Sonoros ofícios
cantos de trabalho
Sonora Brasil | Circuito 2015 – 2016
Serviço Social do Comércio Departamento Nacional
Sonoros ofícios
cantos de trabalho
Sonora Brasil | Circuito 2015 – 2016
Sesc | Serviço Social do Comércio Departamento Nacional Rio de Janeiro 2015
Sesc | Serviço Social do Comércio Presidência do Conselho Nacional Antonio Oliveira Santos
Departamento Nacional
Produção Editorial
Direção-Geral Maron Emile Abi-Abib
Assessoria de Comunicação Pedro Hammerschmidt Capeto
Coordenadoria de Educação e Cultura Nivaldo da Costa Pereira
Supervisão editorial e edição Fernanda Silveira
Conteúdo
Projeto gráfico Julio Carvalho
Gerência de Cultura Marcia Costa Rodrigues
Ilustração Carlos Meira
Coordenação Gilberto Figueiredo Sylvia Letícia Guida Thiago Sias
Diagramação Livros & Livros | Susan Johnson
Estagiário de produção cultural Nathan Gomes Fotos Frederico Ishikaw Márcio Vasconcelos Robson di Almeida Tarcisio de Paula
Revisão de texto Clarisse Cintra Tathyana Viana Produção gráfica Celso Mendonça Estagiário de produção editorial Diogo Franca
©Sesc Departamento Nacional, 2015 Av. Ayrton Senna, 5.555 — Jacarepaguá Rio de Janeiro — RJ CEP 22775-004 Tel.: (21) 2136-5555 www.sesc.com.br
Impresso em junho de 2015. Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei no 9.610 de 9/2/1998. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida sem autorização prévia por escrito do Sesc Departamento Nacional, sejam quais forem os meios e mídias empregados: eletrônicos, impressos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros.
Sonoros ofícios : cantos de trabalho : circuito 2015/2016. – Rio de Janeiro : Sesc, Departamento Nacional, 2015.
80 p. : il. ; 28,5 cm. – (Sonora Brasil).
Bibliografia: p. 26-27. ISBN 978-85-8254-043-5
1. Projeto Sonora Brasil. 2. Música – Brasil. 3. Cultura popular – Brasil. Nacional.
I. Sesc. Departamento
CDD 780.92
Criado e administrado há mais de 60 anos por representantes do empresariado do comércio de bens e serviços e destinado à clientela comerciária e a seus dependentes, o Sesc vem cumprindo com êxito seu papel como articulador do desenvolvimento e bem-estar social ao oferecer uma gama de atividades a um público amplo, esforço que conjuga empresários e trabalhadores em prol do progresso nacional. Dentre suas diversificadas áreas de atuação, a cultura se caracteriza como democrático disseminador de conhecimento, importante ferramenta para a educação e transformação da sociedade, levada ao público de grandes e pequenas cidades por meio da itinerância de espetáculos, exposições e mostras de cinema. Ao possibilitar o livre acesso aos movimentos culturais, na música e também nas artes plásticas, no teatro, na literatura ou no cinema, o Sesc incentiva a produção artística, investindo em espaço e estrutura para apresentações e exposições, mas, acima de tudo, promovendo a formação e qualificação de um público que habita os quatro cantos do Brasil. A credibilidade alcançada pelo Sesc nesse âmbito faz da entidade uma referência nacional, o que revela a reciprocidade entre suas ações e políticas e as atuais necessidades de sua clientela.
Antonio Oliveira Santos Presidente do Conselho Nacional do Sesc
O Sesc é uma entidade de prestação de serviços de caráter socioeducativo que promove o bem-estar dentro das áreas de Saúde, Cultura, Educação e Lazer, com o objetivo de contribuir para a melhoria das condições de vida da sua clientela e facilitar seu aprimoramento cultural e profissional. No campo da cultura, a atuação do Sesc acontece no estímulo à produção cultural, na amplitude do conhecimento e no fortalecimento de sua identidade nacional, condições essenciais ao desenvolvimento do país. Nesse cenário, o Sonora Brasil, circuito itinerante que percorre o Brasil durante dois anos, traz a público a possibilidade do contato com a música brasileira mais pura, que valoriza a qualidade das composições e de seus intérpretes, permitindo o desenvolvimento de novos hábitos de apreciação musical. O caráter histórico e documental deste projeto viabiliza a proposta do Sesc dentro da ação programática de cultura ao se constituir como uma ferramenta de enriquecimento intelectual dos indivíduos, propiciando-lhes uma consciência mais abrangente e aberta a meios mais estimulantes e educativos de aquisição da cultura universal.
