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Do quartel à clandestinidade

consumada a deflagração da luta armada”. Mesmo sem terem absoluta clareza dos caminhos, a opção pela luta armada devia prevalecer, adaptando-se ao que estivesse ao seu alcance. Segue Chagas “vale lembrar que se vivia o tempo em que o revolucionário não pedia licença para fazer a revolução”, em um contexto em que “fatores militares prevaleciam sobre os políticos”. Mas, a saída de Lamarca não saiu exatamente como planejada. Mesmo que Onofre Pinto tenha limpado caminho dentro da organização, também prometeu a Lamarca uma base rural que ainda não tinha.

O Congresso da Praianada levou à explicitação do conflito. A posição de Quartim é vencedora. Mas essa posição não é aceita na prática por muitos militantes. Relembra Jamil:

Quando Quartim ficou definido como novo coordenador, aconteceu simplesmente que ele ficou sozinho. Todo mundo procurava Onofre para saber. Quando alguém está arriscando a vida, não vai obedecer um fulano porque ele ganhou um congressinho numa pequena manobra estudantil.16

Como vimos, o grupo acabaria expulso formalmente na fusão com a VAR-Palmares. Onofre detinha “a verdadeira relação de forças na militância, favorável a ele”. Os fatos seguiriam agitados.

Do quartel à clandestinidade

Carlos Lamarca era um militar. De origem pobre, conhecia a realidade popular profundamente. Suas preocupações sociais eram latentes. Foi amadurecendo sobre as formas de luta a seguir. Quando esteve servindo no Quartel de Quintaúna,

Lamarca logo foi procurando o sargento, que era o pivô, a molamestra do trabalho político dentro do quartel. E mantinha ainda discussão com vários ex-sargentos, alguns dos quais iriam logo mais organizar a guerrilha do Caparaó, integrados ao MNR, na maior parte oriundos do Movimento dos Sargentos iniciado em 1960.17

16 Ladislau Dowbor em entrevista para Judite Patarra, p. 10. Acervo AEL. 17 JOSÉ, Emiliano e MIRANDA, Oldack. Lamarca: o capitão da guerrilha. SP, Global, 1980, p. 39.

Os efetivos parceiros de Lamarca nessa empreitada eram: José Mariane e Darcy Rodrigues. Juntos, realizam trabalhos de lenta e gradual arregimentação de soldados para a causa revolucionária, no que chamavam “clube de amigos”, uma forma de realizar debates sem constituir grupo proibido. Os três estavam fortemente convencidos

Da necessidade de estruturar o foco guerrilheiro – pequeno grupo de homens armados, fazendo a guerrilha numa área rural, servindo de exemplo para as massas, como um catalisador das lutas do povo até a deflagração da guerra total pela tomada do poder18 .

A presença de Lamarca nesse trabalho de formação política certamente animou os demais, já que, como oficial, “tinha formação teórica mais bem estruturada”. Em 25/8/1967 tornou-se Capitão do Exército e justamente nesse ano ele “retoma os estudos do marxismo mais ordenadamente, nos limites de estudos escondidos. Mais tarde, vai mencionar essa época lembrando como de ‘decoreba dogmático’, segundo Emiliano José e Oldack Miranda. Teria sido o ataque ao Quartel Militar de Cambuci o fator que chamou atenção de Lamarca para a VPR, que se interessou por aquele grupo que buscava “armas para revolução”:

Da ação Lamarca teve detalhes, pois os soldados que montavam guarda ao hospital eram de sua Companhia. Ele se impressionou. Aquilo significava um passo adiante, ‘Esse é um pessoal sério, não é só blá-blá-blá’. E entra em contato com a VPR.19

Mas ainda naquele momento, os contatos eram feitos com vários grupos, incluindo-se a ALN (Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira) e o MNR. Os embates estavam assim colocados:

Lamarca foi convencido da existência de uma área de campo para implantação imediata do foco guerrilheiro, o que seria feito logo após a sua fuga do quartel, com as armas. Achava que a ALN não tinha condições, ainda, de implantar um foco de guerrilhas, e também tinha a convicção de que nenhuma outra Organização podia fazê-lo, mesmo a VPR. ‘Era uma temeridade’, dizia Mariguella aos militares.20

