#4 Revista Memórias Kariri

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IRMÃ ANNETTE

A belga sertaneja

Edição n º 4Ano 2

Raízes Flutuantes

Expediente

Edição 4

Juazeiro do Norte, julho de 2019

Texto: Adler Sousa

Aline Fiuza

Bárbara de Alencar

Bibiana Belisário

José Anderson

Sandes

Lara Alencar

Sarah Gomes

Fotos: Adler Sousa

Bárbara de Alencar

Carlene Cavalcante

Cauê Henrique

Izabelly Macêdo

Jaque Rodrigues

Jayne Machado

Thailyta Feitosa

Verônica Leite

Revisão: Bibiana Belisário

Projeto gráfico

e diagramação: Paulo Anaximandro

Tavares

Professor Orientador: José Anderson

Sandes

Agradecimentos: Daniel Walker e Renato Casimiro

Revista experimental do projeto Memórias

Kariri, vinculado à Pró-Reitoria de Cultura e à Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal do Cariri

Amemória

de um povo é construída, seja por aqueles que nasceram, chegaram ou só passaram naquele lugar. No Cariri Cearense, as raízes se expandem para além do que chamamos de casa, elas chegam de várias direções como se flutuassem, formando esse caldeirão de vida que transborda nas ruas, praças, terreiros, até as grandes avenidas, nos fazendo sentir pertencentes.

A quarta edição da Revista Memórias Kariri traz o sentimento do que está vivo nas mentes, corpos e espaços daqui. Enxergamos da forma mais múltipla cada personagem e onde se insere, compreendendo a contribuição de cada um para as reminiscências caririenses.

Adler Sousa saiu a caminhar pela Praça Padre Cícero e encontrar, no coração de Juazeiro do Norte, pessoas que todos os dias montam o cenário pronto para exibição das histórias que passam despercebidas, mas que trazem em sua essência a resistência do trabalho.

De longe já é possível ouvir no Bairro Batateiras, em Crato, o pisado no chão batido da Mestra Edite do Côco. Conhecemos sua trajetória na agricultura, religião, política e claro, na dança do côco.

Aline Fiuza traz Babinski para a narrativa Cariri como um filho que procura casa em meio a guerras e ditaduras. Chega ao solo varzealegrense por uma história de amor e vive sua arte como forma de expressar as suas dores, transformando-as.

Entre o bem e o mal, existe a Caldeira do Inferno. Seu Sinésio conta a repórter Bárbara de Alencar como é manter o bar que movimenta a cidade de Brejo Santo há quase 50 anos.

Na Universidade Federal do Cariri encontramos o professor Plácido que avalia a conjuntura política em que as universidades se inserem. É assim, transitamos entre vários contextos, mas sempre nos reencontramos enquanto Cariri.

Boa Leitura!

Bibiana Belisário

Caldeirão de memórias Equação da vida, lógica da matemática
A nossa amiga mais querida
Annette Dumolin: uma metade cantando Babinski: amor, pincéis e guerras Os muitos sentidos de um ser encantado Dona Edite, mulher pode?

Caldeirão de memórias

a linha tênue entre o céu e o inferno

Texto e fotos: Bárbara de Alencar

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Em tempos de gourmetização dos espaços, eis que existem lugares especiais. O aconchego de conversas despretensiosas à beira do balcão, tem mais valor do que estar em espaços esteticamente perfeitos e internamentes vazios.

Na cidade de Brejo Santo, Ceará, a simpatia e carisma de seu Francisco Gomes Feijó, 72 anos, mais conhecido por Chico Sinésio, leva ao público de várias idades a se encontrar, em meio a rotina conturbada, e discutir sobre tudo, seja futebol, política ou religião. Assim, em meio da baderna e zuada feita pelos bêbados, os fregueses fizeram o Bar central da cidade receber o nome de Caldeira do Inferno.

Inicialmente, o prédio que hoje ocupa o bar, era chamado de Ponto Chique. Fundado por Chico Sinésio e seu pai, Sinésio Gomes, em 16 de junho de 1960, funcionava como barbearia e bodega. Contudo, essa parceria durou apenas seis meses, pois ao chegar no mês de dezembro e achar o lucro pouco, o pai resolveu vender sua parte ao filho. Em meados da década de

1970, o atual Caldeira do Inferno foi aberto, e até hoje, conquista quem passa pela cidade.

Ao perguntar à seu Chico Sinésio se o sustento da família era derivada do bar, ele me disse: “não, papai plantava uma rocinha. A gente toda vida foi pobre, tinha uma rocinha pequena pra um chape-chape. Além disso ele era barbeiro, nas horas vagas fazia gaiola, ratoeira, e daí criou uma família com dez filhos”.

Nascido e criado em Brejo Santo, Chico Sinésio afirma que sua vida foi muito boa. Sempre com sorriso no rosto, ele se desdobra entre atender os clientes e curtir a música ambiente que não para de tocar nunca. Todos que passaram por lá o elogiam. Com 55 anos de casado, possui uma família grande, são quatro filhos e dez netos. “Tenho quatro filhos. São três homens e uma mulher. O mais novo gerencia o Banco do Brasil no Iguatu, Sinésio Neto. O primeiro filho é Gilberto, ele trabalha na saúde, formado em Letras. Aí vem Pedro George, que trabalha no Banco do Brasil daqui, Maria das Graças, minha filha, é professora. O George me ajudava aqui no bar. E eu ainda tenho 10 netos, mas um faleceu”..

A relação de seu Chico e sua esposa sempre foi muito boa, “ela foi uma mulher espetacular. Analfabeta como eu, nós temos o terceiro ano primário. Mas ela me ganhou. Aguentou toda a minha cana. Boemia sem ser boêmio, bebendo muito. Eu tô com 39 anos que parei de beber. Eu bebi todas. Já estava bebendo dentro do próprio bar. O Gilberto tava ficando um rapazinho e tal, e já era tempo deu parar e graças a Deus parei. Mas nunca disse a ninguém não que deixei. Parei. O alcoolismo é uma das doença

grande minha filha, muito grande, se não tivesse parado, já tinha viajado”.

Se aquele balcão falasse

A promessa para Brejo Santo, era que cresceria para o lado que igreja Matriz aponta. Porém, nem tudo é como se planeja. A cidade deu seu desenvolvimento maior para a outra banda, atual centro, onde o Caldeira cultivou a sociabilidade da população. Com quase 60 anos de história o bar é o alimento de poetas, seresteiros, músicos e intelectuais que encontram lá o ambiente ideal para seus devaneios. Se aquele balcão falasse, teria muita história pra contar dos que passaram, como: Fagner, Flávio José, Altemar Dutra, entre outros.

“Fagner, que veio pra um show na vaquejada aí dormiu aí numa chácara. Pela manhã, o deputado falecido, Wellington, o convidou para vir aqui no bar. Era umas 9h da manhã. Aí começou a chegar muita gente, eu chamei eles pra dentro do bar. E ele um rapaz muito bom, simples demais. Deu autógrafo de tudo quanto é jeito. Camisas, cd’s, disco. Aí pediram uma cachaça. O balcão não era

esse, era um de madeira, sujo... Comecei a cortar os tira gosto, cajú. Aí molhando muito, os cajú começaram a ficar de um jeito que só tando bêbado pra comer. Ele disse ‘não bota pratinho não, aqui é desse jeito mesmo’. Mas ele saiu tão melado dum jeito, e eu ainda dei uma garrafa de cachaça de presente pra ele”, relata o Seu Chico.

Empolgado esmiuçando os acontecimentos, relembrou do dia que serviu um tira gosto em uma tampa de garrafa para o Edimar, amigo do bar, “Edimar hoje vive bem doente em casa, não tá mais nem trabalhando. E ele sempre gostou duma caninha. Aí ele chegou aqui e pediu uma cachaça, eu coloquei. E o tira gosto era um pedaço de limão e eu coloquei numa tampa de garrafa. Aí pra ele foi tudo. E disse que nenhum bar do mundo nunca serviu o tira gosto numa tampa de garrafa. Foi o melhor negócio da vida dele”.

Nós não somos as primeiras pessoas a se interessarem pela história dali, muita gente já vivenciou o Caldeira do Inferno de alguma forma. Uma vez, uma senhorita já de idade,

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Memórias Kariri CALDEIRA DO INFERNO
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A maioria dos elementos que constroem a identidade visual do Caldeira foram presentes de fregueses, que viajam e trazem de lembrança

pediu pra fotografar o bar e no final pediu para tirar uma foto com Seu Chico Sinésio. Ela disse “agora já estamos na Inglaterra”, e ele respondeu “Pois vamos inglaterrar”.

“O Cabeção”

O tradicional bloco carnavalesco chamado “O Cabeção”, foi fundado em 1968 na cidade. Chico Sinésio foi um dos primeiros incentivadores para esse grande acontecimento que permeia até hoje. “O cabeção começou com a gente. Primeiro: tem três fundadores, que era o Zé Quarenta, Extropelo e Zé Nilton de Peraí. Foram eles três que fundaram. Não tinham aquela cabeça que tem hoje. Véi Ubu e eu fomos no lixão e encontramos uma bacia de alumínio, aí colocamos ela como se fosse uma cabeça, e daí começou o apelido de cabeção. Aí deles, vem pra gente Franico, Compadre Edízio, Nezinho do breu, e outros mais. Na faixa duns dez. Aí tinha um fole de oito baixos que acompanhava o bloco, tinha surdo e alguns instrumentos musicais”.

Atualmente, a alma do bloco está se misturando à contemporaneidade e perdendo a essência de sua tradição. Mas seu Chico conta como se ainda hoje vivesse em efervescência todo o inventário daquele tempo. “De início tinha Calhambeque, tinha União, tinha BS, tinha Cacaréco. Eram seis blocos. Havia um desfile ali onde é o Padre Pedro [EEF Padre Pedro Inácio Ribeiro], ali era uma quadra de esportes, mas ali também funcionou o primeiro comércio de Brejo Santo. Daí se reunia todos os blocos e a gente saia de lá. Havia um palanque que era a comissão julgadora. Mas as coisas aqui sempre foram difíceis. Foi prometido um prêmio pra gente na época de 50 que eu nem lembro mais nem o que, de tanto dinheiro que já teve nesse país. Aí como a gente queria a continuidade do União, a gente fazia rifas, bingos, pra ganhar dinheiro e a gente comprar instrumentos. Muito dos componentes não podiam comprar fantasia, os melhorados que compravam. A gente fazia uma espécie duma “vaca” pra comprar a roupa e os calçado”.

O mundo de dentro da Caldeira

Ao entrar no Caldeira do Inferno minha atenção se desdobrou em mil pedaços. As cores e os objetos se intercalam e entram em harmonia em meio ao conflito. Lá não é apenas um bar

O alcoolismo é uma das doença grande minha filha, muito grande, se não tivesse parado, já tinha viajado

com as bebidas expostas, mas sim, um caldeirão de memórias em que a cada passo que você dá descobre uma nova história.

Todo espaço das paredes estão preenchidos por quadros, prateleiras com bebidas, relógio, cartazes, calendários, imagens de santos da Igreja Católica, placas decorativas, além de muitos santinhos de missa de sétimo dia e de mês. Não tem um centímetro que não esteja ocupado.

A maioria das coisas que constroem a identidade visual do Caldeira foram presentes de fregueses, muitos deles nem moram mais no Brejo, ou viajam e trazem de lembrança. “Tudo é presenteado, ou quase tudo. Eu não sou de comprar não. Esse congelador foi presente, essa geladeira foi presente, a televisão foi presente, esse som 3 em 1 foi presente. Só aqui tem 300 cds, fora os que tem lá em casa, que juntos chegam na faixa dos 500, e ainda tenho mais de 500 LP, muito bem guardados”. Pode se considerar o Caldeira como um museu orgânico, a memória está ali e é possível interagir com as pessoas, os objetos e ainda ouvir a história de cada canto do espaço.

Em meio aos grupos de chorinho e ícones do brega, as pessoas se encontram e reencontram no Caldeira. Perguntei a seu Chico Sinésio se ele considerava o bar um ponto de memória de Brejo Santo, ele me contou que não sabia, mas que de uma coisa tinha certeza, que não queria que ninguém desse continuidade a esse trabalho, que teve muita sorte de nesses 59 anos nunca ter tido uma briga lá dentro. Ainda disse mais, que o sonho da vida dele morrer bem velhinho, no Caldeira mesmo, sentado, escutando a música que gosta “aí pá! Morreu o véi”.

8 Memórias Kariri CALDEIRA DO INFERNO
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Chico Sinésio, 59 anos cuidando do seu bar: “meu sonho é morrer bem velhinho no Caldeirão, sentado e escutando música”

Equação da vida, lógica da matemática

Da PUC para a UFCA: uma vida dedicada ao magistério

Texto: José Anderson Sandes
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Fotos: Adler Sousa

Oprofessor Plácido Francisco de Assis Andrade nos recebeu em sua sala, no Bloco A, do campus da UFCA em Juazeiro do Norte. Uma sala simples, apertada, estreita, amontoada de livros e papéis em duas pequenas mesas e um armário. A mesa do professor Plácido fica localizada próxima a janela basculante, ao fundo da sala. Nossa conversa foi feita no período da tarde, passava pouco mais das 15 horas, e o sol que penetrava pelas frestas da janela parecia não incomodar o professor.

Com seu chapéu estilo panamá, Plácido, voz pausada e tranquila, foi logo contando a sua história, desde a infância. Afinal, a entrevista era sobre sua trajetória, os embates na academia, gostos, visão de mundo e a Universidade Federal do Cariri. Logo vai dizendo que é de Fortaleza,

eram rígidos quando se tratava de estudos e diz que “na sua época o ensino não era brincadeira, não; que antigamente era mais rigoroso em termos de estudo”. Depois de uma maratona de aulas, voltava para casa, descansava meia hora e estudava, estudava muito. Esse era o cotidiano de todos os irmãos, enquanto os pais trabalhavam para sustentar os cinco filhos.

E os colégios da época? “Ah. Também eram rigorosos”. Cita o Liceu, Escola Normal, 7 de Setembro e Colégio Cearense (hoje extinto). No 7 de Setembro, ele fez o antigo ginasial da primeira à quarta série; e no Cearense, o científico.

Mas nem tudo eram estudos na vida do professor Plácido. Sua família morava no bairro Antônio Pompeu, no Centro. O futebol foi o seu

Na Universidade Federal do Cariri, como em qualquer outra instituição de ensino, os conflitos sempre se farão presentes. Nem todas às decisões da UFCA, mesmo tomadas por colegiado, foram prudentes e que até hoje a instituição paga um preço alto

não do Cariri, mas que não pensou duas vezes em ensinar na universidade.

Fala com uma ponta de saudade do passado. “Ah, meu pai. Era um servidor público do Ministério da Agricultura, nível médio, Hugo Andrade. Ele trabalhou sempre no fomento agrícola, na Rua Luciano Carneiro. E minha mãe, dona Maria de Lourdes, era uma mistura de dona de casa, mas trabalhava com bordados, bordados de camisa de neném. Tinha uma equipe que trabalhava com ela. Éramos cinco filhos e três são professores de ensino superior, de universidade, a mais velha de Matemática, outra de Arquitetura. Eu tenho mais um irmão que é médico, e uma irmã que é também professora, dona de uma creche para a primeira infância”.

Os três irmãos seguiram a carreira do magistério, mas os pais de Plácido em nada influenciaram. O professor lembra que ambos

esporte preferido, mas também tinha o jogo de bila, esconde-esconde e, lógico, traquinagens, muitas traquinagens nas ruas - brigas, pular no quintal dos outros para roubar frutasbrincadeiras comuns aos garotos da época.

Rock e Zé Trindade

A quadra histórica era também de mudanças no campo da cultura no Brasil – teatro, música, cinema, artes plásticas. No teatro, os grupos Arena e Oficina revolucionavam à cena. No cinema – além da indústria cultural já firmada no País desde o final da Segunda Guerra, filmes de arte, Hollywood, Cinema Novo e as famosas chanchadas da Atlântida disputavam o público – ou dos chamados cines poeiras localizados nos bairros – ou as belas salas da Sétima Arte construídas em todo o País, geralmente localizadas nos Centros das capitais do País, como o Cine São Luiz, de Fortaleza. O rádio e suas radionovelas também pontificavam como

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PLÁCIDO ANDRADE
Memórias Kariri
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Plácido Andrade: “Temos mais de cem exemplos de teorias matemáticas que só vieram a ter algumas aplicabilidade após 40, 50 anos. Isso é muito comum. Não me preocupo com a aplicabilidade da pesquisa”

PLÁCIDO ANDRADE

principal atração de entretenimento entre os jovens da época.

