, “uma demonstração mágica das questões da vida dentro do labirinto do tempo”. Uma espécie de “paranóia crítica” de Dalí – inspirada no trabalho de Freud sobre o subconsciente.

Mas não interessa se era o filósofo Jean Paul Sartre – muito lido na época do professor Plácido - ou o pintor surrealista Salvador Dalí. O professor sempre foi dono do seu nariz e construiu o seu “pequeno destino”. “Foi assim. Quando saí do colégio 7 de Setembro fui para o Colégio Cearense, que fechou, né. Eu entrei numa turma de engenheiros - lá tinha uma turma de Engenharia e outra de Medicina. Talvez por influência da minha irmã, que entrou na Arquitetura e amigos também estudantes de arquitetura, resolvi fazer Arquitetura”.

Ele chegou a fazer cursinho para o vestibular de Arquitetura. Mas seu “pequeno destino” estava em outro tempo e outro espaço. Aos chegar o final do ano, uma das irmãs já morava no Rio. Era professora de Matemática. O cunhado também Matemático. A PUC do Rio abriu o primeiro curso de Engenharia Elétrica. Desistiu da Arquitetura e foi tentar o curso de Engenharia na PUC. Corria o ano de 1968. Ano do Ato 5 que tanto perseguiu professores, estudantes e a universidade no Brasil.

“Eu não sei o motivo certo, mas perguntei ao meu pai se poderia ir para o Rio cursar Engenharia Elétrica. Ele só disse: vá que a gente dá um jeito. Arrumei as malas e me mudei para o Rio de Janeiro. Minha irmã e o meu cunhado estavam de saída para os Estados Unidos, onde fizeram o doutorado. Eu fui morar numa República. Prestei vestibular e entrei no curso de Engenharia Elétrica. A PUC era ministrada pelos Jesuítas. Disse a eles que precisaria de ajudar, não tinha condições. Eles, então, me concederam uma bolsa. Pagava 20 por cento do total da mensalidade. Lá pelas tantas, talvez o destino, eu resolvi fazer Matemática. Gostava era de cálculo, álgebra. Troquei engenharia pela Matemática e nunca mais larguei”.

Anos de Chumbo

A época, politicamente falando, era das mais duras e complicadas. Mas o professor Plácido ficou longe das lutas políticas, passeatas, movimento estudantil. O foco era o estudo. Repete que morava numa pousada e, naquele contexto não tão fácil, só pensava em estudar. “Nunca fui um grande contestador, nem rebelde. Mas a gente respirava um clima tenso, de ansiedade”.

“A gente sabia que dentro da PUC do Rio tinham agentes infiltrados, tanto que uma menina que estudava na minha sala, chamava-se Beth, teve que fugir para o Chile. Nós tínhamos receio, todo mundo tinha receio”.

Outra questão apontada pelo professor Plácido eram as diferenças das universidades particulares para as públicas, inclusive entre a PUC carioca e a PUC paulista, esta administrada pelos Franciscanos, ligados mais a área social. No Rio, a universidade focava com maior força no

Pl Cido Andrade

campo tecnológico, além de Economia e Administração. “Os pais do Plano Real saíram de lá e a universidade não tinha um ambiente político tão pesado quanto a do Rio de Janeiro. Agora, na PUC paulista estava a vanguarda do movimento estudantil. Mesmo assim os anos de chumbo foram difíceis para qualquer estudante na época”.

Plácido ainda participou de inúmeras assembleias, mas, por índole, nunca se arriscou além disso. “Talvez por estar desprotegido, por não ter ninguém por perto. Tinha que me virar sozinho, tocar a vida de estudante já não era fácil”.

Foi longo o tempo que ele ficou no Rio de Janeiro. Chegou aos 18 anos, concluiu o curso e se tornou professor da mesma PUC. Ensinou ali até aos 44 anos de idade, ou seja, 20 anos. “Na época existia um déficit de professor de Matemática em termos de ciências básicas. Quando terminei a graduação, entrei no mestrado já como professor da universidade. E permaneci um longo tempo na PUC do Rio de Janeiro”.

