Periscópio | Edição 7 | set/2017

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Ano 2 | Nº 7 | Setembro 2017

Raízes

Ancestrais

Intolerância religiosa e racial mostra como a cultura afro-brasileira ainda é alvo de preconceito

sexo

Arte

A primeira vez: relatos e experiências de consumidores de sex shops

Graffiti e pixo: a história que ocupa os muros da cidade 1


Quem faz

Expediente Revista Laboratório da Faculdade de Jornalismo da Universidade Federal de Juiz de Fora, produzido pelos alunos da disciplina de Técnica de Produção em Jornalismo Impresso Reitor Profº Dr. Marcus David Vice-Reitora Profª Drª Girlene Alves da Silva

Alice Xavier

Ariadne Bedim

Bárbara Braga

Bárbara Delgado

Carolina Larcher

Christinny Garibaldi

Ezequiel Florenzano

Isadora Gonçalves

Juliana Dias

Letícia Silva

Pedro Augusto

Sabrina Soares

Diretor da Faculdade de Comunicação Social Prof. Drº Jorge Carlos Felz Ferreira Vice-Diretora Profª. Drª. Marise Pimentel Mendes Coordenador do Curso de Jornalismo Integral Profª Dr. Eduardo Leão Chefe do Departamento de Métodos Aplicados e Técnicas Laboratoriais Profª. Drª. Maria Cristina Brandão de Faria Professoras Orientadoras Profª. Drª. Janaina de Oliveira Nunes Profª. Drª. Marise Baesso Tristão Repórteres Alice Xavier; Ariadne Bedim; Bárbara Braga; Bárbara Delgado; Carolina Larcher; Christinny Garibaldi; Ezequiel Florenzano; Isadora Gonçalves; Juliana Dias; Letícia Silva; Pedro Augusto; Sabrina Soares; Tatiane Carvalho Editoras Carolina Larcher e Juliana Dias Monitoras Leticya Bernadete e Ruth Flores Contato mergulhodiario@gmail.com facebook.com/mergulhodiario (32) 2102-3612 Tatiane Carvalho


Palavras, histórias e o desafio de se fazer jornalismo diferente

S

omos a Periscópio: uma revista feita a 26 mãos, sob os olhares atentos de nossas orientadoras, Janaína Nunes e Marise Baesso, e suas monitoras, Leticya Bernadete e Ruth Flores. Uma revista que procura trazer em suas publicações assuntos tão variados quanto a composição de seu corpo de repórteres. Periscópio vem do grego, periskopein, que significa “ver em volta” O objeto, composto por dois espelhos dispostos paralelamente em um tubo com formato de Z, permitia que aqueles que estivessem dentro de um submarino pudessem enxergar além do seu alcance de visão. Sob essa perspectiva, em junho de 2016, surgiu a nossa revista. Aqui as imagens se formam não por espelhos, mas através das diversas visões de jornalistas que buscam outros ângulos e outras histórias, dentro dos mais diferentes temas. Queremos que você veja além. Longe do que normalmente está em seu convívio. Construir esta revista foi como montar uma colcha de retalhos. Costurar, a cada matéria, os temas escolhidos pelos jornalistas para, no final, ver um mosaico de ideias se formar na nossa frente, ganhando um sentido completo. Cada um com suas cores e identidades próprias, ainda passam a clareza dos acontecimentos que, muitas vezes, não são debatidos. Mulheres grávidas que são demitidas injustamente, a cultura pop oriental

como uma criação de personagens, o setembro amarelo, que coloca o suicídio em pauta, o tabu do consumo de produtos de sex shops, entre outros que abrangem diversas camadas e pensamentos da sociedade. Inegavelmente, o trabalho de pesquisar e ir atrás de informações não é fácil. Criar um texto parte do pressuposto de que saibamos de algo sobre o assunto, mas precisamos ir a fundo. Nem sempre o repórter irá encontrar o que espera, apurar se torna um aprendizado e muda a percepção de ambos os lados, do criador e do leitor. Ao mesmo tempo, ouvir depoimentos e levar a voz dos entrevistados a outro patamar muda uma realidade invisível e traz outras perspectivas de mundo. Algumas semanas deste árduo, porém prazeroso trabalho deram à luz esta nova edição e fecharam um ciclo iniciado no segundo semestre de 2017: o primeiro mergulho da turma na prática do jornalismo impresso. Trabalhar com as palavras é motivo de choro e riso; apreensão e alívio. É um constante dobrar e desdobrar de letras, sentimentos, dados, opiniões contraditórias. Mas chegar ao final desse caminho é gratificante: o trabalho foi cumprido. Esperamos que o leitor veja nessas páginas o reflexo de nossa jornada e se inspire com as histórias contadas através das matérias, assim como nós nos inspiramos. Boa leitura!


Nesta edição

6 Ancestralidade e cultura religiões afro-brasileiras

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Precisamos falar sobre suicídio Pessoas de todas as idades e classes sociais cometem suicídio. Falar sobre isso ainda é um tabu, mas saber como ajudar pode ser um dos primeiros passos para diminuir números alarmantes

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A realidade dos contraceptivos

Relatos de mulheres que sofreram com efeitos colaterais após o uso da pílula

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Paixão por voar Histórias de pilotos e comissários que escolheram o céu para trabalhar

A primeira vez em um sex shop Consumidores abrem o jogo e compartilham experiências

40 Sobre livros, sebos e pessoas


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Coworking Entenda como funciona esse ambiente de trabalho

Incertezas e adaptações

Quase metade das mulheres é demitida depois da licençamaternidade. Nos dois primeiros meses após o retorno ao trabalho, a probabilidade de demissão chega a 10%

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No caminho certo Coréia do Sul ganha cada vez mais espaço no mercado do entretenimento internacional

Garotas no controle

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Além de já serem maioria entre os players, as mulheres também ocupam seu espaço na pesquisa e produção de games

A rua grita: graffiti e pixo nos muros da cidade

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Instagram

Mais um espaço para o fotojornalismo

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ANCESTRALIDADE E CULTURA:

Religiões afro Texto, fotos e design: Ariadne Bedim

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-Brasileiras

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N

os últimos meses, a intolerância religiosa se tornou a ponta do iceberg para a violência, fato comprovado pelos ataques, destruições e perseguições, praticado por traficantes, aos terreiros de umbanda e candomblé, pela região do Rio de Janeiro. O código penal não tipifica o crime de intolerância religiosa, portanto o caso foi registrado como injúria devido apenas ao danos causados. Este é um recente acontecimento de centenas que ocorrem diariamente. Volney J. Berkenbrock, professor do Departamento de Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, que pesquisa religiões afro-brasileiras há mais de 30 anos, explica que as razões para esse tipo de violência engloba um problema de criminalidade, visto que a discriminação religiosa é crime e que o sistema judiciário em nosso país não consegue colocar a criminalidade sob controle, não tendo uma solução direta para o fato. A questão cultural também perpetua e colabora para a violência, pelo simples fato de nossa sociedade ser resultado de uma miscigenação de diversas culturas, e como qualquer mescla, existem diferenças que precisam de diálogo e integração que, muitas vezes, geram um espaço de rejeição de culturas e suas expressões. Outro fato é que o Brasil sempre foi e continua sendo um país marcado pela religião cristã que, por ser monoteísta, tem dificuldade de acolher outra presença religiosa que não seja seguidora do Deus único. A busca por fiéis, que vem sendo praticada por igrejas evangélicas de periferia, denominada de proselitismo, também vem se constituindo como uma bandeira de ataque às religiões afro-brasileiras. Há ainda a questão da ignorância cultural e da discriminação social e racial, tendo em vista que as religiões de tradição afro historicamente agregam camadas desfavorecidas da população. Há muito

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desconhecimento sobre a tradição cultural africana, dessa forma, o que se sabe da África está muito mais ligado a elementos discriminatórios e não a conhecimentos sólidos. O professor pontua que a presença das tradições religiosas no Brasil está ligada diretamente com a história da escravidão. O regime escravocrata trouxe ao país milhares de africanos durante mais de 300 anos e eles, além de carregar consigo sua força de trabalho, trouxeram também toda sua concepção cultural, incluindo sua religiosidade. Dentro desse regime, os africanos não conseguiam dar continuidade às suas tradições. Até que chega o momento que muitos deles, bem como os afrodescendentes, conseguiram a alforria. E através dessa liberdade, as pessoas passaram a cultivar suas tradições religiosas. Por meio desses espaços e possibilidades que se organizam, sobretudo a partir do século XVIII, comunidades religiosas afro-brasileiras começam a se desenvolver. Como foram muitos os povos africanos para cá trazidos, também foram muitas as tradições religiosas que sobreviveram. Volney afirma que dadas as condições que os africanos se reorganizaram no país, temos esta multiplicidade de religiões de matriz africana, sendo as duas organizações que mais se destacam a Umbanda e o Candomblé. O Candomblé é uma religião africana que existe desde os tempos mais remotos no continente, e é por isso que esta religião possui muito mais referências africanas trazendo sua representatividade como resistência negra em seus rituais. Já a Umbanda é uma religião brasileira formada por volta de 1908 através do sincretismo católico e espírita kardecista, necessário em uma época de grande repressão das religiões africanas. Estas duas estão hoje presentes em quase todo o Brasil. Com isso, são sinônimos de resistência e luta por uma ancestralidade que pingava suor, lágrima e sangue.

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Tradição, raízes e acolhimento

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Era um domingo em que se comemorava o aniversário do filho mais velho de uma família candomblecista e, neste dia, o verdadeiro significado de união ecoou pelos sons de tambores, flauta e outros instrumentos musicais tocados ali, despretensiosamente. E eu estava ali para conversar com a Mãe de Santo. Cada frequentador do centro de candomblé (chamado também de barracão) Omariô de Jurema, em Barra Mansa, possui um nome religioso e o dela é Mam’etu Siavanju. Essa mulher de aparência forte e ao mesmo tempo, serena, nasceu em berço umbandista e com 9 dias de vida, foi para dentro de um terreiro de umbanda ser batizada. Atualmente, ela vive para a religião e é seu lugar de conforto. A Mãe de Santo explica que esse papel é um trabalho árduo pois, apesar de ser naturalmente mãe, isso não a coloca diretamente no cargo. “A gente não decide ser mãe de santo, não é uma escolha nossa, é designação. A minha religião é uma religião de escolhidos e não de escolha”. E é preciso aprender a lidar com isso, podendo ter uma dedicação de anos. Mam’etu diz que

a religião tem muitos direitos e deveres, importando e focando apenas no ser humano, sem destinções de gênero. Apesar de toda essa liberdade e beleza da religião, ela conta que, há 42 anos, sofreu com uma violência religiosa, tendo sido apedrejada junto com suas irmãs. Mesmo com todos esses adventos, nunca desistiu daquilo que sempre a moveu. “Em qualquer ambiente, eu sou uma mulher de candomblé. Em qualquer lugar, eu sou Mam’etu Nkisi. Em qualquer lugar, essa pessoa é a que eu sou e se não estiver bom para o outro, a quem eu muito respeito, eu respeitosamente peço a ele que se retire da minha vida”. Com isso, ela acredita que, para combater a intolerância é preciso batalhar contra, principalmente, a ignorância, já que a informação e o conhecimento protegem. Enfatiza, por fim, a importância dos jovens que tem se aproximado da religião. “Desde que o mundo é mundo, a tendência de quem está envelhecendo é deixar herdeiros. Esse lugar dito de Mãe de Santo é um lugar de se deixar um legado e em melhores mãos do que a de vocês, os jovens, não tem”.

Max de Oliveira e Gabriel Freitas também estavam no domingo e puderam contribuir de forma enriquecedora, com uma visão diferente de Mam’etu pois são Ogan dentro do barracão Omariô de Jurema, ou seja, eles tocam o atabaque. Assim como todos os outros, possuem o nome religioso: Tata Hoximoale e Tata Kisanje, respectivamente. Max afirma que a condução de cada um para chegar até a religião em seu barracão é através da família, pois a sua estruturação é baseada no pilar familiar. Ele exemplifica ainda que sua bisavó era rezadeira e que tinha uma avó Mãe de Santo, sendo criado nesse meio. E acrescenta: “Ao contrário do que a grande massa entende por religiões de matriz africana, a nossa busca com o candomblé e com a ancestralidade é se tornar uma pessoa melhor a cada dia. Melhor no amor, na irmandade, melhor como pai, como filho, melhor como amigo”. Gabriel pontua que dentro do candomblé você consegue encontrar e englobar três tipos de pessoas, o negro, o pobre e o homossexual, podendo os três serem uma pessoa só. E ressalta, assim como


a mãe de santo, o fato de a religião ser inclusiva e aberta às diversidades e minorias. Mam’etu, Max e Gabriel fazem parte de uma família candomblecista, que entrou na religião através da ancestralidade e busca honrar os traços de sua etnia. Abordar diferentes realidades dentro da religião é um ponto essencial, no entanto, mesmo sem essas raizes, qualquer pessoa é acolhida quando se identifica com essas religiões. A energia da casa de Larissa Portela, os discos espalhados pelo chão e o sol das 15h entrando pela sala tornou o ambiente mais aconchegante. A estudante iniciou a conversa falando que já produziu um documentário sobre a questão do preconceito na Umbanda e contou sobre como se interessou em participar dos cultos. Ela já havia visitado dois centros kardecistas, mas não se sentia tocada. A primeira experiência que teve no terreiro de umbanda TULAC (Tenda Umbandista Luz, Amor e Caridade), em Juiz de Fora, foi através de uma amiga de estágio. Depois disso, Larissa nunca mais foi

a mesma. “O atabaque tocando, o cheirinho da defumação, o cheiro das ervas, os vários incensos e a energia toda fluindo naquela hora. Não tem como não se envolver pela religião”. A estudante de Jornalismo do Centro de Ensino Superior (CES/JF), tem 22 anos, mora com a mãe no centro da cidade, e esclareceu para os pais desde o início que estava frequentando o terreiro. Apesar da diferença religiosa existente entre eles, o pai é católico e a mãe evangélica, ela procura conversar de forma natural sobre a religião. Larissa define que: “A umbanda é tipo um bração gigante que te abraça, te acolhe e você fica se sentindo amado. Eu senti que melhorei muito e que cresci muito”. A estudante completa que passou a pensar de maneira diferente, pois a religião abre caminho de uma forma que torna as coisas mais fáceis de lidar. Além disso, questiona o fato de alguns aspectos da cultura afro terem suas origens desconhecidas, como por exemplo a música infantil “Marinheiro só”, cantada até pelos Paralamas do Sucesso, utilizada em capoeiras e como ponto no terreiro. Tudo isso reflete na nossa cultura.

“A umbanda é um bração gigante que te abraça, te acolhe e você fica se sentindo amado” Larissa Portela, umbandista e estudante de Jornalismo do CES/JF

Igor Toledo, candomblecista do barracão Omariô de Jurema, pratica com Alice, sua prima, um dos fundamentos da religião: o amor.

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Entrada do Centro de Umbanda Ogum Sete Ondas, que nĂŁo possui fins lucrativos e depende da ajuda dos frequentadores e trabalhadores da casa

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Quadros que fazem referĂŞncia aos OrixĂĄs, no mesmo terreiro 13


Gustavo Muxima ao fundo, com Marcos Languange, seu tio, em uma confraternização de família

Rap e religiões afro-brasileiras Minoria. Resistência. Luta. Essas são características encontradas no rap e em religiões afro-brasileiras. Um caminha lado a lado com o outro. Thiago Elñino, umbandista, MC e educador popular de Volta Redonda, acredita que principalmente o candomblé tem uma carga muito forte de informações quanto à África. E o rap, inserido dentro da cultura hip hop, sempre vai precisar dessas conexões com as raízes negras para cumprir sua função maior, que é o combate às desigualdades. Em seus raps, por exemplo, ele busca retratar sua experiência. Quando Thiago estava vivendo o culto aos orixás, isso acabou transparecendo de forma muito forte e frequente nas letras das músicas que começou a criar. Em um de seus clipes, “Diáspora”, que aborda a busca pela

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raíz e orixás, as imagens mostram os trajes de umbandistas e todo seu ritual. “Faço música como ferramenta de cura, e isso diz respeito à saúde física, mental e espiritual, a ter intimidade com minha identidade retomada através do resgate da minha ancestralidade que projeta um eu mais livre, autônomo e saudável no agora. É onde minha espiritualidade e meu rap se tornam a mesma coisa, pois eu sou um ser espiritualizado que faz rap, é tudo junto o tempo todo”. Gustavo Muxima é candomblecista e faz rap há um ano e seis meses. Muxima é uma palavra do Banto, conjunto de povos da África, que significa “coração” e traduz tudo o que o move. Na própria roda de MC’s, ele já recebeu vários olhares estranhos quando falava que era da religião. Gustavo conta que,

por 3 meses, ficou em casa de preceito, período no candomblé para se manter “limpo” e dedicado aos orixás. Durante esse resguardo, deve-se seguir algumas normas, como: ficar sem banho quente, sem sabonete, sem shampoo e dormir na palha. Ele diz que cresceu como pessoa nesse tempo e aprendeu alguns valores, produzindo em torno de 30 letras. E conclui que, futuramente, pretende fazer rap voltado para a religião, pois quem ele é está relacionado diretamente à sua parte santo, não dá para separar. É um só. Cada um produz sua letra de maneiras diferentes porém ambos acreditam que o rap e a religião possuem resistência da cultura negra, fazendo transcender a sua ancestralidade, identidade e essência.


Utopia x Realidade Pensar numa solução para o problema da intolerância, violência e discriminação religiosas é um processo árduo e que exige muita força de quem está inserido nesse contexto. Vivemos momentos obscuros e de retrocesso, na política e na religião. Apesar de a lei 10.639 tornar obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio, a educação ainda sofre com a falta de capacitação de professores e com o racismo velado. Os diálogos precisam ser mais amplos, na busca de se tornar um assunto cotidiano e real dentro das casas brasileiras. As políticas públicas e leis criadas precisam, de fato, de uma legitimidade consolidada. Precisam funcionar. Somado a tudo isso, novelas, programas e propagandas televisivas tentam incluir e dar oportunidades para mulheres e homens negros em um discurso de empoderamento e representatividade, além de estarem começando a discutir assuntos pertinentes

da cultura afro. Porém, são diálogos superficiais e representações com fins propagandísticos. A mídia precisa fazer mais. Ela tem o papel essencial de ser democrática, tornando visível e transparente a luta dessas religiões desde a sua ancestralidade, em um diálogo bem mais profundo, disseminando o conhecimento acerca da história e cultura como um fator intrínseco na sociedade brasileira, bloqueando qualquer tipo de pré-julgamento. Só depois que todos esses fatores forem evoluídos e desenvolvidos, haverá a possibilidade de paz e respeito para todas as religiões. Pregar a bandeira de um país laico e miscigenado é lindo. Mas é laico para quem? Miscigenado para quem? Na canção “Marinheiro Só”, ele diz que não é “daqui” e que não tem amor. Esse marinheiro, que está só, é a personificação das religiões afro-brasileiras e como são tratadas no Brasil. Elas já sabem nadar mas que o tombo do navio e o balanço do mar não as façam morrer afogadas.

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Precisamos falar sobre SUICĂ?DIO

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Pessoas de todas as idades e classes sociais cometem suicídio.

Falar sobre ele ainda é um tabu, pois é considerado um assunto quase proibido, já que

falar da morte expõe a fraqueza do ser humano.

Saber como

ajudar pode ser um dos primeiros passos para diminuir os números cada vez mais alarmantes

Texto e design: Ezequiel Florenzano 17


Modos de abordagem do tema suicídio podem fazer diferença para prevenção de casos

GRÁFICO :GOOGLE TRENDS

Setembro amarelo é uma campanha mundial, que foi iniciada no Brasil no ano de 2014, dirigida pela Associação Brasileira de Psiquiatria. O principal objetivo é a conscientização da população sobre a prevenção do suicídio e sua realidade. Durante todo o mês de setembro são realizadas ações de divulgação em todo território nacional, com orientação sobre as doenças mentais, realizações culturais e científicas e principalmente, mensagens de apoio e distribuição de informações relevantes. Especialmente esse ano, a campanha vem abordando o modo de tratamento das informações sobre o assunto. Isso porque, em abril, foi lançada a série televisiva “13 reasons why” (Os 13 porquês), em que a personagem principal, Hannah, lista os 13 motivos que a levou ao suicídio. Apesar de trazer a tona o assunto, há grandes erros na série segundo os especialistas consultados. Há uma transformação do suicídio em um grande acontecimento (planejamento da morte, gravação da vingança) valorizando a morte voluntária. “Esses seriados direcionados a juven-

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tude tratam o suicídio de maneira muito romantizada. É uma forma perigosa de tratar o assunto, pois não há um suporte seguro na série. E essa busca por motivos é um ato falho ao culpar outras pessoas e mostrar a morte como única saída”, afirma a psicóloga Joyce Souza Rosa. O problema observado pelo psiquiatra Douglas Paschoal é que a forma de abordagem pode interferir no modo de agir das pessoas. Em pesquisa realizada no Google Brasil, é possível observar que a busca pelo termo suicídio indolor subiu consideravelmente durante o lançamento da série “13 reasons why” e também no período entre o final de julho e o início de agosto, quando uma jovem brasileira divulgou o suicídio ao vivo no instragram e dias depois seus pais foram encontrados mortos (ver gráficos). Entretanto, o dado que chama mais atenção é a intensa subida da busca pelo termo prevenção ao suicídio no mês de setembro deste ano. O que se deve à força da campanha Setembro amarelo, que tem como objetivo desmitificar o suicídio e falar abertamente sobre ele.

Gráficos mostram o interesse pelos termos durante o período de um ano

Como abordar o assunto

Dados do documento “Prevenção do Suicídio Manual Dirigido a Profissionais das Equipes de Saúde Mental” mostram que a informação e a conscientização da população são fatores chaves para a prevenção. As doenças mentais e o suicídio ainda são assuntos restritos há poucos debates, atualmente, como revela o psiquiatra Douglas Paschoal. Mesmo pouco falados, os efeitos das doenças mentais atingem cada vez mais famílias em diversas localidades. A ansiedade e a depressão são consideradas as doenças do século pelos especialistas em saúde. E o suicídio que em 90% dos casos decorre de doenças mentais, ainda é pouco mencionado. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), antes mesmo de você terminar de ler este pequeno parágrafo um suicídio pode estar acontecendo, pois esse problema de saúde mundial atinge uma pessoa a cada 40 segundos, sendo responsável por 1,4% de óbitos no mundo. Já as tentativas ocorrem cerca de 10 vezes mais, ou seja, uma a cada três segundos. São quase um milhão de mortes por suicídio por ano. Números maiores do que os de mortes por guerras e por homicídios juntos. Entretanto, mesmo com esses números alarmantes o silêncio ainda é utilizado por muitas pessoas. Os números são considerados imprecisos, pois de um total de 172 países apenas 60 mandam dados completos. Isso ocorre devido à subnotificação. Estima-se que apenas 25% dos casos chegam ao conhecimento público. No entanto, a Organização Mundial da Saúde vem utilizando várias formas de divulgar abertamente o assunto. “Ainda existe um estigma de falar sobre o suicídio, junto com uma concepção mais antiga de que a imprensa não pode abordar o caso, ou seja, há um mito de que se falar sobre suicídio desencadearia o aumento de atos dessa natureza”, afirma o psiquiatra. Este descrédito é conhecido como Efeito Werther (os números de suicídios entre jovens aumentaram depois de um suicídio amplamente divulgado do


O panorama brasileiro

Segundo o coordenador geral de Saúde Mental do Ministério da Saúde, Quirino Cordeiro Júnior, entre 2000 e 2012 houve um aumento de 10,4% na quantidade de mortes por suicídio. E até 2020 haverá um aumento de 50%. Atualmente, estima-se que há uma morte por suicídio a cada 45 minutos no Brasil, ou seja, 32 por dia. Apesar do número baixo de coeficiente de suicídio, em comparação ao restante do mundo, por ser considerado populoso o Brasil é o oitavo país em número absoluto de caso. Na realidade, o Ministério de Saúde do Brasil acredita que a ocorrência é muito maior, pois em muitos atestados de óbitos, a informação de morte por suicídio é suprimida. Segundo estudo realizado na Unicamp em 2015, cerca de 17 % dos brasileiros já pensaram seriamente em se suicidar. Entretanto, o dado mais importante é que cerca de 90% dos casos de suicídios poderiam ser evitados, se houvesse um acompanhamento emocional adequado. O mapa da violência mostrou que o número de suicídios entre jovens de 15 a 29 anos subiu cerca de 10% (passou de 5,1 por 100 mil habitantes em 2002 para 5,6 em 2014). Se utilizar os dados de 1980, esse aumento foi de 27,2% nessa faixa etária. Já em números totais o aumento foi de 60% de 1980 para cá. Nessa idade, segundo a psicóloga Joyce Souza Rosa, há uma exposição das formas romantizadas. “Existe uma glamourização do suicídio por adolescentes que vem ocorrendo nos últimos

Gráfico OMS

escritor alemão Johann Wolfgang Von Goethe, que se suicidou após escrever o livro “Os sofrimentos do jovem”). Douglas alerta para essa dificuldade em lidar com o tema, apontando soluções que vem sendo utilizadas atualmente. “Hoje em dia existem pesquisas na área de psiquiatria e psicanálise para entender o fenômeno do suicídio e o falar dele. Nestas análises, foi observado que as abordagens mais cuidadosas contribuem para a prevenção e a tomada de consciência da população.”

