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A criação da VAR-Palmares
mostra uma visão de militantes que não tinham clareza dos seus caminhos: “não se tinha critérios claros e rígidos de militância; não se tinha normas de segurança e disciplina como era preciso ter”9 .
A criação da VAR-Palmares
No Brasil, a atomização dos revolucionários fraciona seu potencial de luta. É necessário urgentemente que se somem as forças, para enfrentar as forças de uma ditadura feroz como a brasileira. É compreendendo isto que a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e o Comando de Libertação Nacional (Colina) sobre a unidade de seus principais políticos e orgânicos resolveram constituir-se numa nova organização, somando suas forças e suas experiências adquiridas neste período de preparação para a luta armada.10
Não houve parada, a luta seguiu o ritmo. O Congresso de unificação de VPR e Colina ocorreria em agosto de 1969, durando 44 dias, na cidade de Teresópolis, mas as datas não são precisas. Não foi com unidade que o grupo sairia do Congresso, pelo contrário, houve um racha que levaria à reconstituição da VPR, que se reorganizaria não com os mesmos membros, trazendo junto alguns daqueles que eram Colina, inclusive. Como se observa no próprio manifesto de fundação, as visões em conflitos foram ajustadas em um texto, mas a prática seria difícil, pois estariam eles “preparando a luta”, ou já lutando? O documento Informe sobre a fusão VPR-Colina apresenta as posições daquele “importantíssimo passo para a Revolução Brasileira”. Após breves considerações sobre o contexto nacional, o texto coloca como decisões finais:
a) Se por um lado a fusão é um imenso avanço, por outro cria problemas para os quais é preciso toda uma visão política acertada para conseguir resolver. Dentro disso, entra o Congresso da O., seu órgão máximo, que vai representar realmente o ponto final do processo de fusão. Este Congresso terá que desempenhar um papel homogeneizador e assumirá características novas numa organização de novo tipo. Deverá ser realizado com maior participação possível de cada
9 Espinosa, depoimento de 10/12/1969. 10 Manifesto da VAR-Palmares. Ousar lutar, ousar vencer, 7/7/1969., 3p. BNM42
militante. A fusão real só poderá ser possível se for fruto do esforço conjunto de todos e de cada um em particular. d) O nome VPR ou Colina não deveriam ser colocados na nova Organização porque são nomes conhecidos de organizações revolucionárias. Observou-se que o nome deveria expressar a nova organização que não corresponde à soma das duas anteriores, mas como toda globalidade é mais que a soma de seus elementos constitutivos.11
Os relatos sobre a criação da VAR-Palmares são em sua maioria plenos de posições das memórias dos militantes, cheios de paixões e ressentimentos. Imagine-se a situação, em plena ditadura militar, Rio de Janeiro buscando os sequestradores do embaixador estadunidense e um grupo de militantes armados discutindo os rumos da revolução brasileira em Teresópolis, há poucos quilômetros do Rio. Entretanto, podemos avançar nesse tema na medida em que dispomos de vários documentos que nos ajudam a ir além das lembranças, mas não pretendemos esgotálo12. As razões teóricas e políticas do racha merecem ainda ser aprofundadas. O “Congresso de Abril”13, ocorrido em Mongaguá, consolidou a criação, contou “com cerca de 25 militantes, 20 deles delegados eleitos pelas células”. Segundo Chagas, nesse congresso “O termo foco foi substituído pela expressão ‘coluna móvel estratégica’, a qual seria a forma principal de luta, combinando-se com guerrilhas irregulares fora da área estratégica”14 . A direção ficava assim definida: Roberto Espinosa, Carlos Lamarca, Fernando Mesquita, Mario Japa e Claudio Souza Ribeiro. Tinha como objetivo “político imediato a retomada e o aprofundamento dos contatos com os COLINA de Minas e da Guanabara, com o intuito de cristalizar uma fusão para ampliar nacionalmente a luta revolucionária”, função essa que seria parcialmente cumprida por Iara Iavelberg. Ou seja, um outro congresso seria necessário para consolidar a fusão, convencendo as bases dos próprios grupos.