Maron Emile Abi-Abib Diretor-Geral do Departamento Nacional do Sesc
Foto: Robson di Almeida
Sumário Apresentação............................................................................................ 8 Cantos de trabalho: modos e modas na atualidade.....................10 Referências.............................................................................................26 Programas...............................................................................................29 Destaladeiras de Fumo de Arapiraca e Mestre Nelson Rosa.......31 Quebradeiras de Coco Babaçu...........................................................41 Cantadeiras do Sisal e Aboiadores de Valente .............................53 Ilumiara ...................................................................................................65
Apresentação
O Sonora Brasil é um projeto temático que tem como objetivo difundir expressões musicais identificadas com o desenvolvimento histórico da música no Brasil. Em sua 18ª edição, apresenta os temas Sonoros ofícios — cantos de trabalho e Violas brasileiras, que serão desenvolvidos no biênio 2015-2016, com a participação de quatro grupos em cada tema. Em 2015, o primeiro tema circula pelos estados das regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste, enquanto o segundo segue pelos estados das regiões Sul e Sudeste. Em 2016, na 19ª edição, inverte-se a ordem das apresentações para que todos os grupos concluam o circuito nacional. Sonoros ofícios — cantos de trabalho apresenta o canto como expressão musical relacionada às atividades laborais, fato social presente na cultura brasileira, tanto no ambiente rural quanto no urbano, com registros que confirmam a sua existência já no século 18. Na maioria das vezes uma prática coletiva, os cantos de trabalho podem cumprir funções diferenciadas, de acordo com as características do trabalho ao qual estão relacionados e com os determinantes culturais e sociais de cada região ou localidade. Normalmente entende-se que o papel de aliviar o desgaste físico e aumentar a produtividade é preponderante, mas também pode servir como modo de externar o lamento e a crítica. Três grupos representam formas tradicionais relacionadas a trabalhos rurais: Destaladeiras de Fumo de Arapiraca (AL); Cantadeiras do Sisal e Aboiadores de Valente (BA); Quebradeiras de Coco Babaçu (MA); e Ilumiara (MG), formado por músicos pesquisadores, apresenta repertório recolhido em pesquisas sobre diversas vertentes do tema. Violas brasileiras traça um panorama da viola de cinco ordens e de variantes do instrumento que apresentam características peculiares e regionalizadas, relacionadas a práticas musicais restritas a ambientes geográficos pouco abrangentes.
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Foto: Robson di Almeida
A viola caipira/sertaneja, a que mais se projetou difundindo o repertório das duplas de cantadores da região Sudeste e que aos poucos foi sendo incorporada em outras formações ligadas a repertórios populares, é apresentada por Paulo Freire (SP) e Levi Ramiro (SP); a viola na região Nordeste, reconhecida como acompanhadora dos repentistas e como instrumento solista nos ponteados modais com sonoridade nordestina inconfundível, e ainda a machete, ligada aos sambas de roda da Bahia, são apresentadas por Ivanildo Vila Nova (PE), Antônio Madureira (PE) e Cássio Nobre (BA); a viola em concerto, apresentada por Fernando Deghi (PR) e Marcus Ferrer (RJ), vem ampliando sua presença nos espaços destinados à música clássica desde a década de 1960 quando começou a receber a atenção de compositores como Theodoro Nogueira (19132002) e Guerra-Peixe (1914-1993); e as violas singulares com suas peculiaridades e suas claras referências regionalizadas, como a viola de cocho em Mato Grosso, a de buriti em Tocantins, e a do fandango, ligada à cultura caiçara paranaense e do sul de São Paulo, são apresentadas por Sidnei Duarte (MT), Maurício Ribeiro (TO) e Rodolfo Vidal (SP). Cumprindo sua missão de difundir o trabalho de artistas que se dedicam à construção de uma obra de fundamentação artística não comercial, o Sonora Brasil consolida-se como o maior projeto de circulação musical do país. O projeto realiza aproximadamente 480 concertos por ano, passando por mais de 130 cidades, a maioria distante dos grandes centros urbanos. A ação possibilita às populações o contato com a qualidade e a diversidade da música brasileira e contribui para o conjunto de ações desenvolvidas pelo Sesc visando à formação de plateia. Para os músicos, propicia uma experiência ímpar, colocando-os em condição privilegiada para a difusão de seus trabalhos e, consequentemente, estimulando suas carreiras. O projeto Sonora Brasil busca despertar um olhar crítico sobre a produção e sobre os mecanismos de difusão da música no país, incentivando novas práticas e novos hábitos de apreciação musical, promovendo apresentações de caráter essencialmente acústico, que valorizam a autenticidade sonora das obras e de seus intérpretes.