Gráfico mostra o coeficiente de suicídio em vários paises do mundo

anos, através de páginas de Tumblr, e um enaltecimento do cutting, que é o processo de se cortar. Associar um personagem ou ator que se gosta e parear sua dor como parecida e também passível de autoextermínio pode ocorrer. Existe uma cartilha de conduta confeccionada pela OMS que impõe regras para a forma de divulgação pela mídia de casos se autoextermínio, isso inclui séries, filmes. Um dos pontos principais é não mostrar de forma gráfica o suicídio e colocar informe que pode ser um gatilho para pessoas que já estão sensibilizadas”. Segundo especialistas, os principais motivos que contribuem para o suicídio entre jovens são o bullyng no ambiente escolar, usos de bebidas e drogas, falta de apoio social e uso de redes sociais frequentando grupos e jogos que romantizam o suicídio e colocam o ato como desafio a ser cumprido pelo participantes. Casos de superação

A auxiliar veterinária Bárbara Santa teve uma adolescência difícil, devido a falta de estrutura familiar. Depois de tentar o suicídio aos 13 anos foi diagnosticada com bordeline (transtorno mental caracterizado por instabilidade de humor, comportamentos e relacionamentos). A tentativa autoextermínio deixou sequelas na saúde de Bárbara. Hoje, com 24 anos ela fala sobre a impor-

tância de ter um tratamento e alguém para ajudar neste momento. “A maioria dos casos de suicídio podem ser evitados, com tratamento neurológico e apoio psicológico. O melhor tratamento é saber que podemos contar com alguém para criar estrutura.” Segundo ela, a falta de informação e de ajuda na época foi determinante: “Hoje sei que depressão pode ser tratada pela alimentação e acompanhamento de terapeuta.” Para Bárbara é muito importante falar sobre o assunto, através de programa de debates, grupos de apoio, entre outros. Atualmente, a auxiliar veterinária participa de palestras de apoio a adolescentes e observa que as discussões ajudam muitos as pessoas. A estudante Joseina Gayger, que também tentou suicídio, revela que é extremamente importante mostrar o que realmente acontece. “É preciso falar sobre suicídio pra desmistificar e desromantizar”. A cabeleireira Thalita Rosa tem a mesma opinião: “Um conselho ou uma palavra amiga é sempre bem vinda, pois neste momento difícil é preciso alguém para dizer e nos convencer de que somos importantes”. Segundo as três o mais importante neste momento de dores é esquecer frases clichês que desmontivam,e sempre procurar ajuda por meio de conversas com os familiares e outras pessoas de confiança

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Fatores de risco

O suicídio é uma ação muito complexa e para sua identificação muitas variáveis são consideradas. Esse problema está diretamente associado a fatores biológicos, psicológicos e ao contexto sócio- cultural e econômico. As mulheres tentam três vezes mais; já os homem suicidam três vezes mais. A principal causa são os transtornos mentais e psicológicos, tais como depressão, ansiedade, bipolaridade, entres outros. “Existem pessoas que passam por diversas tentativas, mas outras conseguem na primeira. O que as pessoas próximas devem se conscientizar é que a primeira tentativa não deve ser ignorada, e quem tentou uma vez pode sim tentar outras vezes. As ameaças devem ser problematizadas e não serem vistas como forma de chamar atenção”, enfatiza a psicóloga Joyce. Indivíduos com histórico de transtornos mentais geralmente são mais propensas. “A nossa sociedade ainda não valoriza a saúde mental, a depressão, a ansiedade, frases clichês ainda são usadas para menosprezar a

dor emocional”, aponta. Pessoas que estão com pensamentos disfuncionais para autoextermínio geralmente se afastam dos amigos e familiares, têm desapego e desvalorização de objetos materiais e da própria vida. Segundo Joyce, observase também uma suposta melhora nos problemas de humor (rápida melhora) antes de se cometer suicídio. Um ponto a ser destacado é que nem sempre existem sinais claros, pessoas sociáveis também podem ter tais pensamentos. Cerca de 90% das pessoas que comentaram suicídio sofrem de algum transtorno. É extremamente importante observar esses comportamentos nas

pessoas e saber como lidar com eles. Outra ressalva do Ministério da Saúde é que o conhecimento e a prevenção são capazes de encorajar a busca por ajuda. Contra os tabus para buscar a prevenção

Segundo a OMS, o não falar torna o problema mais perigoso do que já é. Qualquer pessoa pode ajudar na prevenção de um suicídio, mas para isso precisa receber informações básicas e dados importantes para saber lidar com a situação. Em um momento em que o número de casos cresce assustadoramente, abrir espa-

principais fatores de risco

Quadro: estudo da OMS

PRINCIPAIS DIAGNÓSTICOS: UM ELO ENTRE SUICÍDIO, SAÚDE MENTAL E TRANSTORNOS

Quase 90% das pessoas que comenteram suicídio tinham problemas mentais

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O QUE FAZER PARA AJUDAR?

ços de debate e fala é extremamente importante. Os transtornos mentais (como depressão, alcoolismo, ansiedade) foram encontrados em quase 90% dos casos, ou seja, são os principais fatores de risco e predisposição à morte voluntária. Entretanto, a falta de preparo para lidar com essas doenças ainda é grande. “Quem se percebe com pensamentos suicidas deve pedir ajuda a amigos, familiares, procurar ajuda profissional. O que acontece é que nem sempre as pessoas conseguem pedir ajuda, aí entra a importância das redes de apoio. Se você percebe um amigo com postagens em redes sociais, ou pessoalmente, com falas autodepreciativas, de despedi-

das, existem mecanismos em algumas redes sociais que podem ser acionadas para ajuda. Converse e seja um ponto de apoio a ajuda profissional”, orienta a psicóloga Joyce Souza Rosa sobre comose deve agir para a prevenção. Segundo ela, o Centro de Valorização da Vida (CVV) funciona como um suporte a pessoas com pensamentos de autoextermínio, o número da organização (141) recebe ligações 24 horas por dia gratuitamente. O Ministério da Saúde Brasileiro vem criando ao longo do tempo várias formas de abordagem para a prevenção do suicídio, por meio de cartilhas educativas,palestras e pesquisas no campo psiquiátrico. Há várias publicações sobre estudos de

casos, sobre como deve ser tratado o assunto pela mídia e pelos profissionais da saúde. O plano Nacional de Prevenção do Suícidio tem como principais medidas o tratamento correto de doenças mentais, a restrição a meios letais e o acompanhamento de pessoas que tiveram alta hospitalar após uma tentativa (ver quadro). A OMS aconselha ouvir tudo o que a pessoa tem para dizer, não mostrar pessimismo e nem fraqueza, e nunca interromper o pensamento e fala da pessoa em questão. Entretanto, a principal medida proposta para os grupos de riscos é a busca de ajudar e acompanhamento profissional, no caso psiquiatras, psicólogos e terapeutas e também grupos de apoio.

Associações de ajuda:

Centro de Valorização da Vida: www.cvv.org.br Rede Brasileira de Prevenção ao Suicídio: www.redebraps.com.br Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos: www. abrata.org.br Apoio a Perdas Irreparáveis: www.redeapi.org.br Pravida - Projeto de Apoio à Vida: www.pravidaufc.webnode.com.brww Central de ajuda do Facebook 21


A REALIDADE DOS CONTRACEPTIVOS

Mulheres relatam alguns efeitos da pílula oral no organismo Texto e design: Bárbara Delgado

Foto: Thatyana Benetello 22


“É de extrema importância uma avaliação do perfil de cada paciente feita pelo médico. Algumas pílulas possuem taxas mais altas de hormônios, outras não e dependendo da paciente, pode ser indicado outros métodos contraceptivos” Foto: Bárbara Delgado

Fernanda Sampaio, ginecologista

Criado nos Estados Unidos na década de 1950, Enovid foi o primeiro remédio para evitar a fertilidade e em 1960 foi aprovado para o uso. As mulheres usam o método contraceptivo para diversas situações, sejam elas para o planejamento familiar, para a diminuição do fluxo intenso no período menstrual, para tratamentos para a síndrome de ovários policístico, endometriose, cuidados com a pele, entre outros. Durante o uso, alguns efeitos colaterais podem surgir e alterar a rotina da mulher. Eles podem variar entre náuseas, dores de cabeça, retenção de líquidos, tonturas e desmaios. E além de toda a função preventiva, os benefícios são

os mais variados como: redução pílulas. de acnes, controle maior do ciclo Os uso do anticoncepcional pode menstrual, pele e cabelo. ter efeitos adversos. “Há mulheres que desenvolvem enxaqueca com RISCOS aura, que causam alterações senApesar dos diversos benefícios, sitivas, como irritabilidade à luz, os anticoncepcionais podem oca- cegueira parcial, pontos luminosos sionar algumas doenças. As mais in- como “flashes” de luz, entre outros cidentes são as circulatórias, como sintomas. Esses pacientes devem a trombose venosa profunda (TVP) buscar outro tipo de método conem membros inferiores. Em 2015, um traceptivo. Assim como as mulheres estudo publicado pela revista BJM que tratam a doença de lupos, hiToday, indicou que aproximada- pertensão arterial e trombofilia”, mente 9% das mulheres em idade ressalta a ginecologista Fernanda reprodutiva usam métodos contra- Sampaio. Em algumas situações, ceptivos orais, em países desen- esse método deve ser evitado, como volvidos o índice chega a 18%. De é o caso de mulheres fumantes. Isso acordo com os dados, o risco de porque o tabagismo pode ser um trombose venosa é quatro vezes grande influenciador para aumento maior para as mulheres que tomam de doenças ligadas ao uso de pílu-

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venosa profunda e algumas outras doenças, acarretadas pelo uso do método. Regiane Cristina, 37 anos, começou a fazer uso da pílula anticoncepcional para tratamento de acnes. Sempre usou preservativos e não tinha histórico na família de tromboses ou doenças similares. “Eu queria tratar da minha pele, mas senti dores fortes de cabeça e muito enjoo. Foram nove dias e nenhum analgésico fez efeito, fui medicada e continuei me sentindo mal. Senti como se tivesse um coração pulsando na minha cabeça”, conta. Durante os dias em que procurou tratamento, ela foi diagnosticada com uma enxaqueca muito forte. No nono dia, foi ao hospital onde encaminharam para uma ressonância e diagnosticaram uma trombose cerebral. “Quando o resultado saiu, RELATOS Algumas mulheres relatam terem o médico me perguntou imediatasido diagnosticadas com trombose mente se eu fazia uso do anticon-

Para o cardiologista Ernesto Souza, o uso do método na maioria das vezes é considerado seguro. “O que vai definir se o paciente deve ou não tomar é ter uma história prévia de trombose. É preferível nesse caso, usar um outro método contraceptivo sem ser oral”, afirma. “O anticoncepcional ligado ao evento trombótico, uma embolia pulmonar, pode ser um fator a mais para disposição de formação de trombos”, menciona. Fica a cargo do médico se o paciente tem condições de tomar o anticoncepcional. É um conjunto de fatores que deve ser levado em conta, como pré-disposição genética, pós-operatório”, ressalta o cardiologista. Para mulheres com históricos de problemas circulatórios, não é indicado, pois é considerado como um adicional ao risco.

Foto: Bárbara Delgado

las orais combinadas. “Para algumas pacientes pode fazer bem ou não, apresentar um melhor resultado ou riscos maiores. Existem alguns que possuem uma quantidade maior de hormônios, tipos de progesterona diferentes e cada perfil vai se adaptar de uma forma”, explica. Os efeitos colaterais podem diminuir quando são injetáveis. Mulheres com enxaqueca podem ter um fator de risco para desenvolverem um Acidente Vascular Cerebral (AVC) e podem ser considerados como efeitos adversos. A pílulas orais combinadas são compostas por dois tipos de hormônios: estrogênio e progestina. Segundo a ginecologista Fernanda Sampaio, a facilidade para o uso do método encontra-se na disponibilidade de adquiri-lo. “Eles são mais baratos, são fornecidos pelos SUS e devem ser tomados no horário certo. Nenhum método é 100%, todos tem taxa de falhas.” Para a ginecologista, as mulheres que desejam fazer uso da pílula, devem procurar um ginecologista para receber as orientações necessárias. “É de extrema importância uma avaliação do perfil de cada paciente feita pelo médico. Algumas pílulas possuem taxas mais altas de hormônios, outras não e dependendo da paciente, pode ser indicado outros métodos contraceptivos”, explica. “As condições de saúde aumentam o risco do paciente desenvolver uma trombose, casos na família devem ser pesquisados, até mesmo devido ao risco de trombofilia”, esclarece Fernanda. A trombose é identificada pela formação de coagulos, os trombos, em veias e artérias. Os anticoncepcionais combinados oferecem um risco maior e aumentam a dilatação dos vasos sanguíneos formando dessa forma os coagulos”, disse.

Outros métodos podem susbtitiuir a pílula oral com a mesma eficiência no organismo


Métodos contraceptivos Combinados (estrogêneo progesterona)

Não combinados (progesterona)

Injetável - uma vez por mês

Injetável - troca de 3 em 3 meses

Anticoncepcional cartela diariamente

Sistema Intrauterino (SIU) durabilidade de cinco anos (fluxo interrompido)

Adesivo - troca semanal

Sem taxas de hormônios

Anel vaginal - 21 dias

cepcional e me explicou dos vários riscos. Eu li a bula, mas não imaginava que poderia acontecer algo comigo. Sempre fui muito resistente”, contou. Todos os processos foram feitos e nenhuma sequela ficou após a enfermidade. Hoje, Regiane não faz mais uso do anticoncepcional e conta seu depoimento em vários grupos de alerta no Facebook. “Eu tomei injeções que me fizeram sentir muita dor nos primeiros dias em que eu estava no hospital. Vou tomar anticoagulante durante toda minha vida. Mas, não tive sequela nenhuma e os médicos consideram isso um milagre”, afirma. Em outras situações, as fortes dores de cabeça estavam presentes e foram confundidas como apenas uma forte enxaqueca. “Eu tinha 23 anos quando tive trombose venosa cerebral”, conta Abilene Bailke, moradora da cidade de Canoas, Rio Grande do Sul. As dores de cabeça

sempre foram frequentes na rotina de Abilene, mas, na semana em que passou mal, elas aumentaram e ficaram muito fortes. “Eu não conseguia ficar na claridade, não conseguia olhar para o celular porque a minha cabeça latejava. Fui várias vezes ao posto de saúde e fui medicada para enxaqueca. No sábado daquela mesma semana eu acordei sem consciência e me levaram ao hospital”, comenta. Pela tomografia ela foi diagnosticada com trombose venosa cerebral e já estava com os lábios um poucos tortos. Durante o tempo em que ficou no hospital, várias injeções de Heparina (anticoagulante) foram aplicadas e um tratamento avançado foi feito para evitar sequelas irreversíveis. “Eu saí do hospital sem sequelas e fiz algumas ressonâncias, estou praticamente curada. O tratamento é bem delicado. Eu tive sorte”, disse. “Achei que as minhas dores de cabeça eram causadas por falta de

Dispositivo intrauterino (DIU) de cobre durabilidade de 10 anos (fluxo normal)

óculos”, conta Elisângela Oliveira, 37 anos. A paulista começou usar o método contraceptivo aos 18 anos para o tratamento de ovário policístico. Aos 34 anos, ela sentiu fraquezas, como não conseguir pegar um pá de pegar lixo. No dia seguinte, sentiu muitos enjoos e fui levada ao médico. “Eu comecei a convulsionar lá mesmo, fui diagnosticada com AVC, fiquei 28 dias no hospital sem conseguir movimentar meu braço esquerdo e um pouco da perna. Estava esperando um exame de angiografia e fiz fisioterapia.” Após sair do hospital, em abril do mesmo ano, Elisângela fez uma tomografia onde o resultado foi de uma trombose venosa cerebral. “Eu faço acompanhamento com neurologista e faço ressonância. Eu fiquei com sequelas na mão esquerda, ainda não voltou 100%. Dou graças a Deus por estar viva”, conta. Em alguns casos, a trombose pode gerar outras disfunções que podem 25


deixar sequelas, como a embolia pulmonar. Fabiana Batista Souza, assistente administrativa, fazia uso do anticoncepcional e quando estava na academia malhando sentiu fortes dores no joelho. “Depois percebi que meu calcanhar direito estava inchado, a panturrilha e a coxa. Não doía no começo, depois começou a doer e não fui ver logo porque trabalho todo dia, não queria faltar. Mas fui ao médico depois. Ele me disse que poderia ser trombose e passou um exame”, relata. Depois dos sintomas já relatados ao médico, Fabiana sentiu falta de ar e uma queda de pressão. “Quando fiz o exame, o médico confirmou vários trombos na coxa. Fui para a emergência e na internação fiquei sabendo que eu estava com um trombo muito grande e bilateral no pulmão. Fiz o tratamento e tomei um remédio que dilata as veias, o Trombolítico.” A falta de ar continuou presente na vida dela, pois também tem asma. ”A minha perna ainda incha e não posso tomar mais anticoncepcional. Não faço parte do grupo de risco e não tenho nada que justifique a trombose além da pílula”, afirma Fabiana. Outros efeitos podem surgir durante o uso de diversos métodos contraceptivos. No caso da pílula oral, alguns são mais incomuns do que outros, como por exemplo a dormência nos membros inferiores. “Eu comecei a tomar o anticoncepcional porque tenho o ciclo menstrual muito forte, sinto muita cólica. Minha médica optou pelo Nactali que diminuía o fluxo e que não venha com muita frequência, eu tenho ovário policístico e estou fazendo exames para descobrir se tenho endometriose“, conta Rebeca Leal, que ao usar o método, teve a menstruação interrompida. “Eu senti uma dormência no braço esquerdo e na mão direito, além de um formigamento. Eu demorei a descobrir que era devido ao uso do anticoncepcional. Fui ler na Internet e umas das coisas que me chamaram atenção foi perceber que algumas pessoas sentiam as mesmas dores que eu.” A dor nos membros permaneceu todos os dias e outros remédios para aliviarem a dor não resolveram. “Quando eu resolvi parar de tomar esse método, minhas dores sumiram três dias depois da última pílula da cartela”, afirma. Para a ginecologista, o que a paciente sentiu foram efeitos colaterais do método. “Por ser uma pílula não combinada com apenas o hormônio de progesterona, não leva a uma trombose.” 26


História que serve de alerta

“Não é porque uma mulher teve trombose que todas as outras vão ter. Hoje os novos anticoncepcionais evoluíram muito, a dosagem de hormônio que eles têm diminuiu. Antigamente as taxas eram mais altas e causavam com mais frequência fenômenos embólicos e trombóticos” Ernesto Souza Salles, cardiologista

Foto: Newton Cardoso

“Eu comecei a sentir umas dores fortes na panturrilha, umas fisgadas, eu não me importei porque achei que era uma cãimbra. Mas chegou um momento que eu comecei a ter muita falta de ar. Eu fui para o hospital e tive um primeiro diagnóstico de pneumonia”, conta a publicitária Lorena Couto dos Santos. Durante o tempo que ela esteve na emergência, vários médicos a avaliaram e sua perna começou a inchar com intensidade. A perna esquerda começou a ficar roxa e foi perdendo os movimentos. Em um outro exame foi diagnosticado uma trombose. “Eu fui encaminhada para outro hospital e fiz uma cirurgia de desentupimento das artérias. Quando acordei, eu já não estava sentindo falta de ar, e a perna começou a ganhar vida novamente, o meu pé principalmente”, disse. Depois de um tempo, Lorena começou a fazer hidroterapia, o tratamento estimulava os nervos a voltarem a funcionar. “Meu pé ficou com uma sequela, o calcanhar não encostava mais no chão. Como eu fiquei muito tempo em uma maca, a posição que eu ficava, não favoreceu o meu pé.” As dores voltaram e pioraram, mesmo com a meia de compressão, os ossos ficaram frágeis e foi ocasionada uma fratura. Essa lesão gerou uma síndrome compartimental, o lado do pé foi aberto e abriu uma úlcera de pressão. “Eu fiz um tratamento de câmara hiperbárica que é um tratamento de oxigenote-

rapia para poder fechar essa úlcera. Ano passado eu fiz uma cirurgia para corrigir o meu pé, porque meus dedos estavam todos atrofiados e foram colocados alguns pinos, foram 11 meses assim”, ressalta. Durante o processo, a publicitária buscou acompanhamento com uma hematologista e foi identificado que não existia a falta das proteínas S e K que causam a trombofilia. Para a ginecologista Fernanda Sampaio, uma coisa foi levando a outra. “Essas outras situações não foram decorrentes do uso do anticoncepcional, o principal complicador da pílula, foi a trombose”, ressalta. Para mulheres com históricos de problemas circulatórios, ele não é indicado, ele adiciona um risco. “Não é porque uma mulher teve trombose que todas as outras vão ter. Hoje os novos anticoncepcionais evoluíram muito, a dosagem de hormônio que eles têm diminuiu. Antigamente as taxas eram mais altas e causavam com mais frequência fenômenos embólicos e trombóticos”, lembra o cardiologista. Para alertar outras mulheres quantos aos sintomas, a publicitária relata a sua história em uma página criada por ela no Facebook chamada “Renascida do Trombo”.

Durante o tratamento, Lorena sofreu uma lesão e foi necessário realizar uma cirurgia

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A primeira vez em um Sex Shop

Texto, fotos e design: Bárbara Braga

A sexualidade sempre foi um assunto silenciado na sociedade - principalmente, nas que são regidas pelos conceitos cristãos. Por séculos, sentir prazer foi um pecado, que enviava a mais pura alma direto ao fogo do inferno. O ato sexual não deveria ter nenhuma outra funcionalidade a não ser a procriação. Feito com outras intenções que não fossem essa, era considerado heresia e libertinagem de indivíduos de mau caráter. Após dois milênios de cristianismo e duas guerras mundiais, a Humanidade tem repensado seus conceitos sobre sexo. A piloto de avião alemã, Beate Uhse, era filha de uma médica e teve uma criação liberal, bem diferente da convencional. Após o fim da Segunda Guerra, na qual participou ativamente, estava viúva e com um filho para sustentar, então, começou a vender cosméticos de porta em porta em Berlim. Uma queixa comum entre suas clientes era que seus maridos as engravidavam, mesmo sem terem condições. Beate, que tinha aprendido com a mãe técnicas de higiene sexual e contracepção, escreveu um livreto ensinando o funcionamento do ciclo menstrual, o Pamphlet X, que, em 1947, já havia vendido 32 mil cópias. Interessadas em descobrir mais sobre sua sexualidade, as mulheres pediam a Beate mais informações, e ela começou a vender preservativos e guias com conselhos para o casamento. Ela manteve seus serviços por envio postal, até que, em 1962, abriu a primeira sex shop do mundo. Obviamente, foi muito criticada pela sociedade da época, mas, como se sabe, sexo é algo que todos fazem, embora se sintam compelidos a não admitirem isso em público. Cinquenta e cinco anos depois da inauguração da primeira loja de comercialização de produtos eróticos, há ainda um tabu social em torno desses estabelecimentos, porém, o público atendido e o faturamento do mercado cresce consideravelmente, apesar da crise econômica e do conservadorismo.

