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Caldeirão de memórias
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A Linha T Nue Entre O C U E O Inferno
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Texto e fotos: Bárbara de Alencar
Em tempos de gourmetização dos espaços, eis que existem lugares especiais. O aconchego de conversas despretensiosas à beira do balcão, tem mais valor do que estar em espaços esteticamente perfeitos e internamentes vazios.
Na cidade de Brejo Santo, Ceará, a simpatia e carisma de seu Francisco Gomes Feijó, 72 anos, mais conhecido por Chico Sinésio, leva ao público de várias idades a se encontrar, em meio a rotina conturbada, e discutir sobre tudo, seja futebol, política ou religião. Assim, em meio da baderna e zuada feita pelos bêbados, os fregueses fizeram o Bar central da cidade receber o nome de Caldeira do Inferno.
Inicialmente, o prédio que hoje ocupa o bar, era chamado de Ponto Chique. Fundado por Chico Sinésio e seu pai, Sinésio Gomes, em 16 de junho de 1960, funcionava como barbearia e bodega. Contudo, essa parceria durou apenas seis meses, pois ao chegar no mês de dezembro e achar o lucro pouco, o pai resolveu vender sua parte ao filho. Em meados da década de
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1970, o atual Caldeira do Inferno foi aberto, e até hoje, conquista quem passa pela cidade.
Ao perguntar à seu Chico Sinésio se o sustento da família era derivada do bar, ele me disse: “não, papai plantava uma rocinha. A gente toda vida foi pobre, tinha uma rocinha pequena pra um chape-chape. Além disso ele era barbeiro, nas horas vagas fazia gaiola, ratoeira, e daí criou uma família com dez filhos”.
Nascido e criado em Brejo Santo, Chico Sinésio afirma que sua vida foi muito boa. Sempre com sorriso no rosto, ele se desdobra entre atender os clientes e curtir a música ambiente que não para de tocar nunca. Todos que passaram por lá o elogiam. Com 55 anos de casado, possui uma família grande, são quatro filhos e dez netos. “Tenho quatro filhos. São três homens e uma mulher. O mais novo gerencia o Banco do Brasil no Iguatu, Sinésio Neto. O primeiro filho é Gilberto, ele trabalha na saúde, formado em Letras. Aí vem Pedro George, que trabalha no Banco do Brasil daqui, Maria das Graças, minha filha, é professora. O George me ajudava aqui no bar. E eu ainda tenho 10 netos, mas um faleceu”..
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A relação de seu Chico e sua esposa sempre foi muito boa, “ela foi uma mulher espetacular. Analfabeta como eu, nós temos o terceiro ano primário. Mas ela me ganhou. Aguentou toda a minha cana. Boemia sem ser boêmio, bebendo muito. Eu tô com 39 anos que parei de beber. Eu bebi todas. Já estava bebendo dentro do próprio bar. O Gilberto tava ficando um rapazinho e tal, e já era tempo deu parar e graças a Deus parei. Mas nunca disse a ninguém não que deixei. Parei. O alcoolismo é uma das doença grande minha filha, muito grande, se não tivesse parado, já tinha viajado”.
Se aquele balcão falasse
A promessa para Brejo Santo, era que cresceria para o lado que igreja Matriz aponta. Porém, nem tudo é como se planeja. A cidade deu seu desenvolvimento maior para a outra banda, atual centro, onde o Caldeira cultivou a sociabilidade da população. Com quase 60 anos de história o bar é o alimento de poetas, seresteiros, músicos e intelectuais que encontram lá o ambiente ideal para seus devaneios. Se aquele balcão falasse, teria muita história pra contar dos que passaram, como: Fagner, Flávio José, Altemar Dutra, entre outros.
“Fagner, que veio pra um show na vaquejada aí dormiu aí numa chácara. Pela manhã, o deputado falecido, Wellington, o convidou para vir aqui no bar. Era umas 9h da manhã. Aí começou a chegar muita gente, eu chamei eles pra dentro do bar. E ele um rapaz muito bom, simples demais. Deu autógrafo de tudo quanto é jeito. Camisas, cd’s, disco. Aí pediram uma cachaça. O balcão não era esse, era um de madeira, sujo... Comecei a cortar os tira gosto, cajú. Aí molhando muito, os cajú começaram a ficar de um jeito que só tando bêbado pra comer. Ele disse ‘não bota pratinho não, aqui é desse jeito mesmo’. Mas ele saiu tão melado dum jeito, e eu ainda dei uma garrafa de cachaça de presente pra ele”, relata o Seu Chico.