11 Informe sobre a fusão VPR-Colina, 7/7/69. VAR PALMARES. Fundo BNM, 42.3. 12 Há vasta documentação sobre a VAR-Palmares nos processos do portal BNM que não serão aqui analisadas, pois o foco é seguir a VPR. 13 Algumas fontes se referem a esse evento como “conferência”, deixando para o evento de fusão das organizações o caráter de congresso. 14 CHAGAS, p. 54.
Mais duas reuniões ocorreriam em Mongaguá para tratar da fusão e retomar as teses para acertar rumos, fazendo discussões prévias com membros das direções, tanto da VPR como do Colina, a fim de verificar suas afinidades. Essas discussões ocorreriam enquanto muitos militantes estavam presos, o que somente aumentava a tensão. No relato a José e Miranda, Espinosa diz que chamou um congresso, “onde se discutem as perspectivas da luta”, no qual,
O grupo de Osasco, composto de operários e estudantes que tiveram acentuada atuação nas greves de 1968, assume nesse Congresso a posição de não subestimar o papel político das massas. Mas a ideia básica permanece: o foco, como forma ‘fundamental’ de luta; o trabalho de massas, a forma ‘complementar’.15
Nesse momento, Lamarca propunha-se apenas a direção da coluna rural, segundo José e Miranda, “o receio de assumir cargo de direção tinha mais uma forte razão: temia se tornar ‘um outro cacique’, transformar-se num prisioneiro do próprio mito, criado à sua revelia”. Se iniciava um novo período de debates em torno do caráter da revolução socialista, mas a premência organizativa se impunha. Fabio Chagas sintetizou:
As posições que se mostravam antagônicas foram, de uma certa forma, abafadas pelo fato de que naquele momento a maioria dos militantes presentes ambicionava a constituição de uma organização do porte que seria a VAR-Palmares. Ao final da reunião definiu-se um comando composto por seis pessoas, foram elas: Roberto Espinosa, Carlos Lamarca, Cláudio de Souza Ribeiro, Juarez Guimarães Brito, Maria do Carmo Brito, Carlos Franklin Paixão Araújo.16
Nas lembranças de Celso Lungaretti, além de decidirem por uma posição crítica com relação à URSS, “o programa que acaba sendo decidido no encontro proclama que o Brasil é um país plenamente capitalista, portanto, a revolução terá caráter socialista, com o proletariado na vanguarda”17. Ou seja, limpam o terreno com relação às concepções etapistas e vão investir em uma visão inserida no capitalismo brasileiro,
15 JOSÉ e MIRANDA, op cit. p. 53. 16 CHAGAS, op cit. p. 59. 17 LUNGARETTI. Celso. Náufrago da utopia. Vencer ou morrer na guerrilha, aos 18 anos. SP, Geração editorial, 2005, p. 84.
mas ainda com protagonismo proletário. O tema da relação com a massa camponesa, caro aos marxistas-leninistas do maoísmo não entrava ainda no cerne do debate. A VAR Palmares reunia militantes que buscavam ações de formação da classe trabalhadora, como recorda Listz Vieira. Relata que em março de 1969, quando se retirou para Porto Alegre, “participava dos grupos clandestinos da Organização, fazendo reunião com operários e preparando um jornal marxista que era distribuído nas fábricas”. 18 Completa que: “Nitidamente não era fácil. O operário havia trabalhado o dia inteiro, chegava para a reunião à noite e estava com sono, e ainda tinha que ouvi-lo explicar conceitos marxistas”.19 Além disso relata que davam assistência a grupos de estudantes que queriam estudar marxismo. Esse era o principal embate, pois defendiam as ações de formação da classe, para além da ação armada, antevendo os riscos de jogar todas as fichas no espontaneísmo das massas.
