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Patrimônio.3Cultural
Patrim Nio Cultural Industrial
Neste
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capítulo é feita uma contextualização do patrimônio cultural de modo a refletir sobre a importância histórica do Complexo Antarctica para iniciar as diretrizes de restauro que se pretende realizar no projeto deste trabalho.
3.1. Contexto e identidade
Segundo Françoise Choay (1995, p.11), entende-se por patrimônio histórico um “bem” herdado por um grupo de pessoas que acumularam uma “diversidade de objetos que se congregam por um passado comum: obras, obras-primas das belas artes e das artes aplicadas”. Trata-se de um termo que mais tarde será vinculado com preocupações de preservação da memória, cultura e história de um período. Foi possível, por meio das primeiras constituições nacionais de patrimônio, unificar um referencial comum a uma sociedade e cultura que relembre memórias coletivas de um território.
“Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
- As formas de expressão;
II Os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - As obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V - Os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.” (BRASIL,1988)
3.2. Patrimônio Industrial
Os primeiros estudos e discussões relacionados ao conceito “patrimônio industrial” surgem em meados dos anos 1960 na Grã-Bretanha por Arthur Rainstrik. Junto a esse conceito também é anunciado o campo da “arqueologia industrial” em destaque “interdisciplinar” (BUCHANAN,1972. p.20-21), uma vez que ambos tinham o intuito de demonstrar a importância dos monumentos industriais por suas dinâmicas, tecnologias e meios de comunicação de um determinado período.
É no contexto de pós guerra que enfrentava os países europeus e da “obsolescência de testemunhos da industrialização” (RUFINONI, 2013, p.188) no Brasil que se incentiva a necessidade de uma discussão sobre patrimônio industrial de modo a entender este conceito amplo, visto que, o monumento industrial não almeja somente uma tipologia, mas sim um encadeamento de fatos, logo trata-se de um “complexo” realizado pela industrialização – “fábrica, residências, enfermaria, escola, etc., além de abarcar unidades de produção de energia e meios de transporte”(KUHL, 2008, p.45).
Com a criação de novas cartas, após a Carta de Atenas, tem-se a evolução dos conceitos de restauro e preservação que incluíssem não somente a sociedade, mas a pluralidade de outros conceitos históricos testemunhos de dinâmicas humanas, assim além da Carta de Veneza e Quito que já retratam as indústrias e também paisagens urbanas como um “bem cultural”, em 2003 a Carta de Nizhmy Tagil define melhor o conceito de “patrimônio industrial”.
“O património industrial compreende os vestígios da cultura industrial que possuem valor histórico, tecnológico, social, arquitectónico ou científico. Estes vestígios englobam edifícios e maquinaria, oficinas, fábricas, minas e locais de processamento e de refinação, entrepostos e armazéns, centros de produção, transmissão e utilização de energia, meios de transporte e todas as suas estruturas e infra-estruturas, assim como os locais onde se desenvolveram actividades sociais relacionadas com a indústria, tais como habitações, locais de culto ou de educação.” (CARTA
DE NIZHNY TAGIL, 2003)
ciente ou inconsciente, as complexas questões de preservação, como ato de cultura, envolve.” (KULH,2008, p. 57)
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No entanto, por mais que haja e instituições, leis e ferramentas urbanas para proteger os “sítios industriais”, cabe ressaltar que se trata de uma área que vivencia uma realidade com escassez de recursos financeiros, assim pouco valorizada no âmbito governamental e com um quadro insuficiente de mão de obra verdadeiramente qualificada para trabalhar no setor. Segundo Rufinonni (2013, p. 199-201), há um certo distanciamento entre teoria e prática de conservação para estes monumentos industriais, ou por serem complexos não considerados “significativos de obra de arte”, ou pela escassez de discussão para critérios aplicados em projetos de intervenção em Patrimônio industrial.
“Em geral, não é possível avaliar os aspectos verdadeiramente conservativos da ação, pois quase nunca é apresentado um exame do edifício como estava antes e o que se procurou conservar e valorizar no projeto (...).