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*Nomes fictícios foram usados a pedido dos entrevistados


Pessoalmente, online ou em casa, o público não deixa de consumir no Sex Shop Os pedidos por envio postal foram substituídos por compras online, modalidade que, segundo a Associação Brasileira das Empresas do Mercado Erótico e Sensual (Abeme), é a mais utilizada pelos consumidores de sex shops. Um dos principais motivos para os clientes optarem pelas lojas online é o anonimato, pois não há necessidade de mostrar o rosto, apenas fornecer os dados de pagamento e endereço. No Brasil, há cerca de mil sex shops virtuais cadastrados com a Abeme. Uma das vantagens que estas lojas possuem em relação às físicas é que abrangem uma clientela maior, uma vez que os produtos podem ser entregues por todo o país. O sex shop online Shop do Prazer foi criado há 11 anos, e, a princípio, atendia aos moradores de Juiz de Fora. A proprietária Fabiana Oliveira conta que, “quando a loja virtual foi criada no ano de 2006, nós ainda enfrentávamos um grande tabu na área de venda de produtos eróticos. A maioria das pessoas simplesmente “morria” de vergonha de ir até uma loja física para efetuar uma compra. Naquela época, a aceitação foi imediata e muitos clientes optaram por comprar na loja virtual pela facilidade de receber o produto em casa sem nenhuma exposição. Pelos vários elogios dos consumidores, nunca tivemos a intenção de trabalhar com loja física, pois a maioria dos compradores de produtos fornecidos por nossa empresa prefere a privacidade e o conforto de poder comprar de qualquer lugar do país e receber com 100% de privacidade.” Entretanto, outras sex shops juizforanas possuem lojas físicas e online. É o caso da Decalsex, que tem uma freguesia virtual mais ativa do que na própria loja. “Atendemos um público 29


geralmente entre 32 e 65 anos sendo, muitas vezes, mulheres já casadas e com filhos. Elas sentem um pouco de vergonha de virem aqui, então fazem encomendas pelo Facebook, Instagram e pelo site”, diz a proprietária, Rosana Alves. Para explicar dúvidas que os consumidores possam ter em relação aos produtos, no site da Decalsex são postados vídeos sobre eles. Um dos desafios enfrentados pelas lojas online é deixar claro as especificações dos itens disponíveis. “Além de boas fotos para exibição do produto, a descrição dos itens tem que ser leve e explicativa, para que o cliente entenda o tipo exato de produto que está adquirindo, dimensões, material e se é aquilo mesmo que vai lhe agradar quando receber em sua residência. Na exibição frente de loja (página principal) sempre optamos por produtos mais leves, para que ao acessar o site o cliente possa ir aos poucos entrando em um mundo de fantasias, deixando o tabu de lado”, destaca a dona do Shop do Prazer, Fabiana Oliveira. Há também lojas físicas que foram criadas a pedido dos consumidores

que já as frequentavam virtualmente. Adalgisa Serafini é dona do Intense Sex Shop e relembra o início da loja. “Começamos vendendo fantasias na internet, e o pessoal sempre pedia para vendermos mais produtos, de uma certa forma fomos empurradas para a loja física. E apesar de investirmos em mídias sociais, o boca a boca é a melhor propaganda, as pessoas precisam ter confiança na loja”. Além das mil lojas online e 11 mil físicas, a Abeme informa que há ainda 80 mil vendedores domiciliares, que assim como a criadora do primeiro sex shop, Beate Uhse, visitam a freguesia no conforto de suas casas. Mercês Souza tem presença confirmada em chás de lingerie de todas as amigas. A vendedora realiza também reuniões com suas clientes, em seu próprio apartamento, para apresentar as novidades. “Quando recebo mercadoria nova, faço três reuniões: uma com as clientes que têm entre 18 e 30 anos, outra com as que estão na faixa etária entre 30 e 50 anos, e por fim, com as minhas ‘vovózinhas’ como brincamos entre nós, a mais velha tem 71 anos. Divido em

“Sexo envolve cumplicidade, e a nossa aumenta quando temos um vibrador entre nós dois”. Eva*, 45 anos

grupos para evitar o constrangimento delas, mas é sempre uma festa, elas experimentam fantasias, fazem piadas, e de uma certa forma acaba sendo um curso.” O principal motivo apresentado pelos consumidores para procurarem pelos sex shops é querer quebrar a rotina do sexo. “O pré requisito psicológico e emocional para usar estes itens é a pessoa querer apimentar a relação, criar fantasias, trazer o novo para o relacionamento, o que faz com que o sexo se mantenha sempre jovem e lúdico. Apenas quando é usado de forma inadequada, o produto se torna prejudicial, ou se um dos parceiros não topa esse tipo de brincadeira e o outro intimida, nestes casos se torna um problema”, afirma a sexóloga Elisângela Pereira.

“Estava com vontade de esquentar um pouco as coisas entre eu e meu marido. Resolvi comprar uma fantasia legal, fazer uma surpresa, porque a gente lê nessas revistas femininas que ajuda. Chegando na loja de lingerie comum, não achei nada muito interessante, só o de sempre. Fiquei com um pouco de vergonha, mas resolvi ir no sex shop que tinha no segundo andar da loja. Foi como entrar em outro universo. Tinham umas coisas que fiquei até envergonhada de olhar. Mas, tinha a fantasia de enfermeira que eu queria. Comprei isso e vim embora. Meu marido gostou bastante da surpresa, desde então, volto lá de vez em quando para buscar alguma novidade. Agora, olho os outros objetos e arrisco experimentar alguns.” Raquel*, 41 anos

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Os queridinhos

Quente ou frio; chocolate ou menta; vibratório ou lubrificante; para massagear ou retardar a ejaculaçaõ, são inúmeras opções de géis.

Seja online, pessoalmente ou em casa, os produtos mais procurados pelos consumidores são os géis. Com sabores, perfumados ou até mesmo neutros, eles são essenciais para uma relação mais confortável, pois ajudam na lubrificação. As bolinhas de pompoarismo, técnica oriental que trabalha os músculos pélvicos, também foram elencadas pelas proprietárias de sex shops juiz-foranos como as mais buscadas. Os vibradores ficam em terceiro lugar. “Tem procura por todos os produtos, dos geizinhos aos acessórios. Sempre tem gente querendo inovar, às vezes o casal estava nas bolinhas que explodem e nos lubrificantes e decide experimentar um vibrador. Os produtos estimulantes e comestíveis são bem requistados também, mas, geralmente, por homens”, afirma Rosana Alves, dona da Decalsex. Inúmeros fatores interferem na qualidade do sexo, não só biológicos, como emocionais e até ambientais. Os produtos eróticos trabalham

com a criatividade dos parceiros, tornando o ato mais descontraído, como é recomendável que seja. “Eu costumo falar com meus clientes que sexo é uma coisa interessante, porque deu três meses ele já virou rotina. Sexo é sexo, por mais amor que tenha. O povo está abrindo a mente em relação ao sex shop por isso, porque estão percebendo que não há nada de errado em fazer sexo,” diz Adalgisa Serafini, dona do Intense Sex Shop. Alguns consumidores buscam por produtos que atendam a seus fetiches, como fantasias, outros procuram por itens mais realistas, e há os que montam um cenário completo para realização de seus desejos, comprando lingeries, velas, acessórios. “As pessoas vêm com um pouco de vergonha. As mulheres, que são grande parte dos consumidores, costumam vir com as amigas e querem ver o que há de novo. Os homens, quando vêm, têm uma certeza maior do que querem, trazem até listinha. Uma linha que aumentou a procura foi a de sadomasoquismo,

porque querendo ou não, o livro e o filme ‘50 tons de cinza’ mexeu com o imaginário dos casais”, diz Alessandra Fonseca, dona do JF Sexy Shop.

“Vi o filme ‘50 tons de cinza’, e estava fazendo aniversário de casamento. Pensei: por quê não? Comprei um par de algemas para usar com meu marido, só que eu fiz barulho demais, e meu filho acordou e veio ver o que estava acontecendo. Nós dois passamos um aperto para se livrar dele e explicar, eu algemada na cama, foi um sufoco, menina. Passado umas semanas, a gente se entreolhou, surgiu aquele clima, usamos a algema de novo. Mas, dessa vez ele tapou minha boca com uma camisa, e foi melhor ainda. Amo meu Christian Grey versão mais econômica (risos).” Salomé*, 33 anos

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Não dá para saber até experimentar

do sex shop, seja físico, online ou domiciliar. “Optamos por embalagens discretas nas vendas pela internet e para as lojas físicas escolhemos O prazer, principalmente, o sempre os endereços mais escondifeminino, foi um assunto pouco dinhos, discretos. Fora o cuidado que explorado, e até hoje não é algo que temos com a vitrine, pois como toda se converse abertamente. Comprar loja, precisamos fisgar a atenção de um produto erótico requer muitos quem passa, o que não significa ser cuidados. “Comparado aos produtos vulgar,” salienta Adalgisa Serafini. Nem só casais que estão à procude antigamente, os de hoje em dia têm uma qualidade muito superior. ra de novidades na hora H procuram Mas é importante ler as indicações, por refúgio nos brinquedos eróticos, procurar por materiais mais há mulheres que apresentam diagmaleáveis, como, por exemplo, a base de silicone, porque são materiais que evitam atrito, ferimentos e alergias”, aconselha a sexológa Elisângela Pereira. Nas lojas físicas e vendas domiciliares, os clientes recebem “Nunca tinha gozado. consultas e tutoriais. “Os produtos Só descobri isso estarão em contato com a região íntima quando usei dos consumidores, então ensinamos a um vibrador.” eles como usar, para que serve, como Isabel*, 28 anos higienizar. Também sugerimos que eles experimentem antes e damos dicas para incrementar a imaginação deles”, conta a consultora domiciliar Mercês Souza. Por determinações legais, lojas físicas não podem comercializar produtos para menores de 18 anos, sendo o público atendido por elas a partir dessa nósticos médicos que contraindicam faixa etária. “Compro em sex shops o ato sexual e contam com a ajuda há 30 anos, sempre gostei de dar dos itens. Maria Madalena*, 23, tem lingeries para minha esposa, e, com o útero septado - uma má formação a idade avançada, comecei a usar na cavidade do órgão, que o diviretardadores de ejaculação. Ela de em dois e dificulta a gravidez e nunca veio, eu compro tudo, gel, a penetração - e por incentivo de calcinha, porque ela sente muita seu namorado, Tomé*, 28, começou vergonha de entrar em um sex shop, a frequentar sex shops. “Eu fui acompanhada do meu nao que é estranho, porque eu nunca senti peso nenhum na consciência morado, e foi muito engraçado, por mais que eu fosse uma menina aberpor vir”, conta Abel*, de 70 anos. Muitos dos que entram em um sex ta, tinha alguns preconceitos com esse shop pela primeira vez se deparam tipo de loja que foram completamencom um universo novo. Contudo, o te desmistificados quando cheguei fato de ter pênis de plástico nas pa- lá. Alguns produtos eu pude experiredes não interfere na higienização mentar, como o vibrador, que testei das lojas, pelo contrário, percebe-se a pulsação em meu braço, pude senum grande asseio com todos os ob- tir o cheiro, o que é bastante aconselhável: experimentar.” jetos. Outras mulheres não têm parA discrição é o requisito principal 32

ceiros com uma mente tão aberta e desfrutam de momentos de prazer sozinhas. “Participando de um amigo oculto com as moças com quem trabalho, ganhei um vibrador. Nunca tinha gozado, só fui descobrir isso após usá-lo. A partir daí, sempre vou a um sex shop para olhar outros brinquedos que podem me agradar,” relembra Isabel*, 28 anos. A especialista Elisângela Pereira destaca que o psicológico interfere no estímulo sexual, tanto quanto limitações biológicas. “O que eu aconselho é a terapia sexual, apenas o brinquedo pode não resolver, alguns casos é preciso trabalhar a mente e quebrar os bloqueios mentais em relação ao sexo, para que esses brinquedos possam ajudar. Em primeiro lugar, a mente, pois quando ela funciona bem, todo o resto funciona também”. Apesar de ser um universo liberal em relação a sexualidade, alguns preconceitos do universo cotidiano que vivemos fazem parte dele. “O único momento em que um corpo negro era representado em algum produto era sempre com o estereótipo de homem ‘pauzudo’. Não vimos outro tipo de consolo, e foi bem triste, porque a maior parte dos objetos eram em cores brancas”, destaca Maria Madalena*.

“Os geizinhos são matadores, é tiro e queda. Vou falar que não gosto?” Abel*, 70 anos


“É engraçado ir a um sex shop.” Maria Madalena*, 23 anos

A primeira vez a gente nunca esquece O sexo faz parte da natureza humana, e, como a sexológa Elisângela Pereira ressaltou, quando é feito de livre e espontânea vontade, é benéfico para saúde. Para melhorar a qualidade da vida sexual, e, consequentemente, todos os demais aspectos, o sex shop é um bom lugar. Segundo Adalgisa Serafini, do Intense Sex Shop, “as pessoas chegam com vergonha, e nosso trabalho é fazer com que elas fiquem à vontade. Permitimos que elas experimentem; somos consultoras, psicólogas, amigas, pois em determinado momento elas desabafam conosco, e não estamos aqui para julgar ninguém.”

“A professora tinha passado um trabalho para cada turma do segundo ano do Ensino Médio, minha amiga, que estudava em outra turma, ficou responsável por encenar Rei Lear, de Shakespeare. Para encurtar a conversa, fui com ela procurar um corselet, e, em todas as lojas de lingerie, falaram que só iríamos encontrar em um sex shop. No auge de nossos 16 anos, entramos no único sex shop que conhecíamos na cidade, o único que tinha uma placa enorme com duas pimentas formando um coração. Era tanta informação nova, que comecei a rir - sempre rio quando fico nervosa- e não aguentei ficar lá dentro. Ela encontrou o corselet, mas a moça não quis vender, por causa da idade. Dessa experiência lembro de alguns detalhes do que vi na loja, como um dedo gigante emborrachado e um copo com posições, que, na época, me pareciam impossíveis de dar certo. Anos depois, para fazer esta matéria para revista Periscópio, voltei a um sex shop, dessa vez online e descobri uma linha chamada “50 tons de amor”, comecei a rir dentro da sala de redação. Fazer esta matéria foi um teste de maturidade, porque diante de certos objetos eu apenas conseguia rir. Sexo é uma coisa muito divertida, não precisa ser levado tão a sério como minha avó faz. E, ao mesmo tempo, é muito sério, não podendo ser levado tão na brincadeira como eu levava até então. As vendedoras são extremamente profissionais, elas estão ali a trabalho. A criatividade que há nessa indústria é surpreendente, não há razões para não experimentá-la. Sem dúvida alguma, sex shop é um espaço feminino, após entrar em vários deles, acessar inúmeros sites e conversar com clientes, percebi isto. É um lugar onde você pode falar de orgasmo, sem ser olhada com cara feia. Os nomes dos produtos já te desinibem para explorar sua sexualidade, sem pudores, faz você se sentir confortável com seu corpo.” Bárbara Braga, 20 anos

“Minha mãe me pediu para levá-la no Centro e desceu do carro muito depressa, mas consegui ver em qual loja ela entrou, era um sex shop. Para zoar com ela um pouco, estacionei e entrei também, lembro que ela ficou toda vermelha de vergonha, só que eu comecei a olhar as prateleiras, ver as lingeries e achei tudo interessante. Minha mãe desistiu de levar o que quer que fosse, mas eu acabei levando uns peitinhos de chocolate que tinha. Quando contei para o meu namorado, Davi*, 20 anos, ele me deu uma dica indireta, dizendo que eu podia voltar lá e pegar umas bolinhas que provocam sensação de calor. Então, eu acabei virando consumidor, sempre passo e pego caneta de escrever, bolinhas, gel de massagem. Vibradores ainda não testamos, quem sabe um dia.” Abraão*, 21 anos.

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PAIXÃO POR VOAR HISTÓRIAS DE PILOTOS E COMISSÁRIOS QUE ESCOLHERAM O CÉU PARA TRABALHAR Texto e design: Alice Xavier

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Realizar um sonho profissional não é tarefa fácil. Muitas pessoas nascem com ele e passam boa parte de suas vidas planejando e tentando colocar em prática. Tal realização requer dedicação, renúncias, gastos, abandono de vida social, entre tantos outros fatores. É o que acontece na vida de quem deseja se tornar um profissional da área de aviação: ausência, na maioria das vezes, dos finais de semana e feriados de folga; estudo, muito estudo,

renúncias, gastos financeiros e etc. Afinal, qual o problema de tanta renúncia? Se perguntar a qualquer pessoa do setor, eles dirão que não há problema nenhum, pois sabem que o esforço de cada etapa os colocou onde estão atualmente. Em sua maioria, foram motivados pelo sonho de voar, que surgiu ainda na infância. Se este sonho é mais barato para quem escolhe a profissão de comissário de bordo do que para um piloto, ainda assim, em ambos os casos, há muitos

percalços a superar. Em qualquer cargo dentro da aviação, a seriedade, o comprometimento e a segurança são fatores essenciais que o profissional envolvido precisa aprender. A revista Periscópio ouviu esses apaixonados pelo céue conta suas histórias de superação, dificuldades e vitórias. Saiba também como ingressar na carreira da aviação e porque, de acordo com a maioria dos entrevistados, o sonho é essencial para se conseguir.

Profissão Piloto: sonhos que se tornaram realidade Arquivo pessoal Fábio Stersi

Desde os primórdios da humanidade, o homem sonhava em voar. Há mais de um século, o céu deixou de ser um espaço apenas para pássaros e insetos. Segundo os dados da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), somente no ano de 2016, no Brasil, foram registrados um total de 3.638 pilotos, dentre as diversas categorias existentes, e 211 comissários de bordo. É interessante destacar que, para conseguirem tal licença, os profissionais passam por longos processos que incluem, por exemplo, exame médico rigoroso, aulas teóricas e práticas, além de uma avaliação, também aplicada pela Anac, de conhecimentos específicos. Fábio Stersi, 32 anos, desde criança, sempre se identificou com aviação. “Meus brinquedos prediletos eram aviões e tudo que envolvia esse meio. Um pouco diferente dos colegas, que gostavam de bola e bicicleta. Passava dias e noites olhando para o céu, procurando rastros de aeronaves. Meus pais falam que eu ficava encantado quando me levavam ao aeroporto e me colocavam perto de algum avião. Aliás, este era meu passeio predileto aos finais de semana em Juiz de Fora.”

Fábio Stersi hoje atua na aviação comercial

Motivado pelo sonho de infância, Fábio, na adolescência, continuava frequentando o Aeroclube da cidade, e, com isso, foi conhecendo outros interessados por aviação e também profissionais que, por algum tempo, eram considerados referências para ele. Na família, não teve nenhuma influência, para escolher essa profissão, já que nenhum familiar que trabalhava na área. Natural de Juiz de Fora, iniciou o seu curso teórico logo após o término do Ensino Médio, aos 17 anos. “Como minha

Licenças Emitidas Anac - masculina e feminina, em 2016 PCM - PILOTO COMERCIAL - AVIÃO

1001

PLA - PILOTO DE LINHA AEREA - AVIÃO

405

PPR - PILOTO PRIVADO - AVIÃO

1724

PCH - PILOTO COMERCIAL - HELICOPTERO

181

PPH - PILOTO PRIVADO - HELICOPTERO

286

PLH - PILOTO DE LINHA AEREA - HELICOPTERO

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COM - COMISSÁRIO DE BORDO

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família não possuía condições financeiras para pagar tudo, foi uma etapa muito difícil em minha vida. Fui ajudado financeiramente por parentes e colegas que apostavam no meu sucesso. Também tive que fazer um financiamento no final do curso. Por não ter condição, não fiz o superior em ciências aeronáuticas. Segui o caminho mais barato, estudando em aeroclubes e escolas de aviação civil.” Já as horas de voo do curso prático foram realizadas em Juiz de Fora, Araraquara (SP), Rio de Janeiro e Belo Horizonte, pois, segundo o piloto, o dinheiro era curto, e, por isso, era preciso procurar a opção mais em conta. Assim, aos 18 anos, ele obteve sucesso em todo treinamento e, em seguida, foi habilitado para pilotar aeronaves. Essa habilitação permitiu que Fábio participasse das seleções de emprego para a função de copiloto em linhas aéreas, ou que voasse em aeronaves de pequeno porte, na aviação executiva. Diante das opções sobre qual carreira seguir, Fábio

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optou pela aviação executiva, onde atua como comandante. A função já é exercida há 14 anos, e o piloto passou por três empresas, até chegar à que trabalha hoje, onde está há quatro anos e meio. Ele conta que como comandante-coordenador da frota da aviação executiva, exerce a função de chefia do equipamento, sendo responsável por todas as operações e demandas desta aviação, com duas aeronaves e 13 pilotos, sob sua gestão. Desbravando os céus há 35 anos, o piloto João de Melo narra sua história na aviação, que também começou ainda na infância. “No meu caso, minha mãe gostava de aviação e, por isso, comecei a ter curiosidade. Lembro de brincar muito com aviões e a família sempre me presenteava com modelos para montagem.” Na adolescência, João tentou ingressar na aviação militar, o que não foi possível, devido a um astigmatismo, que serviu de impedimento para a carreira. Com isso, decidiu ser piloto civil, embora justifique que a maior dificuldade para alcançar o tão sonhado objetivo foi a questão financeira. “Tive ajuda paterna para o início, mas depois tive que trabalhar para conseguir fazer os cursos necessários. Iniciei trabalhando no aeroporto de Brasília, como despachante em uma empresa aérea regional. Depois, fui trabalhar como instrutor de voo em aeroclube e, paralelamente, fazia alguns voos de freelancer em táxi aéreo. Estou trabalhando, atualmente, um uma grande empresa aérea, desde 1991.” João também destaca que, paralelo ao sonho de ser tornar um aviador, reconhece o fato de a aviação ainda ser restrita a poucas pessoas, o que justifica os dados levantados pela Anac. “Fora a cobrança: é a única profissão que você é ‘checado’ todo ano.” São cinco testes anuais relativos à teoria, à prática e à parte médica. Ainda assim, é possível perceber que o amor à profissão fala mais alto diante de tandos percalços. “O aviador é sempre um apaixonado pela profissão. Reclama muito, mas não larga o osso”, destaca. Além disso, ele ressalta também a responsabilidade de lidar com vidas, pois é necessário trabalhar com zero possibilidade de erro, já que um acidente aéreo é sempre uma grande tragé-

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Como se tornar um piloto de avião comercial 1º passo: Piloto Privado - Matrícula: deve ser feita em um curso de Piloto Privado teórico em uma escola homologada pela ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil) - Exames médicos: Com o CMA em mãos, o aluno poderá dar início ao curso de Piloto Privado de Avião teórico, e até mesmo dar início aos voos. - Curso teórico: iniciar o curso teórico de Piloto Privado na escola onde realizou a matrícula, ministrado em sala de aula e tem duração aproximadamente de três meses. - Prova da Anac: Após a conclusão do curso teórico, o aluno deve agendar e realizar o exame teórico da ANAC. - Treinamento prático: aprovado no exame da ANAC, o aluno poderá iniciar ou dar continuidade no seu treinamento prático para a conclusão do curso, composto de 35 horas de voo (mínimo exigido pela ANAC). Ao término das horas de voo e após a autorização do instrutor, é realizado o voo de avaliação (Voo de cheque) para obtenção de Licença, realizado por um Examinador Credenciado da ANAC, que dará aprovação técnica para obtenção da Licença de Piloto Privado de Avião. Com a habilitação de Piloto Privado em mãos, o piloto estará habilitado a pilotar aviões monomotores em condições visuais, porém somente desportivamente ou em aeronave particular. Não poderá exercer nenhuma função remunerada. 2º passo: Piloto Comercial - Matrícula: curso de Piloto Comercial Teórico em uma escola homologada pela ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil). - Exames médicos: O aluno deve solicitar novamente à Escola a carta de apresentação para realização do exame médico de primeira classe. Esse exame é igual ao exame já realizado no Piloto Privado, porém os critérios de análise são mais exigentes. - Curso teórico: iniciar o curso teórico de Piloto Comercial na escola onde realizou sua matrícula. O curso é ministrado em sala de aula e tem duração aproximadamente de três meses. As matérias estudadas são as mesmas do Piloto Privado porém mais aprofundadas. - Prova da ANAC: após a conclusão do curso de Piloto Comercial Teórico, o aluno deve agendar e realizar o exame teórico da ANAC. - Treinamento prático: Após aprovado no exame da ANAC, o aluno poderá iniciar ou dar continuidade no seu treinamento prático, caso já o tenha iniciado, composto de 115 horas de voo (mínimo exigido pela ANAC). Ao término das horas de voo e após a autorização do instrutor, é realizado o voo de avaliação para obtenção de Licença (Voo de cheque), realizado por um Examinador Credenciado da ANAC, que dará aprovação técnica para obtenção da Licença de Piloto Comercial de Avião. Com a habilitação de Piloto Comercial em mãos, o piloto já esta habilitado a exercer funções remuneradas em diversas áreas como taxi aéreo, transporte de pequenas cargas, voos executivos, serviços especiais e outras funções até acumular experiência suficiente para ingressar em uma linha aérea. Fonte: Aeroclube de Juiz de Fora