O professor Plácido relembra às sessões de sábado no São Luís - “sábado sagrado, quando vestia a minha melhor roupa, uma camisa social ballon” . Ou dos filmes de arte exibidos pelo Cine Diogo. Sem esquecer as Chanchadas e Zé Trindade, criador do famoso bordão - “Meu negócio é mulher”. Além dos vários cantores famosos da época de ouro do rádio – “que só se via no cinema”. E das radionovelas, uma que até hoje ele tem na memória é “Jerônimo, o Herói do Sertão”.

O rock começava também a dar as caras no Brasil, numa Fortaleza ainda provinciana, com Elvis Prelsey e as famosas tertúlias comandadas por Ivanildo (o Sax de Ouro e seu conjunto). Ora no clube do Náutico, ora no extinto Maguari. Tempos dos anos verdes.

Pequeno destino

E assim foi se passando o labirinto do tempo na juventude do professor Plácido – entre estudos, brincadeiras de rua, tertúlias e sessões de cinema. Chegou outro tempo, o de encarar a vida, a universidade, ou melhor, a matemática.

Volto a pergunta. Por que a Matemática? A carreira do magistério? Se não foi a influência dos

pais, foi então o destino que levou quase todos os irmãos a seguirem carreira de professor?

“É como se diz tem o grande destino e tem o pequeno destino. No grande destino ninguém manda, mas no pequeno a gente pode influenciar, né. Conhece a pintura do Sartre sobre isso? O grande destino não, não, do Sartre não do Dalí?

Ele se refere ao famoso quadro de Dalí, “Destino”, “uma demonstração mágica das questões da vida dentro do labirinto do tempo”. Uma espécie de “paranóia crítica” de Dalí – inspirada no trabalho de Freud sobre o subconsciente.

Mas não interessa se era o filósofo Jean Paul Sartre – muito lido na época do professor Plácido - ou o pintor surrealista Salvador Dalí. O professor sempre foi dono do seu nariz e construiu o seu “pequeno destino”. “Foi assim. Quando saí do colégio 7 de Setembro fui para o Colégio Cearense, que fechou, né. Eu entrei numa turma de engenheiros - lá tinha uma turma de Engenharia e outra de Medicina. Talvez por influência da minha irmã, que entrou na Arquitetura e amigos também estudantes de arquitetura, resolvi fazer Arquitetura”.

Ele chegou a fazer cursinho para o vestibular de Arquitetura. Mas seu “pequeno destino” estava em outro tempo e outro espaço. Aos chegar o final do ano, uma das irmãs já morava no Rio. Era

professora de Matemática. O cunhado também Matemático. A PUC do Rio abriu o primeiro curso de Engenharia Elétrica. Desistiu da Arquitetura e foi tentar o curso de Engenharia na PUC. Corria o ano de 1968. Ano do Ato 5 que tanto perseguiu professores, estudantes e a universidade no Brasil.

“Eu não sei o motivo certo, mas perguntei ao meu pai se poderia ir para o Rio cursar Engenharia Elétrica. Ele só disse: vá que a gente dá um jeito. Arrumei as malas e me mudei para o Rio de Janeiro. Minha irmã e o meu cunhado estavam de saída para os Estados Unidos, onde fizeram o doutorado. Eu fui morar numa República. Prestei vestibular e entrei no curso de Engenharia Elétrica. A PUC era ministrada

pelos Jesuítas. Disse a eles que precisaria de ajudar, não tinha condições. Eles, então, me concederam uma bolsa. Pagava 20 por cento do total da mensalidade. Lá pelas tantas, talvez o destino, eu resolvi fazer Matemática. Gostava era de cálculo, álgebra. Troquei engenharia pela Matemática e nunca mais larguei”.

Anos de Chumbo

A época, politicamente falando, era das mais duras e complicadas. Mas o professor Plácido ficou longe das lutas políticas, passeatas, movimento estudantil. O foco era o estudo. Repete que morava numa pousada e, naquele contexto não tão fácil, só pensava em estudar. “Nunca fui um grande contestador, nem rebelde. Mas a gente respirava um clima tenso, de ansiedade”.

“A gente sabia que dentro da PUC do Rio tinham agentes infiltrados, tanto que uma menina que estudava na minha sala, chamava-se Beth, teve que fugir para o Chile. Nós tínhamos receio, todo mundo tinha receio”.

Outra questão apontada pelo professor Plácido eram as diferenças das universidades particulares para as públicas, inclusive entre a PUC carioca e a PUC paulista, esta administrada pelos Franciscanos, ligados mais a área social. No Rio, a universidade focava com maior força no

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Memórias Kariri
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Por ser muito nova, interpreto que tivemos um processo autoritário no início da universidade, com decisões importantes sendo tomadas de cima para baixo, processo que agora que está sendo revertido

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campo tecnológico, além de Economia e Administração. “Os pais do Plano Real saíram de lá e a universidade não tinha um ambiente político tão pesado quanto a do Rio de Janeiro. Agora, na PUC paulista estava a vanguarda do movimento estudantil. Mesmo assim os anos de chumbo foram difíceis para qualquer estudante na época”.

Plácido ainda participou de inúmeras assembleias, mas, por índole, nunca se arriscou além disso. “Talvez por estar desprotegido, por não ter ninguém por perto. Tinha que me virar sozinho, tocar a vida de estudante já não era fácil”.

Foi longo o tempo que ele ficou no Rio de Janeiro. Chegou aos 18 anos, concluiu o curso e se tornou professor da mesma PUC. Ensinou ali até aos 44 anos de idade, ou seja, 20 anos. “Na época existia um déficit de professor de Matemática em termos de ciências básicas. Quando terminei a graduação, entrei no mestrado já como professor da universidade. E permaneci um longo tempo na PUC do Rio de Janeiro”.

Rumo aos EUA

O doutorado demorou um pouco, mesmo assim foi o primeiro aluno a ser matriculado no doutorado da PUC - “fiz o curso, exame de qualificação, e fui para a tese. Mas me esborrachei. O trabalho que vinha desenvolvendo, por coincidência, foi publicado em 1983, ano que defenderia a minha tese. Acontece que tinha que mostrar o trabalho a um professor do Instituto de Matemática Pura e AplicadaIMPA ., recentemente criado. Ele detectou que meu trabalho era muito parecido com um que já tinha sido publicado. Na Matemática a gente tem que ser original. Foi quando o então presidente do CNPq, Jacob Palis, também Matemático, ex diretor do IMPA, me ofereceu uma bolsa sanduíche nos Estados Unidos”.

O professor Plácido chegou aos Estados Unidos já casado, com a

mulher e dois filhos pequenos - “uma loucura”. Ele se casou em 1972. Voltou e defendeu a tese na PUC do Rio de Janeiro. Era início de um outro contexto histórico, o das Diretas Já. Ele conta que assistiu o famoso comício da Candelária, que reuniu mais de 400 mil pessoas - “eu, a minha ex-mulher Vera Gouveia e os dois filhos pequenos, Mirna e Marcel, no meio da multidão”.

Do Rio de Janeiro ele guarda boa lembranças. De um Rio mais pacífico e multiracial. Explica que é a única metrópole do mundo que não tem guetos étnicos. Por que? “Se você vai para São Paulo, aquele bairro é de italiano; outro de português; aquele outro de japonês ou coreano. O mesmo ocorre em Nova York. Mas no Rio não tem isso”.

Uma realidade, segundo ele, que dá uma dimensão mais rica, multicultural e racial ao Rio de Janeiro. “Você não ver isso em nenhuma cidade do mundo”. Mas as favelas? Para professor, uma coisa totalmente distinta, pois se refere a questão étnica, a diversidade, apesar de todos os problemas da cidade. Mesmo as favelas, incrustadas nos bairros de classe média,

da classe alta, se relacionam, bem diferente da formação de grupos étnicos.

Labirinto de números

O olhar do matemático sempre está presente na vida de Plácido. “Uma linguagem, um conhecimento, uma criação intelectual que muitas vezes nada tem a ver com a realidade”. Explica que muitas questões levantadas por pesquisadores só serão úteis na vida real após um tempo longo – talvez 50 anos. “Você tem muitas teorias matemáticas que são criadas hoje, mas são apenas elaborações intelectuais. A mente humana tem esse poder de premonição, digamos. Temos mais de cem

exemplos de teorias matemáticas que só vieram a ter alguma aplicabilidade após 40, 50 anos. Isso é muito comum. Não me preocupo com a aplicabilidade da pesquisa”.

Ele se refere, por exemplo, a George Boole (1815 – 1884), que realizou as variáveis lógicas que facilitaram o surgimento do computador. E também as séries de Fourrier – Jean Baptiste Joseph Fourier (1768 – 1830) que deu a base para

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O principal hobby do professor Plácido é fotografar as diversas espécies de passarinhos da Chapada do Araripe

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técnica de reprodução digital, reprodução de músicas digitais por streaming ou para imagens online de rápido carregamento.

Ao citar os dois exemplos, o professor Plácido se coloca no campo da teoria e cita um dos seus principais influenciadores, o matemático Henri Poincaré (1854-1912), “o último grande universalista da Matemática. “A álgebra, a geometria e a análise, teorias separadas, foram unificadas por ele. A topologia se utiliza de elementos das três áreas. Foi a última grande síntese da matemática”.

Da PUC para UFCA

Da PUC o professor Plácido, em consequência do plano Collor, que desestruturou o Centro Científico Técnico e Social, transferiu-se para a Universidade Federal Fluminense. E depois de alguns anos prestou concurso para a Universidade Federal do Ceará, onde ficou de 1995 a 2008. Com a abertura do campus da UFC em Juazeiro do Norte, já aposentado, resolveu fazer novo concurso e continuar trabalhando. “Na época ninguém vinha para cá, tinha vaga de Matemática sobrando. A carga horária era altíssima por falta de professores. Muitos deles não ficaram”.

Uma outra nova aventura da vida do professor Plácido, mas agora com um outro olhar do mundo acadêmico, afinal sua vida foi e é dedicada ao ensino. De enfrentamento dos muitos desafios impostos pela academia. Para ele, o fator positivo das universidades públicas são as decisões colegiadas - “o equilíbrio das instituições são os seus colegiados, lugar em que são resolvidos os diversos conflitos acadêmicos. Resolvidos ou pelo menos dissolvidos, pois nenhuma decisão agradará a todos”.

Na Universidade Federal do Cariri, como em qualquer outra instituição de ensino, segundo ele, os conflitos sempre se farão presentes. Ele analisa que nem todas às decisões da UFCA, mesmo tomadas por colegiado, foram prudentes e que até hoje a instituição paga um preço alto. “Por ser muito nova, interpreto que tivemos um processo autoritário no início da universidade, com decisões importantes sendo tomadas de

cima para baixo, processo que agora que está sendo revertido”.

Autoritarismo que, segundo o professor, prosseguiu quando da criação dos centros e institutos da UFCA. Ele relembra do confronto que dividiu a universidade. Na época da ocupação dos estudantes e da greve de professores, em 2016, em protesto contra a PEC dos gastos, no governo Temer.

Naquele momento, Plácido lembra que existiu muita divisão entre alunos e professores que, talvez, se reflitam até hoje. “Foi um momento que achei menos democrático, sabe. Mas hoje está mais acomodado”.

No Cariri, além do trabalho, em sala de aula e como pró-reitor de Graduação, ele sempre buscou um hobby. Segundo ele, a matemática acaba isolando o professor e pesquisador da realidade e quando tinha entre 30 e 40 ano se interessou pela obra do psiquiatra suíço Carl Gustavo Jung (1875 – 1961), fundador da psicologia analítica. Leu tudo, mas depois se desinteressou.

Agora no Cariri seu ponto de fuga é a música, a poesia, a culinária. Mas tem um hobby especial: adora fotografar os pássaros da Chapada. Observar a riqueza da floresta, do canto dos pássaros. Afinal, são mais de duzentas espécies, muitas delas já fotografadas pelo professor, inclusive o raro Soldadinho do Araripe.

“Estes pontos de fuga são imprescindíveis para quem lida com muita matemática. O professor Juscelino Pereira da Silva, docente também do Centro de Ciências e Tecnologia da UFC é um excelente violonista. Temos que compensar esse distanciamento da realidade com arte e outras atividades, caso contrário ficamos irascíveis”, diz.

Aos 70 anos de idade, o professor Plácido já não tem muitas ilusões. Uma idade, como diz o memorialista Pedro Nava, que a vida nos tira mais

do que nos dá. Mesmo assim seus olhos brilham quando fala da sua profissão, da sala de aula, do batente de professor diariamente, mesmo com as decepções brabas, inclusive na política. “Nos anos 80 do século passado acreditei muito no PT, nas associações de bairros, nas Ongs. Mas veja no que deu”, diz sem nenhuma convicção no atual governo.

Segundo ele, estamos vivendo um grande retrocesso. Podendo a universidade pública passar pelos mesmos problemas que enfrentou na era de Fernando Henrique Cardoso. Mas acredita na força da instituição, da universidade pública e não será um governo que derrubará uma construção cujos alicerces estão no Império.

E Deus na vida do professor? Lógico que acredita em Deus, mas não vai à missa, e volta a falar no pequeno e grande destino, do início dessa matéria”.Mas o que tem Deus com a missa?”, indaga.

“Não acredito em Deus nesse sentido, mas no sentido místico mesmo, transcendente. Está aí a manifestação de alguma coisa. A natureza é a manifestação de alguma coisa maior”.

Com Deus ou sem Deus, o que apavora o professor Plácido é a falta de mobilidade, ficar dependente. A velhice?

“Mais de que a velhice, é a mobilidade, e não poder andar de manhã, não poder bater foto de pássaro, não poder mais dar aula porque vou

estar entendeu? Perder a mobilidade. Não, velho eu já sou né, não é a velhice em si”.

O professor Plácido mora em uma pensão em Juazeiro há onze anos, e de quinze em quinze dias vai a Fortaleza. Sua mulher, Elenir Castelo Branco, preferiu ficar lá, principalmente em consequência dos pais dela, já idosos. É o segundo casamento do professor, que ocorreu quando ele já tinha cinquenta anos. Ambos trazem filhos do primeiro casamento. Foi o destino, talvez. “Ela entende que eu gosto de ensinar, não sei ficar parado, e nunca teve cobrança quanto a isso, não. Ela também vem muito ao Cariri”. E assim, entre viagens, sala de aula e pesquisa o professor vai tocando a vida.

E o medo da morte, professor?

“Rapaz, se for o avião se jogando em cima de uma montanha, então melhor ainda, que eu nem saberia”.

Memórias Kariri

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A nossa amiga mais querida

Uma visita ao coração de Juazeiro do Norte pelo cotidiano de seus personagens

Foto: Acervo Daniel Walker e Renato Casimiro Foto: Acervo Daniel Walker e Renato Casimiro
Texto: Adler Sousa

PRAÇA PADRE CÍCERO

No vai-e-vem da vida moderna, sons costumam se misturar. Buzinas de carros, toques de telefones e carros que vendem ovos, milhos, pamonhas, sorvetes e churros são meras notas na sinfonia complexa da vida na cidade. Tal sinfonia acompanha um espetáculo com enredo digno de Ariano Suassuna, cheio de paixão, dor, cor e melancolia. Os atores e atrizes são de carne e osso; profissionais competentes, já que interpretam múltiplos papéis e nem ao menos se dão conta desse fato. A plateia é silenciosa, mas assídua em todas as exibições. Ela não é feita do mesmo material dos atores, é feita de concreto, gesso, tinta e tijolo.

Às vezes mais que plateia, o centro urbano se torna nosso amigo, confidente. Tudo vê, tudo sabe. E como bom amigo, guarda segredo. Nesse ecossistema de pedra e carne, nenhuma amiga é mais sincera e nenhum espectador é mais atento que a Praça.

Em Juazeiro do Norte, Terra de fé, de gente calorosa e de cultura pulsante, a amiga mais querida é a Praça Padre Cícero. Localizada no entorno demarcado pelos quatro quarteirões da Rua do Cruzeiro, São Pedro, São Francisco e Padre Cícero, ela existe desde quando Juazeiro era Joaseiro, e não passava de um vilarejo ao redor de um grande Pé de Juá.

No começo era chamada de “Quadro Grande” ou “Quadro São José”, por ser um enorme quadrado de terra que ocupava uma área muito maior que a atual, indo até o bairro do Socorro. Eram lá que os moradores do lugarejo, ao redor de um grande cajueiro, se reuniam para fazer comércio de dia. E dançarem forró de noite, pelo menos quando o padre recém-ordenado Cícero Romão Batista não os espantava com o seu cajado.