18 Idem. 19 Idem, p. 42. 20 Idem.

Foi com a garantia dada por Onofre Pinto que Lamarca resolveu bancar o projeto de saída do Exército, o roubo das armas e a desejada imersão na guerrilha. O fato é que a promessa de Onofre Pinto não se confirma e a saída de Lamarca do Quartel não vai ocorrer como o esperado. Esta saída do capitão Carlos Lamarca do Exército, que redundaria em seu posicionamento final do outro lado da Guerra, foi um fato muito narrado e relembrado. Os planos previam a realização de ações impactantes, de grande monta, com o foco na expropriação de muitas armas. De certa forma, as dificuldades que ali se colocaram já anunciavam o que viria pela frente, tanto do ponto de vista do despreparo, mas também do idealismo que marcaria alguns dos militantes da VPR. José e Miranda falam na expectativa de “360 fuzis FAL e respectivas balas”.21 Entretanto, os preparativos não saíram como planejado e parte do grupo que preparava uma parte central dessa fuga foi presa, levando a uma série de outras prisões. Como resultado, a ação de saída de Lamarca foi bem menos impactante, e encontrou um quadro externo delicado, com muitos militantes presos, sofrendo tortura, outros entrando na clandestinidade a partir desse momento. A articulação mais ampla se chamaria “noite de São Bartolomeu”. O planejamento previa uma série de atividades, mas as prisões impediram que isso ocorresse. Os planos chegavam a prever o estopim de uma guerra civil. Eram ambiciosos e ocorreriam no dia 26/1/1969:

O Palácio Bandeirantes, sede do governo paulista, no Morumbi, arde em chamas após o bombardeio de lança-rojões. No mesmo instante, ataque semelhante põe em pânico o Quartel-General do II Exército, no bairro Ibirapuera. Na Cidade Universitária, a Academia Militar de Polícia desmorona com a explosão de cem quilos de dinamite e, ao mesmo tempo, o Campo de Marte é ocupado por cinco militantes da VPR. Os sentinelas são dominados e os controles avariados para confundir o sistema aéreo da cidade. Era a Noite de São Bartolomeu, o desfecho de um plano perfeito, destinado a criar um clima de guerra civil.22

Vários relatos lembram decisões mal executadas como a história do caminhão que seria disfarçado de militar para entrar no quartel. Ele seria caracterizado como militar mas foi denunciado ainda no processo de

21 Idem, JOSÉ e MIRANDA, p. 36. 22 JOSÉ e MIRANDA, P. 36.

preparação do mesmo, no interior de Itapecerica da Serra, no dia 23/1/1969, conforme todos os relatos dos envolvidos. Caíram diante da denúncia de um garoto curioso que percebeu os preparativos do caminhão, foi mal tratado pelos homens que cuidavam da pintura, denunciou aos pais, que por sua vez chamaram a polícia e todo o magnânimo plano acabou na prisão. Hermes Camargo Batista abriria à repressão vários detalhes e informações que permitiriam chegar a todos os envolvidos. Diante disso, não restou a Lamarca alternativa do que a deserção, segundo conta seu companheiro de deserção Darcy Rodrigues: “No final da tarde de 6ª feira, 24/1, o capitão Carlos Lamarca entrou no IV RI dirigindo sua própria Kombi e a carregou com 63 fuzis FAL, 3 metralhadoras INA, uma pistola 45 e farta munição”23. Quando Lamarca chegou, o ex-sargento Onofre Pinto passava a comandar o capitão, e iria para o confinamento. Por um lado, percebeu que havia sido ludibriado e que a VPR não dispunha de um “exército rural”, por outro lado, mostrou a dura realidade em que se movimentavam os grupos da organização. Vários processos foram abertos posteriormente, onde aparecem nomes de outros possíveis militantes, inclusive militares, que tiveram contato e estavam prestes a adentrar na VPR. É o caso do sargento Pittoli, amigo de Darcy, que confessou “apoio às ideias subversivas e socialistas do movimento e sua disposição em colaborar com o mesmo e de desertar para ingressar no grupo”24. Preso, após passar por tortura, ficaria dez meses em uma solitária.25 O grupo cada vez mais precisaria realizar ações, inclusive usando seus comandantes para isso, com o fim de se manterem, mesmo que possuidores de armamento. No caso das armas expropriadas no Quartel de Quintaúna, inclusive, o problema foi enorme porque retiradas as armas, a VPR não tinha onde escondê-las. Quando estava colocada a incerteza quanto à guarda das armas, já que não tinham base no campo para tal fim, Lamarca recorreu a Marighella e sua organização. Marighella havia sido contra a saída de Lamarca do Exército: “não é o momento de sair da posição. Precisamos dele lá”.26 Mais tarde, se recusaria a devolver parte das

23 PEDROSO JR. Sargento Darcy. Lugar tenente de Lamarca. Bauru, 2003, Texgraf, p. 70. 24 SNI. Encaminhamento n. 346/69. Vanguarda Popular Revolucionária, 21/3/69. 25 Milena Tarzia e Samuel Garcia. Entrevista realizada em 26/7/2019 a Carlos Roberto Pittoli, em Bauru – SP. Ananke, Bauru, v.1, n.2, 2º sem, 2019, p. 91 -100. 26 MAGALHÃES, Mario. Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo. São Paulo, Companhia das Letras, 2012, p. 423.

