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Regras de segurança Capítulo VIII - O TERRORISMO DE ESTADO SE IMPÕE: prisões, torturas e seu imenso impacto
samente expostas no documento Regras de Segurança. Este mesmo documento indica que um companheiro recebeu censura por escrito porque estava usando “argumentos emocionais antes que políticos”5 para promover recrutamento. De fundo, são casos de desespero de manter a organização, mesmo que não houvesse mais condições de atrair novas pessoas para esse formato de luta. Já o segundo informe reforça que é necessário deixar muito claro aos futuros militantes as regras da organização, incluindo-se os “riscos das tarefas revolucionárias e a discussão de nossa Linha e experiência”. Antes de justificar que não realizariam ação contra a presença de Rockefeller, o informe explica a importância da possibilidade de atos terroristas. Num caso destes “procura-se um objetivo que seja o melhor do ponto de vista político”, e caso seja decidido “não cabe a esse respeito qualquer vacilação” quando se tratará de
[…] um inimigo de classe [que] oprime e mata milhões de pessoas em todo o mundo, tortura [e leva à] morte de inocentes que tolherá nosso braço. Se o golpe que iremos desferir for necessário à luta que livrará milhões de seres humanos da exploração, miséria e terror. À violência bestial do inimigo oporemos sempre a violência justa da revolução. Não podemos titubear em considerações ‘humanitárias’ que favorecem o inimigo6 .
A violência revolucionária é uma violência justa, esclarece o documento. Mas precisa ser bem planejada, e nesse caso se decide pela não execução da ação. As forças reais não permitiam essa exposição. Esse documento indica ainda no final que deveria ser queimado. Ou seja, ou havia alguém infiltrado que entregava cópias ou algum militante caiu para que esse documento sobrevivesse e assim podemos contar essa história, triste paradoxo.
Regras de segurança
Havia uma grande preocupação com as regras de segurança. O primeiro item é uma declaração de princípios na qual se estabelece a forma
5 Idem, p. 8. 6 Informe do Comando n. 2. O papel do militante na resolução dos problemas atuais da organização. BNM, 42.
da luta e sua motivação. Será realizada uma Guerra prolongada com o fim de construir o socialismo:
Objetivos 1. Nosso objetivo é lutar para liquidar a exploração imperialista e capitalista no Brasil, estabelecendo uma Nova Sociedade baseada no povo organizado em armas em torno de um Governo Socialista dos Trabalhadores. 2. Para isso, desenvolveremos a Guerrilha Rural e a Guerrilha Urbana e Comandos de Sabotagem que irão infligir derrotas parciais aos inimigos do povo. Estas lutas, principalmente a Guerrilha Rural, levarão à criação do Exército Popular Revolucionário, que irá aniquilar o Exército da burguesia e garantirá pela força das armas as mudanças socialistas no Brasil.7
Em seguida, se explica como estão organizados os grupos nas cidades. A estrutura se mostra bastante simples, mas com uma hierarquia demarcada:
II. A estrutura da Unidade de Combate Urbana 1. A Unidade de Combate Urbana é formada por 1 a 5 GATs (Grupos de Ação Tática), com direção centralizada no Comandante da Unidade. A UC possuirá autonomia de encaminhamento de ações, subordinada ao planejamento geral da Organização. O comandante da Unidade de Combate será escolhido pelo Comando Nacional de Organização. 2. Os GATs são compostos de 3 a 5 militantes, comandados por um coordenador escolhido pelo Comandante da Unidade. O GAT possuirá autonomia de encaminhamento de ações e subordinação ao planejamento geral da Unidade. 3. O Comandante da Unidade e os Coordenadores dos GATs deverão assumir a responsabilidade sobre as principais decisões de seus organismos. Uma determinação do Comandante ou do Coordenador deve ser obedecida, mesmo que o militante encaminhe logo a seguir uma reclamação, crítica ou protesto ao organismo superior. Essas reclamações devem ser encaminhadas por escrito e o Coordenador ou Comandante deve encaminhá-las à direção superior. Esta é uma questão disciplinada de suma importância. Evidentemente,
7 Estatutos e normas de segurança das Unidades de Combate da Vanguarda Popular Revolucionária. Março de 1970. BNM 42, p. 311-312.
