António Coelho - 20 Mundos

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20 MUNDOS

Língua Portuguesa Professora Eli Miguel

António Coelho – n.º 1 – 10.º ano – turma D 2011 - 2012



“Casem-se os poetas com a respiração do Mundo” Baltazar Lopes (Osvaldo Alcântara)

20 mundos



A professora de português deu, como proposta de trabalho, a sugestão da elaboração de um “dossiê poético” com 20 poemas escolhidos por nós. Para o poema que fosse o especialíssimo entre os especiais, deveríamos criar uma imagem que o ilustrasse. Aceitei a ideia e, desde o princípio, pensei que apenas faria pesquisa de textos poéticos em livros. Assim aconteceu, peguei em livros vários e selecionei os 20 textos de autores de língua portuguesa que aqui vos proponho, bem como as ilustrações. Algumas, poucas, imagens foram retiradas da internet, as outras são fotografias minhas. Por fim, tive que pensar em dar o título ao meu trabalho e cheguei a “20 MUNDOS”. Decidi dar este nome, porque entrei, com prazer, em cada mundo que cada poema me revelou e muito me surpreendeu. Vislumbrei inefáveis horizontes. Fiquei com vontade de ler mais poesia.



NUMA FOTOGRAFIA

Não sejas como a névoa, nem quimera.

Demora-te, demora-te assim: Faz do olhar Tempo sem tempo, espaço Limpo – do deserto ou do mar.

Eugénio de Andrade

Fotografia: António Coelho


CUMPLICIDADE DO VERÃO

Mal nos conhecíamos, mas a infância É cúmplice do verão: vinhas do rio, das manhãs onde nadámos juntos e subimos aos freixos altos: via-te balouçar num ramo frágil rindo, ou saltar atrás das rãs – o corpo nu cravado nos meus olhos como um espinho.

Fotografia: António Coelho

Eugénio de Andrade


SEM MEMÓRIA

Haverá para os dias sem memória outro nome que não seja morte? Morte das coisas limpas, leves: manhã rente às colinas, a luz do corpo levada aos lábios, os primeiros lilases do jardim. Haverá outro nome para o lugar onde não há lembrança de ti?

Eugénio de Andrade

Fotografia: da internet


CÃO

Cão passageiro, cão estrito,

Cão marrado, preso por um fio de cheiro,

cão rasteiro cor de luva amarela,

cão a esburgar o osso

apara-lápis, fraldiqueiro,

essencial do dia-a-dia,

cão liquefeito, cão estafado,

cão estouvado de alegria,

cão de gravata pendente,

cão formal da poesia,

cão de orelhas engomadas,

cão-soneto de ão-aõ bem martelado,

de remexido rabo ausente,

cão moído de pancada

cão ululante, cão coruscante,

e condoído do dono,

cão magro, tétrico, maldito,

cão: esfera do sono,

a desfazer-se num ganido,

cão de pura invenção, cão prefabricado,

a refazer-se num latido,

cão-espelho, cão-cinzeiro, cão-botija,

cão disparado: cão aqui,

cão de olho que afligem,

cão além, e sempre cão.

cão-problema…

Sai depressa, ó cão, deste poema!

Alexandre O’Neill


Fotografia: da internet


AO DESCONCERTO DO MUNDO

Os bons vi sempre passar

No mundo graves tormentos E para mais me espantar Os maus vi sempre nadar Em mar de contentamentos. Cuidando alcançar assim O bem tão mal ordenado Fui mau mas fui castigado. Assim que, só para mim, Anda o mundo concertado.

Luís de Camões

Fotografia: da internet


CAFÉ

Sabor de antigamente, sabor de família, Café que foi torrado em casa, Que foi feito no fogão da casa, com lenha do mato da casa,

Café para as visitas de cerimónia,

Café para as visitas de intimidade, Café para os desconhecidos, para os que pedem pousada, para toda a gente.

Ribeiro Couto

Fotografia: António Coelho


Fotografia: da internet


MÃE NEGRA

A mãe negra embala o filho. Canta a remota canção Que seus avós já cantavam Em noites sem madrugada.

