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Annette Dumoulin: uma metade cantando

Ela trocou a Bélgica por Juazeiro para se dedicar à religião popular

Texto: Sarah Gomes

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Fotos: Izabelly Macedo e Sarah Gomes

Com 84 anos de vida e mais de 40 de Nordeste, irmã Anette Dumoulin é uma belga sertaneja. Cônega da congregação de Santo Agostinho e doutora em Psicologia da Religião, chegou à Terra do Padre Cícero pelos atravessamentos entre as forças do acaso e do destino. As expressões de fé romeiras encantaram e atraíram a pesquisadora, a irmã e a cristã, que logo tratou de abrir mão do cargo de professora na Universidade de Louvain, na Bélgica, para se dedicar aos filhos do Padim. Hoje, conhecida como a “cantora dos romeiros”, irmã Anette exibe as marcas do tempo no olhar travesso de quem navegou com coragem pelos mares do amor e da fé.

Amor de casa vai à praça

Anne Dumoulin nasceu em Liège, na Bélgica, no ano de 1935. Chegou ao mundo ao lado do seu irmão gêmeo, Pierre, no dia 14 de julho. O pai, clínico geral, foi um modelo de vida para Anne, hoje conhecida como irmã Annette. “Ele era um desses médicos que não se fazem mais hoje, um daqueles que são verdadeiros sacerdotes”, explica. O sotaque francês carregado pela doçura da saudade lembra com atenção da simplicidade do homem que foi sinônimo de doação. “Quando penso em minha vocação, penso em meu pai”, afirma. Sentada na varanda da casa em que mora, no terreno da escola “O Semeador”, irmã Annette conta que o pai fazia questão de atender os pacientes que não tinham condições de pagar pelas consultas. O cuidado era partilhado por toda a família. Os filhos, quatro no total, contribuíam com a comunidade e auxiliavam os pacientes.

“Para te dar um exemplo que eu gosto muito, porque isso fez parte da minha vida de criança, de adolescente... Meu pai ia na casa de gente muito pobre e, muitas vezes, pessoas idosas que viviam sozinhas. Eu me lembro de uma senhora cega que vivia só. E quando meu pai entrou no quartinho, viu que não estava muito limpo, que tinha muita louça suja. Então meu pai falou para aquela senhora: ‘eu vou mandar meus filhos para ajudarem a senhora, a senhora aceita?’. Ela aceitou e nós fomos, meu irmão e eu. Lavamos a louça, ajeitamos a casa. Éramos adolescentes...”.

Uma família unida, apaixonada por música e por esportes. É assim que Annette descreve a família Dumoulin, alicerce de tudo o que viria a ser e pregar um dia. Não demora ao rosto risonho e o olhar saudoso darem espaço à seriedade da dor quando Annette chega aos eventos de 1940. “Minha infância foi marcada pela guerra. E uma guerra horrível! Uma guerra aonde amigos dos meus pais foram assassinados, foram para

Eu senti que minha vocação era essa! Tinha que deixar a Europa, Louvain. Lá teria muita gente para ocupar meu lugar, mas aqui não teria campos de concentração. Todas as guerras são terríveis, mas a guerra de 1940 foi... Afetou bastante a minha família”, desabafa. O período dos bombardeios foi particularmente marcante. Durante quase três anos, os Dumoulin dormiram em porões e colaboraram com a resistência abrigando fugitivos. A chegada dos americanos e a derrota dos nazistas colocou um ponto final ao horror vivido pela família entre os anos de 1940 e 1945.

