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Não se fala, mas se pensa sobre a tortura
Onofre Pinto ficaria preso até ser libertado no sequestro do embaixador dos Estados Unidos, em setembro de 1969. Acabaria fazendo curso de guerrilha em Cuba, e em 1971 se estabelecendo no Chile. Em 1974 foi vítima de uma emboscada na Argentina, tema ao qual voltaremos.
Não se fala, mas se pensa sobre a tortura
Sinto que ainda amo alguma coisa Uma propriedade esquisita qualquer Perturba acreditar Alguma coisa justifique resistir. Amanhã no interrogatório Não sei como estará o ânimo Mas talvez me mostrem Um retrato dela.17
A questão da tortura era um tema tabu entre todos. A jornalista Judite Patarra informa, a partir da lembrança de Iara, que “na madrugada de 31 de agosto, sábado, uma batida policial seguida de perseguição e tiroteio prendeu Ladislau, Wilson e um jornalista. Carregavam armas. O dono do automóvel de chapa fria, Eduardo Leite, a partir daquele momento tornava-se suspeito”. Iara reencontraria Ladislau, “sofrido. Convalescia das pancadas que lhe quebraram algumas costelas. Não tinha aberto nada”. Além disso, informa que no momento da prisão as armas não foram declaradas pela polícia, elas “sumiram, simplesmente não as declararam”. E completa, narrando sua primeira prisão, em 1968:
É a impunidade. Nem se preocupam que os vejam. Parece o delegado que batia no estudante dizendo: não são tapas oficiais, não mando bater em ninguém. A fim de apressar a soltura e impedir novos maustratos, Onofre acertou um suborno de 250 mil cruzeiros através do advogado.18
17 Alex Alverga. Inventário de Cicatrizes, p. 12. 18 Jamil e Iara citados em: PATARRA, p. 249. Essa questão é desenvolvida no estudo de Fernando Molica, que mostra o papel de Antonio Expedito Perera, advogado da VPR que intermediava esse tipo de ação, “alguém capaz de passar uma grana para o policial e, assim, resolver tudo”. MOLICA, Fernando. O homem que morreu três vezes. Uma reportagem sobre o “chacal brasileiro”. RJ, SP, Record, 2003, p. 94.
Na tortura, o medo era tal que os repressores conseguiam muitas informações. A maioria dos militantes escolhia coisas aleatórias para dizer e escapar de mais tortura. Buscavam falar aquilo que já não tinha dados que pudessem entregar aos demais. Patarra traz um diálogo entre Iara e Jamil:
Iara: Morro de medo da tortura (...) Jamil: Todo mundo tem medo, não existe imunidade. E tortura funciona. Sem essa de pequeno burguês cantar e operário resistir. As atitudes variam, independem da origem de classe. Preservava-os no entanto de perguntas específicas, uma violação. Aventar o assunto era mau gosto, derrotismo. Cada um de nós, despreparado para a violência demente, se convence de que nada acontecerá consigo. Imitar o vietcong, submeter-se a aplicações progressivas de choque até altas descargas, seria o ideal. Mas não fez a proposta. A Organização determinou que o militante ganharia tempo, se preso, indicando pontos falsos. Poderia abrir o aparelho em 24 horas se o suplício fosse insuportável. Antes disso, no teto acertado, os moradores abandonavam a morada. Ao contrário de outros grupos que permitiam nomear simpatizantes e fatos secundários, a ordem era silêncio, os líderes carregavam uma cápsula de veneno.19 Não tem erro.20
Os registros dos depoimentos mostram que isso nem sempre acontecia, ao contrário, muitas vezes contavam tudo o que sabiam como forma de desesperadamente se livrarem. Foi o que ocorreu na série de quedas de 1969. Ademais, às vezes os demais não usavam as regras de segurança básicas e acabavam sendo presos por isso. Mesmo com pontos furados, eles insistiam, como se não acreditassem no que estavam pressentindo: Dulce Maia foi dormir na casa dos pais, Ibrahim entrou no apartamento mesmo o código de alerta da luz estando ligado, Espinosa foi a Osasco mesmo vendo o “enorme rombo que esvaia a organização”. Tornaram-se vítimas fáceis, levando em vários casos a prisões dos próprios familiares, que nada tinham a ver com a militância.21
19 Dowbor diz que “o médico que forneceu meu cianureto decidiu ser humanitário. Eu digo hoje, vivo, que a morte seria preferível a viver o que vivi”. PATARRA, P. 243. Também há um relato do dentista que fez a cirurgia de Lamarca para torná-lo irreconhecível recusou-se a deixar um espaço no dente para guardar uma cápsula de cianureto (PATARRA, p. 324). 20 PATARRA, p. 243. 21 PATARRA, p. 280.
Patarra mostra que eles “ridicularizaram o discurso, a subserviência dos parlamentares e o humilhado otimismo da mulher de Costa e Silva”. Nas palavras de Maria do Carmo Brito, eles não haviam se dado conta, quando Médici assumiu, das mudanças em curso: “escapou-nos a declaração de guerra. Não entendemos que sancionava a tortura até a morte. Rimos, apesar da tensão e paranoia”. 22 Ela completa em sua lembrança:
Reiteradamente conversamos, no exílio, sobre as razões que levam a calar. Meu cunhado não falou porque se perguntava como a mãe, militante, reagiria. Meu segundo marido, Angelo Pezzutti, seguravase ‘o que dirá minha mulher’? Eu pensava: ‘Meu Deus, alguém ficará nesta situação’. [Mario] Japa disse... ‘falar? O que é isso’? (Idem)
Sua fala indica que havia motivações pessoais que ajudavam, como uma justificativa para si próprio, para uma opção que era também política. Os limites de cada um variavam, e o “não falar de jeito nenhum” de Japa era tão legítimo como todos os outros. No livro de memórias de Maria do Carmo Brito ela esboçou uma espécie de receituário para enfrentar a tortura.
1. Quanto maior o número de horas aguentar, mais tempo os companheiros terão para saber que você foi presa e assim não irão aos pontos de encontro. 2. Não falar. Se você não fala, não cai ninguém, então ninguém fala de você. Você vai sofrer um pouquinho, mas depois aguenta. 3. Soro da verdade: estabelecer um ponto de dor na hora em que é injetado o pentotal e simular que desmaiou, bem rápido, para assim evitar que continuem. 4. Aproveitar todas as situações para o suicídio. 5. Bater com a cabeça na parede para desmaiar.23
Alternadamente ela narra as tentativas que fez de aplicar essas regras, inclusive tentando suicídio. Ela narra a triste experiência de Monteiro, homem de confiança de Lamarca. Conta que ele tivera uma infância difícil, vivendo em orfanatos.
22 Idem, p. 336. 23 Lia in: VIANNA, 75-78.