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Depoimentos de Maria do Carmo Brito e Jamil
Boca fechada, Monteiro resistia a todas as torturas, até que a polícia, ao descobrir quem ele era, aplicou a palmatória. E Monteiro começou a falar. Para ele, o horror maior, seu limite, era a palmatória, que lembrava a infância no orfanato. Quando Maria do Carmo foi levada para acareação, encontrou Monteiro histérico, dizendo que ela tinha sido presa e Juarez tinha morrido por culpa de Lamarca. Quando alguém fala assim de seu chefe, é porque está desmoralizado.24
Monteiro falaria muito, contaria detalhes, sendo produzidos longos relatórios a partir de sua fala. Mas ele não estava sozinho nisso, pois a própria Maria do Carmo tem más lembranças de como agiu na prisão.
Depoimentos de Maria do Carmo Brito e Jamil
Como vemos, em dezembro de 1969 se iniciou uma série de prisões que seguiriam até 1970, e os depoimentos também vão sendo tomados ao longo do período, depois de muita tortura. Não são absolutamente confiáveis as datas e já vimos que a imprensa segurava notícias de acordo com os interesses do próprio governo. Não só ocultava nomes, usando a justificativa da própria polícia, “para não atrapalhar investigações”25, como trazia informações erradas mesmo. Jamil foi vítima de uma ação da Operação Bandeirantes. Aparentemente desde sua chegada na prisão foi sistemática a tortura, sendo chamado para constantes depoimentos. A documentação registra depoimentos dia 3/maio/1970 das 9h às 12h; 4/maio 1970, das 9h às 12h; 5 de maio, das 8h30 às 10h30 e das 14h20 às 15h; 6 de maio, das 15 às 15h30. Não havia descanso corporal nem mental. Ressalte-se, esses são os depoimentos registrados, afora tudo o que se passava sem registro. Em cada um deles se coloca que ele “confirma as suas declarações anteriores”. Alguns detalhes de seus depoimentos chamam atenção, suas expressões evasivas: “que a respeito da guerrilha rural, ouviu falar que estava sendo feita uma montagem de infraestrutura no Rio Grande do Sul; não conhece a região”; reconhece pessoas que não estão mais no Brasil, diz que alguns tem vínculo “apenas afetivo”, ou que as pessoas que lhe deram pouso
24 Idem, p. 85. 25 Correio da Manhã, 26/1/1969.
“nada sabiam das atividades subversivas terroristas”.26 Ele dá ainda informações sobre supostos pontos que teria que cumprir com José Raimundo da Costa. No depoimento para Patarra, ele definiu: “eu não tenho a atitude dogmática em relação à resistência a tortura. Alguns dizem que as pessoas falam ou não dependendo da origem de classe. Na verdade, as atitudes são muito variadas”. Ele enfatiza que uma mesma pessoa pode variar o seu comportamento, de “bom” a “ruim”, pois vai para tortura várias vezes27. Ele mesmo reconhece ter aberto várias informações menos importantes, mas como vemos, também essa avaliação é variável, porque nunca se sabe o que está sendo feito lá fora. Maria do Carmo foi uma das mulheres que participou da coordenação nacional da VPR. Foi casada com três homens ligados à VPR. O primeiro deles, Juarez de Brito, seu primeiro marido, iniciara a militar com ela no COLINA. Foi morto (suicídio) em um confronto com a polícia, quando caiu em uma emboscada. Depois, no seu período no Chile casou-se com Angelo Pezzutti28. Por fim, casou-se com Mario Japa. Ou seja, de uma forma ou de outra, seus relacionamentos amorosos estiveram vinculados a pessoas que se dedicavam à luta, e à VPR. Sua participação sempre esteve permeada pelas contradições essenciais da luta: a vida pessoal se misturando com a vida de militância. Em depoimento escrito que prestou para a biografia de Iara Iavelberg, disse:
Quanto a mim, passei meu último ano de luta armada, meados de 1969 a abril de 1970, absolutamente convicta de nossa derrota. Mas não deixaríamos implantar-se a ditadura sem dor, sangue, um mínimo de protesto. Mesmo que a denúncia não viesse a público. Mesmo que nos transformássemos em Tiradentes. Algo de martírio e solidariedade, não se abandona o barco nem se traem os mais íntimos, o marido, o companheiro de Iara, o padrinho de casamento, a amiga, um destino comum.