Ademais, as palavras restauração, conservação ou preservação, raramente comparecem nos artigos. Fala-se com frequência de revitalização, recuperação ou mesmo reciclagem, procurando evitar, de maneira cons-
1 Disponível em < https://ticcihbrasil.com.br/cartas/carta-de-nizhny-tagil-sobre-o-patrimonio-industrial/ > Acesso em: 16 mar. 2020
Devido a esse fato problemático, pretende-se com esta pesquisa enfatizar a importância do Patrimônio Industrial que se tem no bairro da Mooca por meio de questões projetuais norteadas por autores e cartas. E assim elaborar uma proposta que ative a memória dos moradores por meio do restauro e reativação da Fábrica, pensando-se não somente na sua arquitetura, mas no meio em que está evolvido pelas dinâmicas sociais e malha urbana em que se está inserido.
Buscou-se no desenvolvimento deste capítulo descrever as bases teóricas que auxiliaram e embasaram os entendimentos sobre a preservação de sítios e monumentos históricos industriais. Assim, para a área de estudo utilizou-se, no âmbito urbano, as Cartas de Veneza (1964) e de Burra (1980) que como ressaltado na Carta de Nizhmy Tagil devem estar inclusas na Carta do Patrimônio Industrial.
As primeiras citações sobre a preservação dos patrimônios industriais e urbanos surgem na Carta de Veneza (1964), a qual enfatiza a necessidade de compreender que um testemunho histórico compõe um diálogo onde está inserido e não mais de forma isolada. Assim, parte-se de que “A conservação e a restauração dos monumentos visam salvaguardar tanto a obra de arte quanto o testemunho histórico” (Carta de Veneza,1964, p. 2), logo ressalta-se que o “monumento histórico” não somente está nas obras arquitetônicas, mas em qualquer sítio urbano ou rural que tenha adquirido uma significância de cunho cultural independentemente de deste estar atrelado ao “valor” documental ou formal. (KUHL, 2021, p. 292 - 293)
“A noção de monumento histórico compreende a criação arquitetônica isolada bem como o sítio urbano ou rural que dá testemunho de uma civilização particular, de uma evolução significativa ou de um acontecimento histórico. Entende-se não só às criações, mas também às obras modestas, que tenham adquirido, com o tempo, uma significação cultural.” (CARTA DE VENEZA, 1964. Art.1, p.2)
A partir dessa resolução é necessário, em revita- lizações e preservações de sítios industriais, dar uma função útil à edificação sem alterar sua paisagem e leitura arquitetônica (Miklós Horler ), uma vez que estes complexos “costumam agrupar diversos edifícios construídos em diferentes épocas” (RUFINONI,2013, p 92).
“A conservação dos monumentos é sempre favorecida por sua destinação a uma função útil à sociedade; tal destinação é, portanto, desejável, mas não pode nem deve alterar à disposição ou a decoração dos edifícios. É somente dentro desses limites que se deve conceber e se pode autorizar as modificações exigidas pela evolução dos usos e costumes” (CARTA DE VENEZA, 1964. Art.5, p.2)
A Carta de Veneza insere, também, influências de um restauro que apontam a necessidade de buscar uma expressividade marcadamente contemporânea nas novas intervenções. Isso aconteceu devido as destruições da Segunda Guerra Mundial, uma vez que muitas características de edifícios históricos se encontravam devastadas, assim tem-se a resolução de um restauro que mantem questões documentais e históricas como retratado na Carta de Atenas, mas com fundamentos estéticos proposto pelo restauro “crítico” como observado nos artigos a seguir:
“Artigo 12- Os elementos destinados a substituir as partes faltantes devem integrar-se harmoniosamente ao conjunto, distinguindo-se, todavia, das partes originais a fim de que a restauração não falsifique o documento de arte e de história.” (Carta de Veneza, 1964. Art.12, p.3)
1 HORLER, Miklós. La Charte de Venise et la restauration des monuments historiques em Hongrie. Disponível em: < http://openarchive.icomos.org/635/> Acesso em 17 mar. 2020
“Artigo 13 – Os acréscimos só poderão ser tolerados na medida em que respeitam todas as partes interessantes do edifício, seu esquema tradicional, o equilíbrio de sua composição e suas relações com o meio ambiente.” (CARTA DE VENEZA, 1964. Art.13, p.3)
Conforme descrito na Carta de Quito (1967) um local preservado é um espaço que não contém sua total desnaturalização, dessa forma, entende-se a necessidade de compreender as diferenças dos conceitos (Carta de Burra, 1980) sobre: preservação conservação restauro, e reconstrução bem como unir estas concepções à valorização e identificação social que contém afetividade à história do monumento.