Arquivo pessoal Diogo Cândido

dia, em geral, com vítimas fatais. O estudante do curso superior de aviação civil e aluno do curso de Piloto Privado, Diogo Cândido, também é motivado pelo sonho de voar, que, segundo ele, existe desde a infância. Quando ingressou na faculdade de física, começou a entender melhor sobre aerodinâmica e mecânica dos fluidos, o que foi um estímulo para iniciar o curso e projetar uma carreira profissional na área. Diogo ressalta que seu plano para o futuro é ingressar na aviação comercial ou executiva, e, para isso, faz questão de destacar a dificuldade em realizar o curso, tanto pelo lado financeiro, quanto pelo lado da saúde, já que os exames são muito rigorosos e qualquer problema comum pode ser empecilho para ingressar neste mercado. “A demanda para pilotos no mundo inteiro, para o futuro, é uma coisa muito, muito grande, pois as pessoas estão voando cada vez mais, o que tem transformado o avião em um meio de transporte viável, rápido, seguro e econômico. Então, os aeroportos, hoje em dia, possuem um movimento absurdo de passageiros. Isso requer uma demanda muito grande também de profissionais da área.” Segundo Diogo, quando ele voa, ainda que, por enquanto, na qualidade de passageiro, sempre tem a sensação de liberdade, sentindo a adrenalina

Para Diogo, a adrenalida sentida durante um voo, em uma turbulência, por exemplo, é uma sensação muito legal, o que, para qualquer passageiro comum, seria um susto

liberada pelo corpo. Em uma turbulência, por exemplo, o que, para qualquer pessoa que vê a aviação apenas como um meio de transportar pessoas, seria um motivo de apreensão, para ele, é um momento legal, além de ficar deslumbrado também por aquilo que ele vê lá de cima: “É tudo muito mais bonito do que o que você vê, quando está aqui em baixo.” Questionado sobre o fato de a aviação ser uma área em que as pessoas estão por amor ou por status, o estudante ressalta que acha pouco provável alguém ingressar apenas por status, pois, devido à dificuldade, tanto pela

Como se tornar um aviador da Força Aérea Brasileira - Ingresso na Escola Preparatória de Cadetes do Ar, em Barbacena (MG), no primeiro ano do Ensino Médio. - O candidato não pode ter menos de 14 anos nem completar 19 até 31 de dezembro do ano da matrícula. - A seleção envolve provas de Língua Portuguesa, Língua Inglesa, Matemática e Redação. - Ao final do terceiro ano, os alunos são submetidos ao Teste de Aptidão à Pilotagem Militar (TAPMIL), prova decisiva para quem pretende se tornar um aviador militar. - Um outro caminho para se tornar um aviador é fazer o processo de seleção diretamente para a AFA. Os candidatos não devem ter menos de 17 anos nem completar 23 anos de idade até 31 de dezembro do ano da matrícula. - O processo seletivo é destinado a candidatos com ensino médio completo. O exame de admissão compreende as etapas de Exame de Escolaridade (provas escritas de Língua Portuguesa, Língua Inglesa, Matemática, Física e Redação); Inspeção de Saúde; Exame de Aptidão Psicológica; Teste de Aptidão à Pilotagem Militar; Teste de Avaliação do Condicionamento Físico (TACF); e Validação Documental. - Após essa etapa, o aviador pode optar entre as especializações de Asas Rotativas, Busca e Salvamento, Caça, Patrulha, Transporte e Reconhecimento. Fonte: http://www.fab.mil.br

exigência do curso, quanto pelos gastos financeiros, é um sonho que se almeja mas que requer o enfretamento de muitas dificuldades. A aviação militar

Para aqueles que amam voar, mas dispõem de poucos recursos financeiros, ingressar na aviação militar pode ser uma opção bastante viável para a realização do sonho. Domacoski, de apenas 19 anos, é outro que, desde criança, sempre foi muito apaixonada pela aviação. “Tenho um trabalhinho de escola que eu guardei, em que desenhei um avião.” Entretanto, segundo ele, pagar um curso de piloto privado era inviável. Com isso, motivado pelo pai, que lhe apresentou a possibilidade de ingressar na Força Aérea, aos 14 anos, entrou em um cursinho preparatório e foi aprovado. Atualmente, está no primeiro ano de uma escola de nível superior de aviação militar, em um processo gradativo, operando diversas aeronaves, voltadas para a pilotagem militar. Segundo o estudante, “a sensação de voar é indescritível. Quando você está lá em cima, realmente não dá para imaginar, mas é maravilhoso”. Média de Gastos

Segundo dados do Aeroclube de Juiz de Fora, para o ingresso no curso de piloto privado, os valores são estimados, dentro do número mínimo de aulas, entre 10 a 15 mil reais. Já para a formação em piloto comercial, o gasto gira em torno

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Comissários: os anjos do ar

A partir do momento em que um passageiro entra no avião, o seu conforto e a sua segurança são de responsabilidade do comissário de bordo. Função de extrema responsabilidade, pois é ele que irá demonstrar todos os procedimentos de emergência adotados pela empresa, além de fazer o serviço de bordo e cuidar dos passageiros, durante toda a viagem, se comunicando o tempo todo com a tripulação, ao longo do voo. Compete a esse profissional atenção redobrada, estando sempre alerta, de acordo com o seu grau de consciência situacional. Ainda, para ingressar na área, é preciso disponibilidade para trabalhar em horários incomuns, bem como finais de semana, datas comemorativas e etc. Certamente, diante de tanta dedicação e exigência, o comissário de bordo passa por um longo processo, até conseguir sua licença para trabalhar na área, que, na maioria das vezes, também atrai os apaixonados por voar, como a comissária Amanda Conforto, de São Bernardo do Campo. Ela sempre teve o sonho de ser aeromoça. “Minha mãe, quando estava grávida, gostava de passear, aos finais de semana, no aeroporto, para ver os aviões, e, de acordo com ela, quando o avião decolava ou pousava, a barriga mexia”. Ao crescer, as visitas ao aeroporto continuaram frequentes. Durante a fase escolar, Amanda afirma que, ao ser questionada sobre o que queria ser quando crescesse, sempre respondia aeromoça e isso era motivo de risadas tanto para alunos, quanto para professores, uma vez que, por estudar em escola pública, achavam que era impossível alguém como ela conseguir realizar um sonho como esse. Ao completar 17 anos, ingressou no curso para se tornar comissária de bordo, e, ao concluí-lo, prestou a prova da Anac, o que lhe conferiu habilitação para ingressar no mercado de trabalho. Depois de algumas seleções foi aprova-

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Arquivo pessoal Amanda Conforto

de 50 a 70 mil reais. É importante ressaltar que o aluno, além desse investimento, ainda terá outros gastos com estudo de língua estrangeira, bateria de exames médicos, mais cursos teóricos.

Conhecer lugares diferente é uma das coisas que a Amanda mais gosta

Segundo Amanda, quando se ama o que faz, não há trabalho, mas sim diversão

A primeira vez de Amanda dentro de um avião foi no seu primeiro dia de trabalho

da, no ano de 2000, pela companhia que trabalha atualmente. Com um humor extraordinário e a clareza do amor à profissão, Amanda, de forma engraçada, relatou que, no primeiro dia de trabalho, nunca havia entrado em um avião antes. Dessa forma, “a sensação na decolagem foi única, não sabia se ria ou se chorava.” Sobre as dificuldades para ingressar na carreira, a aeromoça destaca que o conhecimento de língua estrangeira foi o diferencial que a permitiu ingressar no mercado de trabalho. Diferente de Amanda, que desde o ventre da mãe já apresentava sinais de que escolheria o céu como seu local de trabalho, o que motivou André Alves, de Juiz de Fora, a atuar na aviação foi o desejo de aventura, o fato de sempre gostar muito de viajar. Formado em marketing, ele estava estudando para concursos públicos, até o momento que, em 2015, o país começou a passar por uma grave crise. Com o surgimento de vários boatos acerca do congelamento no número de concursos que seriam realizados, como forma de sanar a crise, André desistiu da empreitada. Dessa forma, iniciou uma série de pesquisas sobre as profissões que estavam em alta e que pudessem ser associadas ao seu gosto de viajar. Numa dessas buscas, surgiu a profissão de comissário de bordo. Segundo ele, no mesmo momento já começou a pesquisar onde poderia fazer o curso, ficando surpreso, quando descobriu que na sua própria cidade seria possível realizá-lo. Durante o curso, André participou de seleções de recrutamento, em companhias aéreas internacionais, pois descobriu que, lá fora, basta ter fluência em Língua Inglesa e participar de uma bateria de testes, ao passo que, no Brasil as exigências são maiores. Foram necessárias três seleções para que ele conseguisse aprovação e fosse contratado por uma companhia aérea dos Emirados Árabes, há nove meses. André destaca também que, após ser aprovado na seleção, passou três meses, já nos Emirados Árabes, participando de inúmeros treinamentos, antes de começar a voar. Como todas as companhias aéreas, a questão da segurança é levada a sério e o alinhamento da


Arquivo pessoal André Alves

Segundo André (o primeiro da fila), apenas três homens, ele e os outros dois da foto, foram escollhidos na seleção para comissário de bordo, em um total de 315 candidatos Arquivo pessoal André Alves

Por 3 meses, André foi submetido à uma série de treinamentos, até começar a voar

“Trabalhar no avião para mim até hoje é o maximo!” Amanda Conforto

Como se tornar um comissário - Ensino Médio completo; - 18 anos até o final do curso; - Apresentar o CMA (Certificado Médico Aeronáutico) antes das instruções práticas do curso.

Arquivo pessoal André Alves

equipe de tripulantes, para um trabalho eficaz, é a prioridade. Na maioria das vezes, as pessoas pensam que para ter um trabalho desses, é necessário deslocamento frequente e constante afastamento de casa, dificultanto as posibilidades de se ter um relacionamnto sério com alguém. Mas contrariando esse pensamento, André se prepara para casar ainda em 2017 e conta que, após o matrimônio, a noiva irá morar com ele em Dubai, seu local de trabalho. Quando questionado sobre os aspectos negativos em trabalhar fora do Brasil, André destaca que a distância é um dos maiores problemas, pois, por conta disso, nem sempre é possível vir ao país, nem mesmo a trabalho. Amanda Conforto também cita alguns pontos negativos como nem sempre poder estar presente em dias festivos, ou aniversários de familiares e amigos. Além disso, “hoje o que acho negativo também é o fuso horário dos lugares que vou. Preciso de um dia para me recuperar. Hoje cheguei de Madri, cinco horas a mais de diferença”, conta. Já sobre os pontos positivos, André destaca a questão da segurança, morando em Dubai, assim como os benefícios que a companhia aérea ofereçe aos funcionários, que, segundo ele, valem a pena. Além, é claro ,da remuneração oferecida ser atrativa. Em comum, os dois comissários de bordo afirmam que conhecer novos lugares e culturas diferentes, sem dúvida alguma, é o aspecto mais positivo da profissão. “Adoro conhecer lugares novos, saborear comidas locais, conhecer um pouco da cultura de cada um”, afirma Amanda, que, além de conhecer todos os estados do Brasil - isso mesmo, todos! - também já teve a oportunidade de conhecer Miami, Orlando, Nova Iorque, Cidade do México, Lima, Buenos Aires, Frankfurt, Madri, Milão, Paris, Cancún, Bogotá, Chile, Barcelona, Joanesburgo, entre outros. André disse que não se recorda mais dos países que teve a oportunidade de conhecer, após ter ingressado na profissão, porém destaca alguns lugares que gostou muito de visitar, como Xangai, Roma e Copenhague. Esta última cidade o marcou muito, pois ele teve a oportunidade de levar os pais junto.

Carga horária e duração do curso - Geralmente a carga é de 160 horas-aula, com duração de 4 a 6 meses. O curso conta ainda com aulas teóricas e práticas, como sobrevivência na selva e no mar, assim como primeiros socorros após acidente aéreo. Após o curso, o futuro comissário de bordo presta a prova teórica da Anac, e, aprovado, está apto a participar de seleções, para ingressar no mercado de trabalho. Fonte: Proflight

André levando os pais para Copenhague

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Texto, fotos e design: Pedro Augusto Figueiredo

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Sobre livros, sebos e pessoas


“Livraria Quarup. Livraria Antiquária” anuncia uma placa branca com letras verdes no nº 484 da Rua Padré Café. Da calçada mal se consegue ver a casa de fachada amarela com detalhes em azul claro. Somente após andar alguns metros portão adentro é possível enxergar algumas cadeiras, assim como armários e livros empilhados do lado de fora. Os passos dos clientes são tímidos, como se duvidassem da existência da livraria no final da passagem. “Pode entrar, fique à vontade”, diz Cláudio Luiz, 61 anos, o dono da livraria. Convite aceito, outra surpresa: asfixiamento por livros. Eles estão espalhados do chão ao teto, em pilhas, prateleiras e armários por todos os cômodos, inclusive no banheiro e na cozinha. É raro encontrar um pedaço de parede livre. Enquanto realiza um tour pela casa, Cláudio brinca: “A única coisa de que não abrimos mão aqui é o jazz.” Diante de tantos livros e informações novas, a música até então era imperceptível, como se fosse tão natural quanto as paredes ou os livros que parecem sustentar o teto. “Por se tratar de uma casa tem a questão do aconchego. No que eu recebo você e te convido pra entrar, você já é da casa. Você não é aquela pessoa que é atendida da porta pra fora. E aqui especificamente não tem balcão, não tem nada impedindo as pessoas de caminhar aqui dentro. Se a pessoa quiser ir à cozinha e tomar um café, ela pode. Não precisa nem me falar”, afirma o dono.

A Quarup foi fundada em 1993 por Cláudio e um ex-sócio, tendo funcionado nos primeiros anos no segundo andar da Galeria Constança Valadares, no Calçadão da Rua Halfeld. Na medida em que Juiz de Fora cresceu, o fluxo de pessoas no centro aumentou, o que fez com que Cláudio sentisse a necessidade de mudar de ponto. Segundo ele, a casa onde hoje funciona a livraria, alugada pela viúva de um amigo, causa surpresa nas pessoas pela localização e também apresenta menores custos de manutenção. A escolha também foi influenciada pelos objetivos do dono. Como diz a placa de entrada, a Quarup é uma livraria antiquária. “O meu perfil mais especificamente é o perfil do antiquário, aquele que oferece outro tipo de produto, promove leilões não só de livros, mas em tudo que é do papel, desenhos, gravuras, estampas, artes. É diferente do esquema do sebão, que compra e vende de tudo”, afirma. Para Cláudio, os sebos e livrarias que trabalham com livros usados fazem um elo entre o passado e a contemporaneidade já que estes estabelecimentos trabalham tanto com os lançamentos quanto com livros lançados há algum tempo. Segundo ele, outra diferença dos sebos em relação às livrarias comerciais é a possibilidade de encontrar grandes autores brasileiros como Clarice Lispector e Monteiro Lobato traduzindo autores estrangeiros.

DA FEIRA À GALERIA

Tudo começou em uma banquinha pequena, no chão da feira, fazendo trocas de dois livros por um para aumentar o acervo. Assim nasceu há 55 anos a Banca do Vasco, a livraria mais antiga da cidade. A fundadora é Ivone Guimarães, hoje com 78 anos. Dona de uma fala rápida e movimentos precisos, Ivone trabalhava como catadora de café, selecionando os grãos que seriam comercializados antes de começar a livraria na feira. O marido, Orlando Vasconcelos, tinha grande conhecimento na compra de produtos, inclusive livros usados e influenciou a esposa. Ao contrário do senso comum, o nome da livraria pouco tem a ver com o time de futebol. Vasco é a abreviação do sobrenome de Orlando, que era de origem portuguesa. É por esse motivo que a Cruz de Malta, símbolo português, é utilizada como logomarca da livraria. Da feira, o negócio cresceu e se instalou em uma loja na galeria Salzer, na Avenida Rio Branco, onde estão localizadas outras livrarias da cidade. Apesar da idade, Ivone está presente todos os dias, das 9h da manhã às 19h. “Não saio nem para almoçar. É corrido, mas assim a gente vai levando a vida”, conta. Celso Mauler, neto de Ivone, cresceu e foi criado dentro da livraria, como toda a família. Hoje, ele ajuda a avó com os afazeres diários do estabelecimento. “Quando eu era criança, minha vó brigava comigo para eu ir à escola, me deixava de castigo no segundo andar aqui do sebo para que eu não fugisse e me perdesse na rua”, lembra o neto. Fotos: Pedro Augusto Figueiredo

Malas, armários, pilhas e mais pilhas de livros enfeitam e escondem a fachada da casa onde funciona a Livraria Quarup

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CLÁUDIO, O LIVREIRO “Eu tenho a felicidade de fazer parte de uma geração que é a geração da imaginação. Quando alguém contava uma história, você imaginava o que a pessoa estava dizendo. Tinha toda uma questão do fantástico. Hoje não. Até por causa dos avanços da tecnologia, é muito copia e cola, faz em cima, enquadra, baixa. Está tudo muito resolvido no mundo virtual, mas a vida não é virtual”, opina o dono da Quarup. Quando criança, Cláudio lia gibis, desenhava e criava as próprias histórias, além dwe recriar personagens de histórias já famosas. Aos 14 anos, conseguiu um emprego na Companhia de Fiação e Tecelagem São Vicente. Com carteira assinada, a primeira coisa que fez foi abrir um crediário na livraria Pena de Bronze, localizada na Rua Halfeld. Sendo o mais velho de sete filhos, o livreiro tinha obrigações de ajudar na educação dos irmãos. Na Pena de Bronze, comprou os primeiros livros com seu próprio dinheiro, além de livros didáticos para os irmãos. “Eu e alguns companheiros que gostavam de literatura éramos de famílias de classe operária e o acesso à literatura não era tão fácil como hoje”, conta. Pouco tempo depois, a paixão pelos livros se tornou profissão: já com 17 anos, passou a trabalhar vendendo livros e coleções de porta em porta, a convite de um amigo. Desde então, Cláudio nunca abandonou o ramo. Mesmo no serviço militar, onde ficou durante os primeiros anos da vida adulta, vendia livros para os colegas de batalhão. Em 1979, após ter dado baixa, conseguiu um emprego numa das maiores livrarias de Juiz de Fora à época, a Livraria Viviane. Cláudio conta que lá pôde entender o livro não apenas como um objeto, mas também sua parte comercial, como as relações entre livrarias, distribuidoras e representantes. Porém, o conhecimento dos bastidores da cadeia livresca não afetou a sensibilidade e a paixão pelo livro. De fala serena e pausada, sentado na cadeira à frente da casa do fa-

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“O livro é o mais bonito objeto de design de todos os tempos”, afirma Cláudio Luiz

lecido amigo que hoje guarda um imenso acervo, Cláudio, o livreiro de toda uma vida, sentencia: “O livro é um objeto precioso, uma carga nobre. Ele nunca te tira nada, só acrescenta”. Com o Brasil ainda sob o regime da ditadura militar, Cláudio recordase da censura que pairava sobre os meios impressos no Brasil: “Naquela época o negócio com o livro era muito mais difícil, tinha muita censura sobre o livro. Então alguns grupos eram de certa forma policiados, vigiados e os livreiros e as casas comerciais de livros selecionavam seus produtos para não terem problemas com a polícia, porque, de repente ela, podia chegar e recolher livros de autores ditos subversivos, comunistas”, lembra. Após quase seis anos na Livraria Viviane, Cláudio passou a trabalhar no Espaço Cultural Livros e Artes. No prédio, o primeiro andar era uma livraria sob sua responsabilidade; no segundo andar havia uma galeria de arte onde eram realizadas expo-

sições; por último, no terceiro andar, funcionava o Cineclube Humberto Mauro onde eram exibidos cerca de quatro filmes por semana. “Aquilo era um palácio da cultura”, relembra com gosto, com o endereço na ponta da língua: Rua São João, número 357. “Nessa livraria tinha muita coisa importada. Exigia outro preparo, porque os livros eram comprados em dólar, franco, peseta (moeda que precedeu o euro na União Europeia). Você tinha que fazer a conversão porque a gente importava direto, não tinha distribuidora”, diz. Depois de uma passagem por outra livraria, voltada para livros didáticos e pedagógicos, ele finalmente fundou a Livraria Quarup. Hoje, define seu horário de trabalho de acordo com as tarefas do dia. Pode abrir às sete da manhã e fechar duas horas depois ou trabalhar das duas da tarde até as três da manhã. “Nessa altura da vida, já tendo trabalhado muito, como todo mundo trabalha, eu posso relaxar um pouco”, afirma Cláudio.


Do outro lado da Banca do Vasco funciona a Livraria Brasil, administrada por Evonilda Corrêa, outra senhora. Ao contrário de Cláudio e de Ivone, ela não fundou a livraria. O proprietário anterior da loja também tinha um comércio de ferragens. Com as atenções divididas entre os dois negócios, ele acabou não dando conta de administrar a livraria e decidiu passar o ponto para outra pessoa. A afilhada de casamento de Evonilda trabalhava na livraria e queria continuar com a loja. Porém, não tinha condições para arcar com os custos sozinha. A madrinha então decidiu ajudá-la por dois meses. Apesar dos planos, Evonilda nunca mais saiu: dois meses viraram 33 anos. “No começo eu fiquei perdida, não conhecia quase nada. Hoje as pessoas se impressionam, falam que eu tenho um computador na cabeça”. A comparação não poderia ser mais precisa: “Tem Ulysses, do James Joyce?”, pergunta um jovem que entrara decidido na loja. “Esse não tenho, vendi o último exemplar que tinha na semana passada”, responde prontamente Evonilda. “E A Divina Comédia, tem?”, insiste o rapaz. “Tem, está ali naquela prateleira”, aponta a dona sem titubear. Segundo Evonilda, nos anos 80 o produto mais procurado pelos clientes eram as revistas, não importando o segmento. Com o passar dos anos, os livros usados foram ganhando destaque. Hoje, junto com livros raros, eles são a principal fonte de renda da Livraria Brasil.

O COMÉRCIO DE LIVROS USADOS NA INTERNET

Livro raro conta a história da colonização alemã e da União Indústria em Juiz de Fora

emigrações até as tradicionais festas da Colônia de São Pedro, passando por aspectos culturais e sociais do povo germânico e os laços de amizade e cooperação mútua que hoje unem Alemanha e Juiz de Fora”. O movimento nos sebos e livrarias do centro da cidade é mais intenso do que na Livraria Quarup. Não só o perfil e a formação dos donos e donas das lojas são diferentes do de Cláudio Lima, mas os próprios estabelecimentos trabalham com produtos diversos, como revistas em quadrinhos, vinis, CDs e DVDs. Com o maior fluxo de produtos, a chance de uma raridade passar despercebida aumenta. Foi o que aconteceu na Livraria Flamingo: “Eu não me recordo o título do livro, mas era uma espécie de autobiografia do Che Guevara, escrita em espanhol e autografada por ele. Eu não reparei e vendi barato. Só fui descobrir depois quando a pessoa que tinha comprado voltou à loja e me mostrou”, conta, com desgosto, Walter Carneiro, um dos donos da Flamingo.

Na última década tem se tornado cada vez mais comum os sebos cadastrarem seus acervos em plataformas online, o que permite realizar vendas de livros para todo o Brasil. A plataforma mais popular no país é a Estante Virtual. São mais de 2.500 sebos e livreiros cadastrados e 17 milhões de livros vendidos desde 2005. “Nós não temos um número exato, mas a Estante Virtual tem sido uma fonte de receita significativa pra nós da Flamingo”, afirma o dono. O acervo da livraria cadastrado no site conta com quase 10 mil livros. A plataforma também é benéfica para os compradores. Maria Tereza Guedes é estudande de História da UFJF e precisava de um livro específico para a faculdade. “Eu preferi comprar na Estante porque é muito mais fácil procurar o livro em um sistema online com vários sebos do que ir pessoalmente ao sebo ou livraria”, conta. O mestrando em linguística aplicada pela UFRJ, Robledo Cabral, pensa parecido com Maria Tereza. Segundo ele, mesmo que o frete possa encarecer um pouco o preço final, é mais vantajoso comprar nos sebos online. “Se eu for ao sebo, não tenho nenhuma garantia que eles vão ter o livro que eu quero.. Além disso, eu posso comparar preços e o estado de conservação dos produtos com mais facilidade no ambiente online.”