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Cantos de trabalho: modos e modas na atualidade
Por Edilberto José de Macedo Fonseca1
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Trabalho. Esse é o aspecto da vida humana que determina, por excelência, a maneira como os grupos sociais se organizam, se estruturam e delineiam suas qualidades, temperamentos e suas próprias visões de mundo. Por meio dele se garante a segurança material, revelando soluções criativas que integram modos particulares de interação entre o homem e a natureza a partir de contextos socioculturais específicos. O trabalho materializa a face humana simbolizadora, criando e recriando significados e sentidos por meio de produções materiais e, particularmente, pela maneira como se dão as trocas e intercâmbios dessa produção e força de trabalho, seja dentro do próprio grupo ou entre grupos sociais. Mediada por manifestações estéticas e expressivas, seja pelo uso de vocalizações, corporalidades, formas e cores específicas, a atividade de produção material revela também seu viés simbolizador, conferindo sentidos, significados e valores singulares para os que dela participam. Produzir o pão, roçar o mato, puxar a rede, amassar a farinha, pilar o milho, quebrar o coco, lavrar a terra, consertar o açude, fazer a casa, limpar a trilha na mata. Atividades difíceis e árduas, em que o suor escorre, as mãos latejam e os corpos se curvam à labuta e à necessidade. Sob o
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Doutor em etnomusicologia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2009), tendo atuado,
entre 2003 e 2010, como consultor no Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/Iphan e como Técnico em Assuntos Culturais, entre 2011 e 2014, no Museu Villa-Lobos/Ibram. Atualmente é professor adjunto do curso de Produção Cultural no Centro Universitário de Rio das Ostras, da Universidade Federal Fluminense.
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Foto: Robson di Almeida
sol, a chuva, no breu da noite ou no clarão do dia, por vontade, fé ou precisão, só ou acompanhado, entre olhares cúmplices e no ritmo de movimentos fortes e plenos. Em grupo, cantam e se movimentam nas batidas que dão ritmo ao trabalho, com braços que se movem, corpos que se dobram e desdobram, numa só voz e pulsação. O compasso marcado embala a todos num só golpe, música e trabalho tornando mais ameno o cotidiano, fazendo o tempo fluir e a dor ganhar a companhia da mão que bate, do corpo que vibra e da voz que canta. É a vida congregando pessoas e consolidando comunidades em torno de atividades e encontros em que cooperação, partilha e celebração se interpenetram, unindo fazeres expressivos a afazeres necessários. Se esses são aspectos que têm permeado o mundo do trabalho tanto em pequenas comunidades e grupos tribais como em sociedades complexas, a chamada era moderna veio trazer profundas transformações nos modos de produção material. Na modernidade, o trabalho tem sido quase sempre estudado e analisado dentro da ótica da alienação (MARX, 2004, p. 3), enquanto processo no qual seu resultado aparece como algo estranho àqueles que dele participam e não como gerador de frutos a serem compartilhados entre essas forças produtivas. Tomado nesse sentido, ele aponta para um cenário de condições de produção dominadas pela industrialização e pela dinâmica da moderna vida urbana, com a marca da crescente impessoalidade das relações sociais no ambiente de trabalho. Se por um lado não é possível esconder que na atualidade o trabalho, tanto nas cidades como no campo, está profundamente marcado por essa dinâmica imposta pelo modo de produção capitalista, com sua dualidade produção/compensação, por outro é preciso ver também que indivíduos e grupos sociais, em sociedades complexas ou naquelas mais de caráter comunitário
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ou tribais, sempre dispuseram de seus períodos de atividade e de festa segundo regimes de tempo que obedecem a ciclos periódicos das mais diversas ordens. Rituais, celebrações, festividades e eventos sociais demarcam os dias, meses e anos, assumindo um papel fundamental na construção de sentimentos comunitários, moldando identidades locais através dos momentos de trabalho conjunto, do lazer ou de “brincadeiras”, articulando formação, informação e participação social. Nesse sentido, nem todo processo de trabalho é necessariamente alienante, especialmente quando envolve uma série de mecanismos estético-expressivos que acabam por levar ao reforço de laços comunitários e pessoais. Embora sejam incontáveis as formas de organização do trabalho