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Um, dois, três, muitos estudantes

Atribui isso ao fato de que, sendo uma organização recém-criada, não tinha clareza de políticas, exceto a da “guerra de guerrilhas”. Em função disso,

A opção não sectária dos militantes da VPR em Osasco (alguns deles atuantes desde antes de 1964 na cidade, quando eram da POLOP), aliada à força das armas, foi fundamental para a aproximação com as lideranças operárias do grupo de Osasco, radicalizadas num processo político peculiar no município, mas ao mesmo tempo, sintonizado com as lutas nacionais e internacionais dos anos 1960.18

No mesmo livro de Ridenti há um documento de 1972 no qual José Ibrahim, colocava a relação concreta entre a militância operária e a luta armada:

O que destruiu mesmo a organização interna nas fábricas de Osasco foi a política das organizações armadas – principalmente, no caso da VPR e depois da VAR-Palmares – de tirar os melhores elementos, do trabalho no movimento de massas, consumindo-os na dinâmica interna das organizações. Nós já vínhamos nos aproximando dessa posição no desenrolar do trabalho em Osasco e quando nos ligamos à VPR esse desvio se aprofundou. Fomos paulatinamente nos afastando do trabalho dentro da classe, absorvidos pela dinâmica da luta armada, na qual se substituíram a luta de massas (Unidade e luta, 1972, APUD RIDENTI, p. 186)

Esse seria o quadro das dificuldades da manutenção das lutas durante o aprofundamento da ditadura. Há um peso enorme da repressão a ser acrescentado, e a VPR não conseguiria aprofundar a aproximação com a classe trabalhadora, embora esse problema fosse colocado. Falta então observarmos um pouco melhor outros componentes da VPR, os estudantes e “intelectuais”.

Um, dois, três, muitos estudantes...

Os militantes que buscavam as organizações acreditavam que estavam fazendo uma revolução, e a máxima de Lenin de que “sem teoria revolucionária não há revolução” pairava em seus pensamentos. Já os fundadores da VPR tinham um assumido desprezo pela discussão teórica.

18 Ridenti, p. 184.

Essa relação conflituosa se observa em incontáveis momentos de contatos diretos entre militantes, sejam os de origem militar, vistos como duros e insensíveis, seja os de origem estudantil, vistos como permeados de vícios pequeno-burgueses e fracos para a luta. A realidade, entretanto, se mostraria muito mais complexa que isso. Esse quadro é expresso por Espinosa, um dos dirigentes dos princípios da VPR, dessa forma:

Antes mesmo de ser batizada, a organização se dividia entre ‘a turma do blá-blá-blá’ e a ‘turma do bangue-bangue’ – segundo definição da própria turma do bangue-bangue. Os adeptos da primeira, liderados por Onofre [Pinto] e João Quartim [de Moraes], foram à praia do Peruíbe participar do I Congresso da organização. Diógenes, adepto da segunda opção, critica abertamente o outro grupo na noite em que Onofre e Quartim discutiam nomes e rumos do grupo, ele comandava um ataque de expropriação numa loja de artigos de caça e pesca situada no bairro da Lapa, a casa de Armas Diana. Num desabafo a Espinosa, Diógenes revelou seu rancor. Eu vou mandar essa arma de presente ao Onofre. Companheiros, enquanto vocês estão na praia, só no bla-blá-blá, nós estávamos arrecadando armas pra revolução. Fazer programa não é problema. Se um dia a gente precisar de um programa de partido é só fazer um banco e encomendar a bons professores da USP!19

No seu livro de memórias, Diógenes dá mais detalhes sobre as armas que conseguiram naquele assalto, ressaltando um “Smith & Wesson prateado, cano longo, que foi dado ao Lamarca”.20 O embate entre “mais ação” e “menos teoria” estava colocado. Nos momentos iniciais da organização, o enfoque de ação de massas estava muito mais presente. Isso se deve a vários motivos: a) o momento das lutas estudantis, que levava ao amadurecimento de muitas organizações e de jovens que posteriormente se somariam à própria VPR com suas experiências e sonhos; b) o arrefecimento das lutas concretas da classe trabalhadora que se somavam às greves; c) o período ser ainda pré-AI-5 e ainda não estar embebido pela ideologia do Milagre Econômico, elemento central da Ditadura na sua intervenção na luta de classes.