armas, alegando que seria “para a revolução”, e não para a VPR. Há vários relatos em torno disso, mas o fato é que a VPR não tinha como guarda-las 27 . José e Miranda dizem que “no fim, apenas a metade voltou. A partir deste incidente Lamarca passou a cultivar profunda antipatia por Marighella, em quem não depositava a menor confiança como ‘dirigente da revolução’. 28 A saída de Lamarca do quartel, acompanhada da deserção de Darcy Rodrigues, José Mariani e Carlos Roberto Zanirato, levou em conta a prisão de vários militantes e começavam as delações de ex-companheiros, ou seja, se não saíssem, provavelmente seriam também delatados. O jornal Correio da Manhã de 27/6/1969 noticiava, a partir de um informe recebido do DOPS de São Paulo,

Uma bomba de alto teor explodiu na madrugada de ontem no prédio onde está instalado o parque da Aeronáutica, na Avenida Cruzeiro do Sul. O petardo destruiu a fachada do prédio, quebrou vidros e janelas e danificou móveis. Terroristas visaram na madrugada de ontem o palácio Bandeirantes, e sede do Governo do Estado. Ocupando um carro, deram rajadas de metralhadoras contra o edifício, sendo repelidos por soldados da guarda palaciana.29

O jornal traz, de forma oficialesca, a longa lista daqueles que foram delatados, contribuindo para disseminar um clima de insegurança e medo na população. Praticamente todos os nomes da VPR e outros grupos são listados: Lamarca, Marighela, Carlos Figueiredo de Sá, Diógenes Oliveira, entre muitos outros. Essa listagem nos faz refletir sobre alguns problemas. Se os militantes usavam codinomes para não serem conhecidos, como os nomes que apareciam aqui eram os verdadeiros? Se eles tinham contato com poucas pessoas, e dificilmente contatavam pessoas de outras organizações, como uma delação poderia indicar todos esses nomes? Não era possível. Isso indica que a polícia aproveitava alguns fatos para divulgar nomes de pessoas que eram procurados por eles, juntando informações de vários lugares distintos. Indica também que a imprensa apenas pegava aquilo que chegava nos relatórios policiais e divulgava, sem qualquer cuidado investigativo e

27 Magalhães relata que Lamarca teria doado 10 mil dólares à ALN, fruto do roubo do cofre de Ademar. (2012, p. 569.) 28 José e Miranda, p. 53. 29 Correio da Manhã de 27/6/1969

dentro do limite de tempo que a própria repressão estabelecia. Acabava exercendo papel policialesco, a exemplo do que revista Veja fez durante toda a ditadura publicando imagens de figuras “procuradas” pela repressão30 . Nesse contexto, Lamarca clandestino estava muito longe do objetivo de levar a guerrilha adiante. Ele participaria de um período de discussões congressuais da organização, da criação da VAR-Palmares e do racha, quando retomaria a VPR, criando um grupo que buscava se reorganizar na clandestinidade. Daí viria a constituição do campo de treinamento, no Vale da Ribeira, o qual seria uma demonstração de bravura, mas também de insistência e sanha da repressão. José e Miranda sintetizam:

Para o Capitão Lamarca a dureza da clandestinidade começou no dia em que saiu do Quartel de Quintaúna, sobretudo porque se viu obrigado a permanecer na cidade, ao constatar que não existia a tão sonhada área de campo do foco guerrilheiro. Marighela tinha razão: eram pequenas as condições de se absorver o episódio da fuga, e não havia mesmo nada preparado.31

Fora do Quartel, era necessário entrar na lógica da organização, das discussões teóricas e das regras da clandestinidade. Com todas as dificuldades colocadas, Lamarca traria elementos militares, mas daria fundamentais contribuições para a organização da luta. Não apenas no seu papel de comando em diversas ações, mas também pela reflexão sobre a luta registrada em vários textos produzidos por ele. Em 9/5/1969 Lamarca participa de uma ação, um assalto a banco, onde ele mata com um tiro certeiro o guarda civil Orlando Pinto Saraiva, que estava ameaçando atirar em Darcy Rodrigues, segundo seu relato posterior. Depois de um “confinamento”, Lamarca tenta disfarçar-se, submetendo a uma cirurgia para modificar o nariz, o que não teve muito efeito além de desagradá-lo e causar imenso desconforto físico, pois modificou sua arcada dentária. O médico, posteriormente preso entregou o ato à repressão, o que tornou ainda mais infrutífera a tentativa.

30SILVA, Carla. História e memória da repressão nos anos 1970 e 2014. Projeto História, São Paulo, n. 50, pp. 138-170, Ago. 2014. 31 José e Miranda, p. 53

Em seguida buscaremos entender melhor o contexto da fusão, mas percebemos que Lamarca estava em uma situação difícil, entre ser um líder e querer fazer o trabalho concreto, certamente sabendo que essa “base de campo” não existia. Será ele mesmo que tentará cria-la. Nesse mesmo mês Lamarca produz o texto “Caminhos da guerrilha”, dando passos avançados sobre a forma que a luta deveria se dar, como já apontamos no capítulo 3. Sua autocrítica ajuda a entender o contexto da epígrafe: “Negais vossas ilusões e peparai-vos para a luta” (Mao Tse-Tung).

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