Depois, já em 1910, foi testemunha ocular e ecoou os gritos da população quando, em 30 de agosto, o povo de

Joaseiro deu seu grito de independência da Vila do Crato. A partir desse dia ficou então conhecida como “Praça da Independência”, nome que a acompanhou até 1925.

No dia 11 de janeiro daquele ano, foi inaugurada na praça a estátua do Padre Cícero, em homenagem aos seus 80 anos de idade, que até hoje permanece no mesmo local. Na ocasião, uma guarnição naval formada por cem aprendizes marinheiros e um segundo sargento veio a cidade prestar homenagem ao Padre

Padim Ciço passou a vigiá-la constantemente. Nesta época, a praça ainda era moça de interior, um pouco modesta, e contava com bancos de madeira e piso de terra. Em 1958, passou por outra mudança, na qual ganhou bancos de marmorite e um novo caminho para os transeuntes. Foi com essa reforma que passou a ser o centro da vida social do município de Juazeiro, lugar para passear, conversar com os amigos, levar a família para as missas de final de ano e até mesmo namorar, se fosse encontrado um banco

Cícero. Com o intuito de homenagear o Ministro da Marinha, a praça foi batizada oficialmente com seu nome, Almirante Alexandrino de Alencar. Devido a estátua, a praça começou a ser chamada popularmente de “praça Padre Cícero”, e em 17 de outubro de 1963, o então prefeito, Humberto Bezerra, a rebatizou oficialmente com esse nome.

Como podemos ver, a Praça já foi dona de muitos nomes e, como metamorfa que é, também já possuiu muitos rostos. A primeira reforma pela qual passou foi a de 1925, quando a estátua de

afastado o bastante. Ainda mudou novamente na década de 1980, bem como na segunda metade dos anos 2000 e por fim em 2018.

Como amiga querida, ninguém pode dizer mais sobre ela que seus próprios amigos. Amigos como Dona Iracema, natural de Juazeiro do Norte e que possui 64 anos. Há uma década pode ser encontrada no mesmo local na Praça Padre Cícero, de frente para a rua Padre Cícero, na sua banquinha verde. Embora os seus arredores tenham mudado um pouco ao longo dos anos,

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Foto: Jayne Machado Foto: Acervo Daniel Walker e Renato Casimiro
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A praça Padre Cícero sempre foi espaço de convivência de romeiros e caririenses

PRAÇA PADRE CÍCERO

suas memórias continuam firmes, assim como a árvore que lhe faz sombra, de segunda a sábado, das 7:30 às 17:30. Ou como seu João, que de seus 79 anos de vida já vem dedicando 39 a venda de suas mercadorias na praça, primeiro num box, depois em uma banquinha. Já seu Raimundo, de 74 anos, não tem banquinha, mas tem muitas histórias para contar sobre a sua vivência na praça. Por fim, o filho de um amigo que também virou amigo: Carlos Cruz, 86 anos, ex-prefeito de Juazeiro por dois mandatos e dono da Farmácia dos Pobres, que desde 1913 ocupa seu local de frente para a praça.

Dona Iracema

Sentada em sua cadeira de balanço, dona Iracema, de 64 anos, jogava conversa fora com alguns moto-táxis quando nós a abordamos. De pele escura, estatura baixa e sorriso misterioso, seu cabelo vermelho fazia jogo com a cor vibrante de sua barraquinha verde. Ela chegou

na praça com a sua banquinha em 2009, assumindo o ponto que antes era ocupado pela banquinha de um senhor de Barbalha do qual não se recorda o nome. Desde então tem vendido balas, café, cigarros, doces, para se sustentar e sustentar a sua família.

“Eu cheguei nesse canto aqui em 2009. Antes quem ficava era um senhor que morava em Barbalha. Era o lugar dele, mas ele já tava cansado de trabalhar, de todo dia vim de Barbalha pra ficar aqui. Aí essa vaga tava desocupada, e eu tava desempregada, tava com problema de osso, não podia fazer muito movimento. Eu tava procurando uma coisa pra fazer, então eu pensei em fazer alguma coisa vendendo, pra ver se eu sobrevivo, né? Porque ninguém mais aceitava me contratar. Então isso daqui foi um meio de vida, um meio pra eu trabalhar, porque eu não tenho nenhum benefício, nem condições de se aposentar, porque eu acho que isso daí tá muito difícil. Então pra sobreviver ou a gente vai virar

camelô ou então vai pedir esmola. É a única opção de Juazeiro. Então eu vim pra cá”. Ela pode ter colocado sua banquinha na Praça apenas há uma década, mais sua relação com ela vem de bem mais longe.

“Essa praça aqui era ótima quando era antigamente né, era o foco de Juazeiro. Eu vinha muitos fim de ano porque tinha missa. Era muito movimentado e a gente andava livre pelas ruas sem ter medo de nada. Era muitas festas que era só focada aqui, nessa praça. As missas de fim de ano, noite de natal. Muito movimentada já foi essa praça. Quando era adolescente, eu vinha pra cá com a minha família e assistia missa e outras coisas. A nossa festa era aqui. O nosso lazer era aqui, nessa praça. Quando chegava o fim de ano a gente tinha que ter uma roupa nova, uma sandália nova pra poder vim passar o ano novo na praça. E era muito bom, era muito bom antigamente. Você não tinha medo de nada,

você voltava altas horas da noite pra casa e não tinha problema. Hoje você não pode mais andar a noite. Mas era muito bom antigamente. Era mais flores, mais bancos, muitos casais nesses banquinhos, portanto que hoje eles representam o que era antigamente, banco de casal”.

Mãe de três filhos e separada, Dona Iracema lembra como, há mais de 20 anos, deixou o marido em Fortaleza e veio de volta para o Cariri em busca de melhorar de vida, e como teve que cuidar dos seus filhos sozinha desde então.

“Sou casada ainda. O meu marido disse que o divórcio era só um ‘tiro na testa’. Então eu disse que preferia o divórcio na mão que um tiro na testa. Aí ele mora em Fortaleza e eu moro aqui. Não fui mas atrás também, não precisou. Eu criei meus filhos basicamente sozinha mesmo. Sozinha e Deus, e mais ninguém. Também não fui atrás de dinheiro, porque antigamente não tinha pensão, e eu não podia ir atrás disso porque fui

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Foto: Acervo Daniel Walker e Renato Casimiro Memórias Kariri
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PRAÇA PADRE CÍCERO

eu que larguei ele, que abandonei a casa. Então eu tinha que me virar só”.

Ela afirma que o dinheiro que recebe na banca só dá para repor os produtos que vende e tirar o próprio sustento, mas que às vezes não consegue apurar nem o mínimo, porque os romeiros não costumam comprar os seus produtos e o comércio em época fora de romeirada é difícil.

“Romeiro não me compra, porque não gosta de bombom. Eles compram de mim é mais cigarro ou café, mas mesmo assim é pouco. Mais bombom é aqui ou aculá, não vende muito, não tem muita saída. Chilito, pipoca, também é difcíl de vender, porque tem os outros que compete com a gente né. Aí nesse aqui e aculá não dá pra ganhar muito, mas dá pra gente ir botando aqui, botando em casa, botando aqui não sobra muito. Chega o final de semana e você não tem condições de ir pra canto nenhum porque não tem nem o dinheiro da passagem. Mas a gente vai levando do jeito que dá”.

Além das dificuldades de manter a banquinha, dona Iracema aponta como a última reforma na praça afetou seus negócios.

“O prefeito fechou a Praça e a gente teve que ficar aí, perambulando pra poder conseguir pagar o aluguel, a água, a luz, o gás. Hoje em dia eu agradeço muito mais por ter isso aqui, por ter o meu canto todo dia pra poder trabalhar. Porque chegou uma hora da gente não poder mais botar banca no lugar, disseram que ia ter que sair todo mundo, e aí a gente ficou desesperado sem saber o que fazer. Ia viver de quê? Aí então a gente conseguiu fazer uma reunião, nós que trabalhamos na praça e o povo da prefeitura. Na verdade, ainda tamo em teste, porque ele (o prefeito) quer um carrinho bem bonito, padronizado. No começo ele mandou a gente ir atrás que ele ia ia ajudar a gente a fazer esse carinho, esse trailer. Mas depois desistiu. A gente sozinho não consegue juntar desse tanto. Então eu vivo com medo de não poder botar mais”.

Persistente e determinada, dona Iracema diz que, apesar de todas as dificuldades, não pensa em fechar a banquinha, mas sim almeja repassála para seus filhos.

“Fechar fechar assim eu num posso, porque é o único meio que eu tenho. Eu não vou

arrumar outro trabalho,na minha idade ninguém vai me dar. E se eu for arrumar outro emprego eu vou trabalhar pra morrer e também não vou conseguir nada. Então pelo menos aqui eu vou sobrevivendo todo dia, e eu agradeço. Cada dia é um dia. Então eu não pretendo nem tão cedo sair daqui, a não ser deu adoecer ou morrer. E mesmo se isso acontecer o meu lugarzinho vai ficar pro filho, ou minha filha, porque eu não vou abrir mão. A gente é cadastrado, a gente abriu há pouco tempo uma associação que defende as nossas causas. Mas o prefeito que decide se a gente sai ou não, e ordem é ordem. Se ele disser que a gente tem que sair a gente arruma outro canto pra poder ficar. Mas eu espero que isso não aconteça”.

Ela então fica, e quem agradece são os romeiros e as pessoas que dona Iracema ajuda diariamente, seja com direções ou conselhos.

Essa praça era ótima antigamente. Eu vinha muitos fim de ano porque tinha missa. Era muito movimentado e a gente andava livre pelas ruas sem ter medo de nada

“Sei conversar com todo mundo. Muita gente vem sempre na minha banca pra conversar, pedir um conselho, pedir uma opinião. Romeira mesmo tá cansada de vir na minha banca desorientada e sentar e melhorar, porque eu converso demais. ‘Mulher eu tava tão triste, e agora eu tô tão feliz, porque eu me desabafei’, porque às vezes a pessoa chega aqui tão carregada triste, não sai. Daí sai, se senta, fuma um cigarro e então melhora. E aí a pessoa vai e conta os problemas dela, e eu vou e conto os meus, e daí a gente já tá amigas. É muita amizade, é chei demais na minha banca, tem hora que você chega e não tem mais onde sentar. É um aqui, outro aculá. Converso e converso mesmo, e os meus meninos, meus filhos, não gostam, porque dizem que eu falo demais. ‘Oxe, a senhora passa o dia

Dona Iracema: “Fechar eu num posso, porque é o único meio que eu tenho. Eu não vou arrumar outro trabalho,na minha idade ninguém vai me dar”
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Foto: Jayne Machado Memórias Kariri
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PRAÇA PADRE CÍCERO

conversando, a senhora não cansa?, e eu ´Oxe, passo o dia sem fazer nada, tenho é que conversar mesmo´. ´Mas a senhora tá vendendo mãe, não precisa conversar´. ´Oxe, converso nada!´. Mas as pessoas sai feliz daqui, eu gosto de ajudar. Juazeiro é assim, tem muito visitante. Então às vezes divertido vender na rua, porque você pega muita amizade, você ajuda muita gente, praticamente vira uma família. A gente praticamente mora na rua e só vai dormir a noite em casa”..

E é com essa família que nós deixamos dona Iracema quando nos despedimos, uma hora mais tarde e com algumas memórias a mais na bagagem.

Seu João

“Podem tirar fotos da barraquinha, mas num tirem minhas não, por favor!”. Sujeito sagaz, de memória boa e conversa tranquila, seu João Faustino é filho de pais Alagoanos, mas nasceu no Juazeiro. Tem 80 anos, dos quais 39 gastou trabalhando na praça Padre Cícero.

Ele não negou nenhuma parte da sua história na praça à nossa equipe.Sua

Podem tirar fotos da barraquinha, mas num tirem minhas não, por favor!

única condição foi que não tirássemos fotos suas, a qual respeitamos. Ainda bem, nesse caso, que uma memória vale mais que mil fotografias.

Nós os entrevistamos quase em frente ao solar dos Bezerra de Menezes. O senhor, entretanto, afirma que nem sempre vendeu suas mercadorias ali.

“Olha, aqui nesse local que nós estamos, faz poucos dias. Eu trabalhava ali (apontando para o local no qual hoje se encontram diversos trailers) aí quando o prefeito foi reformar, derrubou meu box. Não só o meu, foi o de todo mundo que trabalhava aqui, sabe? E aí, por enquanto, nós estamos com o carrinho, enquanto ele faz uns trailer para nós”.

Com uma relação de quase quarenta anos, seu João já presenciou diversas fases da praça.

“Mudou umas e outras não. Umas para melhor e outras para pior. Porque logo no início dessa praça você podia dormir aí e ninguém mexia com você. Hoje até você andar por aqui de dia é perigoso. Mas, de qualquer forma, tá bom assim as coisas. Só em a gente estar vivo é uma beleza. Você sabe que antigamente essa praça chamava-se Almirante Alexandrino? mudou depois para Padre Cícero, que é como é conhecida no mundo todo, acredito eu. De qualquer forma, glória a Deus que a gente tá aqui. Ele ajuda a gente e assim vamos vivendo. Se Deus quiser e eu tenho fé nele, o prefeito vai fazer nossos pontos.. tenho fé, porque quando Deus coloca a gente no mundo, é pra viver, só vai quando ele chama. Tô errado?”

Como dona Iracema, seu João teve que procurar outro lugar para estabelecer seu ponto quando a praça fechou para reforma.

“Eu e os meus filhos fomos para outra praça, a do Memorial, conhece?

Aí eu mandei fazer uma outra barraca, de chapa. Aí fiz e ficamos trabalhando. Eu e meus filhos. E fomos batalhando,

fomos batalhando, e quando disseram assim: ‘é pra voltar pra cá’ (Praça Padre Cícero); aí eu disse: ‘e minha barraca?’. E eles disseram: ‘não, lá não é assim não’; e eu disse: ‘oh rapaz, aí acabou comigo’.O que eu tinha gastei na banca do Memorial, se na outra Praça não era aceito, tivesse dito que eu não tinha feito esse gasto. Mas tudo bem. Aí viemos, e tô aqui com meu carrinho. Deus me dê força e coragem pra lutar com eles. Ainda bem que quando meus filhos vêm da faculdade, passam aqui e assumem. Umas seis e meia, sete horas eu vou pra casa e ela fica aqui mais eles. Então quando eu venho, de tarde, eles vem trazer mais eu e assim nós estamos continuando o trabalho. Porque pra mim só mesmo lutar é muito pesado, não?”

Ao mesmo tempo que relembra da perda de seu box antigo na Praça, retirado pela prefeitura, sem dinheiro para comprar um trailer, seu orçamento foi afetado. Mesmo assim seu João

olha para o futuro com a esperança e a fé de que dias melhores virão.

“Olhe, ainda dou graças a Deus, que tô aqui e aqui, ou muito ou pouco, ou bom ou ruim, todo dia ele me dá o pão de cada dia. Agora uma coisa eu lhe digo, não sei se você chegou a conhecer nossos pontos ali Os box? Uma coisa eu lhe digo, quando eu chegava, bem cedo, que eu abria a porta, ali eu dizia: ‘meu Deus, sei que minha panela hoje ferve.’ E, naquela época, nunca deixou de me faltar nada, nem para mim nem para os meus filhos. Infelizmente, o que eu apurava ali naquele ponto num dia eu passo uma quinzena aqui e talvez não apure. E outra coisa, não é nem tanto isso, o pior de tudo é que eu tinha muito cliente pelo dia que ia comprar lá que hoje não tenho mais. Os clientes não vão ficar esperando eu pra vir comprar uma comida.

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Foto: Jayne Machado Memórias Kariri A praça Padre Cícero é delimitada por quatro ruas famosas: Cruzeiro, São Pedro, São Francisco e Padre Cícero; ela existe desde quando Juazeiro era Joaseiro
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Foto: Jayne Machado

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Raimundo Lucas de Sousa: “Eu vinha aqui sempre. Às vezes no natal tinha missa aqui e eu ficava um tempo aqui. Era bom aqui na época. Hoje a cidade cresceu muito e a gente percebe mais gente de fora do que gente daqui”

Isso tudo é prejuízo, né. Tudo desfalca. Mas aí eu tenho fé em Deus que um dia eu poderei voltar”.

