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Caminhos da guerrilha
Caminhos da guerrilha
O texto de Lamarca, que aparece após sua autocrítica sobre a atuação buscando juntar as distintas organizações (próximo capítulo), trata das definições, e distingue guerrilha urbana e guerrilha rural, apontando para as dificuldades de cada uma. De forma explícita, se posiciona contra a ideia de uma guerra curta, sendo sintomático que o texto abre com uma epígrafe de Mao Tse Tung: “Descartar as ilusões, preparar-se para a luta”. O material traz uma primeira parte “guerrilha urbana”, na qual são tratados temas como: missões, base; comandos de sabotagem; guerrilhas irregulares. As guerrilhas urbanas são “Uma forma de luta tão importante quanto as demais e a que possui maior limitação. Difícil de ser organizada”, ela “é muito dependente dos fluxos e refluxos do processo de luta”. As metáforas afloram: “é como se tivessem que combater dentro de uma grande ratoeira”, na “selva de concreto”. Concretamente, as cidades impõem limites de deslocamentos e possuem “faixas obrigatórias facilmente bloqueáveis”. O maior problema das ações é a retirada, “sendo esse o fator decisivo para a execução de uma missão”.8 Dados os problemas das cidades urbanizadas, traz um elemento que normalmente é atribuído à guerrilha rural: “logicamente só terá condições de sobreviver se viver toda uma fachada legal e o apoio da população”. Na medida em que se coloca o problema da luta, vem também essa relação: “não podemos esperar o apoio da população pelo que ainda não existe”. O problema da vanguarda abstrato não existe, pois a ação tem que estar relacionada com a forma de efetivar as ações. Portanto, uma possível fixação no campo levaria anos para ocorrer. Lamarca indicava que eles estavam conseguindo ações, mas não em grau que pudesse já ser considerado guerrilha urbana. O grande problema que ele aponta é a dificuldade de planejamento e de coleta de dados. Por outro lado, os companheiros que caem deixam um rastro de informações “seja por não aguentarem a tortura, seja por não darem importância a ‘pequenas coisas’ que podem abrir”. Ele é mais específico quanto à relação com a população, e é rigoroso: “aparentamos como irresponsáveis corajosos e assim, longe estamos de conseguir o respeito, a confiança necessária da população para que ela participe”. 9 Daqui surge a deliberação de reforçar o Setor de Inteligência.
8 Caminhos da Guerrilha, CID, outubro de 1969. 13p. mimeo. p.2. 9 Idem, p. 2.
As missões possíveis elencadas por ele são bastante amplas, e previam de fato um grande leque de atos:
1. Expropriações 2. Eliminações: a) sistemáticas (agentes do DOPS, CENIMAR, P.E., Polícia Federal, Rádio Patrulha, RUDI, etc) b) Seletiva (torturadores, encarregados de IPMs, etc) 3. Destruições 4. Terrorismo. a) repressivo (contra militares); b) educativo (contra exploradores e altas autoridades) As ações podem ser: rapto, justiçamento, emboscadas guerra psicológica, etc.10
Em teoria, de fato, o quadro era de uma Guerra. Cada um desses itens é explicado, como em um manual. É importante ressaltar que a maior parte desse tipo de ação não foi jamais levada adiante pela VPR. Ou seja, havia uma distância entre o desejo e a possibilidade concreta. Lamarca ressaltava no texto a necessidade de manter uma postura “correta” com os militares em combate, e esse aspecto pode ser observado na postura real dos embates no Vale da Ribeira. Isso não significa que não reiterasse o ódio de classes, único recorte legítimo, para ele. No item Terrorismo, Lamarca especificava:
Pode-se executar na justa medida, quando se evita a morte do soldado, caçando como a um animal enraivecido o sargento e o oficial, lacaios conscientes do sistema; atua-se repressivamente onde quer que eles estejam. Se, como disse o Comandante ‘Che’, fomos acuados à luta, temos de acuar o inimigo também. Passa a ter um caráter educativo, quando ficar nítido que quem explora também morre. Não há porque aceitar o humanismo burguês - as limitações devem ser unicamente de repercussão política (por enquanto) - o humanismo marxista, fundamentalmente na luta classes, é o único permissível.11
Lamarca sabia que estava longe das condições que permitissem esse tipo de ação, a situação só pioraria daquele momento pra diante. O documento ainda traz os outros elementos já elencados e acrescenta o
10 Idem. 11 Idem, p. 3-4.
item “comandos de sabotagem”, que ficaria fora da cidade, e aumentaria a área de serviço da repressão na busca dos militantes. É interessante que ele elenca explicitamente como a repressão classifica o movimento: “considera área vermelha a ocupada por guerrilheiros, área amarela a que está por ser ganha e área verde a que controla”.12 Para evitar as áreas verdes, deveriam ser intensificados os trabalhos de levantamento e planejamento. Nesse sentido “este documento se destina a abrir discussão sobre esse assunto de extraordinária importância que é COMANDO DE SABOTAGEM”. Ou seja, uma adaptação da guerra de guerrilhas para a zona urbana. O item seguinte do manual é Guerrilhas Irregulares, e são detalhadas as formas de trabalho junto à população rural para poder fazer inserção local. Essas ações sistemáticas teriam o fim de “ir organizando milícias clandestinas”.13 Explicita que as influências de Mao vão além da epígrafe, pois atendem ao constante problema da construção do “novo homem”, muito presente nos textos de Lamarca:
Deve-se compreender que o processo é longo; luta sangrenta, com todo o povo em armas (o que não se consegue de hoje para amanhã, em que pese as ansiedades). Não aceitamos (nem cremos viável) a guerra de curta duração, que tem como consequência a contrarrevolução e inumeráveis dificuldades para a construção do socialismo. A continuidade do povo em armas, depois da tomada de poder, possibilitará a revolução cultural, primeiro passo para a construção do socialismo. Como fazer uma revolução cultural depois de uma insurreição?14
Esse documento, somado aos demais que traremos ao longo deste livro apontam para a concepção de luta que estava em jogo. Não se tratava de uma rápida guerra de movimento que permitiria a pronta tomada de poder. Na teoria, a tese da Guerra Revolucionária baseava a forma da organização. A guerra seria longa, e precisaria de uma reforma moral e intelectual, a “revolução cultural”.
12 Idem, p. 7. 13 Idem, p. 10. 14 Idem, p. 9.