Canta, canta para o céu Tão estrelado e festive.

É para o céu que ela canta, Que o céu às vezes também é negro.

No céu Tão estrelado e festivo Não há branco, não há preto, Não há vermelho e amarelo

- Todos são anjos e santos Guardados por mãos divinas.

A mãe negra não tem casa Nem carinhos de ninguém…

A mãe negra é triste, triste, E tem um filho nos braços…

Mas olha o céu estrelado E de repente sorri. Parece-lhe que cada estrela

É uma mão acenando Com simpatia e saudade.

Aguinaldo Fonseca


Fotografia: da internet


O MOSTRENGO

“De quem são as velas onde me roço?

De quem as quilhas que vejo e ouço?” Disse o mostrengo, e rodou três vezes, Três vezes rodou imundo e grosso,

“Quem vem poder o que só eu posso, Que moro onde nunca ninguém me visse O mostrengo que está no fim do mar

Na noite de breu ergueu-se a voar; à roda da nau voou três vezes,

E escorro os medos do mar sem fundo?” E o homem do leme tremeu, e disse, “El-Rei D. João Segundo!”

Voou três vezes a chiar,

E disse, “Quem é que ousou entrar Nas minhas cavernas que não desvendo, Meus tectos negros do fim do mundo?” E o homem do leme disse, tremendo, “El-Rei D. João Segundo!”

Três vezes do leme as mãos ergueu, Três vezes ao leme as reprendeu, E disse no fim de tremer três vezes, “Aqui ao leme sou mais do que eu: Sou um Povo que quer o mar que é teu; E mais que o mostrengo, que me a alma teme E roda nas trevas do fim do mundo, Manda a vontade, que me ata ao leme,

De El-Rei D. João Segundo!”

Fernando Pessoa


PORQUE

Porque os outros se mascaram mas tu não Porque os outros usam a virtude Para comprar o que não tem perdão. Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados Onde germina calada a podridão.

Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem

E os seus gestos dão sempre dividendo. Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos E tu vais de mãos dadas com os perigos. Porque os outros calculam mas tu não.

Fotografia: da internet

Sophia de Mello Breyner Andresen


LIBERDADE

Sobre esta página escrevo teu nome que no peito trago escrito laranja verde limão amargo e doce o teu nome. Sobre esta página escrevo o teu nome de muitos nomes feito água e fogo lenha vento primavera pátria exílio.

Teu nome onde exilado habito e canto mais do que nome: navio onde já fui marinheiro naufragado no teu nome. Sobre esta página escrevo o teu nome: tempestade. E mais do que nome: sangue. Amor e morte. Navio. Esta chama ateada no meu peito por quem morro por quem vivo este nome rosa e cardo por quem livre sou cativo. Sobre esta página escrevo o teu nome: liberdade. Fotografia: António Coelho

Manuel Alegre


Fotografia: da internet


O MENINO DA SUA MÃE

No plaino abandonado

Caiu-lhe da algibeira

Que a morna brisa aquece,

A cigarreira breve.

De balas trespassado,

Dera-lhe a mãe. Está inteira

- Duas, de lado a lado –

É boa a cigarreira.

Jaz morto e arrefece.

Ele é que já não serve.

Raia-lhe a farda o sangue.

De outra algibeira, alada

De braços estendidos,

Ponta a roçar o solo,

Alvo, loiro, exangue,

A brancura embainhada

Fita com olhar langue

De um lenço… Deu-lho a criada

E cego os céus perdidos.

Velha que o trouxe ao colo.

Tão jovem! que jovem era!

Lá longe, em casa, há a prece:

(Agora que idade tem?)

“Que volte cedo e bem!”

Filho único, a mãe lhe dera

(Malhas que o Império tece!)

Um nome e o mantivera:

Jaz morto e apodrece

“O menino da sua mãe.”