Seu Raimundo

Já era anoitecer quando avistamos seu Raimundo Lucas de Sousa, de 74 anos, sentado sozinho em um dos bancos da praça. Seu cabelo alvo e sua blusa azul claro batiam ponto na memória do céu que nos recebeu no começo daquela tarde. Uma bengala depositada ao lado do banco nos levou a notar que seu Raimundo não possuía uma das pernas. Um ‘boa noite’ foi então a nossa senha para vislumbrar um pouco da história daquele senhor que tinha tanto a partilhar conosco sobre o passado da praça.

Ele relembrou um pouco da juventude, enquanto seu olhar vagava pelo ambiente, talvez um pouco diferente da lembrança despertada por nossa intrusão.

“Essa praça me recorda muito os anos 80, quando tinha 18, 20 anos e frequentava muito aqui. No tempo que ela era muito movimentada, muito frequentada pela sociedade da época. Eu me recordo muito bem desse período”.

Relembra ainda seu Raimundo, com saudosismo, como os laços de antigamente eram mais estreitos que os de hoje em dia.

“Eu vinha aqui sempre. Às vezes no natal tinha missa aqui e eu ficava um tempo aqui. Era bom aqui na época. Hoje a cidade cresceu muito e a gente percebe mais gente de fora do que gente daqui. Porque naquela época a gente se via mais, via as famílias que moravam aqui ao redor da praça. Por exemplo, eu lembro das pessoas da rua da Conceição, da Santa Luzia, da São Francisco, a do Cruzeiro... Lembro de muitas pessoas. Ali ao lado da discoteca treze também tinham um pessoal que eu conhecia. Na rua São José também, eu conhecia muitas pessoas por aqui, na padre Cícero também. Hoje muitas dessas pessoas não se encontram mais. Antigamente era bom, eu acho que as pessoas eram mais família naquela época, as pessoas se entendiam mais, gostavam mais uma das outras, tinham mais consideração, porque hoje a cidade se desenvolveu e não vemos mais isso. As famílias se distanciaram muito. Hoje ninguém sabe mais quem é o

Essa praça me recorda muito os anos 80, quando tinha 18, 20 anos e frequentava muito aqui. No tempo que ela era muito movimentada, muito frequentada pela sociedade da época. Eu me recordo muito bem desse período

vizinho. Não é mais que nem naquele tempo, quando as pessoas eram muito amigas”.

Além dos passeios em família, ele recorda dos festejos que que ocorriam no local.

“No treze tinha muita festa, que era um clube que tinha na rua Santa Rosa. Tinha desfile também, e muitas celebrações. Os colégios participavam disso. Por exemplo, o colégio Dr. Diniz, naquela época, já começava com aquela fanfarra e coisas assim”.

É com a voz embargada e algumas pausas, ele rememora a época em que a praça era visitada por muitas famílias e conhecidos seus; e como muitos daqueles rostos já não são mais vistos hoje em dia. Ao confrontar essas lembranças, seu Raimundo relembra então do seu próprio passado.

“Hoje eu não encontro mais com aquelas pessoas, porque antes, né, vinham mais. Mas também muitos já se foram. As pessoas da minha época hoje são poucas, com mais de cinquenta anos, sessenta, boa parte já se foram né... Eu sento aqui mais para recordar algumas coisas mesmo. Porque, eu lembro que na época que eu era criança, eu vinha muito aqui para o Juazeiro, porque eu perdi essa perna com idade de dez anos, e Juazeiro foi assim como um refúgio. Eu saía de Crato e vinha pra cá e

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Foto: Adler Sousa Memórias Kariri
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PRAÇA PADRE CÍCERO

aqui eu ficava. A gente tinha um pequeno fabrico de calçados no Crato né, e a gente tem uns fregueses em juazeiro, onde inclusive hoje é aquela farmácia Pague Menos, nesse primeiro quarteirão. Eu lembro que tinha um senhor que chamava Dantas, e eu lembro que ele tinha uma banca de calçados e ele sempre vendia os nossos calçados, os calçados de meu pai. Eu lembro que naquela época, eu ainda criança com a idade de 8 anos, meu pai me colocava na sopa, porque não era ônibus, era sopa, quase como um micro ônibus, aquele pequeno, e eu lembro que ele recomendava ao motorista onde eu descia. E nesse tempo o ônibus parava ao lado daquela farmácia que fica ao lado da Santa Luzia, e ele parava naquela esquina, eu descia e vinha deixar os calçados. Eu lembro que era mais

andar, isso espairece muito, a pessoa ficar só em casa não é muito bom não”.

Ao vir para a Praça Padre Cícero, seu Raimundo tem a oportunidade de atiçar suas memórias. Ainda bem que, segundo ele, a última reforma da Praça a deixou um pouco mais parecida com o que era na época de sua juventude, facilitando o trabalho de escavador de seu próprio passado.

“Lembra muito o passado. Assim, a gente olhando bem assim ainda faltam algumas coisas, porque a perfeição nunca vem como antes, né. Os postes, por exemplo, eram aqueles postes pequenos que hoje não tem. Mesmo se quisesse botar não tinha mais condições né, porque aí pode chegar alguém e levar as lâmpadas. Mas que a praça tá bem parecida

ou menos assim, não lembro bem a quantidade, mas meu pai me dava umas mercadorias e eu levava até lá. Aí quando era de tarde, ele vinha pra pegar o dinheiro. Eu lembro muito e aqui era meu refúgio. Eu criança sem querer aceitar a realidade da vida porque tinha perdido a perna. Aqui, na Praça Padre Cícero, era onde eu vinha e ficava por muito tempo”.

Um andarilho dos tempos modernos, seu Raimundo conta que gosta bastante de passear, e a praça padre Cícero é um dos seus lugares favoritos.

“Eu gosto muito daqui de Juazeiro, sempre quando tô sem fazer nada, levo meu caminho para aqui. Crato eu frequento também. Gosto muito de ir para a praça da Sé. Eu acho bom

com a que era antes”.

Carlos Cruz e a Farmácia dos Pobres

“1913, Casa dos Pobres” são os dizeres que podem ser encontrados em letras negras no prédio verde que nos recebeu para visita em uma manhã de sábado. Dentro do local pudemos falar com uma das personalidades mais conhecidas de Juazeiro, filho de um amigo querido da praça.

Fundada em 1913 por José Geraldo da Cruz, a Farmácia dos Pobres foi uma das primeiras farmácias a existir em Juazeiro. Lar do famoso “Bálsamo da Vida”, que até hoje faz sucesso com os habitantes da região e com os romeiros que vem nos visitar, também já foi palco de importantes decisões políticas

Daniel Walker e Renato
32 Memórias
Foto: Acervo
Casimiro
Kariri
Carlos Alberto da Cruz, 86 anos, gerencia hoje a Farmácia dos pobres e relembra como ela ganhou vida nas mãos do seu pai, Geraldo Carlos Cruz, criador do famoso Bálsamo da Vida, sucesso entre moradores e romeiros Foto: Acervo pessoal Carlos Cruz Foto: Wesley Vasconcelos
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Foto: Wesley Vasconcelos Foto: Wesley Vasconcelos

PRAÇA PADRE CÍCERO

...aí todo mundo corria pra cá, se tava doente vinha pra cá se operar. Meu pai operava aqui, bem ali, na sala. Aqui não tinha hospital. Quebrava um braço... vinha pra ele. Aí ele tinha um slogan, ele dizia bem assim: Chegou vivo aqui já não morre mais!

da região, pois a família que lhe dá vida é intrinsecamente ligada a este cenário.

Hoje a Farmácia dos Pobres está nas mãos de Carlos Alberto da Cruz, 86 anos, filho de Geraldo. Carlos Cruz também já foi prefeito de Juazeiro duas vezes, e relembra como a farmácia ganhou vida nas mãos de seu pai tantos anos atrás.

“O Padre Cícero botou meu pai pra trabalhar em farmácia, uma farmacinha pequena que tinha

ali, onde é essa Loja Americanas hoje. Farmacinha pequena, que era de Sebastião Carvalho, ai meu pai aprendeu a trabalhar na farmácia. Quando ele tava bem aprendido, Padre Cícero arranjou um dinheiro pra ele ir comprar um remédios lá em Fortaleza pra botar uma farmaciazinha dele. Aí ele foi lá em Fortaleza e aí comprou os remédios para vender. Ele sabia quais eram os remédios que tinham mais saída. Aí ele botou os remédios num trem, trouxe pra aqui, alugou esse pontinho e ficou negociando”.

Durante muitos anos funcionou também como ambulatório, consultório e hospital, já que a população humilde da região não podia recorrer aos poucos médicos que existiam.

“Toda vida teve movimento aqui. Inicialmente só tinha essa farmácia e a de Dr. Belém ali aí todo mundo corria pra cá, se tava doente vinha pra cá se operar. Meu pai operava aqui, bem ali, na sala. Aqui não tinha hospital. Quebrava um braço? vinha pra ele. Aí ele tinha um slogan, ele dizia bem assim: ‘Chegou vivo aqui já não morre mais!’. Depois papai entrou na política.

Zé Geraldo, como era conhecido o pai de Carlos, não era formado em nenhuma área da saúde. Seu conhecimento veio todo da prática, e foi dela que nasceu o Bálsamo da Vida, unguento milagroso capaz de curar de enjoos a enxaquecas. Hoje, o produto é único ainda comercializado na Farmácia, e as embalagens

de 100ml custam R$ 9,00, as de 250ml custam R$15,00 e as de um litro saem por R$28,00.

“Quando a farmácia completou 100 anos, nós fizemos uma festa. Foi celebrada uma missa. Encheu isso aqui de gente de todo canto”. O centenário da Farmácia ocorreu apenas dois anos depois da data de comemoração do centenário de Juazeiro, em 2013. O ex-prefeito lembra com emoção da celebração. O passado então o direciona a pensar no futuro. Quando perguntado sobre os planos para os próximos anos, diz que não tem planos de

fechar o local. “Eu nunca pensei em fechar essa farmácia, e nem vou”.

A praça Padre Cícero já foi palco de amores e dores, já viu casais sendo feitos e desfeitos. Já deu boas vindas e adeus as mesmas pessoas, comemorou as vitórias do povo dessa terra e lamentou suas derrotas. É certo que ainda verá muitos capítulos de Juazeiro, e será confidente de muitos outros habitantes. Depois de nos despedirmos de todos aqueles que conhecemos, foi a hora de então nos despedirmos da praça. Até breve, nada de adeus. Nossos caminhos certamente se cruzarão outra vez.

se cruzarão outra vez

Até breve, nada de adeus. Nossos caminhos certamente
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Foto: Jayne Machado
Memórias Kariri
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Annette Dumoulin: uma metade cantando

Ela trocou a Bélgica por Juazeiro para se dedicar à religião popular

Texto: Sarah Gomes

Fotos: Izabelly Macedo e Sarah Gomes

Com 84 anos de vida e mais de 40 de Nordeste, irmã Anette Dumoulin é uma belga sertaneja. Cônega da congregação de Santo Agostinho e doutora em Psicologia da Religião, chegou à Terra do Padre Cícero pelos atravessamentos entre as forças do acaso e do destino. As expressões de fé romeiras encantaram e atraíram a pesquisadora, a irmã e a cristã, que logo tratou de abrir mão do cargo de professora na Universidade de Louvain, na Bélgica, para se dedicar aos filhos do Padim. Hoje, conhecida como a “cantora dos romeiros”, irmã Anette exibe as marcas do tempo no olhar travesso de quem navegou com coragem pelos mares do amor e da fé.

Amor de casa vai à praça

Anne Dumoulin nasceu em Liège, na Bélgica, no ano de 1935. Chegou ao mundo ao lado do seu irmão gêmeo, Pierre, no dia 14 de julho. O pai, clínico geral, foi um modelo de vida para Anne, hoje conhecida como irmã Annette. “Ele era um desses médicos que não se fazem mais hoje, um daqueles que são verdadeiros sacerdotes”, explica. O sotaque francês carregado pela doçura da saudade lembra com atenção da simplicidade do homem que foi sinônimo de doação. “Quando penso em minha vocação, penso em meu pai”, afirma. Sentada na varanda da casa em que mora, no terreno da escola “O Semeador”, irmã Annette conta que o pai fazia questão de atender os pacientes que não tinham condições de pagar pelas consultas. O cuidado era partilhado por toda a família. Os filhos, quatro no total, contribuíam com a comunidade e auxiliavam os pacientes.

“Para te dar um exemplo que eu gosto muito, porque isso fez parte da minha vida de criança, de adolescente... Meu pai ia na casa de gente muito pobre e, muitas vezes, pessoas idosas que viviam sozinhas. Eu me lembro de uma senhora cega que vivia só. E quando meu pai entrou no quartinho, viu que não estava muito limpo, que tinha muita louça suja. Então meu pai falou para aquela senhora: ‘eu vou mandar meus filhos para ajudarem a senhora, a senhora aceita?’. Ela aceitou e nós fomos, meu irmão e eu. Lavamos a louça, ajeitamos a casa. Éramos adolescentes...”.

Uma família unida, apaixonada por música e por esportes. É assim que Annette descreve a família Dumoulin, alicerce de tudo o que viria a ser e pregar um dia. Não demora ao rosto risonho e o olhar saudoso darem espaço à seriedade da dor quando Annette chega aos eventos de 1940. “Minha infância foi marcada pela guerra. E uma guerra horrível! Uma guerra aonde amigos dos meus pais foram assassinados, foram para

Eu senti que minha vocação era essa! Tinha que deixar a Europa, Louvain. Lá teria muita gente para ocupar meu lugar, mas aqui não teria

campos de concentração. Todas as guerras são terríveis, mas a guerra de 1940 foi... Afetou bastante a minha família”, desabafa. O período dos bombardeios foi particularmente marcante. Durante quase três anos, os Dumoulin dormiram em porões e colaboraram com a resistência abrigando fugitivos. A chegada dos americanos e a derrota dos nazistas colocou um ponto final ao horror vivido pela família entre os anos de 1940 e 1945.

Uma metade voando

Como a fé, o laço entre irmãos gêmeos foge à racionalidade. Anette e Pierre chegaram a esse mundo lado a lado e assim caminharam durante 23 anos. Pierre era pianista e Annette sempre amou cantar. Juntos os dois irmãos se transformavam em um só. Idealista, com gostos fora do comum e apaixonado pelo livro francês

O Pequeno Príncipe, Pierre não sabia se seria padre ou aviador. Escolheu seguir os passos do escritor Saint-Exupéry e ganhar os céus. Pierre morreu voando. O caça que pilotava apresentou problemas técnicos e apesar das tentativas de soltar-se da cadeira, o cockpit descolou e ele foi expulso do avião em grande velocidade. Como o paraquedas não abriu, Pierre morreu sentado na cadeira da qual tentava se soltar. Com os olhos azuis vibrando em lágrimas, irmã Annette conta que a morte do irmão foi um choque para toda a família Dumoulin e, especialmente, para ela. A admiração que os gêmeos nutriam um pelo outro e o carinho que dedicavam diariamente à relação era parte do que os mantinha de pé. “Eu me senti morta pela metade. Eu sempre penso assim... Depois eu tive que me refazer... A minha metade tá voando! No sentido de... Ela está presente, mas ela está voando no ideal dela! Meu irmão era idealista, um rapaz lindo!”, se emociona. Entre as mãos irmã Annette mantém firme uma foto de Pierre, como quem diz que às vezes, SaintExupéry, o essencial está, sim, visível aos olhos.

Entre a educação e a religião

A vocação religiosa, o cabelo grisalho, o par de óculos redondos e a voz mansa de quem tirou o relógio da parede, tecem em irmã Annette a imagem padrão de mulher religiosa. Diferente do que pensa o senso comum, a primeira impressão não é a que fica. Logo o bom o humor, a espontaneidade e o espírito bem-aventurado da Cantora dos Romeiros tratam de mostrar que a fé não prende, liberta.

O primeiro diploma da irmã Annette foi em Educação Física. Apaixonada por ginástica, a belga foi professora por um ano meio, tempo necessário para alcançar a idade mínima para entrar no convento. “Eu me senti chamada. Era

uma visão de mundo que não tinha fronteiras!”, explica. Assim como o irmão, Pierre, Annette queria voar e se aventurar por cada ponto do planeta. O desejo de se consagrar veio do exemplo do pai, que fazia parte do movimento vicentino. “Ele me mostrou no fundo o que é uma forma de amor, pelos outros, sem procurar o dinheiro, de realmente se doar especialmente aos mais pobres”, lembra aos suspiros.