LIVROS RAROS: COLÔNIA ALEMÃ E CHE GUEVARA

Entre os livros raros no acervo da Brasil está uma edição datada de 1979 de “Juiz de Fora, a Companhia União e Indústria e os Alemães”, escrito por Luiz José Stehling. A obra trata do papel desempenhado pela colônia alemã no desenvolvimento da cidade, principalmente através da Companhia União e Indústria. Segundo o prefácio assinado pelo então prefeito de Juiz de Fora, Francisco Antônio de Mello Reis, o autor “consegue descrever, com rara felicidade e precisão, todo o processo de colonização alemã no Brasil, desde as primeiras

Carlos, hoje funcionário da Banca do Vasco, foi criado pela avó Ivone dentro do sebo

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Texto e design: Isadora Gonรงalves

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Foto: Arquivo 3255 Coworking

Na cidade, já são oito empresas que oferecem espaços de escritórios compartilhados com boa infraestrutura e grande sociabilidade

Com o objetivo de diminuir custos e aumentar a produtividade, diversas empresas consolidadas, pequenas startups e até profissionais autônomos estão abandonando a ideia de escritórios particulares para buscar espaços de trabalho compartilhados. Essa nova forma de pensar o ambiente de trabalho é chamada de coworking e, segundo dados do Coworking Brasil, no país já são mais de 800 espaços destinados a esse tipo de serviço. O termo surgiu no Vale do Silício, na Califórnia, região considerada um polo industrial na qual estão situadas várias empresas de alta tecnologia. O coworking não é somente o compartilhamento de um espaço físico, mas busca a construção de redes entre pessoas e

pensamentos para gerar uma troca de experiências. Apesar de a ideia ser recente, é possível encontrar coworkings de diversos modelos, alguns, por exemplo, são focados em escritórios e mesas de trabalho, outros possuem maior área externa e espaço de socialização. Porém, o conceito é o mesmo: um local para trabalhar, fazer reuniões, organizar eventos e estar em contato com outros profissionais. Para o economista Ricardo Freguglia, “o coworking promove a troca de conhecimentos e experiências entre os trabalhadores, tornando-os mais produtivos”. Isso, segundo ele, reflete também em melhores desempenhos das atividades de trabalho. Só em Juiz de Fora já são oito espaços que oferecem

o serviço, seja por um preço mensal, ou por um valor pago somente no dia do uso. Ralph Vianna, gerente de marketing da 3255 Coworking - primeiro local a trazer este tipo de negócio para a cidade - aponta que, no começo, a dificuldade da empresa foi introduzir o conceito de coworking no mercado. “A gente tinha dois problemas para resolver, explicar o que é coworking e ensinar as pessoas a usá-lo. Depois do terceiro ano, quando já vieram outros coworkings, as pessoas começaram a entender só de nome. Foi bom para a gente, alimentou o mercado.” Essa forma de se pensar o ambiente do trabalho faz parte da chamada economia colaborativa, um modelo de negócios que busca reduzir 45


Larissa Marques trabalha em uma empresa de comunicação que utiliza um dos espaços de coworking da cidade e aponta a questão do custo-benefício como uma das mais importantes quando Já são mais de 56 mil estações de trabalho compartilhados disponíveis no país se compara um escritório particular e um compartilhado. “Para uma serviços de recepção, copa, a gente faz para ele. Isso é uma empresa alugar uma sala ou um faxina e, muitas vezes, espaço inovação.” Esse serviço possui um público escritório no centro da cidade, de lazer e socialização. Segundo na localização que um coworking Renato Oliveira, coordenador da amplo e, por isso, é possível desde grandes normalmente tem, é muito caro e, 3255 Coworking, esse sistema encontrar fazendo esse compartilhamento “faz com que reduza em até 70% reuniões de negócios até aulas do espaço, a gente consegue dos custos operacionais de uma de preparação para o vestibular ratear os custos entre vários empresa.” Além do baixo valor do e cursos de teatro em um só empreendedores e pagar negócio, o empreendedor tem a endereço. Porém, nem todos os menos do que a gente pagaria vantagem de não se preocupar escritórios possuem a mesma em uma sala individual tendo com a manutenção de nenhum infraestrutura e, muitas vezes, o desses recursos. compartilhamento se dá entre p r a t i ca m e n t e “Um chefe de as próprias empresas. Para os mesmos “Isso faz com que empresa não tem Renato Oliveira, não se tratam benefícios.” reduza em até mais que lidar de concorrentes, mas sim de Em linhas 70% dos custos com internet, parceiras. “As vezes, o que a gerais, o valor operacionais de uma água, luz, limpeza. gente faz eles não fazem, então que o profissional empresa.” A quantidade de o que a gente não pode atender, paga dá direito energia que ele indica para o outro.” ao acesso a uma O Complexo Casa, por sala ou mesa Renato Oliveira não vai precisar gastar com exemplo, tem uma proposta de escritório coisas que não diferente da maioria. Eles bem equipada, internet, sala de reunião, vão gerar receita para ele. Ele se oferecem, além do espaço de banheiro, espaço de refeitório, preocupa com uma conta, o resto coworking, “atividades a céu 46

Foto: Arquivo 3255 Coworking

INFRAESTRUTURA

Foto: Arquivo 3255 Coworking

despesas e gerar uma maior eficiência e produtividade dos recursos. Ela é comum no dia a dia das pessoas em práticas como pedir caronas, usar bibliotecas e transporte coletivo, pegar algo emprestado, hospedar amigos e, cada vez mais, na prática de dividir o espaço de trabalho. Diz respeito a uma diferente maneira com que as pessoas pensam seus recursos, aproveitar ao máximo para evitar desperdícios. Um exemplo é usar o carro para dar carona para colegas de trabalho, o veículo é aproveitado com toda sua capacidade e acaba beneficiando a todos.


aberto no quintal, como feiras, pocket shows, cinemas, oficinas, bate-papos e happy hours internos.” Essa variedade de ofertas permite uma multiplicidade de públicos. NETWORKING

inovadoras como essa. Sejam nos aplicativos de carona, no aluguel de hospedagens particulares ao invés dos tradicionais hotéis ou no compartilhamento de uma mesa de trabalho, tudo isso visa ao corte de gastos, mas sem perder a qualidade. “O mercado de trabalho demanda profissionais cada vez mais completos em suas competências, e o coworking contribui para essa formação”, afirma Freguglia. Além disso, o Complexo Casa aponta como isso “reflete no modo de trabalho de hoje, no qual as pessoas tentam se relacionar mais com as outras e buscam criar experiências vivas no Offline.” Fonte: Coworking Brasil

Parte importante da experiência do coworking está na criação do chamado networking, rede de contatos e referências que um profissional tem no mercado. Essa rede seria importante para a cooperação em projetos, indicação de profissionais e o crescimento com a maior visibilidade. Larissa Marques acredita na importância desses contatos: “A minha empresa é uma startup, mas ao mesmo tempo nós temos contato com pessoas de comunicação, blogueiros, corretores de imóveis, pessoas da advocacia, são vários âmbitos e nós conseguimos ter vários contatos dentro do ecossistema empreendedor de Juiz de Fora e isso é muito importante.” Rafael Campos também utiliza o espaço de coworking com a empresa em que trabalha e, para ele, “o bom contato e ambiente agradável chamam a atenção e tornam o trabalho mais tranquilo. Além disso, é possível perceber a movimentação de diferentes ramos, com empresas trazendo conhecimentos distintos. É atrativo e curioso”.

a segunda cidade do estado em número de espaços, perdendo apenas para a capital. Para o economista Ricardo Freguglia, “em um cenário econômico de restrições financeiras e orçamentárias, o coworking tem o potencial de ampliar a produtividade e promover o crescimento das empresas, podendo, então, ser uma forma de contribuir para o crescimento econômico.” Esse mercado movimentou, só no ano passado, mais de R$ 80 milhões no país. A busca por formas para contornar os momentos de crise e instabilidade é visível. A economia de compartilhamento cresce com o surgimento de ideias

CENÁRIO

De acordo com dados de uma pesquisa realizada pelo Coworking Brasil, em fevereiro de 2017, Minas Gerais já contava com 67 espaços. Em relação a 2016, o país teve um crescimento de mais de 110% no número de empresas de coworking, saindo de 378 para 810. Juiz de Fora é

Segundo pesquisa, Juiz de Fora é a 14º cidade com maior número de coworkings no país

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Incertezas e adaptações

Ao voltar da licença-maternidade, quase metade das mulheres são demitidas. Nos dois primeiros meses após o retorno ao trabalho, a probabilidade de demissão chega a 10% Texto e design: Sabrina Soares

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A licença-maternidade é um direito de todas as mulheres que trabalham no Brasil e que contribuem para a Previdência Social (INSS), mas mesmo assim muitas mulheres são penalizadas. Segundo a pesquisa “Licença-maternidade e suas consequências no mercado de trabalho do Brasil”, realizada pela Escola Brasileira de Economia e Finanças da Fundação Getúlio Vargas (FGV EPGE), 48% das mullheres perdem o emprego após voltar da licença. O estudo feito com cerca de 247 mil mulheres, entre 25 e 35 anos., revelou que nos dois primeiros meses após o retorno ao trabalho, a probabilidade de demissão chega a 10%. O estudo acompanhou, até o ano passado, mulheres do setor privado que estavam empregadas e saíram de licença-maternidade entre 2009 e 2012. Analisando os resultados, viu-se que um mês após o retorno, ou seja, no quinto mês após o afastamento, 5% encontram-se desempregadas. Esse percentual sobe para 15% no sexto mês. Ao fim de 12 meses após o início do benefício, 48% estão fora dos postos de trabalho. Ainda de acordo com a pesquisa, feita com dados do Ministério do Trabalho, quanto maior o nível de instrução da funcionária, maiores suas chances de permanência no cargo. O percentual de afastamentos 12 meses após o início da licença-maternidade era de 51% para mulheres com escolaridade inferior ao ensino fundamental completo; 53% para quem tinha

o ensino fundamental completo; 49% para aquelas com o ensino médio completo; e 35% para as que tinham escolaridade acima do ensino médio Casos de demissões

A licença maternidade surgiu no Brasil em 1943, com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Inicialmente, o benefício era de 84 dias. Hoje, dura de 120 a 180 dias. Há empresas que aderem ao Programa Empresa Cidadã, o que permite seis meses de benefício para a mulher e 20 dias de afastamento para o pai. Pela art. 7º, XIX, da Constituição Federal, a licença partenidade é de apenas cinco dias. As mulheres contam ainda com a licença-amamentação, como prevê o Art 396 da CLT: “Para amamentar o próprio filho, até que este complete seis meses de idade, a mulher terá direito, durante a jornada de trabalho, a dois descansos especiais, de meia hora cada um”. O advogado trabalhista, Leandro Sant’Ana explica que logo depois do vencimento da licença-maternidade as empresas estão amparadas na lei para demitir, mas as mulheres que forem lesadas antes desse período podem recorrer “Após o retorno, não há nenhum impedimento sobre a demissão, o que não é permitido é dispensar mulheres após serem comunicadas do estado gravídico, caso isso ocorro há a possibilidade de ingressar com pedido de reintegração e as indenizações cabíveis em cada caso específico”. O impedimento da demissão

segue pelo período da gravidez até quatro meses após o parto. Porém, a maioria das dispensas ocorrem após a volta da licença-maternidade, sem justa causa. Foi o que ocorreu com Samara Barth, 32 anos, mãe de uma menina de 5 anos, que atualmente trabalha como doula. “Fui demitida no primeiro dia após retornar de licença. Já fui preparada. Passei a gestação toda esperando por isso”. Ela que sofreu depressão gestacional acredita que a mulher-mãe precisa de uma rede de apoio “Se tiver quem cuide de seu filho, ela pode ‘fazer de conta que não é mãe’ durante o expediente, horas extras e afins. E isso é muito raro. As empresas não oferecem condições para que nós tenhamos os filhos por perto. É uma conta que não fecha.” A estudante de letras, Laura Alves, 35 anos, mãe de três filhos, conta que na primeira gravidez teve que abandonar a faculdade de Serviço Social no penúltimo período, já que foi demitida no início da gestação. Na segunda, ela trabalhava com vendas externas, mas sua gravidez era de risco, então não podia trabalhar. Na última, há três anos, ela não tinha emprego formal, mas sentiu a rejeição na universidade. “Sofri todo tipo de segregação na academia. O projeto de pesquisa que eu participava não me enviava mais emails com dias e horários de reuniões. A distribuição de material nunca era suficiente para sobrar algo para eu fazer.” Para Laura, a mulher é levada a ter

Demissões após o fim da licença

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das enquanto sociedade”. A administradora, Ana Paula Vieira Teixeira Delgado, 36 anos, mãe de um menino de 2 anos e 9 meses, acredita que as demissões ocorrem por machismo “Pelo fato de acharem que quando nos tornamos mães não somos mais competentes como antes e que um filho fará que nos ausentemos por motivo de doença ou qualquer outra coisa. Só que pelo contrário, hoje vejo que nas oito horas que estou no trabalho, sou ainda mais produtiva, consigo entender melhor os anseios de minha equipe e minha visão estratégica do todo melhorou muito. Podemos nos tornar diferentes, com restrições, mas com resultados melhores”. Ana Paula relata que conhece muitas mulheres que foram demitidas após a licença-maternidade, e que inclusive no seu emprego anterior ela viveu de perto essa situação estando

do lado do empregador. “Eu trabalhava no departamento de RH e no retorno de duas licenças maternidade de mulheres diferentes, fui designada a comunicar às mesmas que estavam desligadas, após o primeiro dia do término da estabilidade. Na época, fiquei sem dormir e tenho certeza que mesmo não concordando com aquilo, mas tendo que seguir ordens, não sabia de fato a dimensão do que significava na vida daquelas mulheres.” Ela finaliza com uma questão: “Quando vejo esses dados (referindo-se à pesquisa citada no início da reportagem) e a realidade difícil que as mulheres enfrentam para tentar conciliar profissão e maternidade, me pergunto que evolução tivemos realmente no mercado de trabalho brasileiro para as mulheres? E outra, somos cobradas a ser mães e quando nos tornamos, nos é exigido postura profissional e dedicação igual a antes”. Foto: Arquivo pessoal

medo de ter filhos. “É pelo pai, pelos amigos, pela sociedade, pelo patrão pelo médico. Temos que romper essa corrente. Ser sujeito de tensionamento e ruptura com esse aprisionamento.” Ela ainda completa: “Os dados (pesquisa da Fundação Getúlio Vargas) não me surpreendem. Já passei e vejo muitas mulheres passarem por situações análogas ao que eu vivi. A maternidade é uma experiencia única na vida da mulher. É a possibilidade de uma nova vida.” A assistente social, Mara Peregrino, 39 anos, mãe de um menino de 6, também vivenciou situações parecidas com a de Samara e de Laura. Ao conversar com seu patrão sobre o aumento da licença-maternidade, que estava em pauta no congresso, ouviu dele que é por isso que as mulheres perdem espaço no mercado de trabalho. Desde o ínicio de sua gravidez, Mara sentia um olhar de rejeição sobre o que ela estava vivendo. “Eu era muito disponível. Eu era uma pessoa que sempre podia fazer horas extras, sempre podia trabalhar em dias alternativos, como sábado e domingo, podia chegar mais cedo, sair mais tarde”. Com a dedicação que tinha com a maternidade, para ela empresa a via como uma carta fora do baralho. Ao retonar para o trabalho Mara notou estar mais produtiva e mais centrada: “Buscava fazer bem feito para que não precisasse estar em horários alternativos, sempre com uma boa comunicação com a chefia, algo que foi elogiado no momento da demissão”. A príncipio, ser demitida não soou de maneira tão ruim, assim era mais fácil cuidar do bebê. Porém, ela trabalhava em dois empregos e durante a gravidez optou em ficar somente em um, fato que era conhecido pela empresa quando a demitiu. Com o tempo foi impactante perceber que mesmo sabendo de sua condição a empresa a dispensou. Para ela, isso acontece porque as pessoas entendem que antes tinhase uma disponibilidade muito grande para a empresa e agora terá momentos em que o filho estará doente, momentos em que haverá uma outra prioridade. “Devemos estar juntas de outras mulheres nessa luta e engaja-

Para Ana Paula, mãe de Joaquim de 2 anos, as demissões ocorrem por machismo


Grupos de apoio ajudam com informações e orientações a gestantes e mães consonantes com a da pessoa que busca o apoio”, afirma Soraya Perobelli, uma das coordenadora do AMMA. Idealizadora do “Par-te de mim”, a antropóloga Marcella Beraldo, considera que a demissão após o retorno da licença é algo a ser discutido. “Depois que a gente se torna mãe, a carreira tende a estabilizar. O mercado de trabalho é muito difícil, é preciso de uma rede de apoio, não se é mais independente, cria-se uma dependência de alguém que ajude para que se consiga trabalhar, que seja a creche, a mãe ou uma babá”. Segundo ela, isso acontece por ser uma sociedade que não é pensada para reprodução da vida, é pensada para uma produção de bens materiais. “Os empregadores não dão apoio nenhum à questão da mãe que tem filho, eles querem produção, querem uma pessoa produtiva.”. O advogado, Abdalla Daniel Curi reforça essa constação. Para ele, as demissões são fruto da ambição dos empregadores. “Quanto ao comportamento dos patrões em despedir as gestantes, o motivo é ganância e o fato de que a gravidez não permite sugar toda a força de trabalho da mulher, que tem direito de sair de licença, amamentar etc., deixando de entregar todo o tempo de trabalho para o serviço ou a produção. E para o capital, é importante aproveitar o máximo de tempo para obter o máximo de lucro”, ressalta.

Foto: Arquivo pessoal

Em Juiz de Fora, dois grupos de apoio se destacam por ajudar mulheres e famílias com informações e orientações sobre diferentes aspectos da maternidade. O projeto de extensão “Par-te de mim” da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), visa uma rede de apoio mútuo. Além disso, também busca o empoderamento materno, uma troca de saberes entre as mães, um momento de se sentir forte enquanto mulher e mãe. E a Aliança de Mulheres pela Maternidade Ativa (AMMA) que possui algumas ações como rodas de conversa e curso de gestantes gratuito, realizado três vezes ao ano. Além disso, a aliança teve importante atuação para a formulação do projeto e aprovação da Lei das Doulas, votada em 2016 pela Câmara Municipal. O grupo virtual possui mais de 2.300 membros no Facebook. “Acredito que os grupos de apoio são fundamentais nestes momentos pois as mulheres estão fragilizadas, buscando acolhimento de suas demandas, orientações de qualidade e apoio em suas decisões e não julgamento de opinião, que costumamos encontrar junto a alguns amigos e familiares. Uma rede empenhada em abraçar essa mulher e caminhar junto para buscar uma resolução para suas questões é essencial e infelizmente muito difícil de se construir sem estar em um ambiente que possua opiniões

Angelo, de 4 anos e 9 meses, é filho de Soraya Perobelli, coordenadora do AMMA

A antropológa afirma que diante dessa situação o que pode ser feito é buscar sempre dar apoio umas às outras, mas também se atentar a questões políticas como manifestações, divulgação, debates, publicações em redes sociais. Ela vê os dados do estudo da Fundação Getúlio Vargas como algo alarmante, que deve ser divulgado e discutido, visando leis que protejam as mulheres. De acordo com umas das coordenadoras do AMMA, Soraya Perobelli, mãe de um menino de 4 anos e 9 meses, o grupo surgiu da necessidade de aproximar pessoas com pensamentos em comum sobre parto e maternidade. Segundo ela, outro objetivo é buscar a construção de políticas públicas que permitam o acesso de todos às informações, até mesmo de base legal, abordando também os direitos trabalhistas que algumas mães desconhecem. Para ela, as demissões após a volta da licença-maternidade ocorrem por ainda existir uma visão paternalista de que as mães devem se dedicar mais aos filhos enquanto os pais se dedicam à carreira. “Uma visão antiga, preconceituosa e que não faz nenhum sentido, já que hoje, sabemos que a responsabilidade dos filhos é da unidade familiar e não da mãe. Porém, muitas mulheres ainda sofrem com a responsabilização exclusiva dos cuidados com os filhos e, para os empregadores, isto significa baixa da produtividade por ‘estarem preocupadas’”. Alternativas para conciliar trabalho e maternidade

A professora, Irene Pontes, 34 anos, mãe de um menino de 3 anos e 5 meses, conheceu o grupo através de amigas que participavam. “Não participo presencialmente, mas procuro responder outras mães e ajudar nas discussões online”. Ela que se exonerou de um cargo público ao engravidar vê a modernidade contemporânea como algo apartado. “A maternidade moderna é muito solitária. Toda mãe enfrenta essa solidão em maior ou menor grau, porque a modernidade nos empurrou para casulos, onde conseguimos conquistar independência e individualidade, porém às custas do coletivo. Eu optei por me exonerar de um cargo público quando meu filho nasceu por conta da carga horária e porque queria

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algo visto predominantemente como de responsabilidade da mãe, e isso afeta com frequência a mulher no ambiente de trabalho, pois em muitos lugares tornar-se mãe está ligado a ser menos produtiva, a ter que dividir (sem sucesso) o foco no trabalho com a família e o lar, a ter que se ausentar para cuidar dos filhos etc”. Ela considera que isso afeta também o homem, pois é esperado que ele continue se dedicando igualmente ao trabalho após tornar-se pai, o que significa não levar o filho ao médico, não participar do evento na escolinha etc. “O machismo opera com ambos, pai e mãe, e é prejudicial para a família como um todo, independente da configuração familiar. O fato é que se sabe o quanto a diversidade de gênero é importante para o ambiente corporativo, e esses dados (mencionando o estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas) mostram que não estamos criando um ambiente que permita o retorno da mulher ao trabalho após a maternidade”. Fugindo das estatísticas Thais vive

Foto: Arquivo pessoal

passar mais tempo com ele no primeiro ano de vida, porém o primeiro ano se passou e eu encontrei dificuldades para voltar a trabalhar. Voltei quando ele tinha quase dois anos, num outro emprego público, onde essas distinções não podem ser feitas”. A psicóloga e atualmente consultora de RH, Thais Molina, 33 anos, mãe de um bebê de 7 meses, conta que conheceu o grupo ao mudar de São Paulo para Juiz de Fora com o marido e o filho. “Como não conhecíamos ninguém, e eu, no auge do puerpério, a primeira coisa que fiz foi procurar grupos de mães/amamentação/ pós parto etc, pois queria criar uma rede de apoio e trocar ideias com famílias que estivessem passando pelo mesmo momento que nós.” Thais vê a construção da maternidade, da paternidade, e a maneira como constrói-se e cria-se as famílias como algo cultural, existindo um viés machista tanto na sociedade quanto no âmbito do trabalho. “O cuidado com os filhos ainda é

Cintia, mãe de Lucca e Henrique, soube do grupo AMMA através de sua doula

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uma realidade bem diferente das 48% mulheres brasileiras demitidas após a licença. Na empresa em que trabalha, foi estabelecida uma maneira para que ela se mantivesse no trabalho e pudesse cuidar de seu bebê, com a proposta de home office. “Posso dizer que ainda não sei se enfrentarei dificuldades e preconceitos. Faz apenas cerca de três meses que voltei a trabalhar e no meu caso tive uma oportunidade fundamental para conciliar trabalho/maternidade/familia. Como mudei de cidade, continuo na mesma empresa, atuando de casa. Esse formato é tanto novidade pra mim como para a empresa, e ambos precisaremos nos adaptar e avaliar se dará certo, dos dois lados”. A empreendedora digital e consultora de amamentação, Cintia Antunes, 31 anos, mãe de gêmeos de 2 anos, soube do grupo através de sua doula, quando ficou grávida. “Ela me convidou para uma roda de conversa e eu fui com meu marido. Hoje, eu frequento, faço mediação das conversa sobre maternidade ativa e também ajudo nas palestras e eventos gratuitos que o grupo promove”. Ela explica que, com a chegada dos filhos teve que se adaptar. “A maternidade transformou completamente a minha vida. De dona de uma empresa de consultoria e workaholic eu virei uma mãe completamente envolvida nos cuidados com meus gêmeos, a ponto de hoje gerir duas empresas de dentro da minha casa. Hoje, eu tenho um curso online para gestantes que querem se informar mais sobre parto humanizado e aleitamento materno, e também uma empresa de refeições saudáveis para bebês e crianças”. Para ela, o ambiente organizacional não dá espaço para que se seja mãe e possa se manter no trabalho como antes. “Quando eu era funcionária de uma grande empresa e até mesmo quando virei dona de uma empresa que prestava serviços para outras empresas eu trabalhava demais. Começava cedo e parava de madrugada, algumas vezes. Isso porque o mundo corporativo não aceita menos que o nosso máximo. Os clientes não aceitam um projeto que não seja perfeito. E eu me cobrava isso. Daí surgiu o impasse. Ou sou uma mãe perfeita ou uma funcionária perfeita. Os dois não dava para ser. Aí fiquei com o primeiro.”