Rumo aos EUA

O doutorado demorou um pouco, mesmo assim foi o primeiro aluno a ser matriculado no doutorado da PUC - “fiz o curso, exame de qualificação, e fui para a tese. Mas me esborrachei. O trabalho que vinha desenvolvendo, por coincidência, foi publicado em 1983, ano que defenderia a minha tese. Acontece que tinha que mostrar o trabalho a um professor do Instituto de Matemática Pura e AplicadaIMPA ., recentemente criado. Ele detectou que meu trabalho era muito parecido com um que já tinha sido publicado. Na Matemática a gente tem que ser original. Foi quando o então presidente do CNPq, Jacob Palis, também Matemático, ex diretor do IMPA, me ofereceu uma bolsa sanduíche nos Estados Unidos”.

O professor Plácido chegou aos Estados Unidos já casado, com a mulher e dois filhos pequenos - “uma loucura”. Ele se casou em 1972. Voltou e defendeu a tese na PUC do Rio de Janeiro. Era início de um outro contexto histórico, o das Diretas Já. Ele conta que assistiu o famoso comício da Candelária, que reuniu mais de 400 mil pessoas - “eu, a minha ex-mulher Vera Gouveia e os dois filhos pequenos, Mirna e Marcel, no meio da multidão”.

Do Rio de Janeiro ele guarda boa lembranças. De um Rio mais pacífico e multiracial. Explica que é a única metrópole do mundo que não tem guetos étnicos. Por que? “Se você vai para São Paulo, aquele bairro é de italiano; outro de português; aquele outro de japonês ou coreano. O mesmo ocorre em Nova York. Mas no Rio não tem isso”.

Uma realidade, segundo ele, que dá uma dimensão mais rica, multicultural e racial ao Rio de Janeiro. “Você não ver isso em nenhuma cidade do mundo”. Mas as favelas? Para professor, uma coisa totalmente distinta, pois se refere a questão étnica, a diversidade, apesar de todos os problemas da cidade. Mesmo as favelas, incrustadas nos bairros de classe média, da classe alta, se relacionam, bem diferente da formação de grupos étnicos.

Labirinto de números

O olhar do matemático sempre está presente na vida de Plácido. “Uma linguagem, um conhecimento, uma criação intelectual que muitas vezes nada tem a ver com a realidade”. Explica que muitas questões levantadas por pesquisadores só serão úteis na vida real após um tempo longo – talvez 50 anos. “Você tem muitas teorias matemáticas que são criadas hoje, mas são apenas elaborações intelectuais. A mente humana tem esse poder de premonição, digamos. Temos mais de cem exemplos de teorias matemáticas que só vieram a ter alguma aplicabilidade após 40, 50 anos. Isso é muito comum. Não me preocupo com a aplicabilidade da pesquisa”.

Ele se refere, por exemplo, a George Boole (1815 – 1884), que realizou as variáveis lógicas que facilitaram o surgimento do computador. E também as séries de Fourrier – Jean Baptiste Joseph Fourier (1768 – 1830) que deu a base para

Memórias Kariri

Pl Cido Andrade

técnica de reprodução digital, reprodução de músicas digitais por streaming ou para imagens online de rápido carregamento.

Ao citar os dois exemplos, o professor Plácido se coloca no campo da teoria e cita um dos seus principais influenciadores, o matemático Henri Poincaré (1854-1912), “o último grande universalista da Matemática. “A álgebra, a geometria e a análise, teorias separadas, foram unificadas por ele. A topologia se utiliza de elementos das três áreas. Foi a última grande síntese da matemática”.

Da PUC para UFCA

Da PUC o professor Plácido, em consequência do plano Collor, que desestruturou o Centro Científico Técnico e Social, transferiu-se para a Universidade Federal Fluminense. E depois de alguns anos prestou concurso para a Universidade Federal do Ceará, onde ficou de 1995 a 2008. Com a abertura do campus da UFC em Juazeiro do Norte, já aposentado, resolveu fazer novo concurso e continuar trabalhando. “Na época ninguém vinha para cá, tinha vaga de Matemática sobrando. A carga horária era altíssima por falta de professores. Muitos deles não ficaram”.

Uma outra nova aventura da vida do professor Plácido, mas agora com um outro olhar do mundo acadêmico, afinal sua vida foi e é dedicada ao ensino. De enfrentamento dos muitos desafios impostos pela academia. Para ele, o fator positivo das universidades públicas são as decisões colegiadas - “o equilíbrio das instituições são os seus colegiados, lugar em que são resolvidos os diversos conflitos acadêmicos. Resolvidos ou pelo menos dissolvidos, pois nenhuma decisão agradará a todos”.