Annette então sagrou-se na Congregação de Nossa Senhora, das Cônegas de Santo Agostinho. A Congregação nasceu há quase 500 anos e caracteriza-se por ser, fundamentalmente, de educadoras. Os fundadores, São Pedro Fourier e Beata Alix Le Clerc, defendiam a importância da educação para a mulher. Naquela época, apenas as meninas ricas tinham acesso à educação. Como mulheres não podiam frequentar a escola, as meninas de famílias abastadas recebiam aulas de professoras particulares em casa.

“Não tinha escola para meninas. Os fundadores descobriram a importância da educação para a mulher, para o bem da sociedade, fizeram uma verdadeira opção para a educação das mulheres que iam ser mães de família, as grandes educadoras. No sentido de ser antes de tudo educadora e religiosa. Mas a Alice dizia que ‘se eu tenho que escolher

entre os dois, eu escolho ser educadora, deixo de ser religiosa’. Nós somos religiosas porque queremos ser educadoras”.

Depois da formação na vida religiosa, a irmã Annette poderia escolher qual caminho acadêmico mais lhe atraía. Foi quando escolheu a licenciatura em Pedagogia, a ciência da Educação, na Universidade de Louvain. Na Bélgica, a licenciatura requer que um mestrado seja feito logo em seguida. Annette, então, optou pelo mestrado em Psicologia da Religião. Ao ver a dissertação de mestrado da irmã sobre as mediações religiosas da criança em relação a Deus, o padre e professor de Psicologia da Religião, Antoine Vergote, convidou a freira para ser sua assistente e compor a equipe do Centro de Religião.

“Você já viu Deus? Eu também nunca vi. Mas, como criança e como adolescente, nós temos mediadores no mundo, pessoas que nos ajudam a nos aproximar ou não de Deus. Eu fiz essa tese a partir do Padre para uma criança de 6 a 12 anos, meninos e meninas. Porque a gente sabe que os mediadores podem ser muito bons ou podem ser péssimos. Por exemplo, você tem criança de 6 e 7 anos que não quer chamar Deus de pai. ‘Ele me bate! Meu pai é drogado! Meu pai bate na minha mãe!’. Então no Pai Nosso... A criança tem uma

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Irmã Annette durante entrevista à repórter Sarah Gomes

ANNETTE DUMOULIN

rejeição a palavra Pai por causa do mediador pai, que deveria ser o caminho para descobrir o verdadeiro Pai Nosso. Mas ela bloqueou porque esse mediador não correspondia a quem é o Deus que Jesus Cristo revelou. E isso é uma coisa muito forte... Como a gente não conhece Deus diretamente, a gente passa por mediações. Essas mediações humanas são muito importantes na formação religiosa, na educação religiosa”.

Agora seu orientador, Antoine Vergote sugeriu que Annette fizesse doutorado em Psicologia da Religião. Com medo que a alta titulação a impedisse de trabalhar com os pobres, a cônega escreveu para sua Superiora da Ordem, madre São João. A resposta da madre foi tão extraordinária aos olhos da freira que até hoje irmã Annette guarda a carta que recebeu. “Pode fazer o seu doutorado! Porque se é vontade de Deus, não é doutorado nenhum que vai impedir você de trabalhar a serviço dos pobres. E os pobres merecem que a gente se prepare para servi-los!”, respondeu a Superiora.

Calma diante dos conselhos de madre São João, Annette deu início ao doutorado e, ao fim da tese, foi nomeada professora da Universidade de Louvain. Durante os estudos, a irmã fez entre quatro e cinco anos de psicanálise a nível de aprofundamento, para que pudesse conduzir as terapias em grupo sem realizar contratransferência. Apesar do sonho de conhecer o mundo, Annette caminhava para ser professora titular e permanecer na Bélgica pelo resto da vida... Até que tudo mudou com a chegada de Therezinha Stella Guimarães, conhecida como irmã Ana Teresa.

Uma metade navegando

Parte do programa ALA – Assistência ao Litoral de Anchieta, Annette recebia cartas de diversas partes do planeta. As correspondências das irmãs do Brasil, que moravam em Santos e trabalhavam educando meninas nas vilas de pescadores, encantavam a estrangeira. “Eu já estava me vendo num barco, no meio do mar, procurando os índios perdidos e... sabe?”, conta enquanto o riso corre solto pelos oceanos da lembrança. Para Annette, o Brasil era um sonho e uma aventura, mas também a possibilidade de uma aproximação com o povo.

Acometida pela tuberculose, irmã Ana Teresa foi enviada à Europa para receber tratamento e realizar uma reciclagem em Teologia e Psicologia. Foi com ela que Annette compartilhou o sonho de conhecer as terras tupiniquins. “Então ela me disse: ‘Annette, você está no lugar errado!’. Eu tomei um choque! ‘Você vai no caminho de ser professora para vida inteira aqui, em Louvain.

Cadê o teu sonho? Cadê o que você quer?’. O choque foi o primeiro passo para a tomada de consciência”. Não demorou até Annette buscar o reitor da Universidade e revelar que gostaria de estudar de perto a religiosidade popular na região Nordeste do Brasil. O reitor aceitou e Ana Teresa logo se prontificou a acompanha-la nessa nova jornada em direção a Recife, no Pernambuco

Inicialmente, irmã Annette veio ao Brasil para pesquisar as expressões religiosas e as mediações religiosas do nordestino nas Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) durante um período de dois anos. Já no Nordeste, as Irmãs alugaram uma casa simples, na Linha do Tiro, bairro da capital pernambucana. “Era tempo da ditadura militar e nós queríamos estudar as CEB’s, no sentido... Como é que elas nascem do povo? Como é que as lideranças nascem do povo? Como é que o povo numa situação tão grave de opressão consegue se organizar a partir da palavra de Deus, a partir do Evangelho?”, explica. Mas os planos de Deus eram diferentes dos planos traçados pelas cônegas de Santo Agostinho.

Uma fé diferente

Foi em solo pernambucano que Annette encontrou uma nova mediadora. “Nossa vizinha, Maninha, era de Juazeiro e tinha um quadro grande de um padre de batina. Eu falava português muito mal na época e perguntei: ‘mas quem é ele?!’ Eu achava tão estranho uma fotografia de um padre!”, conta com os mesmos olhos arregalados com que questionou Maninha cerca de 40 anos atrás. A vizinha revelou que era um santo! Não demorou para que os pais de Maninha, Seu Mocinho e Dona Tita, convidassem Annette e Ana Teresa para conhecer a terra do Padim. Demorou menos ainda para que as irmãs aceitassem o convite de passar 10 dias em Juazeiro.

A casa da família ficava na Rua Padre Cícero e a viagem coincidiu com uma romaria. Selvina, lavadeira da família, fez as vezes de cicerone e apresentou a cidade, revelando cada um de seus místicos mistérios para as irmãs. Descendente de índios, Selvina havia convivido por certo tempo com o Beato José Lourenço, no Caldeirão de Santa Cruz, em Crato. “Imagine uma belga, professora de Universidade, numas das expressões de fé tão diferentes da que existem na Europa, essa alegria, esse olhar desses romeiros... me encantaram!”, lembra. O encantamento foi ainda maior quando a cônega descobriu que a própria Igreja Católica rejeitava os romeiros e o Padre Cícero.

De volta a Recife, Annette e Ana Teresa descobriram que a casa em que moravam

havia sido invadida. Amigos das CEB’s logo as procuraram e alertaram para a possibilidade da invasão ter sido obra da polícia. Os membros das comunidades acreditam que os invasores buscavam o pequeno livro vermelho de Marx e tentavam descobrir o que as duas irmãs faziam vivendo “num lugar tão pobre”. O pé dos invasores no teto de um dos banheiros da casa foi o pontapé que faltava para que as irmãs decidissem que o segundo ano de pesquisa seria realizado em Juazeiro do Norte. Para Annette, a cidade era uma mina extraordinária de expressões nordestinas e a força de estudalas e conhece-las vibrava no cerne da Irmã.

Após realizarem algumas leituras sobre o Padre Cícero, Annette e Ana Teresa chegaram à conclusão de que precisavam aprofundar quem ele havia sido a partir da utilização de arquivos, escavando pelos caminhos contrários aos boatos. Foi nesse contexto que a decisão que mudaria para sempre a vida das irmãs foi tomada. Era noite de São João e o Horto estava em festa. “Ana Teresa e eu nos olhamos e a gente disse: é aqui que a gente tem que ficar, não só para estudar, mas para ajudar!”, repete com a firmeza de quem faria tudo outra vez. Ali, as duas decidiram que além de fazer pesquisa, fariam uma pastoral de acolhida, não de manipulação do povo. “Eu senti que minha vocação era essa! Tinha que deixar a Europa, Louvain. Lá teria muita gente para ocupar meu lugar, mas aqui não teria”, pondera.

Nesse momento decisivo, Annette avistou uma cabaça ainda verde no chão e, nela, as irmãs escreveram a promessa que selaria o destino que trilhariam dali em diante: “De todo jeito, voltaremos para o Juazeiro. Ana Teresa e Annette – 24 de junho de 1974”. A cabaça permanece com irmã Annette até hoje. “Vai no meu túmulo quando eu morrer!”, confidencia. As irmãs informaram ao Padre Murilo de Sá Barreto, único pároco da época que acolhia os romeiros, que precisavam ir à Bélgica por questões éticas e acadêmicas, mas que logo voltariam para ajuda-lo.

A cantora dos romeiros

Com os planos traçados, era hora de fazer acontecer. Irmã Annette retornou para a Universidade de Louvain, onde ensinou Psicologia, Pedagogia e Teologia durante dois anos. Enquanto isso, Ana Teresa dava início ao doutorado em Psicologia da Religião. Em 1976, as duas estavam prontas para voltar ao Brasil e assumir o destino que haviam escolhido e pelo qual havia sido escolhidas.

Apesar de ter sido previamente comunicado da decisão das irmãs, Padre Murilo, pároco da Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro,

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Com foto do irmão gêmeo, Pierre, que morreu em acidente aéreo

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não acreditou quando soube que Annette havia pedido demissão do cargo de professora titular da Universidade de Louvain. Na época, o sacerdote não sabia quanto tempo continuaria à frente da Capela ou se os bispos aceitariam que as irmãs trabalhassem no município. “Tudo dizia que a gente não era bem vinda”, revela. Ao chegarem a Juazeiro, ela e Ana Teresa se hospedaram novamente na casa de Dona Tita e Seu Mocinho, mas logo alugaram uma casinha no caminho do Horto e foram conversar com o bispo na Diocese do Crato.

Como o sacerdote estava viajando, quem as atendeu foi o vigário geral, que de antemão informou que não tinha poder para tomar qualquer decisão em relação à estadia das irmãs. Nesse momento, Ana Teresa cochichou no ouvido de Annette e sugeriu que ela contasse que as duas não precisariam de salário, pois a Congregação de que faziam parte assumiria os gastos necessários. “Ahhhh! Mas nessas condições é claro que podem vir! Qual bispo não vai aceitar um religioso pra trabalhar de graça?”, decidiu o vigário. Por orientação do Padre Murilo, Annette não revelou que era doutora. Se essa informação fosse de conhecimento geral, logo ela seria encaminhada para lecionar na Faculdade de Filosofia, no Crato.

Annette lembra que na época as romarias aconteciam de seis em seis meses. Único pároco a recepcionar os romeiros com respeito, Padre Murilo não tinha como confessar centenas de pessoas antes das missas. Problema que as irmãs logo trataram de solucionar ao oferecerem confissões comunitárias. Enquanto Ana Teresa preparava os romeiros para confissão, irmã Annette cantava. Anos depois, Padre Murilo revelou que se escondia para escutá-las e descobrir o tratamento que davam aos romeiros. “Foi interessante porque Padre Murilo era uma pessoa que para fazer verdadeira amizade custava, tinha muita reserva. Ele tinha muita razão disso. Observava. Uma vez que assumia então era pra vida toda!”, confessa com admiração.

Os dois primeiros anos foram relativamente difíceis. Mas com o passar do tempo irmã Annette conseguiu desenvolver o português e as irmãs começaram a acolher os romeiros, cantar com eles e compor os benditos. Apesar de ser belga e carregar um forte sotaque francês, irmã Annette teve êxito na empreitada. Para a cônega o bendito é um diálogo montado a partir das palavras do romeiro.

“‘Nossa senhora me chama’, por exemplo, é do romeiro, ninguém se lembra que é da Irmã Annette e Irmã Teresa e no fundo eu acho bom

porque eu fazia – agora faço menos – com palavras dos romeiros”.

Para Annette, as palavras do romeiro são uma ferramenta indispensável. Elas são utilizadas especialmente nas reuniões dos romeiros – ideia que teve a partir das confissões comunitárias – que acontece às três horas, no Círculo Operário São José. “O microfone fica na mão dos romeiros. O microfone é uma arma muito poderosa! Nele, sua voz aumenta 100 vezes e o povo tem que se calar”, explica. Irmã Annette conta que o microfone é uma forma de entregar o protagonismo da romaria na mão dos protagonistas.

“Um romeiro chega e diz: ‘Irmã, vim aqui dar meu testemunho. Há um ano meu irmão foi assassinado e a policia não prendeu o criminoso. Eu conhecia quem tinha matado. Eu tomei a decisão de matar, me vingar’ – Para o nordestino se vingar é uma honra, explica – “Então meio dia eu tava no meio do mato, não tinha ninguém, só eu com uma faca. Ele não tinha me visto, eu tava me preparando para me jogar em cima dele, quando eu ouvi o bendito ‘Quem matou não mate mais’ e ‘No exemplo de Maria’. E eu entendi que não podia me vingar assim como Maria não se vingou, então eu fugi e prometi a Nosso Senhor de não me vingar. Um romeiro falar isso pra outro romeiro é melhor do que qualquer homilia, do que qualquer padre, qualquer freira. Isso entra no coração do romeiro. O bendito é uma pedagogia extraordinária, tem que ser repetitivo, porque eles guardam isso”.

Os anos de experiência ensinaram que o nordestino não diferencia o sagrado do profano. “Essa distinção é coisa de intelectual, até de europeu, de americano”, afirma. O “se deus quiser” tão comum ao sertanejo ainda impressiona a belga acostumada às expressões de fé conservadoras do continente europeu. Impregnado pelo sagrado, o nordestino mantém uma relação de vida e morte com o céu. É da vitalidade da fé sertaneja que nasce o poeta e suas expressões literárias carregadas de visualidade.

Annette sempre se preocupou com a relação que estabeleceria com o povo. A forma como poderia interpretar o que o povo diria a partir da sua perspectiva europeia a amedrontava. Seu principais objetivos eram acolher os romeiros, respeitar a cultura e as expressões nordestinas, participar de um diálogo sincero e recíproco. Hoje, 43 anos após fazer morada no Juazeiro, Annette sente que sua formação lhe permitiu alcançar esses objetivos.

“É por isso que os nossos irmãos negros fazem uma bonita mistura, colocam o Santo

católico na frente e os orixás vão lá e dão nome a um santo europeu o nome de orixá. Foi muito inteligente. Conseguiram salvar a sua cultura, sua religiosidade”.

Os métodos por trás do trabalho

Para me falar sobre como tem vivido nos dias de hoje, irmã Annette me levou até o seu quarto. Nas paredes, inúmeras fotografias. Entre elas estão a de Ana Teresa, companheira de jornada que faleceu em 2013, de familiares, registros de expressões de fé nas romarias de Juazeiro e viagens que fez pelo mundo nos seis anos em que assumiu o cargo de Assistente Geral da Congregação de Santo Agostinho. No canto direito do quarto, o computador divide o espaço da escrivaninha com diversos livros e cadernos.

Mesmo agora, com a carga horária reduzida em razão da idade, irmã Annette continua a estudar o Padre Cícero. Pesquisadora devota, analisa os cadernos pessoais do Padim e suas reflexões sobre questões cotidianas e afetivas. Para isso conta com cópias e digitalizações da caligrafia rebuscada do homem que foi um

sinal da presença de Deus no meio do povo nordestino. Aos risos conta que a dedicação é tanta que vez ou outra enfrenta noites insones causadas pelas produções intelectuais noturnas.

Em seu último livro publicado, “Padre Cícero – Santo dos Pobres, Santo da Igreja”, irmã Annette lança mão de uma das mais célebres reflexões do pequeno-grande Charles Chaplin: o tempo é o melhor autor. Ainda longe de encontrar o final perfeito para a belga de vitalidade vibrante, o tempo tem se dedicado a tecer com esmero os fios da história que atravessam irmã Annette e por ela são atravessados. Três ligações telefônicas e uma tarde em sua companhia foram suficientes para me tornar um deles. Iniciei essa entrevista esperando conversar com a cônega de Santo Agostinho que largou a estabilidade do cargo de professora universitária na Bélgica para acolher os romeiros na região do Cariri e finalizo com a admiração de quem sentou em um dos tantos barcos que navegaram pelas profundezas dos olhos azuis da metade dos gêmeos Dumoulin que desbravou o mundo em sinal devoção.