O menino da sua mãe

Fernando Pessoa


PRESENTE

Queria neste poema a cor dos teus olhos e queria em cada verso o som da tua voz: depois, queria que o poema tivesse a forma do teu corpo, e que ao contar cada sílaba os meus dedos encontrassem os teus, fazendo a soma que acaba no amor.

E queria que a cor dos teus olhos e o som da tua voz saíssem dos meus versos

dando-me a forma do teu corpo; depois, Queria juntar as palavras como os corpos se juntam, e obedecer à única sintaxe que dá um sentido à vida; depois,

dir-te-ia que já não é preciso contar as sílabas nem repetir as palavras do poema, para saber o que significa o amor.

repetiria todas as palavras que juntei

até perderem o sentido, nesse confuso murmúrio em que termina o amor.

Então, dar-te-ia o poema de onde saíste, como a caixa vazia da memória, e levar-te-ia pela mão, contando os passos do amor.

Nuno Júdice


TEUS OLHOS

Teus olhos, Honorine, cruzaram oceanos, longamente tristes, sequiosos, como flor aberta nas sombras em busca do sol. Vieram com o vento e com as ondas através dos campos e bosques da beira-mar. Vieram até mim, estudante triste, Dum país do sul.

Ruy Cinatti

Fotografia: da internet


VIVER SEMPRE TAMBÉM CANSA O sol é sempre o mesmo e o céu azul ora é azul, nitidamente azul, ora é cinzento, negro, quase-verde... Mas nunca tem a cor inesperada.

O mundo não se modifica. As árvores dão flores, folhas, frutos e pássaros como máquinas verdes.

Pois não era mais humano morrer por um bocadinho,

de vez em quando, e recomeçar depois, achando tudo mais novo?

Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses, morrer em cima dum divã com a cabeça sobre uma almofada, confiante e sereno por saber que tu velavas, meu amor do Norte.

As paisagens também não se transformam. Não cai neve vermelha,

não há flores que voem, a lua não tem olhos e ninguém vai pintar olhos à lua.

Quando viessem perguntar por mim, havias de dizer com teu sorriso onde arde um coração em melodia: "Matou-se esta manhã.

Agora não o vou ressuscitar Tudo é igual, mecânico e exacto.

Ainda por cima os homens são os homens. Soluçam, bebem, riem e digerem sem imaginação.

por uma bagatela."

E virias depois, suavemente, velar por mim, subtil e cuidadosa, pé ante pé, não fosses acordar

a Morte ainda menina no meu colo... E há bairros miseráveis sempre os mesmos, discursos de Mussolini,

José Gomes Ferreira


Fotografia: Ant贸nio Coelho


Alguém parte uma laranja em silêncio, à entrada de noites fabulosas. Mergulha os polegares até onde a laranja pensa velozmente, e se desenvolve, e aniquila, e depois renasce. Alguém descasca uma pêra, come um bago de uva, devota-se aos frutos. E eu faço uma canção arguta para entender.

Inclino-me para as mãos ocupadas, as bocas, as línguas que devoram pela atenção dentro. Eu queria saber como se acrescenta assim

a fábula das noites. Como o silêncio se engrandece, ou se transforma com as coisas. Escrevo uma canção para ser inteligente dos frutos na língua, por canais subtis, até uma emoção escura.

Fotografia: da internet


Porque o amor também recolhe as cascas e o mover dos dedos e a suspensão da boca sobre o gosto

confuso. Também o amor se coloca às portas das noites ferozes e procura entender como elas imaginam seu poder estrangeiro. Aniquilar os frutos para saber, contra a paixão do gosto, que a terra trabalha a sua solidão - é devotar-se, esgotar a amada, para ver como o amor trabalha na sua loucura.

Uma canção de agora dirá que as noites esmagam o coração. Dirá que o amor aproxima a eternidade, ou que o gosto revela os ritmos diuturnos, os segredos da escuridão. Porque é com nomes que alguém sabe onde estar um corpo por uma ideia, onde um pensamento faz a vez da língua.

- É com as vozes que o silêncio ganha.