Uma metade voando

Como a fé, o laço entre irmãos gêmeos foge à racionalidade. Anette e Pierre chegaram a esse mundo lado a lado e assim caminharam durante 23 anos. Pierre era pianista e Annette sempre amou cantar. Juntos os dois irmãos se transformavam em um só. Idealista, com gostos fora do comum e apaixonado pelo livro francês

O Pequeno Príncipe, Pierre não sabia se seria padre ou aviador. Escolheu seguir os passos do escritor Saint-Exupéry e ganhar os céus. Pierre morreu voando. O caça que pilotava apresentou problemas técnicos e apesar das tentativas de soltar-se da cadeira, o cockpit descolou e ele foi expulso do avião em grande velocidade. Como o paraquedas não abriu, Pierre morreu sentado na cadeira da qual tentava se soltar. Com os olhos azuis vibrando em lágrimas, irmã Annette conta que a morte do irmão foi um choque para toda a família Dumoulin e, especialmente, para ela. A admiração que os gêmeos nutriam um pelo outro e o carinho que dedicavam diariamente à relação era parte do que os mantinha de pé. “Eu me senti morta pela metade. Eu sempre penso assim... Depois eu tive que me refazer... A minha metade tá voando! No sentido de... Ela está presente, mas ela está voando no ideal dela! Meu irmão era idealista, um rapaz lindo!”, se emociona. Entre as mãos irmã Annette mantém firme uma foto de Pierre, como quem diz que às vezes, SaintExupéry, o essencial está, sim, visível aos olhos.

Entre a educação e a religião

A vocação religiosa, o cabelo grisalho, o par de óculos redondos e a voz mansa de quem tirou o relógio da parede, tecem em irmã Annette a imagem padrão de mulher religiosa. Diferente do que pensa o senso comum, a primeira impressão não é a que fica. Logo o bom o humor, a espontaneidade e o espírito bem-aventurado da Cantora dos Romeiros tratam de mostrar que a fé não prende, liberta.

O primeiro diploma da irmã Annette foi em Educação Física. Apaixonada por ginástica, a belga foi professora por um ano meio, tempo necessário para alcançar a idade mínima para entrar no convento. “Eu me senti chamada. Era uma visão de mundo que não tinha fronteiras!”, explica. Assim como o irmão, Pierre, Annette queria voar e se aventurar por cada ponto do planeta. O desejo de se consagrar veio do exemplo do pai, que fazia parte do movimento vicentino. “Ele me mostrou no fundo o que é uma forma de amor, pelos outros, sem procurar o dinheiro, de realmente se doar especialmente aos mais pobres”, lembra aos suspiros.

Annette então sagrou-se na Congregação de Nossa Senhora, das Cônegas de Santo Agostinho. A Congregação nasceu há quase 500 anos e caracteriza-se por ser, fundamentalmente, de educadoras. Os fundadores, São Pedro Fourier e Beata Alix Le Clerc, defendiam a importância da educação para a mulher. Naquela época, apenas as meninas ricas tinham acesso à educação. Como mulheres não podiam frequentar a escola, as meninas de famílias abastadas recebiam aulas de professoras particulares em casa.

“Não tinha escola para meninas. Os fundadores descobriram a importância da educação para a mulher, para o bem da sociedade, fizeram uma verdadeira opção para a educação das mulheres que iam ser mães de família, as grandes educadoras. No sentido de ser antes de tudo educadora e religiosa. Mas a Alice dizia que ‘se eu tenho que escolher entre os dois, eu escolho ser educadora, deixo de ser religiosa’. Nós somos religiosas porque queremos ser educadoras”.

Depois da formação na vida religiosa, a irmã Annette poderia escolher qual caminho acadêmico mais lhe atraía. Foi quando escolheu a licenciatura em Pedagogia, a ciência da Educação, na Universidade de Louvain. Na Bélgica, a licenciatura requer que um mestrado seja feito logo em seguida. Annette, então, optou pelo mestrado em Psicologia da Religião. Ao ver a dissertação de mestrado da irmã sobre as mediações religiosas da criança em relação a Deus, o padre e professor de Psicologia da Religião, Antoine Vergote, convidou a freira para ser sua assistente e compor a equipe do Centro de Religião.