marcadas por participações coletivas consensuais, gostaria de apontar três delas que, creio, resumem suas principais modalidades. A primeira é aquela que acontece em função das necessidades pontuais de determinado grupo social, que se organiza coletivamente para resolução de uma demanda específica, como a capina de um terreno, a feitura ou cobertura de uma casa, o transporte de utensílios, veículos ou maquinário pesado ou o reparo de alguma construção, entre tantos exemplos. Outra é aquela que se dá regulada por certa periodicidade que necessariamente obedece a processos de interação com ciclos da natureza, estruturando relações e posições em torno das atividades coletivamente partilhadas, sejam elas de plantio e colheita na roça ou de espera e coleta, como nas puxadas de rede nas pescarias. Há ainda outra modalidade, que é aquela ligada a ofícios e fazeres tradicionais, individuais ou corporativos, que envolvem atividades cotidianas e rotineiras, como as de remeiros, vaqueiros, fiandeiras, rendeiras, destaladeiras, mineiros e inúmeras outras profissões. Esses e outros processos estabelecem assim a interação entre pessoas e comunidades e destes com a natureza, não só em meros atos práticos, mas se revelando também espaço de expressão de gestos simbólicos (BRANDÃO, 2007, p. 44), para além da mera característica alienadora das relações de trabalho na contemporaneidade. A rede de relações criada pelo trabalho colaborativo transborda a tradicional ideia de compensação enquanto mecanismo de troca da força de trabalho por uma recompensa salarial qualquer. Em sociedades e povos marcados por tradições específicas nos quais prevalecem sistemas comunitários e colaborativos, o trabalho revela-se muitas vezes espaço de consolidação de um ambiente de trocas materiais e simbólicas que conduzem a um estado de compreensão entre os envolvidos.2 Especialmente em ambientes rurais — mas não só neles — é possível encontrar essas formas conjuntas de trabalho que reforçam os laços de compreensão e cooperação, envolvendo uma infinidade de gestos expressivos e simbólicos em sua execução, como rezas e benzeduras, vozes nas cantorias, danças e brincadeiras que compõem e estruturam práticas rituais, manifestações, festas e celebrações populares. Nesses momentos então, por meio de manifestações musicais o rude espaço do trabalho se abre para conjugar atos práticos e gestos simbólicos, que se interpenetram e se complementam, comungando alegria e provendo energia àqueles que conduzirão as atividades a serem empreendidas a fim de suprir suas necessidades.
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Tomo emprestado aqui essas noções propostas por Ferdinand Tönnies (1973) ao tratar o tema da distinção entre comunidades e sociedades.
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Figura 1. Puxada de rede. Marcel Gautherot. Fonte: Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Historicamente, os chamados cantos de trabalho têm sido estudados a partir de um conjunto diversificado de visões e perspectivas. O compositor e folclorista húngaro Béla Bartók foi dos primeiros a produzir registros de áudio de cantos de trabalho com o intuito de pesquisa, praticamente abrindo o campo da investigação musical para o uso de gravações fonográficas (TRAVASSOS, 1997). Ele centrou suas observações nas práticas musicais do povo magiar do leste europeu registrando e gravando amplo repertório em que constam também músicas de pedintes e ligadas aos ambientes de trabalho. A metodologia de trabalho e o acervo que consolidou foram pioneiros para o campo das pesquisas etnográficas sobre práticas musicais. Um exemplo muito significativo foram as gravações realizadas pelo etnomusicólogo norteamericano Alan Lomax entre 1933 e 1985 pelo interior dos Estados Unidos. Entre seus registros, constam cantos de trabalho na roça, as chamadas farm work-songs,3 e também as prison songs,4 de clara influência da musicalidade negro-africana. Seu trabalho foi o de “garimpar” e registrar práticas musicais ligadas àquelas porções sistematicamente esquecidas da sociedade norteamericana. O resultado foi um monumental e valioso acervo em áudio5 que revela a múltipla e complexa realidade do ambiente sonoro-musical norte-americano naquele período. Impossível também não lembrar a ampla pesquisa e coleta empreendidas pelo etnomusicólogo corso Michel Giacometti com a colaboração do maestro português Fernando Lopes-Graça.
3
Ouça em <http://bit.ly/1qCGIvJ>.
4
Ouça em <http://bit.ly/149nqcI>.
5
Esse acervo pode ser acessado no site do Library of Congress Archive of American Folk Song. Disponível em: <http://www.loc.gov/folklife/
lomax/>.