Empolgado esmiuçando os acontecimentos, relembrou do dia que serviu um tira gosto em uma tampa de garrafa para o Edimar, amigo do bar, “Edimar hoje vive bem doente em casa, não tá mais nem trabalhando. E ele sempre gostou duma caninha. Aí ele chegou aqui e pediu uma cachaça, eu coloquei. E o tira gosto era um pedaço de limão e eu coloquei numa tampa de garrafa. Aí pra ele foi tudo. E disse que nenhum bar do mundo nunca serviu o tira gosto numa tampa de garrafa. Foi o melhor negócio da vida dele”.
Nós não somos as primeiras pessoas a se interessarem pela história dali, muita gente já vivenciou o Caldeira do Inferno de alguma forma. Uma vez, uma senhorita já de idade, pediu pra fotografar o bar e no final pediu para tirar uma foto com Seu Chico Sinésio. Ela disse “agora já estamos na Inglaterra”, e ele respondeu “Pois vamos inglaterrar”.
“O Cabeção”
O tradicional bloco carnavalesco chamado “O Cabeção”, foi fundado em 1968 na cidade. Chico Sinésio foi um dos primeiros incentivadores para esse grande acontecimento que permeia até hoje. “O cabeção começou com a gente. Primeiro: tem três fundadores, que era o Zé Quarenta, Extropelo e Zé Nilton de Peraí. Foram eles três que fundaram. Não tinham aquela cabeça que tem hoje. Véi Ubu e eu fomos no lixão e encontramos uma bacia de alumínio, aí colocamos ela como se fosse uma cabeça, e daí começou o apelido de cabeção. Aí deles, vem pra gente Franico, Compadre Edízio, Nezinho do breu, e outros mais. Na faixa duns dez. Aí tinha um fole de oito baixos que acompanhava o bloco, tinha surdo e alguns instrumentos musicais”.
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Atualmente, a alma do bloco está se misturando à contemporaneidade e perdendo a essência de sua tradição. Mas seu Chico conta como se ainda hoje vivesse em efervescência todo o inventário daquele tempo. “De início tinha Calhambeque, tinha União, tinha BS, tinha Cacaréco. Eram seis blocos. Havia um desfile ali onde é o Padre Pedro [EEF Padre Pedro Inácio Ribeiro], ali era uma quadra de esportes, mas ali também funcionou o primeiro comércio de Brejo Santo. Daí se reunia todos os blocos e a gente saia de lá. Havia um palanque que era a comissão julgadora. Mas as coisas aqui sempre foram difíceis. Foi prometido um prêmio pra gente na época de 50 que eu nem lembro mais nem o que, de tanto dinheiro que já teve nesse país. Aí como a gente queria a continuidade do União, a gente fazia rifas, bingos, pra ganhar dinheiro e a gente comprar instrumentos. Muito dos componentes não podiam comprar fantasia, os melhorados que compravam. A gente fazia uma espécie duma “vaca” pra comprar a roupa e os calçado”.
O mundo de dentro da Caldeira
Ao entrar no Caldeira do Inferno minha atenção se desdobrou em mil pedaços. As cores e os objetos se intercalam e entram em harmonia em meio ao conflito. Lá não é apenas um bar
O alcoolismo é uma das doença grande minha filha, muito grande, se não tivesse parado, já tinha viajado com as bebidas expostas, mas sim, um caldeirão de memórias em que a cada passo que você dá descobre uma nova história.
Todo espaço das paredes estão preenchidos por quadros, prateleiras com bebidas, relógio, cartazes, calendários, imagens de santos da Igreja Católica, placas decorativas, além de muitos santinhos de missa de sétimo dia e de mês. Não tem um centímetro que não esteja ocupado.
A maioria das coisas que constroem a identidade visual do Caldeira foram presentes de fregueses, muitos deles nem moram mais no Brejo, ou viajam e trazem de lembrança. “Tudo é presenteado, ou quase tudo. Eu não sou de comprar não. Esse congelador foi presente, essa geladeira foi presente, a televisão foi presente, esse som 3 em 1 foi presente. Só aqui tem 300 cds, fora os que tem lá em casa, que juntos chegam na faixa dos 500, e ainda tenho mais de 500 LP, muito bem guardados”. Pode se considerar o Caldeira como um museu orgânico, a memória está ali e é possível interagir com as pessoas, os objetos e ainda ouvir a história de cada canto do espaço.
Em meio aos grupos de chorinho e ícones do brega, as pessoas se encontram e reencontram no Caldeira. Perguntei a seu Chico Sinésio se ele considerava o bar um ponto de memória de Brejo Santo, ele me contou que não sabia, mas que de uma coisa tinha certeza, que não queria que ninguém desse continuidade a esse trabalho, que teve muita sorte de nesses 59 anos nunca ter tido uma briga lá dentro. Ainda disse mais, que o sonho da vida dele morrer bem velhinho, no Caldeira mesmo, sentado, escutando a música que gosta “aí pá! Morreu o véi”.