26 Depoimento de Ladislas Dowbor, reunidos no “Pedidos para atualização de dados”, 8522/ASP/81. 20/5/1970. 27 Entrevista de Ladislas Dowbor para Judite Patarra, p. 2-3. 28 Seria um dos militantes trocados pelo embaixador alemão. Acabou morrendo no exílio, na França, em 1975. http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pessoa.php?id=241&m=3 Sua militância, assim como a relação com Lia, aparece no livro de sua mãe, Carmela (PAIVA, 1996)
Sobre a tortura, ela esclarece os medos:
Não enunciávamos o assunto – seria como se católicos questionassem o Cristo na hóstia. Tabu. E havia os justiçamentos. A VPR não fez nenhum, mas eu os temia. Os ex-sargentos eram outro universo.29
A militância como religião incluía a fidelidade como princípio. A culpa acompanharia um eventual vacilo. Pior que isso, o medo das consequências era forte para quem tinha consciência do risco de um justiçamento. Os depoimentos de Maria e Ladislau estão inseridos em um conjunto impressionante de documentos, oriundos de depoimentos de membros da VPR. Todos eles foram questionados sobre “A Grande ação”, ou seja, o cofre de Ademar. O documento introdutório, indica que foram tomados os seguintes depoimentos: Joaquim dos Santos, Ladislas Dowbor, Maria do Carmo Brito, Geraldo Coen, Narai Madalena Pereira, Henri Phillippen Reisshstul, Liana Pinto Chaves, Ruy Chiaradia, Everaldo Cesar Monsão, Maria Dora Genis Groistein, Dora Sverner, Sandra Maria Nascimento Furtado, Eros Roberto Grau, Lafayete de Paula Figueira, Luiz Roberto Salinas Fortes. O assunto do documento é “Atividades de Operação Bandeirantes, 30 com difusão para o CIE e outros órgãos.
A Vanguarda Popular Revolucionária tem como líder no âmbito nacional o conhecido terrorista CARLOS LAMARCA, elemento radicado no Rio de Janeiro e São Paulo, mas na clandestinidade, e que há mais de um ano, vem implantando o terror mediante o emprego de assaltos e assassinatos. Aliado com outros membros da organização, conseguiu submeter-se a uma operação plástica no Rio de Janeiro, a fim de dificultar sua identificação e continuar na impunidade. O líder da organização no Estado da Guanabara era o terrorista JOSÉ RONALDO TAVARES DE LIMA E SILVA, auxiliado por JUAREZ GUIMARÃES DE BRITO, falecido, MARIA DO CARMO BRITO, ALMIR DE TON e YEDA DOS REIS CHAVES, além de JOAQUIM PIRES CERVEIRA, elemento cassado pela Revolução de 1964 e que inconformado trilhou todos terroristas.31
29 Maria do Carmo Brito, in: PATARRA, p. 340. 30 Info 324-OB, da 2ª DI – F 03078/70 31 Relatório parcial 10/70, do inquérito dops.
O relato completa que as informações nele constantes se situam apenas no período de 30 dias, ou seja, o período em que um dado grupo ficou com a tarefa de monitorá-los. Em tese, isso se deve para abertura de inquéritos, mas serve evidentemente para novas buscas e novos depoimentos forçados. No relatório são assinalados os nomes que não foram encontrados, o que nos dá uma dimensão do efeito bola de neve das prisões, pois os demais vão sendo sistematicamente procurados. O nome de Maria do Carmo Brito está assinalado como “importante”. Maria passou também pelo martírio da tortura. Suas lembranças são desoladoras. Na documentação constam os depoimentos, evidentemente que sem menção à forma com que foram obtidos e as condições nas quais se encontrava. Seu marido, Juarez de Brito havia cometido suicídio em ação dia 19/4/1970. No dia 4/5/1970, ela prestou depoimento, “de próprio punho”, de acordo com o documento de n. 3073. São mais de oito páginas datilografadas em espaçamento simples. Ela narra os primórdios de sua atuação política, ainda pré-golpe:
A partir da renúncia do presidente, houve inúmeras prisões em Belo Horizonte e comecei a sentir necessidade de participar de forma mais orgânica. Tinha participado ainda de uma tentativa de organizar os camponeses de Tres Marias (MG) e comparecido a assembleias de grevistas de Nova Lins, minha participação era absolutamente contemplativa.