19 Solnik, op cit. p. 61. 20 Diógenes in: FUKUDA, op cit. p. 80.

O relato de Alfredo Syrkis mostra uma trajetória que se repetiu em mais de um caso: do seio do movimento estudantil secundarista no Rio de Janeiro, avança para o movimento universitário, passa a fazer contatos com a classe trabalhadora muda de escola, indo estudar em um local frequentado por filhos de trabalhadores. Participa ativamente de ações armadas, o que não evitou que fosse considerado desbundando – pequenoburguês por muitos companheiros. De origem liberal, a militância na esquerda trouxe a ele amplas possibilidades de socialização. Passou a ler e estudar marxismo, que “era todo um universo e tinha o atrativo da lógica, a tentação do maniqueísmo e a justa cólera dos revoltados. Tinha a grande solução. Era uma religião sem ser”21. Certamente há uma memória crítica do militante quando se torna autor. Mas interessa ressaltar que foi aquele espaço que permitiu uma ampla socialização política e que a mesma era muito movimentada, com muitas atividades, debates, estudos e pequenas e muitas vezes ousadas ações. Esta militância, ressalte-se, era ainda anterior ao golpe e prosseguiu nos anos seguintes, acompanhando a ebulição estudantil nacional. A pauta era: mais verbas pela educação, ampliação das vagas nas universidades, ou seja, os problemas inerentes ao descaso da educação como um todo. Mas, a luta contra a ditadura aparecia também nas falas e cartazes: “ABAIXO A DITADURA”22 era um lema que levava pessoas às ruas, em meio a bolinhas de gude no asfalto para fazer caírem os cavalos policiais. Estava colocada a esperança de conseguir apoio popular. A repressão recaia sobre eles, eram presos com frequência, mesmo que militassem em organizações legais23. Os estudantes em diversas manifestações em 1968 foram tratados como marginais, criminosos. A tropa de choque foi colocada contra eles, Syrkis narra suas lembranças sobre esses fatos, acompanhando o avanço dos grupos de luta armada, pela imprensa, e por comentários dos companheiros. Inicialmente, estavam muito longe dos fatos. Ao comentar sobre o assalto ao quartel de Quintaúna, ele registra:

21 SYRKIS, op cit. p. 43. 22 Idem, op cit. p. 59 e segs. 23 Relato idêntico aparece em Mauricio Paiva: preso 5 vezes em um ano. “fui preso, submetido a extenuantes interrogatórios, solto para que um agente pudesse farejar os meus passos por dias seguintes e novamente trancafiado”. PAIVA, Mauricio. O sonho exilado. RJ, Achiamé, 1986, p. 12. op cit.

Exageraram (...) esse negócio é uma porralouquice. Tá errado politicamente. Era mais ou menos nosso consenso nas reuniões e nos papos de bar. Guerrilha tinha que ser no campo. Coisa nobre, fazia o Che. Esse negócio de bomba pegava mal. Era coisa de narodnik. Eu tinha poucas informações sobre a guerrilha urbana. O Minc, tinha contato com as organizações, às vezes me dava umas dicas.24

Syrkis tem a oportunidade de ir para Paris seguir seus estudos, atendendo ao desejo da família, mas no processo de crítica e autocrítica do movimento, se assume “pequeno-burguês” e segue no movimento. Daí segue para estudar em um colégio frequentado por proletários, tática de se aproximar da classe trabalhadora. Há uma forte esperança de ampliar o apoio “de massas”, que se amplificariam na forma “político-militar”25. Mas tudo ainda se dá no âmbito do movimento estudantil. Essa formação viria junto com ele para a VPR. Os primórdios da militância de Iara Iavelberg não foram muito distintos, de origem de classe média, circulando no meio do movimento estudantil em São Paulo, assim como outros e outras, atraídos para formas mais perigosas de luta. Em mais de um momento o tema das formas da luta estudantil foi debatido na VPR. Sabemos pelos relatos um pouco sobre o modo de atuação, a existência de militantes mais velhos e experientes realizando a aproximação e instruindo para ação. Era parte do trabalho de Juarez de Brito e Carlos Minc. Encontramos um documento, relativamente extenso, “Tática para o movimento estudantil”, que infelizmente não tem data, o que dificulta se precisar exatamente o contexto em que foi produzido, mas é, certamente, pós AI-5. Vale nos atermos em algumas de suas indicações. O primeiro ponto discute “os estudantes como classe social. Suas contradições com o regime”. Aponta que após o aprimoramento da repressão, com o AI-5, o ME precisa preparar-se militarmente. Sua função na luta é tática, pois é uma concreta possibilidade de apoio urbano. Deve, nesse momento, ater-se a atividades de propaganda armada, pichações, panfletagens, comícios-relâmpago, mas deve necessariamente “preparar-se para a realização de suas funções como MM (movimento de massas) na etapa posterior”.26

24 SYRKIS, op cit.p. 93. 25 Idem, op cit. p. 100. 26 Táticas para o movimento estudantil. s/d, P.2. BNM, 42.1, p. 188-196. Sublinhado no original.