“Você já viu Deus? Eu também nunca vi. Mas, como criança e como adolescente, nós temos mediadores no mundo, pessoas que nos ajudam a nos aproximar ou não de Deus. Eu fiz essa tese a partir do Padre para uma criança de 6 a 12 anos, meninos e meninas. Porque a gente sabe que os mediadores podem ser muito bons ou podem ser péssimos. Por exemplo, você tem criança de 6 e 7 anos que não quer chamar Deus de pai. ‘Ele me bate! Meu pai é drogado! Meu pai bate na minha mãe!’. Então no Pai Nosso... A criança tem uma

Annette Dumoulin

rejeição a palavra Pai por causa do mediador pai, que deveria ser o caminho para descobrir o verdadeiro Pai Nosso. Mas ela bloqueou porque esse mediador não correspondia a quem é o Deus que Jesus Cristo revelou. E isso é uma coisa muito forte... Como a gente não conhece Deus diretamente, a gente passa por mediações. Essas mediações humanas são muito importantes na formação religiosa, na educação religiosa”.

Agora seu orientador, Antoine Vergote sugeriu que Annette fizesse doutorado em Psicologia da Religião. Com medo que a alta titulação a impedisse de trabalhar com os pobres, a cônega escreveu para sua Superiora da Ordem, madre São João. A resposta da madre foi tão extraordinária aos olhos da freira que até hoje irmã Annette guarda a carta que recebeu. “Pode fazer o seu doutorado! Porque se é vontade de Deus, não é doutorado nenhum que vai impedir você de trabalhar a serviço dos pobres. E os pobres merecem que a gente se prepare para servi-los!”, respondeu a Superiora.

Calma diante dos conselhos de madre São João, Annette deu início ao doutorado e, ao fim da tese, foi nomeada professora da Universidade de Louvain. Durante os estudos, a irmã fez entre quatro e cinco anos de psicanálise a nível de aprofundamento, para que pudesse conduzir as terapias em grupo sem realizar contratransferência. Apesar do sonho de conhecer o mundo, Annette caminhava para ser professora titular e permanecer na Bélgica pelo resto da vida... Até que tudo mudou com a chegada de Therezinha Stella Guimarães, conhecida como irmã Ana Teresa.

Uma metade navegando

Parte do programa ALA – Assistência ao Litoral de Anchieta, Annette recebia cartas de diversas partes do planeta. As correspondências das irmãs do Brasil, que moravam em Santos e trabalhavam educando meninas nas vilas de pescadores, encantavam a estrangeira. “Eu já estava me vendo num barco, no meio do mar, procurando os índios perdidos e... sabe?”, conta enquanto o riso corre solto pelos oceanos da lembrança. Para Annette, o Brasil era um sonho e uma aventura, mas também a possibilidade de uma aproximação com o povo.

Acometida pela tuberculose, irmã Ana Teresa foi enviada à Europa para receber tratamento e realizar uma reciclagem em Teologia e Psicologia. Foi com ela que Annette compartilhou o sonho de conhecer as terras tupiniquins. “Então ela me disse: ‘Annette, você está no lugar errado!’. Eu tomei um choque! ‘Você vai no caminho de ser professora para vida inteira aqui, em Louvain.

Cadê o teu sonho? Cadê o que você quer?’. O choque foi o primeiro passo para a tomada de consciência”. Não demorou até Annette buscar o reitor da Universidade e revelar que gostaria de estudar de perto a religiosidade popular na região Nordeste do Brasil. O reitor aceitou e Ana Teresa logo se prontificou a acompanha-la nessa nova jornada em direção a Recife, no Pernambuco

Inicialmente, irmã Annette veio ao Brasil para pesquisar as expressões religiosas e as mediações religiosas do nordestino nas Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) durante um período de dois anos. Já no Nordeste, as Irmãs alugaram uma casa simples, na Linha do Tiro, bairro da capital pernambucana. “Era tempo da ditadura militar e nós queríamos estudar as CEB’s, no sentido... Como é que elas nascem do povo? Como é que as lideranças nascem do povo? Como é que o povo numa situação tão grave de opressão consegue se organizar a partir da palavra de Deus, a partir do Evangelho?”, explica. Mas os planos de Deus eram diferentes dos planos traçados pelas cônegas de Santo Agostinho.