coordenadores e Comandantes devem consultar seus Comandados, sempre que possível. Mas a decisão final lhes cabe.8
Essas orientações seriam fundamentais na realidade da organização. Lamarca se utilizará dessa prerrogativa na decisão final sobre o desfecho do sequestro do Embaixador Suíço: ouve os companheiros, mas quem decide é ele, indo contra a posição dominante dos demais e mantendo a vida do suíço. No debate que se segue posteriormente, ele insistirá também para que as posições de crítica sejam colocadas por escrito. Encontramos alguns registros de situações em que os problemas foram postos por escrito, mas a maior parte deles são evidentemente queimados, eliminados. A sorte dos historiadores vem da infelicidade dos militantes que caíram. O próximo item é específico sobre as responsabilidades de cada militante, em uma linguagem militarizada: “haverá três categorias de militantes: o recruta, o combatente, o comandante”:
2. O recruta é o para-militante, isto é, o militante recém incorporado a uma UC, iniciando sua atividade prática como guerrilheiro. Para ser recruta, é preciso aceitar a disciplina da Organização. O recruta participa das discussões políticas e sobre operações. 3. Combatente é o militante da VPR, o guerrilheiro que já demonstrou em sua atividade prática possuir iniciativa, coragem pessoal, vontade de aprender. Que busca aperfeiçoar-se tanto do ponto de vista político quanto do ponto de vista militar.9
Basicamente, o que permitirá a transformação do militante em guerrilheiro é a organização. Por isso, o ponto seguinte trata do “desligamento”, pois ao entrar, deve estar ciente que a saída não será tão simples:
1. O militante só pode se desligar da O. após concordância de seus companheiros de tarefa (no caso, do GTE e do Comando de Unidade). Deve comunicar a todos os seus companheiros de tarefas as razões de seu desligamento. 2. No caso do militante que cometer falta grave: abandono de companheiros em ações, desvio de material; desaparecimento;
8 Idem. 9 Idem.
haverá julgamento, cabendo expulsão ou justiçamento, conforme o caso. O Comando da Unidade solicitará ao CN o Tribunal Revolucionário para julgar o infrator. O julgamento será, se possível, [com] a presença do réu. Em caso de emergência (traição), o Comando da Unidade assumirá a responsabilidade de punição10 .
Os casos mais marcantes em que essas regras deixaram de ser aplicadas implicariam na morte dos companheiros no Massacre de Recife. Onofre Pinto, sob todas as evidências, julgaria Anselmo inocente diante das denúncias feitas por Inês Etienne. Em todo caso, o fantasma do justiçamento pairava sobre todos, embora não tenha sido exercido contra militantes. Finalmente, o documento apresenta um quinto ponto,
V. Segurança e Disciplina Somos uma O. que declarou guerra ao Governo e aos Imperialistas. Dentre nós temos organismos de repressão de todo mundo: CIA, INTERPOL, FBI e internos: DOPS, CENIMAR, 2ª Seção do Exército, uma quantidade enorme de informantes, alcaguetes. Lutam por sua sobrevivência. [eles] tem dinheiro, armas, treinamento e muito pessoal. Nós, temos a nosso favor somente a justeza de nossa luta, nossa coragem, e nossa capacidade de aprender.11
Segue então uma reclamação: a “grande maioria de nossas quedas foi causada por liberalismo, indisciplina, falta de seriedade e responsabilidade, estrutura aberta”. Dentro do que aprenderam, destaca: todos os pequenos erros têm “consequências graves, [levam a] queda, e ao atraso da revo lução”. Segue então uma lista de medidas:
1. Mesmo entre militantes que se conhecem, só usar nome de guerra. 2. Não ter endereços de outros companheiros, amigos ou simpatizantes 3. Não anotar pontos, a não ser em código, se não se conseguir decorar. 4. Só ter material político em casa em esconderijo. Não adianta ter arquivos, a não ser por tarefa. Os companheiros legais não devem manter armas abertamente em casa.