Essa posição denota uma crítica teórica vinda dos “gaúchos”, assim expressa por Bona Garcia, citado por Fabio Chagas: “os textos de Jamil foram motivo de brincadeiras no sul do país, devido à formação marxista mais sólida de seus companheiros que os levava a interpretar aquelas teorizações como uma deformação do marxismo”20. O foquismo, confundido com militarismo, seria esse divisor de águas. Na descrição posterior de Liszt Vieira, os debates apareciam desta forma no Congresso de Teresópolis:
Evidentemente que não era um projeto de massa. Era uma época de vanguarda clandestina e o plano maior era desencadear a guerra de guerrilha, e para isso era necessário formar um grupo bem armado, embasado por toda uma teoria do guevarismo, com uma leitura foquista da revolução cubana. O exemplo revolucionário deveria despertar a massa. Basta pouca gente para isso – você tem dez caras, sequestra um embaixador e escandaliza o país obrigando o governo a libertar presos políticos. Bastam dez pessoas, seis para a ação e quatro para arranjar o apartamento. A guerra de guerrilha é isso. Precisavam apenas de pessoas adestradas com a preparação técnica e um mínimo de apoio local em âmbito de estrutura urbana e rural.21
18 LISTZ, op cit .p. 44. 19 Idem, op cit. p. 45. 20 CHAGAS, op cit. p. 62. 21 VIEIRA, op cit. p. 49.
A partir daí, com a “coluna guerrilheira, do foco que ia se espalhando como mancha de óleo no mar, na expressão do escritor francês Debray [...] toda a estratégia era a formação de um exército popular contra o exército da burguesia, que era a ditadura militar”. Essa posição traria muitos conflitos, pois mesmo os estudantes que participavam de ações de massas tinham simpatia pela ideia do foco. Na síntese de Cristina Chacel, o congresso foi ainda mais crítico ao foco, mas esse seria o ponto de divergência, embora o documento tente mostrar o contrário:
As agendas políticas coincidem. Tanto a Ó Pontinho 22 quanto a VPR defendem o caráter socialista da revolução, descartando a visão de libertação nacional de outros grupos da esquerda armada, como a ALN. Ambas, também, levam para o debate documentos parecidos, em que criticam a importação automática do conceito de foco cubano – não acreditam que o envio de grupos para áreas de guerrilha, tendo basicamente a geografia montanhosa como escudo, possa, a partir da centelha, incendiar a revolução no Brasil.23
Obviamente, essa posição se choca com a posição de Lamarca e de todos os militantes originários da VPR. Será decisiva para o racha no grupo, posição apontada também pela autora:
Quando a gente falava em trabalho político, havia uma reação terrível do pessoal da VPR. Eles questionavam: o que é isso? Trabalho político, como? Aonde? Isso é desviar forças do foco, da luta armada, é perder quadros, nós não temos quadros suficientes, então, não vai sair nunca. Querem adiar a luta armada?
Na sequência explicita a diferença:
A VPR defendia o envio massivo de militantes para o campo. As ações na cidade teriam, por única finalidade, financiar e apoiar a guerrilha rural com infraestrutura, logística, recursos. Não era o que pensava Ó Pontinho, para a qual o trabalho urbano, junto à classe operária, aos
22 “Ó Pontinho”, nome que o grupo usava antes da fusão e formação da VAR-Palmares. 23 CHACEL, Cristina. Seu amigo esteve aqui. A história do desaparecido político Carlos Alberto Soares de Freitas, assassinado na Casa da Morte. RJ, Zahar, 2012, P. 75.
estudantes e sobretudo a populações em conflito, não podia ser abandonado.24
De tal forma havia uma divisão que foram eleitos dois comandos: o Comando de Lutas Principais e o Comando de Lutas Secundárias. No nome o principal seria o campo, mas, na prática, seguiam sendo os embates urbanos que mais contariam, havia dois documentos: as Teses sobre a Tática,
Se constituía no instrumento teórico dos que, embora não se afastando das ideias militaristas, criticavam o papel da chamada ‘coluna estratégica’ guerrilheira como ‘tática global’, prevendo grupos de guerrilhas irregulares na periferia das cidades como peças que se encaixavam dentro da tática política geral, onde o trabalho com as massas populares ocupava um importante papel.