Uma fé diferente

Foi em solo pernambucano que Annette encontrou uma nova mediadora. “Nossa vizinha, Maninha, era de Juazeiro e tinha um quadro grande de um padre de batina. Eu falava português muito mal na época e perguntei: ‘mas quem é ele?!’ Eu achava tão estranho uma fotografia de um padre!”, conta com os mesmos olhos arregalados com que questionou Maninha cerca de 40 anos atrás. A vizinha revelou que era um santo! Não demorou para que os pais de Maninha, Seu Mocinho e Dona Tita, convidassem Annette e Ana Teresa para conhecer a terra do Padim. Demorou menos ainda para que as irmãs aceitassem o convite de passar 10 dias em Juazeiro.

A casa da família ficava na Rua Padre Cícero e a viagem coincidiu com uma romaria. Selvina, lavadeira da família, fez as vezes de cicerone e apresentou a cidade, revelando cada um de seus místicos mistérios para as irmãs. Descendente de índios, Selvina havia convivido por certo tempo com o Beato José Lourenço, no Caldeirão de Santa Cruz, em Crato. “Imagine uma belga, professora de Universidade, numas das expressões de fé tão diferentes da que existem na Europa, essa alegria, esse olhar desses romeiros... me encantaram!”, lembra. O encantamento foi ainda maior quando a cônega descobriu que a própria Igreja Católica rejeitava os romeiros e o Padre Cícero.

De volta a Recife, Annette e Ana Teresa descobriram que a casa em que moravam havia sido invadida. Amigos das CEB’s logo as procuraram e alertaram para a possibilidade da invasão ter sido obra da polícia. Os membros das comunidades acreditam que os invasores buscavam o pequeno livro vermelho de Marx e tentavam descobrir o que as duas irmãs faziam vivendo “num lugar tão pobre”. O pé dos invasores no teto de um dos banheiros da casa foi o pontapé que faltava para que as irmãs decidissem que o segundo ano de pesquisa seria realizado em Juazeiro do Norte. Para Annette, a cidade era uma mina extraordinária de expressões nordestinas e a força de estudalas e conhece-las vibrava no cerne da Irmã.

Após realizarem algumas leituras sobre o Padre Cícero, Annette e Ana Teresa chegaram à conclusão de que precisavam aprofundar quem ele havia sido a partir da utilização de arquivos, escavando pelos caminhos contrários aos boatos. Foi nesse contexto que a decisão que mudaria para sempre a vida das irmãs foi tomada. Era noite de São João e o Horto estava em festa. “Ana Teresa e eu nos olhamos e a gente disse: é aqui que a gente tem que ficar, não só para estudar, mas para ajudar!”, repete com a firmeza de quem faria tudo outra vez. Ali, as duas decidiram que além de fazer pesquisa, fariam uma pastoral de acolhida, não de manipulação do povo. “Eu senti que minha vocação era essa! Tinha que deixar a Europa, Louvain. Lá teria muita gente para ocupar meu lugar, mas aqui não teria”, pondera.

Nesse momento decisivo, Annette avistou uma cabaça ainda verde no chão e, nela, as irmãs escreveram a promessa que selaria o destino que trilhariam dali em diante: “De todo jeito, voltaremos para o Juazeiro. Ana Teresa e Annette – 24 de junho de 1974”. A cabaça permanece com irmã Annette até hoje. “Vai no meu túmulo quando eu morrer!”, confidencia. As irmãs informaram ao Padre Murilo de Sá Barreto, único pároco da época que acolhia os romeiros, que precisavam ir à Bélgica por questões éticas e acadêmicas, mas que logo voltariam para ajuda-lo.