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fotos: Pedro Matallo
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Giacometti dá início a sua pesquisa em 1960 com a fundação dos Arquivos Sonoros Portugueses,6 quando começa a gravar inúmeras manifestações da música popular portuguesa, estendendo o trabalho até 1982, constituindo um acervo onde estão registrados numerosos cantos de trabalhos. O que chama a atenção, mas seria de se esperar, é a nítida semelhança sonora entre os registros de cantos de trabalho portugueses e muitos daqueles encontrados por aqui. No Brasil, embora sejam encontradas menções a cantos de trabalho em obras de cronistas e escritores desde os primeiros séculos da colonização, foi a partir do final do século 19 que passaram a fazer parte do elenco de temas abordados pelos estudiosos ligados ao campo do folclore e da cultura popular. Da primeira geração de folcloristas, que contou com nomes como Mello Moraes Filho, Silvio Romero e Amadeu Amaral, seguiu-se outra geração dedicada aos estudos “das coisas populares”, que tinha em Mário de Andrade,7 Luiz Heitor Correia de Azevedo, Câmara Cascudo e Edison Carneiro alguns de seus principais representantes. Em maior ou menor grau, esses e muitos outros abordaram a temática das relações entre música e trabalho em seus estudos. Uma das marcas dos trabalhos de intelectuais, artistas e estudiosos na virada para o século 20 foi dispender grande parte de seus interesses e energias na busca da formulação de um discurso de construção identitária sobre a nacionalidade8 que naquele momento, no Brasil, se reinventava com o advento da república. As análises das expressões da cultura popular e as abordagens adotadas pelos folcloristas refletiam um viés funcionalista, ao procurar delimitar fatos sociais que poderiam, por si só, ser elevados à condição de formas representativas dessa nacionalidade imaginada. Era clara a tendência desses estudos em olhar as manifestações populares enquanto objetos recortados de contextos simbólicos mais complexos, como possuidores de uma natureza comum e com características formais que os tornariam semelhantes. Evitava-se muitas das vezes analisá-las como inseridas num todo mais amplo, a cultura, espaço na qual elas podiam simplesmente nascer, crescer e mesmo desaparecer em função de mudanças que viessem a ocorrer nas condições sociais de indivíduos e grupos que as sustentavam. A partir das décadas de 1950 e 1960, os estudos das culturas populares se verão transformados em função de novos paradigmas incorporados às ciências humanas e sociais, especialmente oriundos dos campos da antropologia e da etnomusicologia. Nessas novas abordagens, a cultura deixa de ser entendida como um conjunto de fenômenos, objetos ou fatos sociais que guardariam propriedades materiais ou imateriais específicas com a vida cotidiana, e passa a ser vista como todo um sistema simbólico em constante estado de transformação, que anima práticas sociais e revela diferentes formas de apropriação sujeitas a processos diferenciados de representação. Apesar dessas mudanças que conduziram os estudos de folclore e cultura popular a direções muitas vezes distintas daquelas apontadas pelos campos acadêmicos, cabe ressaltar que as pesquisas etno-
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Ver <http://bit.ly/1B2KE2J>.
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“Já afirmei que não sou folclorista. O folclore hoje é uma ciência, dizem [...] Me interesso pela ciência, porém não tenho capacidade pra ser cien-
tista. Minha intenção é fornecer documentação pra músico e não passar vinte anos escrevendo três volumes sobre a expressão fisionômica do lagarto [...]” (ANDRADE, 2002, p. 26). Embora fizesse questão de afirmar isso, Mário de Andrade foi um dos que mais escreveu e defendeu a ideia de folk-lore, fosse como campo disciplinar ou objeto de estudo. 8
Assim foi tanto com Mário de Andrade no Brasil como com Bela Bartók na Hungria, tema finamente abordado pela etnomusicóloga Elizabeth
Travassos (1997) em seu livro Os mandarins milagrosos: arte e etnografia em Mário de Andrade e Béla Bartók.
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gráficas e a produção de conhecimento empreendida pelos folcloristas constituíram um relevante inventário de registros das tradicionais manifestações da cultura popular no Brasil. Os cantos de trabalho e todas as variadas formas de associação entre o mundo do trabalho e da música foi e têm sido uma dessas importantes contribuições. *** Um dos aspectos que esses estudos revelaram é que as relações entre música e trabalho ocorrem geralmente quando determinados grupos ou comunidades se organizam para desenvolver uma atividade colaborativa ou não. Trabalho e música configuram-se como poderosos elementos de congraçamento, erigindo contextos sociais, reafirmando laços de amizade e de compadrio e estreitando a cumplicidade entre os envolvidos. Essa associação é algo que ocorre em diversos lugares do mundo, sendo mais comumente encontrada nos ambientes rurais, em atos como pescar, arar a terra, plantar, colher e tratar seus frutos, cuidar das criações, enfim, práticas do dia a dia que ritualizam os ciclos sociais de construção, destruição e reconstrução da vida. Muitos são os nomes dados aos trabalhos que se organizam de maneira voluntária, conjunta e colaborativa, presentes nas camadas populares e quase sempre camponesas. No Brasil