“A ideia do espaço é inseparável do conceito do monumento e, portanto, a tutela do Estado pode e deve se estender ao contexto urbano, ao ambiente natural que o emoldura e aos bens culturais que o encerra.” (Carta de Quito, 1967. p.2)
“Reiterar a conveniência de que os países da América adotem a Carta de Veneza como norma mundial em matéria de preservação de sítios e monumentos históricos e artísticos, sem prejuízo de adotarem outros compromissos e acordos que se tornem recomendáveis dentro do sistema interamericano.” (CARTA DE QUITO, 1967. p.11)
Termos Técnicos
1- Preservação: compreender os monumentos históricos é necessário para entender os motivos de resguardá-los. Assim, tudo que está exposto nas transformações dos testemunhos do tempo deve englobar ações de tombamento e proteção, pois, preserva-se por justificativa do patrimônio possuir valor cultural e social.
“A preservação se impõe nos casos em que a própria substância do bem, no estado em que se encontra, oferece testemunho de uma significação cultural especifica, assim como nos casos em que há insuficiência de dados que permitam realizar a conservação sob outra forma.” (CARTA DE BURRA, 1980. p.3)
2- Conservação: conservação refere-se aos cuidados para preservação da significação cultural por meio de “medidas de segurança e manutenção” (Carta de Burra, 1980)
“As contribuições de todas as épocas deverão ser respeitadas. Quando a substância do bem pertencer a várias épocas diferentes, o resgate de elementos datados de determinada época em detrimento dos de outra só se justifica se a significação cultural do que é retirado for de pouquíssima importância em relação ao elemento a ser valorizado” (Carta de Burra, 1980. p.3)
3- Restauração e reconstrução: a restauração junto a reconstrução designa ao reestabelecimento de um bem ao estado que era anteriormente reconhecido. Parte-se da necessidade de respeitar os testemunhos históricos que o monumento possui sem retirar sua passagem pelo tempo.
“A reconstrução deve ser efetivada quando constituir condição sine qua non de sobrevivência de um bem cuja integridade tenha sito comprometida por desgastes ou modificações.” (CARTA DE BURRA, 1980. p.4)
4- Significação, valorização e identidade cultural: pensa-se nas tradições de uma sociedade que faz necessário salvaguardar valores próprios das civilizações urbanas tradicionais representados por relações de paisagens entre homem, cidade e natureza (bairros históricos, forma e traçado urbano, espaços abertos e construídos, etc.)
“A presente carta diz respeito, mas precisamente às cidades grandes ou pequenas e aos centros ou bairros históricos com seu entorno natural ou construído, que além de sua condição de documento histórico, exprimem valores próprios das civilizações urbanas tradicionais” (CARTA DE WASHINGTON, 1986. p.1)
Além das diretrizes e conceitos das cartas patrimoniais citadas anteriormente, pretende-se, para área de estudo, aprofundar também os conceitos de “reutilização”, “reativação “e “requalificação” para adaptar o edifício a um novo uso, seja de cunho de habitação, lazer ou cultural para poder reintegrar o monumento à sociedade.
Técnicas de Restauro
Ainda em decorrência do entendimento sobre patrimônio, dedica-se esta parte da pesquisa aos estudos sobre conservação que servirão de base para às técnicas de preservação arquitetônica dos edifícios contidos na Cia Antarctica, respaldadas por: Gustavo Giovanonni (1987-1947), Cesare Brandi (1906-1988), Giovanni Carbonara (1942) e Salvador Munõz Viñas (2003).
Gustavo Giovanonni (1987-1947) aplica em sua teoria um restauro científico baseado nos estudos de Camilo Boito (1836-1914) que defende a necessidade de diferenciação entre original e restauro. Mas seu grande destaque consiste em seus estudos serem os primeiros sobre a valorização dos conjuntos urbanos por meio da compatibilização entre escalas e morfologias, assim sendo necessário entender as relações entre a “cidade antiga” e a “cidade moderna”.
“(...)um grande monumento tem valor em seu ambiente de visuais, de espaços, de massas e de cor no qual foi erigido, (...) o aspecto típico das cidades ou povoados e seu essencial valor de arte e de história com frequência residem, sobretudo, na manifestação coletiva dada pelo esquema topográfico, nos agrupamentos construtivos, na vida arquitetônica nas obras menores” (GIOVANONNI, p 176. Tradução Manoela Rufinonni.)