10 Idem. 11 Idem.
5. Variar constantemente os pontos. Não ter preguiça de procurar novos lugares. Fazer pontos fora do local de moradia, só encontrar três companheiros no caso de muita necessidade. 6. Evitar circular à noite, só sair após 22 horas em caso de absoluta necessidade. 7. Só circular armado para tarefas que o exijam. Os companheiros clandestinos devem [levar] pílulas. 8. Nos pontos a pontualidade é indispensável. Os faltosos ou impontuais devem ser [punidos]. Observar o ponto, cinco minutos antes. Não entrar se o companheiro [estiver acompanhado] feito o ponto, abandonar o local. 9. O militante que for seguido poderá ocasionar inúmeras quedas. Observar sempre com maturidade. 10. Não marcar nada por telefone. 11. O militante só deve saber o que diz respeito a sua tarefa. 12. Não deve conhecer a casa de outros militantes.12
O décimo terceiro versa sobre prisão, sobre como devem se comportar quando presos, “não aceitar chantagem do tipo... fulano já falou”13. Ao final, há a indicação de que “Essas normas são provisórias, mas obrigatórias”. Os militantes poderiam enviar sugestões ao Comando de Unidade. Repare-se que essas normas estão datas como sendo de março de 1970. Ou seja, são fruto do amadurecimento da “nova VPR”. Indicam que há erros sendo cometidos quanto à segurança: tratamentos pessoais, trocas de endereços, etc. Talvez a pior falha da segurança ocorra quando os companheiros são presos, faltam aos pontos e os que deveriam perceber que isso ocorreu insistem em ir atrás, voltar para acabar com a angústia de saber o que ocorreu, não percebendo que os códigos falharam e que precisam escapar. Ou seja, a solidariedade falava mais alto e isso alimentava o espiral de novas prisões. Essas regras eram uma tácita ameaça na mente dos militantes, que não podiam esquecer do terror a que estavam submetidos. A repressão cada vez mais conhecia seus métodos. Muitas vezes era impossível manter essas regras. Os militantes anotavam o que precisavam fazer, e algumas
12 Idem. 13 Há um Sexto item sobre a vida interna da organização, ilegível.
vezes não tinham como “comer os papéis”14. Abaixo, um exemplo de marcação de ponto e uma página de um caderno de anotações.
Exemplo de dados para realização de um “ponto”. Documento apreendido pelo DOPS. Brasil Nunca Mais, 42.2, p, 412.
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Estava constituído o renascimento da VPR, liderado por Lamarca, buscava “seguir à risca a teoria jamilista: criar um grupo de combatentes, pequeno, mas coeso”. Ressalte-se que a VPR atraiu alguns ex-militantes da Colina, incluindo-se Juarez de Brito e Lia, e também Herbert Daniel. Se iniciariam então os treinamentos de quadros, não em Cuba, mas no Brasil, o que inicia a ocorrer no Vale da Ribeira. Mais tarde, esse lugar seria descoberto pela repressão e acabaria em uma das maiores operações militares da repressão. E por outro lado, deixaria marcas indeléveis no grupo, com mortes, torturas e delações. Antes disso, vamos nos deter na forma como os militantes eram tratados pela repressão, nas prisões.
14 Como fez PAIVA, op cit. 1986.
Capítulo VIII
O TERRORISMO DE ESTADO SE IMPÕE: prisões, torturas e seu imenso impacto
A estupidez é o preço da eterna vigilância prontos para intervirem Na natureza das coisas / e na dignidade dos homens, Os soldados atentos / armados de fuzis / e radinhos de pilha Vigiam marcialmente / o entardecer. (Do lado de dentro, os prisioneiros Lêem ou escrevem suas cartas)1
Os militantes, até certo ponto, menosprezaram o poder e alcance das forças repressivas brasileiras e do Terrorismo de Estado 2. Acreditavam que conseguiriam se salvar, ou que eram “obrigados” a dar suas vidas pela luta. Sair disso era muito difícil e arriscado. Por outro lado, as prisões passaram a acontecer em cascata. Uma levava a outra. Era sabido que presos, poderiam falar, e para isso existiam as regras de segurança, que nem sempre eram obedecidas, ou não davam conta das dificuldades enfrentadas. Os primeiros depoimentos costumavam cair nas mãos do pior repressor e torturador, seja do DOPS, seja da OBAN. É o momento em que informações mais quentes poderiam ser tomadas. Posteriormente, buscavam “regularizar as informações”, em depoimentos nos inquéritos do Superior Tribunal Militar (respaldados pela Doutrina de Segurança Nacional).3 Os presos tinham distintas estratégias no STM para tentar diminuir suas penas. Muitas vezes esses depoimentos na Justiça Militar serviam para legitimar o que havia sido feito na fase da prisão policial e nas ações da OBAN, DOI-CODIS, Dops, etc:
1 Alex Polari de Alverga. Inventário, p. 40. 2 Para entender melhor esse conceito, ver PADRÓS, Enrique. Terrorismo de Estado: reflexões a partir das experiências das Ditaduras de Segurança Nacional. In: GALLO, C. A e RUBERT, S. (orgs). Entre a memória e o esquecimento: estudos sobre os 50 anos do Golpe civil-militar. Porto Alegre, Deriva, 2014. 3 Para entender esse fluxo, ver JOFFILY, 2008.