Memórias Kariri

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Babinski: amor, pincéis e guerras

Texto: Aline Fiuza

Maciej Antoni Babinski, 88 anos, é um artista dos mais consagrados do país. Ele, como tantos outros poloneses, fugiu do terror da Segunda Guerra Mundial. A primeira parada foi o Canadá, onde encontrou-se com as artes plásticas. De lá, chegou ao Brasil, em 1953, onde teve uma trajetória singular. Professor do Instituto de Artes da Universidade de Brasília, pediu demissão pressionado pela Ditadura Militar. Andou por São Paulo e Minas Gerais e, com a anistia, em 1979, foi readmitido pela universidade. Hoje mora em Várzea Alegre com seus dois amores: as artes e a sua mulher. Confira a trajetória desse importante professor e artista plástico do país.

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Foto: Carlene Cavalcante Julho 2019 45
O artista polonês construiu museu de arte no Cariri
Memórias Kariri

Babinski teve uma infância normal até seus nove anos, quando conheceu as maldades do mundo na Segunda Guerra Mundial e teve que abandonar seu país natal, a Polônia. Mas, apesar das inúmeras dificuldades enfrentadas durante sua vida, Babinski encontrou um refúgio: a arte. Babinski iniciou os estudos na área e desenvolveu seus talentos de pintor, gravador, ilustrador e desenhista.

Assim, tornou-se um artista completo e de um talento ímpar. Posteriormente, ainda encontrou outra paixão, a de lecionar. Foi dessa forma que Babinski transmitiu seus conhecimentos e suas experiências, contribuindo com a formação de novos artistas. O seu trabalho foi reconhecido mundialmente e a sua história de vida é inspiração para quem carrega o sonho de ser artista no coração.

Fugindo da guerra, Babinski e sua família instalaram-se inicialmente no Canadá, onde iniciou seus estudos de arte. Teve aulas de aquarela com o padre Raphael Williams O.S.B., que o introduziu na técnica da pintura ao ar

contribuiu para sua carreira. “Não tinha nada especial, não tinha talento especial, não tinha nada. Mas tinha uma curiosidade, tinha boas exposições. Eu via tudo, eu procurei conhecer artistas, e quando meus estudos acabaram, virei artista rapidinho. Participei da vida canadense de artista, expus em exposições coletivas, mas eu não quis ficar no Canadá. Em resumo foi isso, foram cinco anos que eu fiquei no Canadá, de chegar pobrezinho com o meu pai e todo mundo na grande dificuldade no pós guerra e lutei para me tornar um artista lá”, lembra.

Seus primeiros trabalhos foram desenhos com carvão, gravuras e aquarelas. Quando tentou pintar à óleo teve uma alergia repentina, o que o fez passar um período sem trabalhar com o material. Ele conta que foi assim que percebeu que os primeiros fracassos são bons, na realidade, porque deve-se fracassar sempre para aprender a continuar.

Sobre sua carreira ele diz que “foi uma coisa gradual, nada de habilidade espetacular. O meu convívio com artistas me botou a par de

Eu morava sozinho em Brasília, aí quando acabavam as aulas eu ia lanchar num lugar e a Lídia trabalhava lá. Foi assim que nos conhecemos. Eu já estava me aposentando e casamos no civil lá em Brasília. Foi num apartamento daqueles só com sala e quarto, a Lídia, jovenzinha, toda tímida, que decidimos morar em Várzea Alegre, onde a família da Lídia morava

livre. Posteriormente, estudou pintura na McGill University. Além disso, teve aulas de gravura e fez cursos de desenho e pintura com Goodrich Roberts, na Art Association of Montreal.

No ateliê de Roberts, pintava paisagens, interiores e naturezas-mortas. Essa época de estudos foi difícil, já que ele e sua família tinham acabado de se mudar para um novo país e enfrentava o desemprego. Para manterse na universidade, ele passou a morar na Associação Cristã de Moços (ACM), o lugar mais barato para se instalar.

Para Babinski encontrar-se como artista não foi um caminho simples. Ele conta que tinha uma tendência à arte que ignorava, mas que seu tio enxergou esse talento e estimulava-o, levando-o para ver exposição em museus.

Esse apoio junto com o fato de deixar transparecer sua vontade e interesse pela arte

toda a vida das possibilidades de ser artista, de uma maneira muito bonita. Eu conheci artistas importantes no Canadá, verdadeiros artistas e foi isso que me fez. Não era nem a escola. Um professor me deu os primeiros passos, depois eu fui sozinho. Não tem milagre e você não aprende a ser artista na escola, em outras palavras”.

Além disso, sua família foi essencial durante seu processo de descoberta. Seus pais sempre lhe apoiaram: “Meu pai me apoiou até morrer. Ele me apoiou e de longe me admirou. Ele me ajudou sempre com a sua aprovação e uma tácita admiração. Eu tenho um irmão que é um fiel reprodutor do sistema, tá lá no Canadá com os quatro filhos, tá tudo certo né? Mas o meu pai tinha na formação dele alguma coisa que permitiu a ele entender o que era ter um artista na família. Porque sou o único, realmente eu não sei porquê, é uma família enorme e eu

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BABINSKI
Memórias Kariri Babinski e Lídia, seu amor de toda a vida: “para uma pessoa viver 27 anos sem problemas, é porque deu muito certo” Foto: Carlene Cavalcante
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Foto: Verônica Leite

Babinski, um dos mais conceituados pintores do Brasil, reflete em sua obra as paisagens líricas, as figuras deformadas e a preocupação social

sou o único artista. Então se você não tiver aprovação do pai, você acaba achando outro pai ou pior ainda”.

Criando o mercado

Sua primeira exposição foi ainda em Montreal, no seu quarto, que tinha o mínimo: uma cama, uma geladeira dos anos 30, um fogão e um banheiro no corredor. Ele colocou um pano feito com sacaria bruta na parede e expôs os seus trabalhos. Babinski conta com orgulho que dois críticos foram ver sua exposição, e que um texto escrito por um deles até hoje é definitivo para ele. “No texto, ele antevia, pela minha exposição, que eu muito mais tarde, viria a me desenvolver como artista mais pleno. Isso me ajudou muito e não precisei de galeria, eu vendia o trabalho”. Ademais, ele relembra que naquela época, as exposições eram coletivas. Algumas eram oficiais, por exemplo no museu de Montreal, uma das quais ele participou. “A gente alugava um espaço, em alguma loja desocupada e era muito bonito. Não tinha mercado, então a gente tinha que se organizar puramente para mostrar nosso trabalho, seja como for. E um amigo meu

por outros empregos, até descobrir sua outra vocação, a de lecionar. “Trabalhei no Ginásio Vocacional, que aí eu aprendi a ser professor. A escola era de primeira linha, maravilhosa e aquilo mostrou na minha cabeça o meu lugar”.

Babinski também trabalhou no Instituto Central de Artes da Universidade de Brasília - ICA/ UnB. Depois de um tempo, houve uma grande demissão coletiva, em que 178 professores pediram exoneração de uma só vez. Eles tinham a intenção de pressionar o governo - era tempo da Ditadura Militar - para não interferir no processo de trabalho do curso. “Foi meio polêmico, eu me demiti e mantive a minha demissão. Alguns não, porque nós fomos chamados um por um pelo reitor, que perguntou se a gente queria reconsiderar a nossa demissão”.

Como ele morava no campus, um mês depois de dizer que não queria reconsiderar seu pedido de demissão, recebeu um aviso solicitando o apartamento funcional. Resolveu, então, mudar-se para São Paulo, onde conheceu novos amigos artistas.

Morou durante doze anos em São Paulo, onde trabalhou no ensino até se demitir da

A paixão que Babinski carrega em seu coração pela arte e por sua esposa é encantadora. Um homem de uma história de vida difícil, cheia de complicações, mas que nunca desistiu da sua felicidade e de lutar pelo que almejava

também fez isso, me lembro que ajudei a colocar a exposição dele na parede em uma lojinha que ele alugou. Então depois ele virou um artista muito importante no Canadá. Os comércios eram assim dureza, não tem milagre, moleza. Mas foi muito importante para mim”.

Próxima parada: Brasil

Já com uma carreira iniciada, Babinski decidiu deixar o Canadá e ir para um lugar mais ameno tanto no clima quanto na atmosfera social e comportamental. Com ajuda de amigos do seu pai, mudou-se, em 1953, para o Brasil, instalandose no Rio de Janeiro. Era uma nova realidade para o artista, já que só conhecia o país através de fotografias e de revistas do governo Vargas de propaganda sobre o Brasil moderno. Ele conta que não teve privilégios, mas teve a vantagem de saber falar e escrever outras línguas, como inglês, polonês e francês. Seu primeiro emprego foi em uma fábrica na linha de montagem e triagem, e, posteriormente, passou

escola Ginásio Vocacional Oswaldo Aranha no Brooklin. Depois disso, passou a fazer e vender ilustrações, mas recebia muito pouco. Entretanto, encontrou uma galeria que comprava seus trabalhos e, assim, viveu durante alguns anos só vendendo para essa galeria.

Amor e Várzea Alegre

Nova reviravolta em sua vida. Decidiu mudar-se para Minas Gerais, com esperança de alcançar melhores condições de vida. Lá passou a dar aula na Universidade Federal de Uberlândia, até ser reintegrado à Universidade de Brasília, com a Lei da Anistia, onde trabalhou até se aposentar. Foi nessa segunda passagem pelo Distrito Federal que Babinski descobriu o seu amor, Lídia, e decidiu mudar-se para Várzea Alegre, interior do Ceará.

“Eu morava sozinho em Brasília, aí quando acabavam as aulas eu ia lanchar num lugar e a Lídia trabalhava lá. Foi assim que nos conhecemos. Eu já estava me aposentando e casamos no

Foto: Carlene Cavalcante Foto: Carlene Cavalcante Foto: Carlene Cavalcante Foto: Thailyta Feitosa 48
Memórias Kariri
BABINSKI
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Eu me demiti da UNB e mantive a minha demissão. Alguns não, porque nós fomos chamados um por um pelo reitor, que perguntou se a gente queria reconsiderar a nossa demissão

civil lá em Brasília. Foi num apartamento daqueles só com sala e quarto, a Lídia, jovenzinha, toda tímida, que decidimos morar em Várzea Alegre, onde a família da Lídia morava. Aqui em Várzea Alegre, Padre Mota nos casou na Igreja”, relembra o artista. Ele conta que sabia que o Ceará não ofereceria melhores condições de mercado do que Brasília, já que o comércio da arte é muito pequeno na região. Mas, não teve dúvidas da mudança, por conta do seu fiel amor à Lídia.

Ele relata que não teve nenhuma dificuldade para se adaptar à vida no sertão. Reconstruiu a sua vida, cresceu e se integrou na vida da região com ajuda absolutamente indispensável da sua esposa. Hoje, ele praticamente não tem contato com a família, que ainda mora no Canadá, mas ganhou uma família nova em Várzea Alegre. Apesar das culturas serem diferentes, o respeito prevalece e eles mantêm uma boa relação. Ele conta que nunca tiveram nenhum problema em relação a isso - “e para uma pessoa viver 27 anos sem problemas, é porque deu muito certo”. O artista diz que adora a vida que leva hoje e que deseja ficar na sua localidade até seus últimos dias.

Hoje, Babinski se sustenta da aposentadoria que recebe da Universidade de Brasília, já que não vende mais a sua arte para o comércio, pois entende que não receberá boas ofertas pelos seus trabalhos. Assim, só vende para amigos próximos, pelo valor sentimental. Babinski se prepara para um final feliz e diz que não podia ser melhor do que está: “minha saúde vai piorando, a minha capacidade de trabalhar está diminuindo, mas ainda consigo trabalhar. No meu último surto de trabalho, eu fiz em três meses 70 aquarelas, achei um jeito de trabalhar rapidamente. Mas hoje eu já não sei como consegui fazer isso. Muita energia, mas a energia acaba e isso não tem jeito. Então não tem tristeza nisso, é

absolutamente aceitável. Se você não aceita, você morre antes da hora”.

A paixão que Babinski carrega em seu coração pela arte e por sua esposa é encantadora. Um homem de uma história de vida difícil, cheia de complicações, mas que nunca desistiu da sua felicidade e de lutar pelo que almejava. E que encontrou um local para descansar depois de tanto fazer pela arte e pelos artistas. Babinski é talento, inspiração e persistência. Um encanto de pessoa e artista, e, por isso, merece o reconhecimento mundial e de todas gerações. Uma memória caririense guardada no coração de Várzea Alegre (Texto baseado em uma entrevista realizada em junho de 2018).

Uma visada crítica

A experiência de viagem define os contornos da produção de Babinski, e a combinação de tradições e modelos aprendidos ao longo dos sucessivos deslocamentos que realiza confere feições particulares a sua obra. Os períodos inglês e canadense se caracterizam pela iniciação em diferentes técnicas (aquarela, pintura e gravura) e pelo contato com a arte figurativa e com as pinturas “automáticas” do grupo abstrato reunido em torno de Paul-Émile Borduas. O Brasil da década de 1950, por sua vez, possibilita o encontro com as novas figurações na pintura e com a produção gráfica de Darel, Augusto Rodrigues e Oswaldo Goeldi. A inspiração retirada do universo de Goeldi é perceptível no Álbum de Gravuras de Babinski, publicado em 1967, repleto de elementos oníricos, figuras deformadas, por vezes,

grotescas. Aí também é possível notar marcas da obra de Alfred Kubin, referência para o próprio Goeldi. Se nas gravuras as incisões precisas e a profusão de traços colocam-se a serviço de composições fantásticas e alegóricas - e de temáticas de conteúdo social, Êxodo, 1967, por exemplo -, nas paisagens (aquarelas e pinturas) observase o gesto solto a definir planos superpostos, construídos com base em ampla gama cromática. A liberdade evidente da mão combina-se ao cuidado, quase geométrico, com a composição: “Eu creio que a minha paisagem toda é re-estruturada sempre em relação à horizontal e à vertical”, diz ele.

As diversas viagens realizadas pelo Brasil, por sua vez, incidem sobre o repertório do artista. Assim, as paisagens luminosas de Araguari e as panorâmicas do Triângulo Mineiro assumem o primeiro plano nos trabalhos

das décadas de 1970 e 1980. As figuras humanas, jamais abandonadas, reaparecem com mais força nos anos subsequentes, em telas marcadas pela explosão de cores vivas, sempre contrastadas como Iluminados ao Vento, 2000. A localização de alguns eixos no interior da ampla produção de Babinski não deve conduzir ao estabelecimento ilusório de “fases” ou “estilos” claramente demarcados. Ao contrário, a cada novo pouso o viajante se beneficia do que vê e aprende, mas sem deixar de lado o que carrega na bagagem. As figuras deformadas (O Filho, 2003), o acento social (Chacina, 1993) e o paisagismo de tom lírico (Paisagem Crepuscular - Sítio Exu, 2003) se fazem presentes em todas as viagens. (Texto da Enciclopédia Itaú Cultural)

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Memórias Kariri BABINSKI
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Foto: Verônica Leite

os muitos sentidos de um ser encantado

O artista caririense conta as muitas e diferentes fases da sua trajetória

Texto: Bibiana Belisário

Fotos: Jayne Machado

Na sombra de um juazeiro, Francisco Renato Sousa Dantas, 70 anos, se refez em vários meninos curiosos para desvendar seus encontros. Graduado em Educação Física pela Universidade Federal do Pernambuco (UFPE), construiu um cenário de sensibilidades, transpassando a realidade do educador. Encarou seus dons artísticos na corda bamba que é “não saber o que vem depois da curva”, mas sempre consciente de que a maior virtude da vida é a possibilidade de transformar o lugar que escolheu para crescer. Sempre trabalhou os três turnos - manhã, tarde e noite “Comecei fazendo teatro, na escola, especificamente, mas fui trabalhar muito cedo, então, quem é pobre tem que começar cedo, né”. Renato Dantas fala nessa entrevista de teatro, cinema, esporte, religião e seu amor por Juazeiro do Norte. Confira.

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Memórias Kariri
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Onde nasce a história de Renato de Dantas?