A proposição de formação dos camponeses e o papel da educação estava presente, além do incentivo à organização dos trabalhadores e das greves. Posteriormente, a convite de Ivan Otero Ribeiro, “ingressei no PCB”, numa célula cuja tarefa “consistia única e exclusivamente em participar de eleições na faculdade e ouvir cursos de marxismo”. Em 1962 tornou-se noiva de Juarez Guimarães de Brito, que era da POLOP, e ela abandonou o PCB, tornando-se “independente”. Em 1967 ela e Juarez rompem com a Polop.
A razão desse rompimento era a seguinte: a POLOP tinha, ao nosso ver, uma visão distorcida da realidade brasileira via o Brasil como se fosse a Europa. Isto é, considerava nossa classe operária como aquela classe que tinha condições de deflagrar a revolução. Esse erro tinha duas causas básicas: a) interpretar mecanicamente a expressão de
Marx de que criando a classe operária, o sistema capitalista tinha criado os seus coveiros esquecendo-se de que somente quando a imensa maioria da população deseja a mudança, ela é possível. B) por outro lado, ignorar nosso processo histórico de formação, isto é, que o desenvolvimento brasileiro não se fez incorporando as massas ao trabalho, mas excluindo-as dele, isto é, permitindo o prosseguimento de uma enorme quantidade de pessoas que não tem acesso ao trabalho, isto principalmente no interior, mas também em torno das grandes cidades.32
Esses dados, em um depoimento, são parte de uma estratégia de falar muito sobre questões que “já são sabidas” (ela é militante de esquerda), mas que não aportam nenhuma informação nova aos repressores. Ela relata ainda que nessa época estava lendo Debray, assim como vários militantes. Embora não concordasse em tudo o que ele dizia, considerava que ele “abriu novas perspectivas”. Situa então em final de 1967 a fusão das cisões, com a criação do Colina, Comando de Libertação Nacional:
Os mineiros tinham rachado com a Polop pelo seu “adentrismo operário”. Nós, da Guanabara, além desse motivo, porque a Polop falava em fazer Guerrilha, mas nunca se dispunha a isto.33
Ela passa a descrever em detalhes as ações de expropriação que o grupo realizou. Nas suas memórias ela ressalta muito que era tratada como alguém que portava o segredo do dinheiro do cofre de Ademar, e é evidente que isso pesava sobre a sanha da repressão sobre ela. Muitas outras informações constam no seu depoimento e é chocante quando Carmo relata nas suas memórias que foi obrigada a participar da tortura do companheiro Jamil, fato que certamente guarda de forma triste em suas lembranças:
Foi das situações mais terríveis que vivi: me obrigavam a dar choque nele e ele em mim. Não tinha como escapar: eles davam porrada, me obrigavam a pegar na máquina de dar choque, era automático.
32 Idem. 33 Idem.
Quando chegou a vez do Jamil, ele se recusou. Levou tanta porrada, que desmaiou, era o que eu devia ter feito.34
Evidentemente que tudo isso é parte da prática do Terrorismo de Estado, explorando as fragilidades humanas. Ao historiador, não se trata de julgar, mas do ponto de vista da organização fica essa questão: a centralização de tantas informações em uma única pessoa certamente não é condizente com uma situação de eminência de fragilidade diante da possibilidade real de tortura. Portanto, é fundamental para entender o que aconteceu com a VPR entender a forma como a repressão agia, e como o grupo tinha poucas estratégias de reação com relação a isso. Ela foi se aprimorando ao longo do tempo e tinha um funcionamento que permitia ir localizando os militantes e aos poucos, ir eliminando-os. Ao fim desses depoimentos, o quadro que a repressão pintava era assustador:
A formação ideológica é bastante firme, sem exceção, acreditam que o processo revolucionário não poderá mais ser contido, que dentro de cinco anos no máximo já existirão no país focos de guerrilhas bem caracterizados e que inicialmente, não contarão com o pessoal do campo, mas que este irá aderindo rapidamente a partir do momento em que testemunhar o avanço e as vitórias do movimento revolucionário.35
É de duvidar que os agentes acreditassem nisso. Afinal, eles, melhor de que ninguém, estavam percebendo as fragilidades das organizações e os limites de suas possibilidades de expansão. Mas reproduzir riscos para os demais setores da Comunidade de Informações era importante para justificar seu trabalho e angariar mais investimentos para os setores de repressão.
34 CARMO In VIANNA, 2003, p. 93. 35 Curitiba, 23/12/1969. Continuação da Informação 238/69.