Cesare Brandi (1960- 1988), assim como Giovanonni, reafirma a necessidade distinguir o contemporâneo e o histórico, mas diferente desse, parte de uma teoria estética que se sobressai a histórica. Assim, aponta a distinção entre restauro de produtos industrializados e restauro de obras de arte, sendo o primeiro por inter- venções com objetivo de restituir a funcionalidade do produto; e o segundo para restabelecer o objeto como uma obra de arte. Desse modo, o restauro serve para recriar a significância que o testemunho perdeu ao longo do tempo, intempéries ou restaurações anteriores e respeitar seu valor artístico sem retirar traços de passagem do tempo ou intervenções realizadas pelo homem.
“A restauração, para representar uma operação legítima, não deverá presumir nem o tempo como reversível, nem a abolição da história. A ação de restauros, ademais, e pela mesma exigência que impõe o respeito da complexa historicidade que compete à obra de arte, não se deverá colocar como secreta e quase fora do tempo, mas deverá ser pontuada como evento histórico tal como o é, pelo fato de ser ato humano e de se inserir no processo de transmissão da obra de arte para o futuro.” (BRANDI, 2008, p. 61)
Para Giovanni Carbonara (1942) o restauro transmite o futuro de uma obra que atribuirá valor histórico, artístico ou ambiental. Assim, não deve cancelar os traços do tempo e facilitar a leitura. O termo “preservar” significa dar novos valores para o edifício por meio da requalificação, reutilização e reabilitação.
E para Salvador Munõz Viñas (2003), o restauro estabelece a necessidade de conservação a partir de uma forma subjetiva, sendo a preservação realizada por meio da significância, simbolismo e sentimentalismo que um objeto tem para uma determinada sociedade. Assim, ressalta que o restauro deve facilitar a leitura do patrimônio e não ser imposta somente pela teoria de estudiosos, pois, a conservação deve ser realizada com a participação de um grupo, o qual possui o objeto significativo e assim favorecer o potencial do edifício de modo a garantir possibilidade “de surgimento de novos significados no presente e no futuro” (ZANCHETI, p. 8, 2014).
A partir dos quatro estudiosos citados acima, determina-se que o restauro e preservação do edifício Antarctica serão realizados por meio da reabilitação e requalificação para novos usos com o intuito de não haver um possível abandono como a humanidade tem visto durante muitos anos, principalmente com os novos costumes de especulação imobiliária ou o fácil descarte de construções antigas como se tem observado no bairro da Mooca (ROLNICK, 20001) Além disso, como analisado nos primeiros estudos de Giovanonni e Carta de Veneza, pretende-se também preservar e reconstruir uma leitura histórica a partir da análise do entorno do objeto de estudo para poder saber interferir na área respeitando seus aspectos documentais locais.
“Um dos objetivos da restauração é, com feito, preservar a solução arquitetônica para os problemas como resolvidos em outras épocas. (...) Não se trata apenas de respeitar os aspectos materiais, mas também saber entender as questões formais, a composição do espaço, sua solução de distribuição e articulação, para, através da proposta, preservá-los, respeitando escrupulosamente os aspectos documentais. (KUHL,2009, p.222)
1 Disponível em < https://revistapesquisa.fapesp.br/2000/07/01/zona-leste-de-sao-paulo-enfrenta-o-novo-milenio/> Acesso em: 17 mar. 2020
Espaço e memória
Conforme as resoluções de cartas internacionais de patrimônio e instituições de preservação para atender a necessidade de resgatar e salvaguardar (monumentos, espaços, elementos, festividades, etc.) entende-se, atualmente, que existe uma “conexão entre o espaço e memória” independentemente de o patrimônio ser identificado “material ou imaterial ”1
“A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga a continuidades temporais, às evoluções, e às relações das coisas. A memória é o absoluto e a história o relativo”
(NORA, 1993, p 09)
Logo, parte-se desses princípios, também, como diretrizes para preservar o patrimônio escolhido, visto que pertence a um bairro tradicional de São Paulo composto de uma cultura muito presente na maioria das famílias descendentes de imigrantes europeus.
1 Entende-se por “patrimônio imaterial” as práticas, representações, conhecimentos e técnicas junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares que lhes são associados- que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultura. (IPHAN, 2004, p.373)