esses trabalhos são conhecidos por variadas denominações, sendo mais comumente encontrada aquela que parte da palavra indígena de origem tupi motyrõ (NAVARRO, 1999, p. 484), abrasileirada para “mutirão”. São inúmeras as variantes, como mutirum, muxirão, puxirum, putirum, ou ainda, batalhão, traição, adjutório, ajuri, brão, suta e outros. Alguns autores o colocam como prática tradicionalmente presente entre as culturas indígenas e africanas, porém reportam sua presença também à Europa medieval. Já nos séculos 16 e 17, o jesuíta Fernão Cardim e o franciscano Ivo d’Evreux já citavam mutirões agrícolas nas regiões dos atuais estados do Maranhão e da Bahia (GALVÃO, 1945, p. 730). De acordo com o contexto social e histórico das comunidades e grupos sociais em que ocorrem, esses momentos serão embalados por cantos e/ou performances rítmicas seja com paus, palmas, enxadas ou pilões, que ritualizarão os necessários e, por vezes, repetitivos movimentos corporais durante a lida, visando em muitos casos atenuar um pouco os rigores das tarefas a serem realizadas. Cumpre notar que historicamente os cantos de trabalho quase sempre se revelaram como expressão de uma musicalidade que se dava fora do espaço doméstico. Os pregões ecoando pelas ruas, a sincronia das vozes no trabalho agrícola, às rocas de fiar ou nas puxadas de rede, a marcação das pancadas para quebrar pedras e cocos ou pilar milho colocam os cantos de trabalho como práticas musicais preservadas segundo fazeres estéticos distintos daqueles historicamente cultivados pelas elites nos salões e espaços privados. O entendimento da força dos cantos de trabalho só pode se dar na medida em que os conectamos com o mundo empírico, aquele que aponta para as condições de vida e subsistência de seus protagonistas. No Brasil rural, espaço social primordial de sua presença, constituem uma rica herança legada pelas camadas populares, que souberam conjugar produção material à formas musicais expressivas singulares. Contudo, ao tratar do mundo rural brasileiro em seu referencial livro Mutirão: forma de ajuda mútua no meio rural, Clóvis Caldeira adverte que
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[...] uma simples referência ao uso ou à ausência de cantos em determinada zona presta-se de ordinário a generalizações descabidas. Na realidade, o canto não constitui elemento obrigatório das reuniões de trabalho, e é mesmo desconhecido em muitos lugares. Mas aqui e ali se observa o hábito de acompanhar a faina com o auxílio de cantos, especiais ou não, com sentido preciso ou obscuro (CALDEIRA, 1956, p. 36). Como assinala Câmara Cascudo, é comum que, tradicionalmente, os mutirões rurais tenham início por meio da convocação de parentes, compadres e vizinhos para um trabalho específico, para onde acorrem com prazer e espírito corporativo. É comum também que haja o chamado dono do serviço, que convoca a todos, participa da faina juntamente com os outros e frequentemente oferece uma festa ao final da empreitada. No caso dos serviços de roça, por exemplo, a condução de todo o trabalho fica a cargo do cabo, uma “evidente reminiscência da época das bandeiras” (CASCUDO, 1971, p. 604). De modo geral, não há uma hierarquia nem um chefe determinado aos quais todos devam se submeter, mas sim participação de modo colaborativo. Práticas como essas, descritas por Caldeira ou Cascudo, já revelavam que, assim como hoje, os cantos e ritmos se conformam e, ao mesmo tempo, dão forma a esse mundo que gira em torno do trabalho, mesmo que nem sempre ele ocorra de forma coletiva. Em algumas situações, esses sons podem emoldurar também momentos de solidão, tornando mais suaves e suportáveis as agruras da lida solitária, como no caso das canções de barqueiros e viajantes solitários, das cantigas de ninar ou dos aboios. Aboio é nome dado aos cantos e práticas vocais que, acompanhados ou não de palavras, ajudam a tanger o gado e encher o sertão com seu “canto melancólico” e sua “toada monótona” (ANDRADE apud AYALA, 1988, p. 32).9 Mário de Andrade argumenta que “o uso de musicar acompanhando tropas ou apenas um animal é uma das mais antigas aplicações da música de que nos tenham vindo documentos” (ANDRADE, 1989, p. 4). Cita um fragmento de pintura mural egípcia no qual se pode ver um tropeiro marchando, tocando uma lira com seu burrico à frente. Se não é uma exclusividade brasileira, sendo encontrado com frequência onde haja trabalho com o gado, o vocábulo este sim parece ser, já que o encontrado em Portugal refere-se a práticas que se estruturam de maneira diversa (CASCUDO, 1971, p. 21). Câmara Cascudo relata sua ocorrência no século 18, listando referências e citações de aboios lembrados por folcloristas, cronistas e escritores como José de Alencar e Cândido Figueiredo (CASCUDO, 1971). No Brasil, os aboios são entoados de forma livre, em solos falseteados e improvisados com longas notas agudas, não se prendendo a estruturas estróficas ou métricas rígidas, sendo finalizados geralmente com expressões como ô..., ô..., ô... ou marcha, marcha, meu boi bonito! O pesquisador Joaquim Ribeiro conduziu em 1960 os trabalhos do Levantamento Folclórico de Januária nessa cidade mineira (FONSECA, 2009), quando gravou cantos de trabalho com o aboiador Vitor José da Rocha.10
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Embora haja um gênero poético de aboio, nos interessa aqui somente sua modalidade enquanto canto de trabalho.