No caminho certo

CorÊia do Sul ganha cada vez mais espaço no mercado do entretenimento internacional Texto e design: Tatiane Carvalho

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Foto: Flrck


E

ra uma vez, em uma terra longínqua um povo que prezava pela honra e pela preservação da cultura milenar que carregavam. Aos olhos de muitos, toda a tradição que essas pessoas carregavam chegava a ser estranha. Muito tempo se passou e aquilo que era estranho passou a ganhar espaço. As artes marciais, os desenhos, os filmes e até as músicas caíram no gosto dos povos ocidentais e, digamos assim, viralizou. Que a cultura japonesa possui grande espaço aqui no ocidente é inegável, mas a Coréia do Sul vem disputando páreo a páreo. Os sul-coreanos, nos últimos anos, vêm se destacando cada vez mais ao mostrar ao resto do mundo todo o tipo de produto de entretenimento que pode ser criado no país. Música, filme, séries, mangás e até animes vem ganhando público, que começa a enxergar mais uma fonte para inspiração. As produções audiovisuais são bem aceleradas, possuem um estilo de gravação e edição próprios e estão sendo lançadas, geralmente, em plataformas especializadas que compram o conteúdo, legendam para português, inglês e espanhol e disponibilizam para os consumidores. As músicas também estão chegando ao ocidente com a divulgação de artistas e bandas chamadas de KPop através do Youtube ou do Spotify. Uma pesquisa realizada pela revista Tecnologia e Cultura no final do ano passado, mostrou que entre as pessoas que acompanham KPop, 85,5% são mulheres e 51,9% têm entre 15 e 18 anos. Sendo que cerca de 92% das pessoas que acompanham a cultura

sul-coreana não possuem qualquer parentesco ou origem asiática. Um dos principais motivos da fama sul-coreana foi o grande investimento do governo em produtos de entretenimento utilizando o tripé: dorama, o equivalente as novelas brasileiras, kpop, o tipo de pop sul-coreano, e filmes, que são produções originais que possui uma base de gravação parecida com a dos doramas. Com a baixa na venda nos produtos tecnológicos, como celulares e automóveis, a Coréia do Sul precisava de um produto que conquistasse o público internacional. E o resultado não demorou a aparecer dando uma alavancada na economia do país. Ainda no início do forte investimento, em 2015, a Coréia do Sul, arrecadou com exportação cerca de oito trilhões de wons, o equivalente a R$23,23 bilhões, somando ao todo um aumento de 2,2% nas exportações. O mercado atual é favorável e o país sabe investir nesta abertura internacional, mesmo que a cultura oriental seja bem distinta da ocidental, os sul-coreanos vem ganhando cada vez mais seguidores quando o assunto são os produtos fabricados no país. “Nunca imaginei que meu país fosse chegar tão longe, ainda mais com um produto nacional tendo fortes concorrentes, como os norte-americanos por exemplo, é um orgulho ver que o mundo consome algo que é produzido na Coréia do Sul”, diz Baynghyun, de 23 anos, sul- coreano que consome muitos produtos da cultura de entretenimento tanto de seu país como dos Estados Unidos.

Os Doramas e os Filmes Uma das bases do tripé da produção de entretenomento sul-coreana é o dorama. Junto com o kpop, os dramas coreanos foram responsáveis por um aumento de 30,7% na exportação do país. Os doramas são o que o ocidente conhece como séries, mas também podem ser comparados às novelas pela semelhança com as produções do Brasil. Diferente das séries americanas a que estamos habituados, os doramas não possuem diversas temporadas com uma quantidade considerável de episódio. Geralmente cada título possui em média de 16 a 24 episódios que duram cerca de uma hora, sendo que os históricos podem ser um pouco mais longos. Na Ásia diversos países investem na gravação dos doramas que variam em sua nomencla54

tura de acordo com a localização. Os produzidos no Japão são chamados J-Drama, os produzidos na China de C-Drama, os na Tailândia de TDrama e, por fim, os produzidos na Coréia do Sul, quen são os K-Drama ou apenas Dorama. Apesar de muitos países gravarem diferentes doramas os que mais fazem sucesso são de origem sul-coreana. “Como o Japão investe muito em animes, ele não foca muito nos doramas, claro, os doramas deles são bons, mas não tanto quanto os produzidos na Coréia. Acho que os sul-coreanos produzem um dorama de qualidade pelo fato de mostrar outro aspecto da cultura sul-coreana que não seja a música, que possui bastante enfoque”, diz Gabrielle Santos, de 16 anos, que assiste doramas há um ano e meio através de


uma plataforma de strea- martugia brasileira, por aqui ming que disponibiliza doramas os artistas buscam visibilidade legendados em português. colocando suas músicas em noNa Coréia do Sul os dora- velas, e ele avalia que isso tammas são exibidos em horários bém acontece na Coréia do Sul definidos e dias consecutivos. As em que mesmo um estilo que poemissoras mais populares por lá deria ser considerado de “guesão a KBS e SBS, produzindo to”, como KPop, passa a ser aldiversos doramas que conquis- tamente consumido pelo público. taram tanto o público sul-coreaNa Coréia do Sul, assim no quanto o internacional. Esse como no Japão, são exibidas diritmo é bem distinto do Brasil, versas novelas brasileiras que onde os maiores canais nacio- possuem grande audiência. Os nais exibem as novelas de segu- brasileiros estão mais acostuda a sábado. mados com as novelas que pasOs enredos são diversos, sam nas emissoras abertas. No variando da comédia ao drama. entanto, mesmo não passando Existem nesses canais, também os o público que “Eles mostram um mundo chamados consome os dol i v e - a c - mais bonito e divertido, ramas procuram tions, que todo mundo gosta de pelo diferente. são adap“Olha, a tações, na clichê e eles fazem ir além primeira coisa maioria diferendo água com açúcar.” éte. ser das vezes No Brasil já feitas de foram exibidas animes ou novelas angola-Bárbara Castro, 17 anos mangás nas, turcas, cojaponeses, lombianas, além que também atraem o público das mexicanas. E agora vem esconsumidor desses produtos. sas produções sul-coreanas. O Um dos pontos mais marcan- público que consome produtos tes dos doramas coreanos são desses países quer diversificáas trilhas sonoras também cha- -los”, completa Guilherme. madas de Original Soundtrack E qual o diferencial dos do(OSTs). Todas as músicas usadas ramas quando comparados às em um dorama são originais e, famosas séries americanas? muitas vezes, compostas exclu“Os doramas sul-coreanos sivamente para determinados focam mais na história”, avalia personagens. Isso explica tam- a espectadora Gabrielle Sanbém o fato de a abertura de tos. “Eu acho que é porque as alguns dramas possuírem cerca pessoas assistem determinada de um minuto. Alguns tracks são série americana porque está na gravados por grandes nomes da moda, elas vendem mais coisas música sul-coreana, o que aca- relacionadas à série. Isso é diba contribuindo para que muitas ferente nos doramas porque lá pessoas conheçam o kpop atra- eles se concentram em construir vés dos doramas e vice-versa. um personagem, em tratar um As músicas também influen- assunto com mais sensibilidade”, ciam na produção. Segundo o considera a estudante. pesquisador Guilherme Fernan“Eles mostram um mundo des, especialista em teledra- muito mais bonito e divertido,

todo mundo gosta de clichê e eles fazem o clichê ir além do água com açúcar e é, além de tudo, muito engraçado”, acrescenta a estudante Bárbara Castro, de 17 anos. Para quem é fã e gosta de acompanhar os k-dramas, aqui no Brasil, DramaFever e o Viki, são dois sites que trabalham exclusivamente com os dramas asiáticos, principalmente os sulcoreanos. Já a Netflix está disponibilizando alguns títulos que também podem ser conferidos pelos assinantes. Os filmes coreanos, terceiro pilar do sucesso da Coréia do Sul no exterior, possui produção parecida com a dos doramas. Às vezes, diversos atores que protagonizam os dramas aparecem em algumas produções cinematográficas. Porém, diferentes dos doramas, que são bem populares entre os jovens, os filmes coreanos conquistam o público aos poucos. Assim como os filmes norte-americanos, os títulos mais famosos coreanos passam na TV e, em raras situações, chegam aos cinemas em sessões especiais. “Curto mais Kpop, mas já assisti doramas e filmes também, mas devido a correria do dia-a-dia, fica difícil acompanhar tudo”, diz Raquel Leite, de 25 anos, que conheceu os produtos de entretenimento sul-coreano em 2001 mas começou a acompanhar fielmente em 2009. O mercado vem aproveitando desse sucesso para investir na área, o que torna este setor cada vez mais rentável e faz crescer a economia sul-coreana. “Atualmente a venda de produtos asiáticos vem ganhando o público jovem”, ressalta a jornalista Dalila Abijaude, 23 anos, criadora da Amethyst Kpop, que faz divulgação em eventos voltados para a cultura nerd. 55


Periscópio Indica

Pensando nos doramas, a periscópio separou alguns dos melhores títulos para que, caso não conheça comece pelos melhores ou caso já goste acrescente à sua lista. Então prepare a pipoca e os lencinhos de papel! Scarlet Heart Ryeo Sinopse: Por acidente uma jovem de 25 anos acaba sendo transportadas para o passado, mais exatamente nos tempos da dinastia Goryeo. Hae Soo acorda anos mais jovem e acaba se envolvendo na história de sete príncipes. Ela acaba se apaixonando pelo mais imprevisível de todos, Wang So, temido entre o povo. Juntos, os dois irão enfrentar diversos obstáculos para poder, finalmente, viver seu amor. Risco de lágrimas: Goblin Sinopse: Kim Shim é um guerreiro que foi traído pelo rei que servia, após ver todos os que amava morrerem, ele é apunhalado por sua própria espada e, em seguida, seu corpo é jogado em um campo, onde aquelas pessoas mais próximas ao guerreiro rogam para que Deus tenha misericórdia de sua alma. Em um gesto de bondade, Deus traz Kim Shim de volta à vida, ele se transforma em um Goblin com poder de imortalidade. Mas nem tudo é perfeito, a espada que matou Goblin ainda permanece em seu corpo e só sua noiva pode retirá-la, para que, então, possa descansar em paz. Eun Tak é uma orfã que perdeu sua mãe ainda muito nova, durante toda a sua vida ela conseguia ver fantasmas que falavam que ela era a noiva do Goblin. No dia do seu aniversário, um pedido faz com que o destino de Eun Tak e Kim Shim se cruzassem, o que faz a vida de ambos mudar drasticamente. Será o amor capaz de superar a morte? Risco de lágrimas:

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Os doramas e as produções sul-coreanas cinematográficas estão ganhando popularidade entre os brasileiros que buscam estilos diferentes dos exibidos no país.

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Foto: Divulgação

Cinderella and four knights Sinopse: Ha Won é uma menina humilde que trabalha duro para conseguir juntar dinheiro para pagar sua faculdade. Sua mãe morreu quando ela ainda era muito pequena, deixando-a sozinha com o pai. Ele, porém, se casou de novo com uma mulher egoísta que possui uma filha muito parecida com ela. O pai de Ha Won é caminhoneiro e passa boa parte do tempo viajando e quando volta fica feliz em ver sua esposa tratando bem sua filha. Certo dia o destino de Ha Won acaba se cruzando com o de um milionário que lhe faz uma proposta um tanto quanto inusitada: unir seus três netos que mal se olham. Mas tem uma regra: ela não pode se apaixonar! Risco de lágrimas:


O sucesso do Kpop Outro pilar que faz a Coréia do Sul seguir pelo caminho certo quando o assunto é entretenimento é o Kpop. Atualmente a maior parte das pessoas que conhecem a cultura sul-coreana teve como porta de entrada os grupos do tão famoso pop coreano. Mas o que é kpop? Como surgiu? Por que cresce cada vez mais? Kpop é a abreviação de Korean Pop, em tradução Pop Coreano. O termo surgiu nos anos 90, mas se consolidou ainda mais no início do século XXI, ganhando cada vez mais fãs ao redor do mundo. As estrelas do pop sul-coreano também são chamadas de “Hallyu”, ou Onda Coreana em português. E, claro, grande parte do crescimento do kpop, além do investimento do governo para a expansão deste gênero musical, se deu graças aos doramas. Devido a viralização da música “Gangnam Style” do rapper sul-coreano Psy, o kpop ganhou um impulso para decolar no mercado internacional. O MV, Music Video como são chamados os clipes de kpop, do single de Psy atingiu a incrível marca de um bilhão de visualizações no Youtube. E foi com esse MV que a maioria dos brasileiros começaram a explorar a cultura sul-coreana. “Tive um primeiro contato com o kpop quando PSY, Gangnam Style, estourou no ocidente. Depois disso, tive um contato mais intenso com BTS, ao qual me tornei fã instantaneamente. Hoje já ouço mais músicas de kpop além de BTS”, diz a estudante G.K.R, 21 anos, que preferiu não se identificar.. Ao contrário de como acontece em grande parte das bandas do Ocidente, em que os artistas se agrupam por afinidades musicais, as bandas de kpop são formadas como empresas em que os artistas passam por um processo de seleção. Após um teste, o jovem passa por um treinamento intensivo em que vão aprimorar seus talentos com aulas que envolvem diversas técnicas como canto, dança e Playlist Periscópio: 1. BOOMBAYAH (Blackpink) Se você gosta de dançar loucamente na sala da sua casa vai amar essa música do girl group da empresa YGEntertainment. 2. SIGNAL (TWICE) Esta música é uma daquelas que vai ecoar pela sua cabeça por uns bons sete dias. O ritmo contagiante e a letra chiclete vão fazer você conhecer um pouco mais do girl group que também emplacou outros hits como ‘Like OOH-AHH’ e ‘TT’. 3. MY SWAGGER (GOT7) O boy group, da JYP Entertainment, chega com esse single cheio de coreografia. Essa música vai te acompanhar para mostrar a seus amigos que você tem “Swag”

atuação. Após alguns anos, que varia de acordo com o progresso do trainee, os mais preparados são reunidos em um grupo e então são lançados oficialmente, o que é chamado de debut. É assim que um grupo sul-coreano começa a se inserir no mercado, tanto na Coréia de Sul como internacionalmente. O grande diferencial no Kpop é a mistura de ritmos e o uso de coreografias bem elaboradas. Os MV’s e os shows são sempre cercados de muita dança, com alguns passos mais fáceis outros mais complexos, embalando os fãs que buscam aprender as coreografias dos grupos que mais gostam. No que diz respeito a arranjo musical, nota-se que os hits sul-coreanos possuem uma mistura de hip-hop com música eletrônica e rock. Existe também na letra das músicas alguns trechos em inglês, que ajudam na exportação do produto. “O fato da música oriental, o pop coreano estar agregando estilos adotados pelos ocidentais é uma forma de atingir o gosto dos ocidentais. Tanto que hoje em dia conhecemos muita gente que curte música chinesa, coreana”, avalia o maestro Victor Cassemiro. No Brasil, no final de 2015, chegou-se a criar um grupo de BPop, formados por brasileiros e que seguia o mesmo padrão das produções sul-coreanas, com letras em português com algumas linhas em inglês. O grupo recebeu o nome de Champs e não conseguiu ir muito longe. “Eu estava em um grupo e um dos integrantes enviou uma música do BTS que eu sem querer escutei e gostei. Mais tarde me pediram para ver o MV da mesma música e eu acabei procurando por outras no Youtube”,conta Bárbara Castro, sobre como conheceu o Kpop há pouco mais de um ano. 4. Whatta Man ‘Good man’ (I.O.I) É uma das músicas que te fazem se sentir poderosa e querer dançar sem timidez na frente do crush. O MV possui uma coreografia bem fácil e, diga-se de passagem, faz você soltar umas boas risadas. Então, se você quer dançar sem vergonha alguma, essa é A música. 5. Excuse Me (AOA) Outra música para dar coragem na hora de encara o crush, mas dessa vez para tomar iniciativa e ir falar com ele sem medo. 6. Meow Meow (CLC) Se você procisa de uma música animada e fofa para te dar um up pela manhã, essa é a música perfeitapara te animar em plena segunda-feira. 57


Foto: Tatiane Carvalho

E quem possui mais destaque na cultura sul-corena? Bem.. “Acredito que o Kpop, pois a música fala todas as línguas. Uma música é boa se toca seu coração e, geralmente, se isso acontece a letra diz algo que mexe com todos”, diz G.K.R.

O Kpop é uma febre entre os adolescentes do mundo, alguns grupos como EXO e BTS são os mais falados e acompanhados

As sensações do Kpop

Organizamos um pequeno pódio com o intuito de entregar algumas medalhas para alguns dos destaques da música sul-coreana. Conheça agora os grupos mais famosos, tanto na Coréia do Sul quanto internacionalmente, principalmente aqui no Brasil. BTS O boy group BTS, também conhecidos como Bangtan Boys ou Beyond the Scene, é atualmente um dos grupos mais famosos da Coréia do Sul. Ele é composto por sete membros: Rap Monster, Jin, Suga, J-Hope, Jimin, V e Jungkook, que debutaram em 2013 pela empresa Big Hit Entertainment. O single de debut foi ‘No More Dream’ que fez parte do álbum 2 Cool 4 Skool . Com muito carisma, simpatia e talento o BTS logo conquistou milhares de fãs ao redor do mundo. Com seu álbum Wings o grupo alcançou a primeira posição do Ti unes em mais de 26 países e estreou em 26º lugar na Billboard 200, alcançando a posição mais alta já conquistado por um grupo sul-coreano. O grupo já fez shows na Ásia, Europa, Américas do Norte e do Sul. Tantas apresentações e, claro, fãs fez com que eles recebessem o prêmio Top Artist da Billboard, de longe o mais importante em sua carreira. EXO EXO é um grupo também bem famoso internacionalmente. Eles debutaram em 2012 pela SM Entertaiment, tendo inicialmente doze membros: Suho, Xiumin, Chen, Kai, Lay, Sehun, Baekhyun, Tao, Kris, Luhan, D.O e Chanyeol. Como eram muitos membros o EXO era dividido em EXO-M e EXO-K, sendo o M predominantemente chinês e o K predominantemente coreano. Pouco tempo após o debut Kris e Luhan deixaram o grupo por motivos de divergências com a empresa, foi então que decidiram unir as duas ramificações e tornar apenas um EXO. Meses mais tarde foi a vez de Tao deixar o grupo que atualmente conta com nove membros. Atualmente o EXO está trabalhando em seu novo álbum que contém as músicas ‘KOKO BOP’ e ‘Power’. KARD Este grupo com certeza é um dos queridinhos do Brasil, o KARD é um grupo novo, debutou em julho deste ano, e possui um diferencial: é um grupo misto com. Antes mesmo de seu debut, o KARD veio ao Brasil e foi o primeiro grupo de Kpop a passar pelo nordeste do país. Eles esgotaram os ingressos para os shows e fansings. Seu mini álbum conta com as música “Oh na na”, “Rumor” e “Hola Hola”. 58


O Comportamento Grande parte dos maiores consumidores da famosa e bem sucedida tríade sul-coreana são adolescentes que experimentam os produtos pela primeira vez, geralmente, por indicação de algum amigo próximo e acabam por acompanhar fielmente cada movimento dos ídolos do Kpop ou cada episódio lançando dos seus doramas favoritos. É claro que, sendo expostos a tantos produtos de uma cultura bem distinta da nossa, os jovens logo buscam aderir ao seu jeito de se comportar um pouquinho da cultura sul-coreana. O jeito de falar, agir, o estilo e o jeito de se portar frente a outras pessoas são influenciados. O paquera que aqui no Brasil, atualmente, vem sendo chamado crush, vira Oppa, modo de tratamento em coreano que serve tanto para irmão mais velho quanto para o namorado ou alguém em que você está interessado. Os cabelos ganham cores. Cada vez mais cresce a procura sobre a Coréia do Sul, intercâmbios, o jeito de falar, como se comportar frente à um coreano. Os jovens buscam pesquisar por canais no Youtube que mostram um pouco da Coréia ou até mesmo ensinam um pouco do coreano. Entender o que os ídolos falam ou cantam é algo interessante aos olhos desse grupo. Segundo a psicologa Flávia Dimas emergir tanto em uma cultura pode fazer com que o adolescente, ainda na fase de formação de sua personalidade, acabe agregando em sua vida valores orientais e acabe, assim, não apenas seguindo a “moda”, como também trazendo como parte para si mesmo. “Quando você escuta uma música ou começa a pesquisar sobre certa cultura, eu acho que é muito natural você aderir a aspectos dessa cultura, você representar, você reproduzir”, diz Gabrielle Santos de 16 anos que ouve Kpop há três anos e passa horas em frente ao computador pesquisando sobre a Coréia do Sul. “Com certeza é diferente o comportamente de quem curte os produtos sul-coreanos e eu gosto disso, porque o modelo coreano vai mais além de só consumir, as pessoas realmente parecem ir atrás de saber sobre a cultura, já vi várias pessoas tentando aprender coreano por causa de doramas e até o estilo de se vestir. O cosplay e as convenções para otakus, para mim, mostram como a Ásia está influenciando as ações dos jovens. É interessante porque também é um modelo que, diferente do americano, não favorece a adultização”,

O público que consome Kpop

Grande parte do público é composta por adolescentes sem origem asiática

diz Bárbara Castro. Os hábitos, o jeito de se vestir, só é uma parcela do que o público que mais consome esses produtos são influenciados. O respeito e o modo de agir oriental acaba sendo admirado e aderido no comportamento dos mais jovens. Beathryz Marie, 19 anos, conheceu o Kpop há quase um ano e diz acompanhar tudo o que envolve este gênero musical, ela acrescenta que devido ao pop sul-coreano acabou conhecendo os doramas. “A forma dos trabalhos e doutrinas dos países asiáticos, e respeito, coisa que não tem sido muito vista em nosso país”, diz Beathryz Mas afinal de contas, a Coréia do Sul com sua tríade de entretenimento pode chegar um dia a ultrapassar o Japão, que exporta bastante produto para o exterior? A jornalista Dalila Abijaude, acredita que: “Em matéria de consumo musical, a Coréia do Sul pode sim ultrapassar o Japão, as empresas buscam fazer o maior número de produtos possível de determinado grupo, isso leva as pessoas a consumirem cada vez mais. O Japão vende muito na área de animes, mas musicalmente a Coréia está passando na frente.”

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Além de já serem maioria entre os players, as mulheres também ocupam seu espaço na pesquisa e produção no cenário de games. Mas machismo e preconceito ainda são barreiras a serem

superadas

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Garotas no

controle Texto, fotos e design: Carolina Larcher e Juliana Dias


As garotas gamers têm ganhado espaço em diversas plataformas de jogos. Segundo dados da Pesquisa Game Brasil, em 2017, as mulheres já representam 53,6% desse público no país. Por outro lado, um levantamento de 2012 revela que 63% das 874 jogadoras entrevistadas pelo blog PriceCharting já haviam sofrido assédio em jogos online. Muitas delas são obrigadas a ouvir comentários machistas, como “Volta pra cozinha” ou “Já terminou de lavar a louça?” Em outros casos, são vítimas de propostas indecentes e cantadas ofensivas. Essas mulheres chegam a abandonar o universo dos games para evitar o estresse e constrangimento, enquanto outras assumem métodos para mascarar sua sexualidade diante dos players masculinos. Indo contra a corrente, vemos o ambiente criativo sendo invadido por novas mentes femininas e com vontade de criar representações mais realistas de mulheres, que não se baseiam nos estereótipos propagados por anos de predomínio masculino na indústria de jogos (de tabuleiro, de cartas ou videogames). Com elas, surgem personagens principais fortes e guerreiras e outros horizontes e sonhos para a nova geração de garotas geek.

Eliane Bettocchi já ajudou a produzir títulos de RPG como “Era do Caos”, da editora Akritó

coordenadora da licenciatura em Artes Visuais, Eliane Bettocchi. “Originalmente, a mulher, para ser herói, tem que se desfazer do gênero feminino. No senso comum, se aventurar é coisa de menino, o jogo também é. É natural? Não. É tudo uma construção social que depende do contexto histórico.” De acordo com Eliane, os questionamentos de gênero e, consequentemente dos papéis desempenhados por eles na sociedade, começam com a primeira onda do feminismo, ainda no século XIX. Ao longo A jornada da heroína Não faz muito tempo, era comum ouvir do tempo, isso se reflete em toda produção por aí que videogame, RPG e vários outros cultural, inclusive nos jogos de mesa, cartas jogos do universo geek eram brincadeiras e nos videogames. Jogadora e designer de personagens de menino. Meninas, naturalmente, não se interessariam por aventuras, lutas e de RPG, Eliane defendeu em 2002 narrativas heroicas. O número crescente de sua dissertação de mestrado sobre as mulheres que não só jogam, mas também representações de gênero no jogo. “O estudam e vivem dessas “brincadeiras” homem pode vir representado de duas mostra que a realidade não é bem assim. formas: o conselheiro ou o guerreiro. A mulher, independente Mas se o número da classe que assumir de players quase se “A evolução social é (maga, guerreira etc), equivale quando o sempre é representada recorte é o gênero, por complicada porque da mesma maneira: que ainda associamos ela sempre vem a como um bibelô.” Ela esse universo fantástico passos de formiga, acredita que isso vem ao mundo masculino? melhorando ao longo A resposta vem da mas ela existe e não dos anos e que as História. pode ser parada”. oportunidades de “Os jogos bebem -Letícia Perani financiamento coletivo das histórias de têm contribuído para aventura, do mito do herói, que é, inicialmente, uma narrativa de o aumento da diversidade de histórias que identidade masculina”, explica a professora podem ser contadas. Se antes os jogos do Instituto de Artes e Design (IAD) da narravam a jornada do herói-homemUniversidade Federal de Juiz de Fora e branco, hoje, quanto mais diversos os

Geek o quê...