A cantora dos romeiros

Com os planos traçados, era hora de fazer acontecer. Irmã Annette retornou para a Universidade de Louvain, onde ensinou Psicologia, Pedagogia e Teologia durante dois anos. Enquanto isso, Ana Teresa dava início ao doutorado em Psicologia da Religião. Em 1976, as duas estavam prontas para voltar ao Brasil e assumir o destino que haviam escolhido e pelo qual havia sido escolhidas.

Apesar de ter sido previamente comunicado da decisão das irmãs, Padre Murilo, pároco da Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro,

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Annette Dumoulin

não acreditou quando soube que Annette havia pedido demissão do cargo de professora titular da Universidade de Louvain. Na época, o sacerdote não sabia quanto tempo continuaria à frente da Capela ou se os bispos aceitariam que as irmãs trabalhassem no município. “Tudo dizia que a gente não era bem vinda”, revela. Ao chegarem a Juazeiro, ela e Ana Teresa se hospedaram novamente na casa de Dona Tita e Seu Mocinho, mas logo alugaram uma casinha no caminho do Horto e foram conversar com o bispo na Diocese do Crato.

Como o sacerdote estava viajando, quem as atendeu foi o vigário geral, que de antemão informou que não tinha poder para tomar qualquer decisão em relação à estadia das irmãs. Nesse momento, Ana Teresa cochichou no ouvido de Annette e sugeriu que ela contasse que as duas não precisariam de salário, pois a Congregação de que faziam parte assumiria os gastos necessários. “Ahhhh! Mas nessas condições é claro que podem vir! Qual bispo não vai aceitar um religioso pra trabalhar de graça?”, decidiu o vigário. Por orientação do Padre Murilo, Annette não revelou que era doutora. Se essa informação fosse de conhecimento geral, logo ela seria encaminhada para lecionar na Faculdade de Filosofia, no Crato.

Annette lembra que na época as romarias aconteciam de seis em seis meses. Único pároco a recepcionar os romeiros com respeito, Padre Murilo não tinha como confessar centenas de pessoas antes das missas. Problema que as irmãs logo trataram de solucionar ao oferecerem confissões comunitárias. Enquanto Ana Teresa preparava os romeiros para confissão, irmã Annette cantava. Anos depois, Padre Murilo revelou que se escondia para escutá-las e descobrir o tratamento que davam aos romeiros. “Foi interessante porque Padre Murilo era uma pessoa que para fazer verdadeira amizade custava, tinha muita reserva. Ele tinha muita razão disso. Observava. Uma vez que assumia então era pra vida toda!”, confessa com admiração.

Os dois primeiros anos foram relativamente difíceis. Mas com o passar do tempo irmã Annette conseguiu desenvolver o português e as irmãs começaram a acolher os romeiros, cantar com eles e compor os benditos. Apesar de ser belga e carregar um forte sotaque francês, irmã Annette teve êxito na empreitada. Para a cônega o bendito é um diálogo montado a partir das palavras do romeiro.

“‘Nossa senhora me chama’, por exemplo, é do romeiro, ninguém se lembra que é da Irmã Annette e Irmã Teresa e no fundo eu acho bom porque eu fazia – agora faço menos – com palavras dos romeiros”.

Para Annette, as palavras do romeiro são uma ferramenta indispensável. Elas são utilizadas especialmente nas reuniões dos romeiros – ideia que teve a partir das confissões comunitárias – que acontece às três horas, no Círculo Operário São José. “O microfone fica na mão dos romeiros. O microfone é uma arma muito poderosa! Nele, sua voz aumenta 100 vezes e o povo tem que se calar”, explica. Irmã Annette conta que o microfone é uma forma de entregar o protagonismo da romaria na mão dos protagonistas.