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Ouça em <http://www.cnfcp.gov.br/tesauro/objetos/aboio.mp3>.
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Figura 2. Escravos em terreiro de uma fazenda de café, Vale do Paraíba, c. 1882. Fonte: Marc Ferrez/coleção Gilberto Ferrez/acervo Instituto Moreira Salles.
[solo] Meu patrão é muito bom Minha patroa inda mió
[coro]
Meu patrão me deu a calça
vem cá, ê!
vem cá, vem cá bater rô!
vem cá, ê!
Bater rê! Ê rá! Rê lê!
E a patroa o paletó
Ao aboiador cabe, com seu canto, amansar e conduzir o gado pelas rotas do sertão ou de volta ao curral, sendo seu efeito sobre a boiada muito sugestivo e eficiente, fazendo do aboio uma atividade que exige dele a devida carga de seriedade e respeito. Se no meio rural sempre soaram as vozes solitárias dos vaqueiros, ouviam-se também corais espontâneos nas colheitas, roças, minas ou lavações de roupa nas beiras de rio. A música é certamente uma das principais heranças africanas deixadas no Brasil pela diáspora negra. Estudiosos têm apontado que cantigas de ninar, de prisioneiros, de pedintes ou de mineração cantadas em língua materna africana revelam semelhanças quando pesquisadas em diferentes pontos daqui, do Caribe ou dos Estados Unidos.11 Os ciclos econômicos da mineração, especialmente em Minas Gerais, produziram uma cultura que teve a marca musical dos negros 11
Sobre isso, há importantes trabalhos como Blues people (1963), do recém-falecido poeta e escritor LeRoi Jones, e também Work songs (2006), de
Ted Gioia. Além destes há também os de Ewbank (1846), Ekweme (1974), Levine (1978) e Fischer (1990) apud Terra, 2007, p. 10.
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escravizados. Durante os anos do Brasil colônia era o ouro a moeda corrente. Inúmeros povoados foram criados, com modos de vida, costumes e hábitos que giravam em torno do ato de lavrar e minerar a terra em busca de riquezas. O trabalho com o ouro, o diamante e as pedras preciosas durante séculos fez-se acompanhar de um repertório trazido d’além mar. Aires da Mata Machado nos dá um exemplo desse cotidiano em seu conhecido livro de 1943, O negro e o garimpo em Minas Gerais, em que conta que em Diamantina “minerar é a ocupação quase exclusiva, desde os primeiros tempos. A escassez ou abundância do diamante marca o fluxo e refluxo da existência” (MACHADO, 1964, p. 30). Das lavras vinham os sons dos vissungos, cantos entoados por negros escravizados durante o trabalho nas faisqueiras. Os vissungos vêm da tradição africana de tratar o som como “fundamento”, elemento depositário de poder simbólico e de todo um modo de perceber e conduzir a vida. Entoado como um solo (o boiado), ou em grupo (o dobrado), os vissungos ditavam o ritmo do trabalho, expressando a fé e codificando mensagens através de seus cantos. Preenchiam o dia e se revelavam como crônicas da árdua labuta, sendo ouvidos desde antes de o sol nascer até altas horas da madrugada. Podiam ser cantados de três maneiras: em língua banto, aquela falada pelos escravos trazidos das áreas mais ao sul do continente africano, particularmente pelas etnias das atuais Angola, Congo e Moçambique; em dialeto crioulo, que misturava a língua nativa e o português, ou, ainda, só em língua vernácula. Muitas vezes eram secretos, sendo entoados somente pelos iniciados no fundamento e nos mistérios das crenças nativas, ou então públicos, franqueados até mesmo aos brancos que porventura participassem da lida. Mata Machado nos fala de seus ritmos livres e lentos e das langorosas melodias, das reuniões místicas de negros nos canjerês, onde se cultuavam deuses e se prometiam curas e milagres. Era comum a rivalidade entre cantadores mestres e seus respectivos coros que disputavam desafios cercados por invocações, feitiços e fundamentos. As cantigas pontuavam as etapas do trabalho, muitas vezes escondendo dos patrões as intenções, desejos e tudo aquilo que aos negros era proibido dizer. [solo] Ei ê lambá, Quero me cabá no sumidô
[coro]
Quero me cabá no sumidô,
Ei ererê
Lamba de 20 dias,
Canto LXI: “O negro queixa-se do serviço
Ei lambá,
duro e pede a morte”
Quero me cabá no sumidô,
(MACHADO, 1964, p. 90)
Praticamente extintos,12 os vissungos foram um testemunho de como trabalho e música ganham características próprias em função do momento histórico e das condições a que estão sujeitos seus atores sociais. Estreitamente ligados à dinâmica do mundo rural, são exemplos que demonstram também a forma como estão distribuídos os serviços cotidianos e os fazeres musicais nas comunidades marcadas pela escravidão. 12
Hoje ainda é possível ouvir vissungos sendo entoados por descendentes de escravos, mas somente ligados às práticas de enterros na região.