Board Game: jogos de tabuleiro Card Game: jogos de cartas Console: aparelhos de videogame Cosplayer: aquele que faz caracterizações de personagens (cosplay)

Geek: fãs de tecnologia eletrônica, jogos, história em quadrinhos, livros, filmes, animes ou séries

League of Legends: jogo eletrônico do gênero multiplayer online battle arena Level: nível do jogador ou personagem no jogo. Na reportagem, representa a idade das jogadoras

Nerd: pessoa vista como intelectual e tímida, obcecada por histórias de fantasia e ficção

Nick: nome do jogador dentro do jogo Player: jogador RPG: Role-playing game: tipo de jogo em que os jogadores constroem personagens e narrativas próprias

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Para Tatiana, jogos contribuem para o aprendizado e aumento da concentração dos jovens

criadores, mais diversos os heróis, e aí está o espaço para uma mudança de paradigma na representação do gênero feminino. “Por causa da minha formação inicial como bióloga, acredito que, um dia, a distinção de gênero não vai existir. Até lá, o papel da mulher é questionar.” mercado em transformação

Segundo Tatiana dos Santos Vieira, responsável por vendas e atendimento da editora Conclave, que produz livros, jogos de cartas e de tabuleiro em Juiz de Fora, o mercado da cidade ainda não é muito inserido no ambiente gamer. As pessoas que jogam já estão incluídas em

grupos como o Joga JF, que reúne pessoas para partidas de board games em diferentes locações. Por outro lado, esses encontros têm recebido mais pessoas, aponta ela. “No próprio Brasil tem aumentado esse público, inclusive no cenário competitivo e na criação de novas editoras”. Segundo ela, o público da Conclave gira em torno de adolescente e adultos, por volta dos 20 aos 35 anos. Porém, sua maioria continua sendo masculina, em torno de 80%. Tatiana também acredita que o modo de elaboração dos jogos tem mudado muito, e as mulheres têm ganhado espaço neste meio. “Estamos começando a fazer

jogos aqui no Brasil, e existem muitas designers mulheres. Acho que, quanto mais mulheres no mercado, melhor, porque elas possuem outro olhar, diferente do masculino sobre a figura feminina, e são mais detalhistas nos traços”. Elas também se mostram cada vez mais interessadas em jogar e comprometidas com isso. “Não é tão comum a presença de mulheres, mas tem mudado muito. Os homens estão começando a respeitar mais”. Ela mesma é adepta das partidas. Os primeiros contatos ocorreram na infância, com jogos como War e Perfil, mas se intensificaram mais tarde, através do marido, que jogava card games e organizava torneios. O interesse pelo board game cresceu, e eles criaram o bar de jogos Tabuleiro, que encerrou suas atividades em 2017, mas abriu as portas para que a Conclave começasse a produzir e revender jogos. A editora, agora, amplia seu alcance com a revenda de Great Western Trail, uma complexa competição entre fazendeiros, que devem usar artifícios para evoluir seu rebanho e conquistar o Texas. O jogo é o 14º melhor do mundo pelo site Board Game Geek. Tatiana ainda ressalta que os jogos são importantes em todos os aspectos. “A maioria das pessoas é do grupo nerd, que ficam em casa jogando, e o board game incentiva a ter um contato e jogar com outras pessoas onde elas se sentem à vontade. Jogar desde pequeno também ajuda no aprendizado, na concentração. Eu acho que só tem ponto positivo”.

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Fonte e arte gráfica: Pesquisa Game Brasil 2017

Pesquisa Game Brasil


De pé, da esquerda para a direita: Carolina, Laura, Mariah, Naiara, Lara e Júlia, integrantes do grupo de estudos em Design e Cultura dos Jogos Online

Não é só brincadeira

Desde a graduação, Letícia pesquisa games

Amanda tem uma coleção de mais de 500 cartas

No IAD, as tardes de segunda-feira sao dedicadas aos jogos, mas de uma maneira mais acadêmica: o grupo de estudos em Design e Cultura dos Jogos Online, surgiu de uma demanda dos próprios alunos e alunas, interessados em desenvolver pesquisas e trabalhos práticos neste universo. Segundo a professora orientadora Letícia Perani, é muito relevante que os alunos tenham esse espaço de estudo, para que percebam que tais interesses pessoais são válidos para pesquisa e produção, tendo a possibilidade de chegar a desenvolver uma carreira neste universo. “Já existiam projetos de RPG e Board Game, mas nada voltado para o digital. Tradicionalmente, na área tanto de artes quanto de design, os conteúdos voltados para cultura pop ainda não têm tanta demanda de estudo, mas agora começa a ter principalmente pelo interesse desses jovens pesquisadores que estão vindo”. A professora aponta que, na área acadêmica de games, em geral, as mulheres são maioria, por isso, não se diz surpresa com a quantidade de meninas em seu grupo. Em análises da Digra (Digital Games Research Association Associação de Pesquisa em Jogos Digitais, em tradução livre), o congresso mais importante de jogos no mundo, a presença feminina é de cerca de 60% entre os autores. Para Letícia, pesquisar videogames sempre foi seu interesse primário, desde a graduação. “Eu tive sorte de a minha família nunca ter tido problema com o

fato de eu ser apaixonada por jogos. Os problemas que a gente tem são sempre nos jogos online mesmo, quando você tem pessoas de vários lugares interagindo.” Segundo ela, é nessas interações que acontecem situações de preconceito. Ela aponta que o fato de não estar cara a cara com o outro facilita os assédios, uma vez que os jogadores não costumam sofrer com as consequências disso. O público de jogos online ainda é formado por muitos meninos que são adolescentes e estão se formando socialmente. “Muitas vezes, esses meninos que estão ofendendo estão reproduzindo comportamentos não só do grupo social de jogadores, mas do que eles observam em casa. Então é naturalizado”, avalia Letícia. Por outro lado, a partir do momento em que são expostos às consequências desses atos, eles se tornam reais e palpáveis. As empresas, que não punem esses usuários, acabam não contribuindo para diminuição do machismo, tão presente no mundo dos games. Esses comportamentos também são utilizados como forma de conseguir vantagem no jogo, para desequilibrar uma mulher que joga como oponente. “Isso é muito perigoso porque pode levar a pessoa a reproduzir esse comportamento na vida real. As tecnologias eletrônicas podem espalhar e serem motivadoras de mudança social, mas devemos observar como essas tecnologias estão sendo usadas. A evolução social é complicada porque ela sempre vem a passos de formiga, mas ela existe e não pode ser parada.”

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PLAYERS

Machismo, nicks sem gênero, um futuro na área de desenvolvimento de jogos. A Periscópio conversou com sete meninas que são apaixonadas por games para conhecer suas experiências, perspectivas e anseios neste meio. Nome: Laura Nogueira Level: 25 Classe: Cosplayer e

Aprendiz de Design

Para fugir do assédio nos jogos online, Laura usa nicks masculinos ou que não permitam que seu gênero seja identificado. Em eventos de games em que Laura faz cosplay, quando se veste como seus personagens favoritos, ela, às vezes, também é alvo de comportamentos constrangedores. “Algumas pessoas colocam a mão em você sem permissão e tomam muita liberdade. Você tem que estar muito tranquila para não se abalar com essas coisas.” Para Laura, a situação está mudando, mas com “passos de bebê”: “Se você pegar uma criança hoje, vai ver que ela acha muito mais normal jogar videogame com uma personagem feminina empoderada, do que um cara de 35, 40 anos, que está acostumado com jogos onde mulheres só existem para que ele ache bonito”. A cosplayer pretende se aprofundar em pesquisas sobre os efeitos sociais dos jogos. “Eles têm grande impacto no desenvolvimento cognitivo-emocional, no reflexo, no raciocínio lógico. Ensinam a lidar com os próprios sentimentos. É um auto-conhecimento.” Nome: Carolina do Valle Level: 23 Classe: Aprendiz de Design

Ela joga desde pequena. Com o tempo, o interesse só foi crescendo, e jogos como Dragon Age, Mass Efect, Fallout 4 e The Last of Us. a conquistaram de vez. “Desde criança, sempre gostei muito, quando cheguei na adolescência e conheci jogos com personagens femininas e que eu podia me identificar, passei a gostar mais ainda”. Na UFJF, ela conheceu o projeto voltado para a criação de games, viu que poderia estudar o tema a fundo e desenvolver um futuro trabalho. “Acho que justamente um dos jogos que mais me encantou e me fez querer estudar mais sobre foi Life is Strange. Queria muito fazer algo na área de games e cultura e tinha muita vontade de pesquisar sobre personagens femininas.” Em sua monografia, Carolina irá tratar das representações de gênero.

Nome: Júlia Goviadinov Level: 21 Classe: Aprendiz de Artes

e Design

“Quando eu nasci, na minha casa já havia um computador e emuladores de Mega Drive e Super Nintendo. Eu nem sabia ler, mas sabia identificar o jogo pelo tamanho da etiqueta. Quando meu irmão comprou um Nintendo 64, Zelda virou minha paixão”. Júlia cresceu ao lado dos games, e isso acabou direcionando sua escolha na graduação. Para o futuro, ela não descarta nem a área acadêmica, nem o mercado: quer trabalhar com criação e pesquisa. Júlia acredita que os jogos são importantes ferramentas para ajudar em situações de estresse. “Alguns momentos do jogo te exigem muita calma. E isso pode ser aplicado na vida mesmo..” Nome: Lara Bisaggio Level: 18 Classe: Aprendiz de

Engenharia Computacional

Lara joga desde pequena. Fugia para casa do vizinho, que tinha um Super Nintendo, para passar a tarde se divertindo. Aos 12, ganhou o primeiro console: um PlayStation 2. “Se eu fico no computador o dia todo, minha mãe reclama. Mas se meu primo, por exemplo, faz o mesmo, não é um problema.” Jogadora de League of Legends, já ouviu muitas vezes jogadores que se recusam a jogar com ela apenas pelo fato de ser menina. Isso no entanto, não é motivo para desistir. Ela afirma que sempre tem uma resposta na ponta da língua e acredita que os jogos ainda podem ensinar muito: “Muitos passam mensagens importantes de amizade, amor e construção de caráter. Minha vontade é trabalhar nesse mercado com a modelagem de jogos.”

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Nome: Mariah Spegiorin Vicente Level: 22 Classe: Aprendiz de Design

Uma profusão de consoles: PS2, 3 e 4, Nintedo Wii, DS e Game Boy Advance são alguns dos videogames que ela já teve. Atualmente joga online Diablo 3 e League of Legends. Seu interesse também surgiu da infância, através do Master Sistem e do Nintendo 64 que o primo havia deixado na casa da avó. Encantada pela narrativa dos games, foi fisgada por um clássico: “Minha paixão mesmo começou com Zelda Ocarina of Time para Nintendo 64”. A partir daí, começou a comprar vários CDs de banca, principalmente jogos de puzzles, aventura e RPG. “Sempre gostei de criar histórias, personagens e criaturas, escrevendo e desenhando, daí meu interesse pela faculdade de artes e suas aplicações em games: evoluir na área e dar mais embasamento e reconhecimento às minhas criações”, Mariah quer ser desenvolvedora de jogos e acredita que mais mulheres no ramo são a chave para uma diversidade maior. “Nós temos a vivência do que é ser mulher e isso é repassado para o jogo.” Nome: Naiara de Castro Level: 22 Classe: Aprendiz de Artes

e Design

Naiara é jogadora de League of Legends, mas ama board games como Zumbicide, Banco Imobiliário e War. Ganhou um Master System 3 quando era bem nova. Depois vieram os PlayStations 1 e 2 e, agora, o Xbox. “Acho que isso aconteceu porque cresci com meninos e isso sempre foi mais incentivado como cultura deles. Só que no final das contas quem joga mais até hoje sou eu”. Planejando ser futura produtora de games, ela entrou no projeto com o objetivo de desenvolver um jogo virtual, mas, por ainda não possuir conhecimento em programação, foi para o lado dos jogos de tabuleiro. “Minha intenção inicial era a de criar um jogo virtual para desconstruir a imagem de vilão que nós temos em nosso imaginário, algo meio Black Mirror, sabe? Claro que eu terei que mudar muitas coisas da ideia original, mas vai ser uma ótima maneira de testar o jogo em outra plataforma”. Nome: Amanda Lima Level: 21 Classe: Aprendiz de

Design de Interiores

Amanda começou a jogar Magic: the Gathering há três anos, quando o atual namorado a apresentou a um dos mais famosos card games do mundo. Desde então, não parou. “De cara, eu venci as duas primeiras partidas. Sou muito competitiva e isso me fez querer aprender o jogo.” Às vezes, ser a única menina em um grupo de 12 jogadores faz com que ela presencie episódios desconfortáveis, como ouvir insinuações de que só joga para agradar o namorado e presenciar comentários machistas sobre outras meninas. “Ás vezes, prefiro evitar a convivência com algumas pessoas, mas isso não me faz querer desistir de jogar.” E o jogo trouxe novos aprendizados: “Meu inglês melhorou muito jogando Magic. Antes eu sabia só o básico. Como comecei a jogar com as cartas do Felipe, e quase todas estão em inglês, acabei me familiarizando com o idioma.”

A Periscópio indica:

Aqui na Periscópio a gente também curte um game! Confira as dicas das autoras da matéria:

Dica da Ju: Citadels Dica da Carol: Dead by Daylight Nesse card game você Um jogo aterrorizante e constrói uma cidade ao mesmo tempo engramedieval com oito çado. Você e mais três amidistritos, com o auxílio das gos devem escapar de um cartas de personagem, quinto jogador que será o que possuem habilidades assassino em um cenário especiais e a cada rodada macabro. Cada um possui são redistribuídas entre os jogadores. A suas habilidades e desvantagens. Vale correr diversão fica por conta da estratégia que cada muito, ajudar o amigo que for capturado e, às um escolhe para minar seus oponentes. vezes, ser pego fazendo isso. 65


Foto: Christinny Garibaldi

Mais um espaço para o fotojornalismo Texto e design: Christinny Garibaldi

O olhar investigativo do fotojornalista alcançou o Instagram. O aplicativo, que antes fazia sucesso com o público amador, se tornou um espaço explorado por empresas jornalísticas como uma ‘vitrine’ para as matérias

Na imagem, o fotojornalista Leonardo Priamo não registra um acontecimento inusitado na cidade. A foto do céu 66 azul com o amanhecer da cidade às 8h provavelmente irá para o Instagram do jornal onde trabalha.


Foto: Pulitzer

Crianças vítimas de bombardeio no Vietnã. 1962 Foto: Nasa

O austronauta Buzz Aldrin saúda a bandeira dos EUA. 1969 Foto: El País

Pós-segunda guerra e o salto no desenvolvimento tecnológico daquele momento: as forma de enxegar e se comunicar com o mundo já não eram as mesmas. Nas páginas da imprensa, cada vez mais, a fotografia roubava o espaço do texto escrito. A menina com as costas queimadas no Vietnã, o homem pisando na lua e a queda do muro de Berlim não passaram despercebidos pelos olhos e lentes que registravam o mundo. E tudo no papel dos jornais. Há alguns anos, as folhas destes jornais já não são mais o principal meio de divulgação destas fotografias. No passo da instantaneidade contemporânea, as imagens fotojornalísticas também ocupam o Instagram. O aplicativo de publicação de imagens, popularmente chamado de “Insta”, tem progenitor brasileiro. Mike Krieger, engenheiro de software nascido em São Paulo, é um dos criadores. Ele e o amigo Kevin Systrom lançaram o aplicativo em 2010 inicialmente para o sistema operacional iOS. Os dois estudaram na Universidade de Stanford, nos EUA. Em abril de 2012, o aplicativo foi adaptado para Android e vendido para o Facebook por 1 bilhão de dólares. Para Flávia Guidotti, professora de fotojornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, as formas de obtenção das fotografias do jornalismo tradicional há algum tempo não condizem mais com a velocidade que as notícias factuais exigem na era da internet. Daí a necessidade de uma rede instantânea para a transmissão de informações. E, para o fotojorlismo está o Instagram. No ranking das cem contas de Instagram com mais seguidores feito pela revista Hoje em Dia, o veículo de comunicação que mais possui seguidores é a revista National Geographic, @natgeo, ocupando o 13° lugar na data de divulgação da lista. Além desta conta, mais duas ocupam a lista: a NatGeo Travel, @natgeotravel e a Vogue Magazine, @voguemagazine. Território fértil. Cada vez mais as fotografias jornalísticas são publicadas no Instagram e pensadas para a plataforma. Clicar para o Insta

De acordo com Leonardo Costa, fotojornalista do jornal juiz-forano Tribuna de Minas, a rede social tem suas particularidades e é preciso considerá-las. Fotos muito abertas, por exemplo, e com os personagens pequenos não são o ideal para a visualização pelo celular. As cores também são uma preocupação, já que o engajamento com a foto é influenciado pelas tonalidades: imagens mais coloridas recebem mais curtidas. Situação comprovada no Instagram da Tribuna: a foto mais curtida da conta é a de um

A queda do Muro de Berlim em 1969

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Foto: Christinny Garibaldi

Em sequência: feed e perfil inicial do @nytimes e feed de fotografias do @tribunademinas

ipê amarelo, com 500 “corações”. Mas é possível ir mais longe e entender o sucesso da imagem do ipê além da questão das cores. Outra pesquisa de Flávia Guidotti, publicada no artigo “Fotojornalismo no Instagram. O que os usuários querem ver?”, demonstra que as fotografias “features” são as mais curtidas nos perfis dos maiores jornais do Brasil. “Features” é o gênero de fotojornalístico que, de acordo com Jorge Pedro Sousa (confirmar referência), trata das “fotografias com maior liberdade artística e estilística”, que são imagens incomuns, cheias de força visual e frequentemente coloridas. Flávia explica que a preferência pelas features demonstram o que as pessoas querem ver no aplicativo: “fotografias mais leves, menos conectadas aos fatos noticiosos”. Mesmo sem favoritismos, há espaço para a fotografia que preza pela notícia no Instagram. Flávia também comenta que a velocidade e abrangência do aplicativo permite que ele seja “o local adequado para a publicação de fotografias de notícias factuais, já que possibilita a publicação imediata e geolocalização das ações.”. Uma medida para que o potencial de difusão de notícias pelo Instagram seja melhor aproveitado é que os jornais deixem de utilizar apenas um meio de convidar para a leitura de edições impressas e/ou onlines.

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A fotografia na tela quadrada

Até 2015, todas as imagens publicadas no Instagram tinham todos os lados com a mesma dimensão. Eram retangulares aquelas que eram publicadas com o fundo branco que cobria a diferença de tamanho entre os lados. O fotógrafo Aelson Amaral lembra do “famoso formato” 6cm por 6 cm das câmeras da marca sueca Hasselblad. A dimensão quadrada contribui para que a fotografia seja vendida de forma harmônica, afirma Aelson. A composição da foto, ou seja, o arranjo dos elementos no espaço da imagem fica com distribuição mais coesa. Aelson acredita que este foi um dos grandes triunfos do Instagram nos primeiros anos de existência.: a harmonia das imagens de lados iguais. Como poderia ser x Como está

Para Flávia, o aplicativo ainda está sendo usado timidamente pela maioria das empresas de comunicação. Ela acredita que os perfis dos jornais devem começar a utilizar o Instagram como um aliado na difusão dos fatos noticiosos, e não apenas como uma chamada para as edições impressas e/ ou online. Nilson Alvarenga, professor de fotografia da Faculdade de Comunicação da UFJF, também observa este tipo de uso do aplicativo. “Instagram é espécie de uma vitrine. Se você quiser saber a informação, você vai para o jornal online.”

O instagram é “o local adequado para a publicação de fotografias de notícias factuais, já que possibilita a publicação imediata e geolocalização das ações.” Flávia Guidotti


Foto: Christinny Garibaldi

Entre imagem e escrita

O velho ditado diz que uma imagem vale mais que mil palavras. Para a professora Gleice Lisboa, professora de fotojornalismo do Centro de Ensino Superior (CES) de Juiz de Fora, “a imagem vale por mil palavras”. Igualmente. Aliás, para ela, não deve haver uma separação. As duas formas se unem para comunicar. Nilson também concorda que a imagem não sobrepõe a importância do texto na informação. Sobretudo para o leitor que busca uma informação mais aprofundada. “A comunicação verbal e não verbal é fundamental para a construção de uma cognição mais alargada.”, segundo o professor. Para aquela pessoa que não tem o hábito da busca pela informação completa, somente o ato de visualizar a imagem pode lhe parecer suficiente para entender por completo um acontecimento. Ainda mais porque a fotografia tem, por natureza, um caráter ambíguo, como lembra Nilson. No Instagram, o foco é a fotografia. O espaço para o texto seria a legenda das fotos. Na conta do jornal The New York Times, a legenda das fotos é aproveitada. A própria descrição da conta já diz: “telling stories in photos” – contando histórias em fotos. As legendas possuem cerca de 30 linhas que contextualizam as imagens que acompanham.

Imagem: BBC Brasil

Gleice Lisboa na sala de fotografia do Ces

Perfil de Eduardo antes de ter sido apagado da rede social

Eduardo Martins, paulistano de 32 anos, se dizia fotógrafo da ONU. Com mais de cem mil seguidores no Instagram, ele exibia fotos e vídeos de cenários de guerra, viagens pelo mundo e do surf que praticava nas horas vagas. Mas a imagem do jovem caiu por terra. A partir de uma matéria publicada pela BBC Brasil, alguns jornalistas começaram a suspeitar da autoria e da identidade de Eduardo. O próprio portal de notícias investigou durante um mês a vida do suspeito e descobriu que o material que ele publicava era de autoria de outros fotógrafos. Com algumas alterações na imagem, Edu conseguiu até mesmo passar despercebido, num primeiro momento, pelos profissionais que ele plagiou, como o fotógrafo americano Daniel C. Britt. Gabriel Brisola é mestrando do programa da Escola de Belas Artes da UFMG e pesquisa sobre as interseções entre Fotografia e Arte Contemporânea. Sob o ponto de vista do potencial autodivulgação que o Instagram demonstra no caso, ele comentou que a farsa de Edu “ao mesmo tempo que é uma tragédia para o jornalismo, no sentido de ter enganado diversas agências, é fabulosa por apontar as potencialidades da plataforma: é possível inserir-se em um meio profissional, estabelecer relações e contatos através dela. Claro que não é tão simples assim, mas o caso nos aponta para essa possibilidade.” Depois que soube da investigação, o autor do personagem Eduardo excluiu todas suas contas nas redes sociais. A pessoa real das fotos de Edu é o surfista britânico Max Hepworth-Povey, que soube do caso depois que amigos lhe mostraram a matéria na BBC Brasil.

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a rua grita

Entre muros e latas de tinta, os artistas de rua ocupam o espaço público reinvindicando que a cidade deve pertencer a todos


Texto, fotos e design: LetĂ­cia Silva


Ucajudomal “Muitas pessoas podem dizer que é porque jovem gosta de adrenalina. Realmente envolve adrenalina, mas se eu quisesse só por adrenalina eu pulava de um penhasco sem paraquedas. Eu acho que é muito mais político do que só diversão. A galera que é mais pobre, mais ferrada igual a gente, não tem como, de algum jeito a gente quer ser ouvido, quer ter direitos. Ninguém dá ideia pra nada que a gente faz a não ser que a gente faça coisa ‘errada’. Então pixo é errado? É ‘errado’, mas eu estou sendo notado fazendo isso. Se eu estivessse levantando 5h pra trabalhar, ouvindo merda de patrão pra chegar em casa e ter o mínimo, eu ia ser só mais um, mas quando eu faço uma coisa que é ‘errada’, eu sou notado. Então eu acho que é mais por ser notado, do que por ser arte. Acho que é a arte de ser notado.”