Eu gosto de começar dizendo da minha origem, certo? Eu sou filho de romeiros. Meu pai é de Alagoas e minha mãe da Paraíba. Meu pai veio para cá por conta de problemas religiosos, minha avó queria batizá-lo com o nome de Cícero e era proibido batizar, à época, de 1913, com o nome de padre Cícero. Então, era uma homenagem ao padre Cícero. Todos vieram, minha avó trouxe a família, parece que no Brasil, os homens são os machistas, mas as matriarcas são as mulheres, eu acho isso muito interessante. Ela que disse: “eu vou pro Juazeiro para batizar o meu filho no Juazeiro” e resolveram ficar. Chegaram aqui em 1913, toda a família. Veio uma filha dela que era irmã de meu pai que tinha, à época, quinze anos, era letrada, então ela teve uma compreensão de Juazeiro e me passava muito isso, gostava de transmitir a memória da família e do que ela viu e ouviu no Juazeiro. Foi na casa dela que eu resolvi compreender onde eu vivia, certo? Concomitante ao estudo do Juazeiro, eu me interessei por uma arte, eu gosto de todo tipo de arte, mas especificamente, o teatro foi o que mais me aproximou.

A arte de fazer teatro, veio de onde?

Estudei na Escola Normal Rural de Juazeiro, e hoje é uma referência, ainda hoje se fala na escola com saudosismo e com razão. Era uma grande escola na época. E lá, a gente aprendia a conviver no palco, a conviver com a plateia. Tão importante quanto fazer o espetáculo é ter plateia, né. E a gente aprendia desde muito cedo, todas as sextas-feiras, tinha uma uma junção de alunos e uma programação vasta. Com música, com teatro, com recitação, enfim, tudo aquilo que uma escola possibilita, a arte possibilita. E a escola normal trazia isso no seu bojo e foi lá que eu aprendi a brincar com teatro. Era uma brincadeira, à época, e me transformei. Fiz meu primeiro espetáculo em 1958.

Com quantos anos estreou no palco?

Nove anos (risos). Eu vou contar essa história, é como se dissesse assim “ó filho da mãe, tu tem que fazer teatro”. A diretora chegou aleatoriamente e distribuiu os papéis, o nome do espetáculo era Os Lápis, lápis verde, amarelo, branco, todo tipo, todas as cores dos lápis,

né. Eu ganhei o lápis verde e lembro que o meu texto era falando sobre as matas do Brasil, uma referência à bandeira brasileira. Eu sempre tive uma dificuldade muito grande de decorar e lembro que no dia, no primeiro dia de ensaio, eu me escondi de trás da porta com o texto e “tátátátá” pra decorar. Quando nós fomos fazer o ensaio, eu havia decorado, recitei o lápis verde para dona Maria Menezes, que era diretora, em 1958. Tinha uma professora para orientar você na disciplina de arte, aí ela disse assim: “você não vai ser mais o lápis verde não, agora você vai ser o lápis preto, que é o mais importante” (risos), é como se a minha forma de falar tivesse dito a ela que era melhor tirar do personagem do lápis verde, uma coisa simples, para o preto que era o mais importante, que finalizava o texto. Isso é só para mostrar que é como se dissesse “vai, tu pode estar no caminho certo”.

Seguiu com o teatro?

Continuei fazendo teatro, na escola, especificamente, mas comecei a trabalhar muito cedo, então, quem é pobre tem que começar cedo, né. E eu larguei tudo. Eu trabalhava de manhã, de tarde e de noite, oh trabalhava de manhã e de tarde e estudava à noite. Eu fiz o ginásio, antigamente o nome era ginásio, que hoje é a quinta ao nono ano. Fiz o ginásio na Escola Técnica de Comércio, e lá tinha um professor muito legal que chamava-se Valter Menezes Barbosa, ele era nosso professor mas gostava de teatro, tinha um grupo e eu era curioso, então ia, no domingo à tarde, que era o dia do descanso. Assistia os ensaios e até ganhei uma pontinha num espetáculo “A Cigana me Enganou”, era o carteiro, que era só para entregar o meu papel era só entregar uma carta (risos). Mas aí, eu continuei, quando, em 1972, veio um espetáculo de Fortaleza, chamado “Morro do Ouro”. Esse espetáculo me impressionou sobremaneira e me incentivou a fazer um texto. Eu inventei

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RENATO
Foto: Arquivo Pessoal
Kariri
DANTAS
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Eu volto para o Juazeiro, chegando aqui, entro na roda viva, passei muito tempo sem fazer teatro e recomeço a fazer cinema em 1983

Eu volto para o Juazeiro, chegando aqui, entro na roda viva, passei muito tempo sem fazer teatro e recomeço a fazer cinema em 1983

um texto, formamos o grupo “Construção 10”, com dez artistas rapazes.

Como funcionava o “Construção 10”?

Primeiramente era “Construção 10”, depois criamos um chamado “Construção”, que abrangia, também, as meninas, porque antigamente, não era esse mundo de hoje, as mulheres só ficavam na rua até nove horas, então, normalmente os nossos ensaios eram a noite, ou então no domingo à tarde. Existia uma vigilância da família, com as moças principalmente, e como a gente queria fazer teatro, nós juntávamos todo mundo, porque aí a gente ficou livre para ensaiar, para fazer espetáculo. Fizemos em Barbalha, Crato, à época, né, e em quase todas as escolas de Juazeiro. Nós mesmos construíamos os textos, a gente falava o texto e até cantava também. Foi uma aprendizagem muito boa e fizemos, em 1972, um texto chamado “Êxodos”, de minha autoria. Fazíamos um teatro autoral, e misturamos com músicas. Teve um grupo chamado “Matulão”,

com ênfase para a música. Luis Fidélis é o grande representante do grupo por ser músico, porque eu parti pro teatro e Jefferson pro cinema. Ganhamos festivais, tínhamos músicas autorais, fizemos shows. Um momento muito rico, muito criativo. Fiz teatro com um grupo chamado Grupo Vivencial, de Olinda, que era dirigido por Guilherme Coelho. Tava acontecendo dois grandes momentos em Pernambuco: era o movimento de Ariano Suassuna e o movimento anárquico do Cinema e do Teatro. Os ideólogos desse movimento era Jomard Muniz de Britto, que foi um dos fundadores do tropicalismo junto com Caetano e Gilberto. Guilherme Coelho era nosso diretor. Eles tinham uma afinidade muito grande e nós começamos a fazer um teatro anárquico e um cinema também diferenciado. Foi onde eu tive a experiência maior como ator, vamos dizer assim, com mais conhecimento sobre teatro e cinema. E fiz filme pela primeira vez como ator,

fiz dois filmes com ele, um inclusive ainda existe, que chama-se “Toques”.

Na sua trajetória tiveram outros filmes?

Fiz sim, fiz outros filmes depois. Eu volto para o Juazeiro, chegando aqui, entro na roda viva, passei muito tempo sem fazer teatro e recomeço a fazer cinema em 1983. Eu fui ator e fiz cenografia. Fiz na televisão “O Pagador de Promessas”, a minissérie, eu fui assistente de cenografia e ator, mas não ator importante. Tio Zuca dizia muito, que era uma figuração esperta. Eu explico, figuração é aquela que só vai e figuração esperta é aquela que o diretor diz “olhe, você faz dessa forma aqui” porque a figuração esperta possibilita uma visibilidade melhor ao ator, aos que estão trabalhando. Por exemplo, eu impedia que a figuração invadisse o quadro e os atores não se sobressaíssem, eu era um anteparo, não só eu, mas outras pessoas

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DANTAS
Foto: Arquivo Pessoal Julho 2019 57

também. De cinema, também fiz o figurino de Corisco e Dadá e fiz uma ponta no Guarani.

E sua experiência no filme Corpo Delito?

Quando eu estava de férias no Rio de Janeiro, Jefferson Albuquerque [cineasta cratense] perguntou se eu queria fazer uma ponta no filme Corpo de Delito, que tratava a questão da ditadura. Tinha um médico que observava as pessoas que eram torturadas para não deixar morrer ou coisa parecida. Eu fiz um torturado, era um seminarista, não falava, entrava mudo e saía calado, mas pra mim foi importante, quando eu me sento na cadeira e vem pra mim aquele cabra, Lima Duarte! Ele olhou meu pulso, ensaiando o papel dele, porque a gente não tava filmando, e disse: “oxente rapaz, tá com o pulso acelerado?”, aí eu não respondi, não disse nada, mas cá comigo eu pensei: “porra, se você soubesse que o cabra que vem do Juazeiro, do Ceará, tá aqui sentado contracenando com você, só podia estar a mil né” (risos). Eu conheci aqui no juazeiro em 2011 uma diretora de teatro do Rio de Janeiro que chama-se Lígia, ela é diretora da grande Companhia Brasileira de Novidades. Ela vinha com um espetáculo para cá chamado A Visita do Almirante Negro à Pequena África, era sobre a Revolta da Chibata que tinha ocorrido em 11 ou 12 no Rio de Janeiro, e três atores não iriam vir. Como ela me conheceu antes aqui, perguntou se eu topava fazer, um dos papéis e que eu arranjasse outras pessoas, fizemos. Depois ela me convidou pra se caso fosse fazer no Rio de Janeiro e me chamasse eu iria, e eu claro que quis. Pensei que era brincadeira, né, mas que nada! Nós fizemos, só no Rio de Janeiro, mais de vinte espetáculos. Como nós estamos num momento terrível para a arte no Brasil, o artista tá sendo chamado aproveitador do dinheiro da nação, então nunca mais eu fui, não é nem pelo cachê, porque só a alegria de ir e encontrar com esse pessoal, nós somos 35 pessoas, é demais. Mas eles não estão tendo nem como me pagar a passagem para ir. No Cariri, como seu trabalho artístico se dá?

Meu último trabalho foi lançado oficialmente no Cine Cariri. Eu tenho um grupo chamado “Grupo de Teatro Livremente”, onde eu fiz a direção de Comadre Daiana, Dentro da Noite Escura,

Comédia da Fome, a trilogia Sertaneja, nós fazemos direção coletiva, quando estamos com espetáculo, convidamos as pessoas, tanto atrizes quanto atores de outros grupos, é uma relação muito legal de tá à postos para servir à arte.

Nessa perspectiva de participar de outros grupos foi que fez parceria com Alisson Amâncio para Cajuína?

Cajuína! Ai se eu tivesse esquecido a Cajuína. Estamos a seis anos em cartaz. Alisson me perguntou se eu topava fazer um espetáculo onde a gente misturava dança e teatro e eu disse “contanto que eu não dance”. Ele fez o roteiro e eu fiz os textos de teatro. Alisson dizia: “Renato, na parte do Cariri, bicho, joga umas coisas mais do Juazeiro, mais específicas do Juazeiro” eu fui

A questão da hóstia é forte, mas pra mim, mais forte ainda foi o aparecimento ds estigmas. Imagina você de repente tá deitada e começa a sangrar na cabeça, nas mãos, nos pés, no peito, daí a pouco olha e não vê nada

ver e pensei na comida. De imediato me vem o caldo da caridade lá do mercado e o doce de Madeilton, aí a gente enxerta essas coisas, o texto é aberto, e eu gosto de fazer mesclando as coisas, primeiro porque é gostoso, segundo porque conta a trajetória dessa nação que a gente chama de Cariri, como a questão das três lendas da pedra da batateira, por exemplo.

Acredita que essas lendas caririenses são permanentes?

A coisa não é fixa. Muito mais adiante nós vamos ter uma quarta lenda, uma quinta, uma sexta A terceira, por exemplo, conta a versão dos romeiros, eu ouvi essa história da minha tia,

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Fotos: Arquivo Pessoal

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que no dia que a pedra da batateira arriar vai acabar com o Crato, só com o Crato. Porque a igreja, que ficava no Crato, estava machucando o pensamento romeiro, pois acreditavam no milagre da hóstia. Não tem aquela história da defesa? Vou me defender, então eu me defendo atacando e o ataque era para acabar com o que estava me machucando.

Por que começou a estudar a beata Maria de Araújo?

O padre Antônio Gomes foi um dos maiores pesquisadores que o Cariri já teve, que o Ceará já teve. Ele era o porta-voz maior da igreja, então escrevia aquilo que a igreja queria que escrevesse, porque ele era um representante dela. Na casa de madrinha Isaura, havia um livro “Resposta ao Apostolado do Embuste”. Padre Antônio Gomes escreveu esse livro e fez uma apologia sobre o avô dele, dizendo: “Quando tava acontecendo os milagres no Juazeiro, o meu avô veio à Juazeiro, pra olhar, voltou e disse pra minha avó, não tem nada de milagre aqui, padre Cícero tá enganado”. Aí eu disse, “valha-

me Deus”, madrinha Isaura só me fala bem de Maria de Araújo, só me fala bem do Pe. Cícero, só me fala bem das coisas que aconteceram no Juazeiro, aí me vem um padre e me diz uma coisa dessa. Eu tinha meus doze anos, e decidi que tinha que saber o que era isso, onde é que eu tô. Eu estudei, estudei muito sobre Maria de Araújo. Eu fiz um apanhado de quantas vezes a hóstia foi transformada, ou em sangue ou em pão. Cento e vinte e seis vezes, que eu tenho contado. A questão da hóstia é forte, mas pra mim, mais forte ainda foi o aparecimento das estigmas. Imagina você de repente tá deitada e começa a sangrar na cabeça, nas mãos, nos pés, no peito, daí a pouco olha e não vê nada. Procurei estudar muito essa coisa, sabe? Pra ter uma ideia do que eu sou, qual é minha memória, eu sou produto de quê, tenho certeza, não sou produto do embuste. Não sou. O que aconteceu no Juazeiro, aconteceu. Se é milagre, se não é, depende da religiosidade de cada um, não é nem da religião, olhe que eu

fui claro: RE-LI-GI-O-SI-DA-DE. Que é totalmente diferente de religião. Considera que muita coisa mudou no cenário católico apostólico romano?

Olhe, você pode rir, hoje eu rio disso. Minha avó dizia que muita gente morreu sem receber a extrema unção, que era a última hóstia pra ir pro céu bem bonitinho, ou para passar pelo purgatório por pouco tempo. Aqui no Juazeiro, só recebia a extrema unção se dissesse que não acreditava no milagre e se portasse a medalha do Padre Cícero ou de Maria de Araújo, tinha que tirar. Era uma inquisição. Inquisição. Aconteceu isso amiúde né, então, “você vai pro inferno” ôxe e a gente tem medo de ir pro inferno? A gente tá questionando hoje se existe inferno! Não é verdade? Hoje a gente ri de excomunhão. Outro dia, um cardeal da França foi excomungado, quando eu vi na televisão “o cardeal fulano de tal, foi excomungado pela Santa Sé”, não tem mais sentido, efeito.

Mas afinal, por que escolheu educação física?

(risos) É engraçado. Aprendi a jogar voleibol e, assim, não havia uma visão da importância, só era futebol. Eu sempre verificava o seguinte: havia o grupo que representava as elites, e não éramos nós. Sempre que a gente ia jogar no Crato, apanhava, ia jogar na Barbalha, apanhava, jogar em qualquer canto e apanhava no voleibol. Mas a gente jogava direitinho, só que faltava o conhecimento físico, teórico. Decidi, fui aprender educação física pra mudar esse panorama. Eu estudei nas escolas municipais do Juazeiro, e quando dizia assim “vamos jogar com o Salesiano?”

- nós tremíamos na base, sacou? Classe subalterna e a classe dominante, então tremia na base. Pra eu dizer aos meninos do Segundo Grau que eles eram iguais aos do Salesiano, dentro de um contexto de vida, de ser humano,

A pessoa mais importante, que é o romeiro e a romeira é tratada da forma que tá. Por isso que no espetáculo eu castigo, sabe ? Bato, na questão do romeiro e da romeira

era difícil. A mesma coisa acontecia com o Crato. Maninho, não sei se vocês conhecem, era uma praga pro Juazeiro, toda vida que a gente tava ganhando, aí ele mandava os meninos falarem: “se gritar pega ladrão, não fica um meu irmão”. A coisa da guerra de 1914 que o Crato botou na cabeça de que o povo do Juazeiro roubou. O Juazeiro invadiu, né, e quando se invade, o vencedor tem direito ao vencido, isso é uma questão de guerra, formaram uma guerra.

A inspiração para a educação física veio da recriação do que é imposto?