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Sonora Brasil | Cantos de trabalho
Não só no meio rural ouviam-se cantilenas para marcar o ritmo do trabalho. As pesquisas folclóricas reuniram também um repertório praticamente desaparecido, mas que era muito presente no meio urbano desde o século 19, as músicas entoadas pelos carregadores de piano. Pesquisadores como Silvio Romero e Augusto Pereira da Costa já recolhiam cantigas de carregadores entoadas tanto por escravos como por negros de ganho ou trabalhadores comuns. Em 1938, o engenheiro e arquiteto Luís Saia liderou a equipe que, viajando pelo Norte e Nordeste brasileiro, realizou a Missão de Pesquisas Folclóricas, idealizada e orga nizada por Mário de Andrade. A Missão gravou13 e fotografou alguns desses grupos.
Figura 3. Vamos meus amigos. Carregadores de piano em
Vamos meus amigos
Recife (PE) (18/2/1938). Da esquerda para a direita: Manoel
à beira do mar
Eliziário do Nascimento, Genaro José Barbosa (Papa mé),
ô ver a nossa terra
Manuel Felix da Silva (Riscão), José Amaro da Silva, Artur
ô vai se embarcar
Francisco da Silva, André Henrique dos Santos, Aureliano Rezende de Maria (Galo Muiado), Francisco Pinheiro de Lacerda
ô rema canoeiro
(CD1, Missão de Pesquisas Folclóricas).
à beira do mar
Fonte: Sesc em São Paulo.
ô ver a nossa terra ô vai se embarcar
13
Ouça em <http://ww2.sescsp.org.br/sesc/hotsites/missao/cd01_
frameset.html>.
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Sesc | Serviço Social do Comércio
Pesquisadores, cronistas e escritores, relatam que a atividade desses carregadores era sempre embalada por cantigas que visavam abrir caminho e atenuar o duro trabalho tanto para o corpo como para a alma. Historicamente, a divisão social do trabalho sempre foi marcada por forte distinção de gênero. Mesmo que algumas atividades sejam comuns, a vida no campo ou na cidade tem reservado a homens e mulheres tarefas, funções e lugares sociais distintos. É comum, por exemplo, que enquanto os homens trabalhem na produção de alimentos, limpeza de terrenos ou pisando o barro para construção de casas, as mulheres lavem roupa, fiem algodão, plantem arroz, descasquem mandioca ou cantem para suas crianças brincarem ou adormecerem. Seja na roça, em volta do fogo, nas casas de farinha ou quebrando coco e destalando fumo, é fácil, por outro lado, encontrar também mulheres conjugando música e trabalho ao ritmo dos pilões, das pás ou no bater das roupas nas tábuas das beiras de rio, ativando memórias de antigos repertórios, compartilhando conhecimentos e reafirmando crenças comuns por meio de modos e fazeres tradicionais. Desde os primeiros tempos da colonização no Brasil, as beiras dos rios — assim como as fontes nos centros urbanos — funcionavam como importantes pontos de encontro, locais de interação para as comunidades, onde se pega água, se lava a roupa suja e se fica sabendo das notícias. Ainda hoje, ao longo do ano, as margens dos rios transbordam plenas de vozes e cantigas que embalam o ritmo de trabalho dos corpos na lavação de suas roupas e utensílios. Com ouvidos atentos à paisagem sonora das favelas e comunidades populares, o sambista carioca Cartola gravou em 1976 um samba14 em que relembra o ambiente das cantigas entoadas por lavadeiras nas beiras de rio do país, e que sinaliza para a importância da atividade como meio de vida e obtenção de recursos para o oprimido universo feminino. Ensaboa, mulata, ensaboa... ensaboa, tô ensaboando tô lavando a minha roupa lá em casa estão me chamando Dondon Os fío que é meu, que é meu e que é dela, rebenta a goela de tanto chorar O rio tá seco, o sol não vem não, vortemos pra casa, chamando Dondon
14
Ouça em <http://tny.gs/10VQlz8>.
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