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Liberdade de expressão. Direito previsto no art. 5º, inciso IX da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Para fazer valer esse direito na prática, cada indivíduo encontra uma forma particular de se colocar no mundo, manifestando seus pensamentos, necessidades e inquietações. A mesma Constituição diz que “é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”. Sendo assim, todos nós, em teoria, podemos nos expressar no espaço em que vivemos. Os centros urbanos, que oferecem um contexto cinza, de pressa e rotina dura para a maioria dos habitantes, é cenário de uma infinidade de manifestações. O graffiti e a pixação se mostram como uma das formas de ocupação do espaço público por pessoas que em geral não são vistas de outras maneiras. Muros, casas abandonadas, placas e outros elementos que compõem a paisagem urbana são suporte para que essas vozes ecoem de maneira única e preencham a cidade com letras e cores. O senso comum está inclinado a concluir que essas manifestações, principalmente a pixação, são atos de puro vandalismo. Mas para compreender de maneira mais aprofundada essa realidade, é preciso ir além. Entender que por trás das letras e desenhos, existem pessoas, marcas e histórias é o primeiro passo.


GRAFFITI E PIXO Quem se atenta e observa minimamente o espaço do qual faz parte sua rotina, já se deparou com várias paredes marcadas ao longo da cidade. Mensagens de protesto, tags que sinalizam os nomes e codinomes de quem quer se marcar na rua, recados para pessoas queridas. Tudo isso comunicado a partir de caligrafias próprias. Além das mensagens através de palavras, o cotidiano também é tomado por informações visuais. Desenhos, personagens, cores e formas habitam as paredes ao ar livre. Qual seria a diferença entre essas duas formas de tornar pública sua forma de se colocar no mundo? O graffiti surgiu nos anos 60, na cidade de Nova York, quando alguns jovens, que protestavam conta a ordem social, começaram a marcar as paredes da cidade, dando início ao movimento. Ele está diretamente ligado à cultura Hip Hop, porque em sua essência, o graffiti reflete, através de uma necessidade de expressão, a realidade dura que grande parte da sociedade vive diariamente. No Brasil, ele chegou no final da década de 1970, na cidade de São Paulo, nos tempos duros da ditadura militar, se mostrou como uma forma de transgressão, representando a linguagem da rua. A sociedade, de maneira geral, interpreta de maneira diferente o graffiti e a pixação. Entretanto, não existe um consenso em relação a essa distinção. Ambos têm a mesma essência e se configuram enquanto formas de manifestação no espaço urbano, usando uma linguagem artística própria

da cultura de rua. O graffiti surgiu do pixo, mas apesar disso, a sociedade ainda prefere esteticamente o primeiro. A distinção entre essas duas formas de manifestação no espaço urbano, é algo que acontece especificamente no Brasil. Em outros países as duas práticas são chamadas de graffiti. Pixar é crime, em qualquer tipo de espaço, mas o que muitas pessoas não sabem é que o graffiti, se feito em local não autorizado, também se configura como ato ilegal. E nesse caso, independe da riqueza de elementos do desenho. Alguns artistas consideram o pixo e o graffiti como a mesma coisa. Task, começou a pintar em 2012 e conheceu primeiro o pixo. A lata de tinta foi o instrumento que ele encontrou para se manifestar do jeito que podia. Em 2015 começou também a grafitar. Para ele, “a diferença é que o graffiti, às vezes, vai focar mais na estética, na perfomance. O pixo é um ato mais de revolta, mais vandal mesmo, de você às vezes querer só sujar, pra incomodar, pra ser uma parada agressiva ou de você querer dizer alguma coisa”. Quando o graffiti surgiu ele era considerado da mesma forma que o pixo, sendo que só era expresso de maneira diferente, por meio de letras ou desenhos. O estudante de artes e design conhecido como Ucajudomal também se inseriu na arte de rua por meio do pixo, por uma necessidade de ser visto, “eu vejo os dois como necessidade de expressão, apesar do graffiti ter ganhado todo um contexto mais comercial. Sempre vejo as pessoas querendo distinguir uma coisa da outra, mas eu acho que está diretamente ligado”.

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O que é arte?

Céu “Na real eu acho que o pixo não é pra ser bonito, não é pra agradar ninguém. É pra incomodar, porque é a única voz que a gente tem. Porque se eu chegar na prefeitura, lá na câmara querer mudar, falar alguma coisa, eles vão me escutar? Não vão. A minha arte é a minha voz. É dizer que eu tô ali, que a gente tá aqui, que a rua é nossa, é de todo mundo. Eu tenho muito amor por pixação, pela arte e por pintar, é isso que me estimula. É ver a cidade colorida e cheia de letras, isso me dá prazer. Estar andando na rua e ver um trabalho de um amigo meu, eu fico muito feliz. É uma parada que eu sei que eu sempre vou amar”

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Conceituar de maneira precisa o que é arte, por si só já é algo complexo. Mas quando essas manifestações existem na rua, um espaço que permeia a vida de tantas pessoas, aparentemente existe uma liberdade para emitir juízos de valor sobre o que é feito. Céu trabalha com grapixo, um estilo de letra que, como o nome sugere, mistura pixo e graffiti. Ela se considera uma artista, assim como também acha que os pixadores são. “Não é fácil criar uma letra. Às vezes a galera olha assim na rua, acha que a gente não sabe nem o que tá falando, mas a pessoa teve o maior trabalho”. Ela fala de técnica. Muitos grafiteiros criam o próprio alfabeto e passam por um processo criativo. “Desenha primeiro, tenta criar uma letra diferente, e isso é arte, é uma forma de expressar o sentimento”, acredita Céu. Em sua concepção, as pessoas querem mostrar que estão ali naqueles espaços: “Pô, eu vou mostrar o que eu tenho também, que eu sei fazer alguma coisa”. Ela diz que não precisa que pessoas de fora da cena reconheçam seu trabalho, mas sabe que quem é da cena do hip hop vai olhar e gostar. “O pessoal de fora, eu não me importo muito, porque é justamente a parada de estar ali pra agredir mesmo. A galera olha e acha feio, e é isso mesmo, é pra


ser feio pras outras pessoas”. Apesar disso, em geral, ela escuta coisas boas sobre o que pinta. Já recebeu convites para pintar em um evento e também em uma empresa. Para o estudante de artes e design, Roko, ser artista é uma definição muito ampla, “às vezes vai ter um cara que vai pintar a tela toda de branco e só porque foi um tom diferente, um tom nunca achado de branco as pessoas vão dizer, ‘nossa, esse artista contemporâneo é muito brabo’”. Por isso, ele diz não se considerar como artista, pois prefere não se rotular. Para Task, o pixo incomoda tanto que as pessoas não conseguem vê-lo como arte. “A galera está com a mente muito privada ainda, por exemplo, quando vê uma bomb - nome dado ao graffiti de letras preenchidas, geralmente de formato arredondado -, só por ser colorida, veem como arte. Mas o pixo, por ser preto, às vezes ilegível, a pessoa não consegue ver”. Para ele, as pessoas não estão preparadas para receber essas manifestações. Existem pixos de variados estilos. Alguns são mais “largados”, de forma intencional. Outros a pessoa vai querer decorar, fazer traços diferentes, mais trabalhados esteticamente. Task destaca que tudo envolve técnica e estudo. Ele conta que treina na parede de sua casa “eu não quero só chegar e fazer qualquer tipo de letra, eu quero colocar um efeito nela, que a pessoa vai olhar e vai achar

Foto: arquivo pessoal Céu

um pixo diferente”. Para ele, o pixo não é valorizado porque as pessoas acham que não há dedicação na atividade e que só é feita para sujar. Felipe Stain compõe a Underground Crew, grupo formado por 13 artistas, de várias cidades. Quando eles vão pintar, é sempre uma produção pensada. “A gente escolheu aquele tema, pensou direitinho no que a gente queria fazer e foi para o muro pintar. Tudo é escolhido, o fundo do muro, como os desenhos vão se encaixar, que mensagem eu quero passar no graffiti”. Stain gosta de pintar em locais degradados: “Imagina, você ver um prédio destruído, em escombros, ai do nada você vê uma arte ali. Cor e vida no lugar. Acho que isso que é importante, gosto de quando você faz de um lugar ruim, ficar um lugar melhor”. Ele fala da desvalorização da sociedade com o graffiti enquanto arte. “O hip hop na verdade é um mix. Na dança a gente mistura frevo, dança russa, capoeira, todos os ritmos. No graffiti não é diferente. Você vai ver uma tela do Van Gogh, por exemplo, eu não conheço, mas se um grafiteiro achar, que aquela técnica que o pintor fez, ele consegue passar no graffiti, ele vai pegar aquela técnica e vai aplicar. Mas quando vai para o graffiti não é mais arte, só é arte quando está na tela dele. Isso não faz sentido. Acho que a gente tem que quebrar muito preconceito ainda”. Cláudio Melo, Dim no graffiti, é professor de artes 16 anos. No momento atua na rede pública e compõe o projeto “ateliê aberto”. Ele acredita que para levar arte e cultura para uma escola deve haver uma conversa sobre as manifestações existentes na comunidade que a instituição está inserida. “Meus alunos têm contato com a arte de rua, em especial o hip hop. No sinal perto da escola b-boys dançam por moedas, no recreio alunos brincam de batalha de rap, toda turma tem alguém que rabisca sua tag por aí. Com tanta riqueza, atitudes artísticas naturais, só preciso entender isso e fazer uma ponte para o conteúdo que tenho que passar”. Ele leva graffiti para as aulas de artes “ele vai ser rico por ter um estudo em sua base. Não vai ser só um desenho na parede, vai ser informação desenhada na parede”. Em aula são estudados os conceitos e em paralelo, o professor estimula o processo artístico nos alunos. “Pintar as paredes é o que tínhamos a fazer. Percebi que o que teorizávamos em sala de aula podia ser grafitado de forma coletiva”. Cerca de 1200 participantes ajudaram a pintar todo o corredor da escola que leciona, no ano passado. “Um ateliê constituído, diverso e rico. Meu objetivo é fazê-lo funcionar e explorar toda capacidade dele”, considera Dim. Na concepção do professor, se atualmente existe uma desvalorização da arte, da educação e da cultura, há também uma grande força para resistir através da escola. As paredes passaram a ser a obra de arte dos alunos, “o sentimento de se fazer parte da escola fortalece a partir da arte. O quadro negro não foi suficiente, a sala ficou pequena e o potencial artístico dos meus alunos é grandioso”.

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Conduta na rua

Task “Eu descobri um prazer pintando, tanto no vandal quanto no graffiti. Gastar o meu dinheiro eu acho que é o de menos, porque eu tô fazendo uma parada que eu gosto muito. Eu me considero um artista, porque como eu moro numa parte mais periférica, a nossa arte não é visível, não é vista como arte. Mas eu quero fazer pra tanto exaltar a beleza que tem na minha comunidade quanto o lado artístico que a gente tem. Eu saio por prazer, por querer dizer. A minha mãe fica preocupada, não me apoia mas também não me proíbe, só pede pra eu tomar cuidado. Já passou um tempo que eu tive muita coragem. Eu acho que os mais jovens, como estão começando, querem pegar uns picos, querem escandalizar mesmo. Acredito que eles podem fazer isso. Pixo no alto, o cara que tem coragem de subir lá e ficar pendurado, numa janela, às vezes segurado por uma corda. Tem que ter atitude pra fazer isso, não ter medo de consequência nenhuma”

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Como em toda cultura, no meio em que essas intervenções urbanas estão inseridas, também existem algumas regras que devem ser levadas em consideração antes de tomar a atitude de pintar um muro. A principal conduta considerada pelos pixadores como fundamental para a boa convivência na rua é não atropelar o trabalho de outra pessoa. Isso quer dizer que se alguém pintou em uma parede, não se deve pintar por cima. “Tem tanto muro, porque que você vai atropelar um amigo? Não tem necessidade, a regra é respeitar”, destaca Task. Não existe uma hierarquia no espaço, mas é preciso respeitar quem chegou primeiro. Ucajudomal passa sua visão de que esse comportamento está relacionado com a história do pixo. “O pixo é uma cultura muito periférica, e quem está acostumado com esse tipo de cultura já sabe como funciona a lei em uma quebrada. Você tem que respeitar o próximo para ser respeitado e para que não role nada com você”. Na rua, se você atropela um trabalho, a interpretação é de que você está procurando problema com o outro artista: “É ação e reação, lei do retorno. Você tem que saber que a partir do momento que você faz uma coisa errada, você está sujeito a receber coisas erradas na mesma proporção ou até pior”. Dentre risos, Roko conta que quando estava começando, na época, morando em Petrópolis, chegou a pintar por cima de um trabalho antigo de um grafiteiro respeitado. No momento, o artista foi tirar satisfação, mas depois de uma conversa tudo se resolveu. Para evitar problemas, é importante sempre tentar perguntar para quem fez o trabalho, caso seja algum conhecido seu, se ele permite pintar por cima. Em muitos casos o pedido não acontece, porque as situações são diversas na rua. Também pode acontecer de um artista ter a permissão do dono e o outro não: “Se tem permissão, não é que isso deu o direito de você atropelar o cara, mas você está numa posição diferente da deles, porque provavelmente mostrou uma proposta que o dono do lugar se interessou”, explica Ucajudomal. Em outros casos, pode ser que a pessoa nem lembre que deixou sua tag no lugar, então não há problema. Na opinião de Felipe Stain, tem espaço que é para o graffiti e tem espaço que é para pixação. Essa percepção evita os atropelos: “Em um lugar com várias tags, eu não gosto quando chamam alguém para pintar por cima. Eu não curto isso, porque você está atropelando o trabalho da outra pessoa. Isso no graffiti é o ápice do estresse, é uma parada que não pode rolar”.

A ocupação dos espaços públicos É fundamental ampliar a discussão se a cidade, enquanto espaço urbano e social, está preparada para receber este tipo de intervenção. Os habitantes têm posicionamentos e pensamentos diversos, o que implica nas múltiplas formas de ver o graffiti e o pixo, mesmo no espaço público. Roko é um artista que veio de Petrópolis para Juiz de Fora. Para ele, não existe uma regra que se aplique a todos


os lugares, a recepção é relativa. “Acho que vai de cidade pra cidade. No Rio, as pessoas passam, acham maneiro, tiram foto, já aconteceu de trazerem lanche pra mim. Mas aqui em Juiz de Fora, o pessoal já é muito do contra. Eles não perguntam o que você está fazendo, só deduzem que aquilo é errado porque tem spray envolvido, deduz que é vandalismo e ligam para a Polícia”. Ele enxerga que as pessoas têm uma dificuldade de expandir o olhar e entender a cultura da rua: “Acho que a cidade, como contexto urbano, está mais que preparada, está necessitada disso. Necessitada de graffiti, necessitada de cor”. Para além da diferenciação entre graffiti e pixo, é preciso pensar sobre o motivo de existirem tantos pela cidade. Uma vez que o graffiti é uma linguagem, para Dim Melo, o grande significado e importância de fazer essas intervenções é estabelecer uma conversa com a rua quando aperta o cap (bico da lata do spray de tinta). Dim atribui a quantidade de letras e desenhos à possibilidade de alguém existir e resistir através dessas intervenções no espaço urbano, que se relacionam com a cultura Hip Hop e periférica. “A arquitetura existe para acolher, acomodar o indivíduo, mas será que ela está acolhendo a todos? Para alguém pixar um muro, é porque aquele não o atende da forma como está, o cara se identifica naquela parede a partir do momento que atua nela.” Para ele, é uma disputa de território visual. “O dono de um local pode pintar colorir da forma como bem entender porque é o dono, porém esse lugar, é lugar comum para outro, e esse outro também quer o direito de se representar nesse espaço”.

Espaço público e privado Um dos motivos para a criminalização das intervenções urbanas, é a forma como as pessoas percebem o espaço público e o espaço privado. Roko explica que existem dois jeitos de pintar: “Tem o vandalão, que é chegar e pintar. Eu acho que esse é o jeito mais maneiro, mais certo, porque espaço público é nosso. Às vezes a gente quer pintar naquele dia, que aquele é o único que a gente tem, e é a maior burocracia pros caras liberarem”. Ele acredita que se o processo fosse mais simples, as pessoas pediriam permissão. Felipe Stain, conta que na crew (grupo de grafiteiros ou pixadores) que compõe, eles geralmente costumam pintar paineis. Nesse caso, como é um gasto maior, tem autorização. “Há muros que a gente não tem autorização, a gente vai e corre o risco de fazer, mas geralmente é autorizado, eu não faço muito o vandal não”, conta. Em relação ao espaço privado, as opiniões variam. Se o espaço for de uma empresa, por exemplo, os pixadores costumam não se importar, é diferente se a casa for de um civil. “Eu penso que o nosso direito acaba quando começa o do outro. Eu não sei se o cara é rico ou é pobre, não sei o que está acontecendo na vida dele. Não sei se ele trabalhou dez anos pra juntar a tinta e pintar o muro dele. Tem gente que vai pintar no outro dia, mas vai ter gente que a pessoa vai ficar triste, porque o cara ‘sujou a parede e a pessoa não tem dinheiro pra limpar”, considera Roko. Task tem o mesmo tipo de posicionamento e diz que além disso, também não pixa em igrejas, por exemplo. Porém, cada caso é único. Ao fazer graffiti, eles acreditam

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dim melo “Cresci em Belo Horizonte, uma cidade que nas décadas de 80 e 90 já era bombardeada pelo pixo. Quando fui alfabetizado, como toda criança , me distraía lendo tudo que via pela rua. O pixo era o que mais me instigava, uns eu não conseguia decifrar e outros eram em lugares tão difíceis de pintar que permeava meu imaginário - como que aquilo foi feito? Rapidinho tive uma tag, mas que ficou quase que só nos cadernos ou com canetão, em alguns postes perto da escola. Nunca pixei com lata, era caro para um adolescente. Já o graffiti foi meu primeiro professor de desenho. Eu via aquilo de dentro do ônibus, chegava em casa e tentava desenhar igual. E não tinha câmera, celular pra tirar foto, tinha que dar sorte do ônibus parar no sinal sem outro na frente e observava com muita atenção pra chegar em casa e saber fazer. Tinha um personagem que eu devo ter demorado uns dois anos para conseguir fazer o tênis dele”

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que pedir permissão evita transtornos, pois é mais tranquilo o tratamento. No contexto do pixo, tem pessoas que visam muito o pico, se interessam em deixar sua marca em pontos altos da cidade. Nesse caso, se alguém for pixar o nome em um prédio residencial, por exemplo, não vai acontecer o aviso.

Spray: a arma do crime Se existe uma grande necessidade de se expressar, porque essas ações ainda são tão criminalizadas? Na visão de Roko é porque não existe uma política de base ensinando as pessoas sobre seu direito ao espaço público. Céu acredita que é porque quem é de fora da cena acha feio, porque “o hip hop é cultura de negro, da periferia”, ressalta. “Tudo que vem desse lugar é visto como coisa ruim, então acho que isso influencia muito na aceitação das pessoas, infelizmente. É uma cultura linda, que eu acho que todo mundo deveria conhecer, mesmo que não gostar, mas para tentar entender antes de falar e julgar” Quem está acostumado, conta que é preciso ter “desenrolo” para saber conversar com as autoridades: “Isso se quem for abordar a gente for legal, porque, muitas vezes, eles só chegam pedem pra guardar tudo que vão levar embora”, conta Ucajudomal. O professor Dim Melo considera que o espaço ainda não é democrático. “O espaço não acolhe a todos, temos escolhas estéticas diferentes entre as pessoas, no entanto, temos um padrão dominante. O letreiro do MC Donald´s tem lugar no espaço, a tag grafiteiro nem sempre”. Ele acredita que existe uma guerra visual, em que o pixador está cobrando espaço. “Aquele que está à margem quer existir no centro. E está se utilizando da grafia, do desenho. Não é bonito isso? Escrever no muro não tira sangue de ninguém é um embate dentro de um universo subjetivo traduzido em um espaço real” Com a entrada em vigor da Lei n. 12.408/11, que alterou a redação do art. 65 da Lei n. 9.605/98, grafitar deixou de ser crime. Mas é proibido vender tintas embaladas em aerossol para menores de 18 anos. Pixar qualquer edificacão ou monumento urbano pode causar detencão, de três meses a um ano e multa. Caso seja em monumento ou local tombado a pena é de seis meses a um ano de detenção e multa. A lei diz ainda que: “Não constitui crime a prática de grafite realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestacão artística, desde que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário do bem privado e, no caso de bem público, com a autorizacão do órgão competente e a observância das posturas municipais e das normas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservacão e conservacão do patrimônio histórico e artístico nacional.”


Porque marcar as paredes com suas expressões? O ato de pixar envolve riscos e pontos negativos. De maneira prética, eles vão desde gasto de dinheiro com tinta, com possibilidade de ter a pintura removida logo no dia seguinte, até ter o rosto pintado pela Polícia (sim, relatos contam que isso acontece) ou ser levado para uma delegacia. Por que motivo essas pessoas continuam tendo satisfação pixando? Cada um vai ter sua própria explicação. As pessoas são diversas. Sendo assim, cada indivíduo tem uma história e com isso, um motivo para querer se expressar. Conheça os artistas que fizeram parte desta reportagem:

Roko O estudante de artes e design começou a pintar no final de 2014 por influência, pois seguia alguns grafiteiros nas redes sociais e gostava dos trabalhos. Achava que não ia ser suficiente deixar suas artes só no papel, que suas pinturas e tipos de desenho combinava com os muros, onde as pessoas poderiam ver. Seu envolvimento é mais intenso com graffiti, faz até trabalhos na área. Pixa às vezes, por diversão. “Quando eu estava na 5ª, 6ª série eu dizia para a minha mãe que tinha trabalho e precisava chegar cedo na escola. Eu estudava de manhã, e saía de casa às 5h, quando estava tudo escuro. Teve um dia que eu comprei uma lata de Decor branca, eu falava para a minha mãe que era pra pintar a bike, aí ela comprava. Eu descia o morrão e pixava.”

Task Seu início no pixo foi 2012. No ano de 2015 começou a se aventurar no graffiti. Atualmente trabalha com estamparia, tendo a tinta presente até nesse momento. Esse contato o ajuda a entender sobre as cores e pigmentações. “Eu comecei por mim mesmo, nunca procurei uma aula. A gente vai colando com os manos, pegando umas experiências aqui e ali. Comecei a pixar para me manifestar do jeito que eu podia. não tinha outro jeito, então eu comecei a pegar a lata pra me expressar.”

Ucajudomal Começou a pintar porque era amigo de pessoas que pixavam e sempre teve contato. Através do pixo conheceu e se interessou pelo graffiti, recentemente começou a se dedicar a ele. Ele já desenhava e começou a querer passar seus desenhos para a parede. Estuda artes e desing e hoje usa a habilidade com letras para tatuar. “Acho que foi por uma necessidade de ser visto, mas não diretamente, porque no pixo normalmente as pessoas são anônimas, quem é de fora só acha que é vandalismo, mas não é bem assim que funciona.”

Dim Melo A primeira vez que pintou em uma parede foi no ensino médio, há mais de 20 anos, na época em Belo Horizonte. Fez faculdade de artes, trabalhou com arte gráfica e, hoje, é professor. Vendo os graffitis pipocarem em Juiz de Fora, começou a participar de eventos em 2016. “Na época de faculdade fiz uns painéis, mas parece que eu comecei foi no ano passado. Parece que é sempre a primeira vez, que eu estou sempre começando.”

Felipe Stain

Céu

Pinta há sete anos e se dedica ao graffiti. Stain começou fazendo camisa pra si mesmo e percebeu que tinha habilidade, com isso passou a ir para o muro. Quando criança, já desenhava personagens de desenho animado. Além disso, tem relação com outro elemento da cultura hip hop: é b-boy há 13 anos. “Eu já sabia desenhar e já estava na cultura hip hop, então já tinha essa aproximação, por isso eu comecei a pintar. Aprendi sozinho, do jeito brasileiro, que é o famoso látex. Peguei os látex, umas duas latinhas, que na época eu tinha condição de ter, e comecei a fazer.”

Conheceu o pixo há cinco anos. Se interessou quando começou a ir aos eventos de rap que tinha na cidade. No antigo DCE, lugar em que aconteciam rodas de MCs, começou a prestar atenção nos pixos, foi seu primeiro contato com o hip hop. Criou uma tag e começou a fazer, sem compromisso. Assina Céu há três anos, quando começou a fazer grapixo, inspirada por um artista de São Paulo. “Eu me encantei com o pixo, sempre me chamou muita atenção aquelas letras que não dava pra entender. Conheci o grapixo, achei sensacional e trouxe isso pra cá, porque isso quase não existia em Juiz de Fora.”

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