Na Universidade Federal do Cariri, como em qualquer outra instituição de ensino, segundo ele, os conflitos sempre se farão presentes. Ele analisa que nem todas às decisões da UFCA, mesmo tomadas por colegiado, foram prudentes e que até hoje a instituição paga um preço alto. “Por ser muito nova, interpreto que tivemos um processo autoritário no início da universidade, com decisões importantes sendo tomadas de cima para baixo, processo que agora que está sendo revertido”.

Autoritarismo que, segundo o professor, prosseguiu quando da criação dos centros e institutos da UFCA. Ele relembra do confronto que dividiu a universidade. Na época da ocupação dos estudantes e da greve de professores, em 2016, em protesto contra a PEC dos gastos, no governo Temer.

Naquele momento, Plácido lembra que existiu muita divisão entre alunos e professores que, talvez, se reflitam até hoje. “Foi um momento que achei menos democrático, sabe. Mas hoje está mais acomodado”.

No Cariri, além do trabalho, em sala de aula e como pró-reitor de Graduação, ele sempre buscou um hobby. Segundo ele, a matemática acaba isolando o professor e pesquisador da realidade e quando tinha entre 30 e 40 ano se interessou pela obra do psiquiatra suíço Carl Gustavo Jung (1875 – 1961), fundador da psicologia analítica. Leu tudo, mas depois se desinteressou.

Agora no Cariri seu ponto de fuga é a música, a poesia, a culinária. Mas tem um hobby especial: adora fotografar os pássaros da Chapada. Observar a riqueza da floresta, do canto dos pássaros. Afinal, são mais de duzentas espécies, muitas delas já fotografadas pelo professor, inclusive o raro Soldadinho do Araripe.

“Estes pontos de fuga são imprescindíveis para quem lida com muita matemática. O professor Juscelino Pereira da Silva, docente também do Centro de Ciências e Tecnologia da UFC é um excelente violonista. Temos que compensar esse distanciamento da realidade com arte e outras atividades, caso contrário ficamos irascíveis”, diz.

Aos 70 anos de idade, o professor Plácido já não tem muitas ilusões. Uma idade, como diz o memorialista Pedro Nava, que a vida nos tira mais do que nos dá. Mesmo assim seus olhos brilham quando fala da sua profissão, da sala de aula, do batente de professor diariamente, mesmo com as decepções brabas, inclusive na política. “Nos anos 80 do século passado acreditei muito no PT, nas associações de bairros, nas Ongs. Mas veja no que deu”, diz sem nenhuma convicção no atual governo.

Segundo ele, estamos vivendo um grande retrocesso. Podendo a universidade pública passar pelos mesmos problemas que enfrentou na era de Fernando Henrique Cardoso. Mas acredita na força da instituição, da universidade pública e não será um governo que derrubará uma construção cujos alicerces estão no Império.

E Deus na vida do professor? Lógico que acredita em Deus, mas não vai à missa, e volta a falar no pequeno e grande destino, do início dessa matéria”.Mas o que tem Deus com a missa?”, indaga.

“Não acredito em Deus nesse sentido, mas no sentido místico mesmo, transcendente. Está aí a manifestação de alguma coisa. A natureza é a manifestação de alguma coisa maior”.

Com Deus ou sem Deus, o que apavora o professor Plácido é a falta de mobilidade, ficar dependente. A velhice?

“Mais de que a velhice, é a mobilidade, e não poder andar de manhã, não poder bater foto de pássaro, não poder mais dar aula porque vou estar entendeu? Perder a mobilidade. Não, velho eu já sou né, não é a velhice em si”.

O professor Plácido mora em uma pensão em Juazeiro há onze anos, e de quinze em quinze dias vai a Fortaleza. Sua mulher, Elenir Castelo Branco, preferiu ficar lá, principalmente em consequência dos pais dela, já idosos. É o segundo casamento do professor, que ocorreu quando ele já tinha cinquenta anos. Ambos trazem filhos do primeiro casamento. Foi o destino, talvez. “Ela entende que eu gosto de ensinar, não sei ficar parado, e nunca teve cobrança quanto a isso, não. Ela também vem muito ao Cariri”. E assim, entre viagens, sala de aula e pesquisa o professor vai tocando a vida.

E o medo da morte, professor?

“Rapaz, se for o avião se jogando em cima de uma montanha, então melhor ainda, que eu nem saberia”.

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