“Um romeiro chega e diz: ‘Irmã, vim aqui dar meu testemunho. Há um ano meu irmão foi assassinado e a policia não prendeu o criminoso. Eu conhecia quem tinha matado. Eu tomei a decisão de matar, me vingar’ – Para o nordestino se vingar é uma honra, explica – “Então meio dia eu tava no meio do mato, não tinha ninguém, só eu com uma faca. Ele não tinha me visto, eu tava me preparando para me jogar em cima dele, quando eu ouvi o bendito ‘Quem matou não mate mais’ e ‘No exemplo de Maria’. E eu entendi que não podia me vingar assim como Maria não se vingou, então eu fugi e prometi a Nosso Senhor de não me vingar. Um romeiro falar isso pra outro romeiro é melhor do que qualquer homilia, do que qualquer padre, qualquer freira. Isso entra no coração do romeiro. O bendito é uma pedagogia extraordinária, tem que ser repetitivo, porque eles guardam isso”.

Os anos de experiência ensinaram que o nordestino não diferencia o sagrado do profano. “Essa distinção é coisa de intelectual, até de europeu, de americano”, afirma. O “se deus quiser” tão comum ao sertanejo ainda impressiona a belga acostumada às expressões de fé conservadoras do continente europeu. Impregnado pelo sagrado, o nordestino mantém uma relação de vida e morte com o céu. É da vitalidade da fé sertaneja que nasce o poeta e suas expressões literárias carregadas de visualidade.

Annette sempre se preocupou com a relação que estabeleceria com o povo. A forma como poderia interpretar o que o povo diria a partir da sua perspectiva europeia a amedrontava. Seu principais objetivos eram acolher os romeiros, respeitar a cultura e as expressões nordestinas, participar de um diálogo sincero e recíproco. Hoje, 43 anos após fazer morada no Juazeiro, Annette sente que sua formação lhe permitiu alcançar esses objetivos.

“É por isso que os nossos irmãos negros fazem uma bonita mistura, colocam o Santo católico na frente e os orixás vão lá e dão nome a um santo europeu o nome de orixá. Foi muito inteligente. Conseguiram salvar a sua cultura, sua religiosidade”.

Os métodos por trás do trabalho

Para me falar sobre como tem vivido nos dias de hoje, irmã Annette me levou até o seu quarto. Nas paredes, inúmeras fotografias. Entre elas estão a de Ana Teresa, companheira de jornada que faleceu em 2013, de familiares, registros de expressões de fé nas romarias de Juazeiro e viagens que fez pelo mundo nos seis anos em que assumiu o cargo de Assistente Geral da Congregação de Santo Agostinho. No canto direito do quarto, o computador divide o espaço da escrivaninha com diversos livros e cadernos.

Mesmo agora, com a carga horária reduzida em razão da idade, irmã Annette continua a estudar o Padre Cícero. Pesquisadora devota, analisa os cadernos pessoais do Padim e suas reflexões sobre questões cotidianas e afetivas. Para isso conta com cópias e digitalizações da caligrafia rebuscada do homem que foi um sinal da presença de Deus no meio do povo nordestino. Aos risos conta que a dedicação é tanta que vez ou outra enfrenta noites insones causadas pelas produções intelectuais noturnas.

Em seu último livro publicado, “Padre Cícero – Santo dos Pobres, Santo da Igreja”, irmã Annette lança mão de uma das mais célebres reflexões do pequeno-grande Charles Chaplin: o tempo é o melhor autor. Ainda longe de encontrar o final perfeito para a belga de vitalidade vibrante, o tempo tem se dedicado a tecer com esmero os fios da história que atravessam irmã Annette e por ela são atravessados. Três ligações telefônicas e uma tarde em sua companhia foram suficientes para me tornar um deles. Iniciei essa entrevista esperando conversar com a cônega de Santo Agostinho que largou a estabilidade do cargo de professora universitária na Bélgica para acolher os romeiros na região do Cariri e finalizo com a admiração de quem sentou em um dos tantos barcos que navegaram pelas profundezas dos olhos azuis da metade dos gêmeos Dumoulin que desbravou o mundo em sinal devoção.

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