Oportunidade para todos não é uma questão de “eu sou bom, eu nasci bom, morreu”. Não, não é. Cada um de nós tem capacidade, então a educação física foi justamente pra que eu tivesse uma compreensão de como trabalhar, porque antes de fazer educação física, eu já era professor de Educação Física. Aí achei que eu poderia ser um professor melhor, se eu fizesse o curso específico e tive a oportunidade de ficar em Recife, mas não quis, voltei aqui para a região, e nós fizemos juntos um bom trabalho. Eu, quando falo isso, existia um grupo aqui no Cariri, de professores, que vivia discutindo, inclusive a Faculdade de Educação Física da URCA, que foi pensada em 1980. Não existia nem URCA ainda, em 1980. Quando foi criada a lei da universidade, vinha no bojo da lei a criação de diversas faculdades, entre elas uma Educação física, que funcionaria em Juazeiro, por conta desse trabalho que Ninô e eu fizemos quando começamos a chegar aqui, sabe? Fomos os primeiros a trabalhar. Enfim, a gente achava que o Cariri merecia uma outra vertente nesse aspecto, sabe? De conhecimento em várias outras áreas. A gente sempre teve a História,

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Coleção de oratórios em sua residência Memórias
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sempre teve Ciências dentro da escola com o arcabouço intelectual promovido pela Faculdade de Filosofia e posteriormente, pela Universidade. Mas a educação física não tinha, eram os cursos que você aprendia a botar o aluno pra correr e fazer calistenia. Calistenia, dói só de ouvir né (risos). Calistenia é o método alemão que foi usado na guerra pelos soldados alemães, e se espalhou no mundo inteiro, porque era de uma eficiência. Mente sã e corpo são. A maior, era necessariamente, não tem corpo, na educação física nunca tive braço de professor de educação física. A questão é: o pensar aliado ao fazer, e esse fazer é aí onde vem a grande história. É de acordo com as suas capacidades e não com aquilo que a calistenia diz, você tem que ser assim, assim e assado. Então, nazista, era um programa nazista, e nós, no Cariri, no Brasil inteiro usávamos a calistenia como elemento disciplinador. Não é a toa que a Alemanha com pouca gente fez a miséria que fez na Europa. Não é à toa. Então essa compreensão, eu tive a felicidade de ter bons professores, tem uma que eu faço sempre referência, é uma professora ela era chilena, ela era médica e resolveu ser professora de educação física. Michele Escobar, ela abriu muito a cabeça da gente, saiu do Chile por conta daquelas histórias da expulsão

de Allende do assassinato de Allende, ela veio pra cá e ensinou muita coisa pra gente, de se pensar: professor de educação física não tem que saber fazer, aliás, não tem que ser atleta, ele tem que saber fazer pessoas normais e também, por que não, atletas. Então a educação física ela me prendeu por esse prisma, sabe?

No Cariri, trabalhou em muitas escolas?

Trabalhei muito nas escolas de estado, trabalhei no Salesiano, trabalhei no SESI do Crato, trabalhei no SESC do Juazeiro, aí depois enveredei pela pela direção né, a gestão. Eu fui ser gestor da antiga delegacia de Juazeiro, depois fiz a seleção pra cá, passei, mas os cargos à época e a gente sabia que era questão política, local né. Eu nunca tive, e nem quero ter, varão político mandando na minha vida, dizendo me dando as coisas e em retorno o que é que eu tenho que fazer. Aí, ninguém passou no Brejo Santo, no concurso lá e me chamaram pra ir pra lá e eu fui, passei oito anos e nove meses. Depois vim pra cá e fiz outras besteiras na vida. Mas o grande momento mesmo, que eu gosto é de arte. Assim, besteira que eu digo, muitas outras coisas, sabe? É, sei lá, eu gosto de estar junto, de tudo, de exposições, você tá pintando e se eu puder lhe dar uma força, você tá começando,

eu posso dar uma força eu chamo essas besteiras que pra mim é o mais importante do que qualquer outra coisa. E estudar aqui, nossa região especificamente o Juazeiro, com toda a sua série de coisas, às vezes controversas, mas que na realidade elas são muito claras, é preciso só ter uma atenção na formação. A formação do Juazeiro foi esta aqui, então, tudo o que implica, como já disse pra vocês. Oswald Barroso, ele disse que a única utopia popular do Brasil que deu certo foi Juazeiro. Que sobreviveu. Todas as outras foram destruídas. Canudos, contestados, Caldeirão. Todas elas foram destruídas. E Juazeiro precisou ter uma inteligência pra se imiscuir com os potentados para que eles não destruíssem. Não, tá quietinho lá, tá quietinho lá, mas na realidade a grande história é que ele diz que “A utopia nordestina que deu certo ” não,

que deu certo não, Juazeiro não deu certo, eu não acho, sabe? Eu acho muito crua, muito, não sei, a pessoa mais importante, que é o romeiro e a romeira é tratada da forma que tá. Por isso que no espetáculo eu castigo, sabe? Bato, na questão do romeiro e da romeira. Falei da minha trajetória no teatro, da questão da Educação Física, o que mais? O cinema, e a questão também dessa vivência no Cariri com a cultura né, e a, tá precisando mergulhar nessa cultura para ter um conhecimento melhor. A gente só sabe que é se, aliás, a gente pensa saber quem é se conheceu ou onde vive porque ninguém sabe quem é, a gente morre e não sabe quem é a gente. Mas dentro de um contexto pelo menos dos passos que a gente possa dar, dá com segurança porque conhece o contexto regional, contexto local, enfim, são essas coisas.

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“Ôxe e a gente tem medo de ir pro inferno? A gente tá questionando hoje se existe inferno!”
Memórias Kariri RENATO DANTAS
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“O que aconteceu no Juazeiro, aconteceu. Se é milagre, se não é, depende da religiosidade de cada um”

Dona Edite, mulher pode?

Ela criou e comanda o Coco da Batateira

Dona Edite do Coco tem uma vida rica, diversa e de muitas lutas. Trabalha em várias frentes: agricultura, reza, política e criou o famoso Grupo de Mulheres do Coco da Batateira em 1979, tempo dos anos de chumbo e do Mobral. Ela nasceu no meio da roça – foi colocada nas primeiras horas de vida numa cesta de balaio - e até hoje a traz a agricultura em seu sangue. Cultiva em seu quintal plantas fitoterápicas: “as rezas, remédios, orações, essas coisas veio tudo da minha avó”, conta. Sempre pensou também na comunidade, no outro, e tornou-se militante política. Leia a seguir a história de Dona Edite.

Texto: Lara Alencar
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Memórias Kariri
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Foto: Cauê Henrique
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Do Pernambuco até o bairro Batateira na cidade de Crato, Ceará. Edite Dias de Oliveira Silva, mais conhecida como Dona Edite do Coco, se aprochega com um abraço singelo e o olho apertado de tanto bem querer. Filha de agricultores e nascida em 1940 na cidade de Bom Conselho no estado do Pernambuco, ela veio para a região do Cariri depois da seca de 1969. “Meu irmão morava aqui, morava dois irmão e um foi lá onde a gente morava, fazer uma visita la em nois. Ele achou tudo ruim demais, aqui num era muito bom, mas lá ainda era pior. Aí ele convidou pra gente vir pra cá, que tinha umas casinhas para gente ficar e eu vim, nessa época eu tinha quatro filhos. Aí saimo no pau de arara pra chegar aqui no Crato”.

Carregando o marido e seus quatro filhos, chegou ao Crato sem eira nem beira. Depois de se instalar na casa onde vive há 22 anos no bairro Batateira, a família tendeu a crescer. Hoje, ela conta com seis filhos vivos dos dez que

“na minha sala nós era duas monitoras com duas salas de aula num salão só, só dividia com as cadeiras. Aí uma delas sabia dançar coco e eu tinha duas alunas que sabiam também”. Uma das alunas perguntou “porque dona Edite, nós num vamo fazer uma dança de coco?”

teve, nove netos e sete bisnetos. Todos criados dentro da casa que a família mesmo construiu.

Agricultura

Dona Edite, nasceu no mês de agosto, que lá no Pernambuco é o mês da fava. “Minha

mãe tava apaiando fava, aí sentiu as dor pra mim nascer. Aí se locou lá num canto, ficou lá esperando pra ver se melhorava a dor, se melhorava a dor e a dor foi aumentando e menos um pouco eu fiz foi nascer”. A agricultura tá no sangue e no berço de uma cesta de balaio que ela foi colocada nas primeiras horas de vida. Edite traz na sua história a vida de agricultora, de pensar no outro e na terra.

Desde os sete anos, as crianças começavam a trabalhar. Vai começando de pouquinho. Semeiam uns carocinhos de feijão, plantam milho, tiram uns pés de mato e vão levando umas “cabada” de enxada pra aprender a fazer as coisas direito.

“A vida do agricultor é boa, mas também tem hora que é cruel, quando da preguiça os pais metem a peia: ‘vamo trabalhar até crescer, pra ser homem, pra ser corajoso’ e eu agradeço é muito que se não hoje eu era uma molenga veia,

num tinha criado tanto filho, criado os neto e os bisneto, porque é tudo comigo”.

Hoje em dia, a prática da agricultura ainda é presente na vida dela. As plantas fitoterápicas são cultivadas até hoje, entre as várias, podem ser encontradas no quintal de casa: capim santo, colônia, erva cidreira, manjericão, malva do reino, anador, sete dor e boldo do pará, pois “na hora da precisão eu não vou ir comprar, eu vou colher pra fazer”.

Reza

Rezar, benzer e orar vem como lembrança de aprendizado e amor, “as rezas, remédio, oração essas coisas veio tudo da minha avó”. A fala se faz como sinônimo de agradecimento às mulheres que passaram e passam em sua vida, formando o seu saber de hoje. Os jovens também estão presentes no seu caminhar, ela

66 Memórias Kariri DONA EDITE
Foto: Jaque Rodrigues
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Mestra Edite, durante o encontro de finalização do semestre do seu grupo de pesquisa, coordenado pela Professora Renata Felinto dos Santos

conta que vai colhendo o que eles tem pra dar, e vai fazendo o dela.

A necessidade fez com que as rezas fossem aprendidas, pois Dona Edite conta que logo quando seu primeiro filho nasceu, ele começou a pegar quebranto e olhado. “Ficava doentinho e na época a gente era muito de cuidar das doenças com reza, que os médicos era distante e era difícil e cadê dinheiro pra comprar remédio disso tudo, né?”.

Vó Censa, como era chamada, ensinou as orações e chás caseiros, “a minha avó tanto sabia rezar pra curar a doença, como também fazia chá para ajudar. Aí essas coisas que eu aprendi, foi com ela”. Edite ia na casa da avó para anotar os ensinos, anotava cada oração

vamo trabalhar até crescer, pra ser homem, pra ser corajoso e eu agradeço é muito que senão hoje eu era uma molenga veia, num tinha criado tanto filho, criado os neto e os bisneto, porque é tudo comigo

para família. A tradição continua.

Política

Filiada ao Partido Comunista Do Brasil (PCdoB), Dona Edite afirma que participa dos movimentos sociais e políticos desde que chegou aqui no Crato. O enfoque maior de suas reivindicações é no bairro Gisélia Pinheiro (antigo Batateira), “aqui tinha muita carência, era tanta carência muito mais do que a minha que eu ia ajudar a socorrer aqueles mais coitados. Juntava uma turma e a gente ia socorrer aqueles mais coitados”. Os mutirões eram bastante requisitados, ela conta da casa que ajudou a construir só com doações da comunidade para uma senhora que não tinha apoio financeiro de nenhum órgão ou instituição.

A conta das casas feitas na época chegaram a sete, “parece mentira, mas não é”.

Os movimentos nas quais ela se envolveu foram vários. Quando não tinha o grupo de coco, existia a Associação das Mulheres do Crato, onde as reuniões aconteciam na casa das integrantes do grupo. Além deste, também existia o Núcleo de Mulheres da Batateira, que reivindicavam as necessidades públicas básicas, como saneamento básico, água e energia. Abaixo-assinados e manifestações eram recursos usados pela comunidade para irem atrás dos setores responsáveis.

Dona Edite afirma que a política é importante para que as pessoas elejam um representante que possa resolver o problema de todos, não os assuntos de interesse próprio “uma pessoa boa, competente e de trabalho”. Sobre a atual conjuntura, diz está insatisfeita.

Côco

O Grupo de Mulheres do Coco da Batateira surgiu na sala de aula do Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), em 1979. A criação do grupo se deu a partir da necessidade de montar uma apresentação artística na Semana do Folclore na cidade do Crato. Dona Edite conta como as pessoas se organizaram para fazer essa apresentação “na minha sala nós era duas monitoras com duas salas de aula num salão só, só dividia com as cadeiras. Aí uma delas sabia dançar coco e eu tinha duas alunas que sabiam também”. Uma das alunas perguntou “porque dona Edite, nós num vamo fazer uma dança de coco?”. Ela conta que já sabia o que era dança de coco, mas que nem gostava, tinha era abuso, achava uma coisa muito cafona de velho, na época. Até que a mesma aluna que a chamou pra fazer a dança, disse que sabia cantar rodas de coco e ela se deu por vencida. Assim foi, fizeram “essas rodas de coco”. Começaram três dias antes, ensaiaram com os alunos e levaram para a Praça da Sé. “A apresentação foi linda”, afirma ela.

O programa do Mobral foi desativado, mas mesmo assim o grupo continuou brincando na comunidade. As pessoas da Batateira iam chegando na casa dela pra dançar o coco e ela começou a criar gosto, até amar. Eloi Teles de Morais, conhecido como Seu Eloi, perguntou porque ela não fazia um grupo misto, com homens

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DONA EDITE
Memórias Kariri
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Fotos: Jaque Rodrigues

e mulheres. Entretanto, a ideia não foi bem aceita pelos maridos das brincantes. As mulheres do grupo não desanimaram, decidiram continuar o grupo do jeito que fosse. Seu Eloi então fez uma nova sugestão, disse que elas vestirem roupas de homens nas mulheres e dividisse a cena entre damas e cavalheiros, “todas acharam uma boa ideia, nossas primeiras roupas foram doadas”. Atualmente, o grupo é composto por 17 mulheres, “quando vai saindo uma, só saí quando num pode mais dançar, já tem uma que tá com uns 84 anos e ainda tá dançando. Só remendando, mas ainda tá lá como um bebê, a gente leva, que é a primeira que aprendeu a dançar da escola. Tem duas que foi das primeira da escola. Tem a Socorro, mas a Socorro ainda ta nova, ta com uns 60 e poucos anos. Nunca saiu uma porque quer sair não. Já faleceram umas 4 ou foi 5, aí a gente substitui com outra”. No início, passaram por situações delicadas, foram humilhadas nas apresentações por não aceitação das pessoas da comunidade, que as recebiam com murmurinhos e chegaram até a jogar “coisas” nelas. Já hoje, o grupo é bastante respeitado, convidado pra dançar em lugares diversos e com público certo. O apoio da família nesse processo foi importante, principalmente para continuidade da tradição, que fez com que algumas filhas e netas continuem dançando. O grupo de Coco Mirim hoje conta com oito meninas, criado em 2003, já foi misto, contudo atualmente é formado apenas por meninas.

Pergunto o que o Côco significa para ela “mulher, pra mim significa muita coisa eu acho muito bom, eu me sinto feliz. A gente acha que tem muita gente feliz aqueles que aplaude, aqueles que rir e é uma terapia pra gente, quando a gente brinca coco é o mermo da gente ter vindo numa sala fazer a terapia. A gente vem bem maneiro, desestimula o estresse, desestimula os ossos, os nervos. E é muito bom, eu acho ele uma maravilha”.

O grupo desenvolve oficinas de meizinha, fuxico e de fazer boneca de pano na comunidade, onde gera um ritmo de colaboração entre as moradoras. As músicas entoadas em suas danças, são feitas a partir das vivências delas, como também as roupas, que recebe influência da agricultura, onde muitas passaram. No meio de tanta informação,

quando juntamos agricultura, política e reza dona Edite resume “tudo é cultura”.

E mulher, pode? Dona Edite em meio à risadas e com toda segurança diz “pode, minha filha. O lugar de mulher é onde ela quer, onde a mulher quiser se ela disser que o meu lugar é esse ela fica naquele lugar, ela só não pode ser bera de fogo pra não sair. Mas, o lugar da mulher é onde ela quer”.

Edite é conhecida como Mestra Edite do Coco. Hoje ela é reconhecida pela Lei Estadual 13.842, de 27 de novembro de 2006, o registro dos “Tesouros Vivos da Cultura” no Estado do Ceará. A lei reconhece os saberes e fazeres

dos mestres e mestras da cultura tradicional e popular. Sobre ser mestra, Dona Edite conta que não gostava de ser chamada assim, pois pra ela todo mundo tem o mesmo saber.

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Mas é bom pra gente aprender a viver. Ah bichinho que dá trabalho, é trabalhar com gente.
DONA EDITE
Memórias Kariri

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