E, segundo a leitura da VAR-Palmares que Chacel apresenta, a Tese de Jamil
Constatando a existência de uma ‘aristocracia operária’ e atribuindo um papel revolucionário às amplas camadas da massa desempregada, marginais ao processo produtivo. Propunha, então, a formação de uma organização de combatentes, e não de um partido (....) no momento tratava-se de criar a organização de combatentes que, por questões de segurança, não devia manter vínculos orgânicos com a massa, apenas ligações políticas.25
Não se confunda, entretanto, essa posição com o foquismo debraysta. Os conflitos maiores se dão entre os que defendem o trabalho de massas, ou que o contato político com as massas trabalhadoras se daria nas cidades, centro urbanos tendo o uso de armas como recurso, pois essa era a realidade vivida. A Tese de Jamil não defendia um foco guevarista, e batia-se contra as ações de impacto de massas, pois ainda estava muito longe de ter condições de manter militantes clandestinos e treinados em condições de enfrentamento. Ao mesmo tempo, não se podia evitar a necessidade de ações urbanas para sustentar a luta, seria uma longa luta. Havia, desde que a aproximação se deu, conflitos entre os dois setores, os “principais” e os “secundário”. O racha acaba sendo inevitável:
24 Idem, p. 76. 25 Idem, p. 62.
Lamarca, o ex-sargento Darcy, o ex-sargento José Araújo Nóbrega, o ex-marinheiro Claudio Ribeiro, Celso Lungaretti, Mario Japa e mais um. Todos com uma visão bem guerrilheirista: queriam ir para o campo, fazer a guerra, libertar o povo. Não admitiam ficar perdendo tempo nas cidades e se põem a discutir separadamente.26
A leitura desse racha como os “guerrilheiros” não dá conta do que eles propunham. O conjunto dos militantes não sabia ao certo como equacionar sua posição militar com a ação rural e a questão de politizar as massas, especialmente em situação de absoluta clandestinidade. Esses embates seguiriam existindo. Na lembrança de 1969, Espinosa, que ficaria na VAR-Palmares, assinalava a falta de conhecimento político do Comando Nacional. Ele registrou que
O Congresso era uma necessidade premente para a Organização, se bem que os companheiros que mais tarde viriam a ‘RACHAR’, não entendessem isso naquele momento. Compreende este comportamento da parte dos companheiros porque não estavam ligados no trabalho complementar [...]27
Os conflitos eram tais que o congresso durou um tempo imenso. Inicialmente, de 24 a 26 dias, até a ocorrência do racha, quando os companheiros “lhe informaram de sua posição de reconstituição da VPR em cima de uma linha que para o depoente não fora aprovada no Congresso da VPR de abril, de uma linha que considerou então foquista e militarista, pois subestimava o papel das lutas secundárias e o papel do trabalho político”28 . Essa situação foi de tensão extrema, quase chegando ao conflito físico, e com ameaças armadas. Ao fim, “racharam mais de 65 companheiros. A esmagadora maioria dos que tinham experiência em ação, rachou”. Deu-se uma pausa de 10 dias e novamente se reuniram, conforme registrou Espinosa. O acerto político da separação geraria dificuldades imensas ao reordenamento do seu grupo. Muito tempo depois, o relato de Espinosa mostrava-se abalado pela ruptura da VPR, inclusive usando a expressão VPR 1 e VPR2, a 1 seria a
26 Idem, p. 63 27 Espinosa, Depoimento de 1969. 28 Idem. Perceba-se que a redação indica que Espinosa falava, mas há a intervenção do escrivão que está em tese traduzindo suas palavras ao papel, que depois seria assinado por ele.