Herberto Helder


O ESPÍRITO

Nada a fazer, amor, eu sou do bando Impermanente das aves friorentas; E nos galhos dos anos desbotando Já as folhas me ofuscam macilentas;

E vou com as andorinhas. Até quando? à vida breve não perguntes: cruentas Rugas me humilham. Não mais em estilo brando. Ave estroina serei em mãos sedentas.

Pensa-me eternal que o eterno gera Quem na amada o conjura. Além, mais alto, Em ileso beiral, aí espera:

Andorinha indemne ao sobreassalto Do tempo, núncia de perene primavera. Confia. Eu sou romântica. Não falto.

Natália Correia

Fotografia: da internet


A FORMA JUSTA

Sei que seria possível construir o mundo justo As cidade poderiam ser claras e lavadas Pelo canto dos espaços e das fontes O céu e o mar e a terra estão prontos A saciar a nossa fome do terrestre A terra onde estamos – se ninguém atraiçoasse – proporia Cada dia a cada um a liberdade e o reino - Na concha na flor no homem e no fruto Se nada adoecer a própria forma é justa

E no todo se integra como palavra em verso Sei que seria possível construir a forma justa De uma cidade humana que fosse

Fiel à perfeição do universo.

Por isso recomeço sem cessar a partir de página em branco

E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo.

Sophia de Mello Breyner Andresen


PEQUENA BALADA DO SOLDADO ALIADO

Irá que o seu dever é ir.

Irá que assim lhe ordenaram. Irá que é lá que está o inimigo. Irá que o regime tem de cair. Irá que a democracia deve impor-se. Irá que uma nova ordem é precisa. Irá que a vontade do povo não conta. Irá que a paz faz-se com a guerra. Irá que os mortos deles não se choram. Irá que os vivos deles não se importam. Irá que os filhos deles não são seus. Irá que um herói deve lá estar. Fotografia: da internet

Irá que Deus está com ele. Irá que só Allah está com os outros.

Joaquim Pessoa


Ant贸nio Gede茫o


CANÇÃO DE LEONORETA

Borboleta, borboleta, flor do ar, onde vais, que me não levas?

Onde vais tu, Leonoreta?

Vou ao rio, e tenho pressa,

não te ponhas no caminho. Vou ver o jacarandá, que já deve estar florido.

Leonoreta, Leonoreta, que me não levas contigo.

Eugénio de Andrade


Para finalizar, quero, antes de mais, afirmar que a ideia da professora de português foi genial. Fez-me abrir 20 novos mundos e viajar. Fiquei com vontade de ler mais poemas destes autores. De facto, desconhecia muitos dos poemas que, agora, me despertaram. O poema de que mais gostei é “Viver Sempre Também Cansa” de José Gomes Ferreira. E gostei tanto que abri uma exceção e fui pesquisar na internet. Em boa hora! Fui ter ao sítio da BN e deparei-me com o poema autógrafo, que, aliás, reproduzo no trabalho, assinalado com a respetiva ligação. Penso que a elaboração de um trabalho deste género, desde que seja dado um prazo dilatado – o que foi o caso, tive dois meses para ler, escolher, rejeitar, sem a pressão do «ter de entregar já, já». Tenho ainda a sorte de ter em casa bons livros. Como quase sempre, a maior dificuldade consiste em vencer a inércia, depois corre tudo bem. Com as imagens, minhas ou alheias, dei uma volta ao mundo das sensações, que me provocaram emoções ou sentimentos semelhantes aos dos poemas.



 Fontes 

Poesia:  Primeiro Livro de Poesia, Caminho;  Antologia do Humor Português, Fernando Ribeiro de Mello/Edições Afrodite;  Poesias Completas, Mário de Sá-Carneiro;  O Outro Nome da Terra, Eugénio de Andrade  Entre Margens, Manual do 10.º ano da Porto Editora

Imagens:

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O sonho é ver as formas invisíveis Da distância imprecisa, e, com sensíveis Movimentos da esperança e da vontade, Buscar na linha fria do horizonte A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte –

Os beijos merecidos da Verdade.

Fernando Pessoa


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