Este documento indica ainda um fator essencial para as ações futuras. Ao separar a massa estudantil (previamente definida como classe média, não ligada aos meios de produção) em três campos: massa avançada, massa participante e grande massa.

É na massa avançada que devem, por enquanto, concentrar-se as atividades do ME, no sentido de sua organização, de sua educação político-militar e aquisição de condições de lideranças.27

Ou seja, institui que a ação principal é ação de formação avançada, e que esta vai se dar de forma clandestina. Isso trará consequências imensas para o futuro desses militantes. Sugere-se uma especialização nos grupos

Diferenciar-se quanto ao nível político, existindo desde os simples grupos de estudos, cujos componentes buscam teorizar visando uma prática em nível mais elevado, até os que seriam capacitados ao desempenho de tal prática, realizando ações do ME, [...], e, em etapas posteriores, guerrilha urbana. Escusado é dizer que tais grupos deverão ser absolutamente clandestinos, evitando-se inclusive sempre que possível o conhecimento, por parte dos elementos de um grupo, de quem integra os demais.28

A essa massa avançada caberá apenas aceitar as posições da O., “mobilizando-se em etapas posteriores do processo”. Em seguida o documento fala sobre o movimento secundarista, que daria uma enorme contribuição. Entretanto, isso mostra que a ponta desejada, da construção da guerrilha rural, estaria cada vez mais dependente dos “soldados” disponíveis, os estudantes. Seu nível de consciência é problematizado no documento:

27 Idem, p. 3. 28 Idem. 1) Consciência do arcaísmo e poder elitizante da Universidade e do sistema educacional; 2) consciência da participação das atitudes do governo na massificação desse sistema de ensino; 3) consciência de que o sistema político dirigente no país é uma ditadura violenta; 4) consciência de que essa ditadura é uma ditadura de classe, defendendo um sistema de exploração, aliado ao imperialismo e,

finalmente 5) de que apenas a luta armada e implantação do sistema socialista é que pode dar solução.29

O que distingue os estudantes das demais categorias sociais “é a contestação da ideologia burguesa e a adoção da ideologia marxista”. Na leitura da época se propunha então que os estudantes, por terem no terreno da ideologia seu campo por excelência de ação, estariam no nível da superestrutura. Essas diretivas seriam internalizadas o máximo possível pelos militantes. Certamente isso pioraria o preconceito dos “militares”, vistos como “verdadeiros guerrilheiros”. O próprio movimento estudantil assina um documento intitulado “o papel das massas urbanas na tática global”, documento elaborado pelo subsetor estudantil regional SP. Este era um grupo bastante ativo, e que cobrava muito essa ampliação:

A nosso ver o êxito das os. Revolucionárias se dará na medida em que o trabalho revolucionário, em todos os diferentes setores, se desenvolver harmonicamente. A CME, ou posteriormente o EP deverá ter um desenvolvimento conjunto com todas as outras formas de luta (G. irregular, G. Urbana, etc), mas principalmente com o MM. Se abstrairmos as outras formas de luta que não as grifadas acima poderíamos compreender mais facilmente as leis que regem o desenvolvimento da guerra revolucionária.30

A passagem da fase defensiva para ofensiva, caberia, no entender deles, pelo movimento de massas. Isso quer dizer que manteriam seus lugares na zona urbana enquanto isso fosse necessário, somente no final dessa organização de massas conseguiriam enfim, chegar aos “quadros de origem operária”, ampliando a consciência de classe. Este documento, assinado pela “subseção estudantil, Regional SP, trata também de “como lançar o movimento estudantil no processo revolucionário”, em sintonia com as discussões propostas no documento de Jamil.

29 Idem, p. 1 30 O papel das massas urbanas na tática Global. Sub-setor estudantil Regional SP, sd. BNM, 42.1.

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