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O setor médico da VPR
mesmo como meio de “apagar arquivo” para impedir que os dados fossem para a repressão. A referência a Lamarca indica o envio de carta, é possível que o tema tenha sido mais discutido, mas não temos essa informação.
O setor médico da VPR
Uma astúcia da VPR que incomodou profundamente a repressão foi o fato de ter conseguido criar um “setor médico”, com uma estrutura ambulatorial que previa ser capaz de atender militantes feridos ou que tivessem necessidades de intervenção médica. Embora saibamos que havia manuais dando indicações de primeiros socorros, e mesmo de medicamentos, eles aparentam ser uma preparação para a possível guerrilha rural. Por exemplo, localizamos um manual com dados sobre “queixas próprias das mulheres ou queixas genitais femininas”15, tais como “Atraso ou falta de menstruação ou “incômodo”; hemorragia; corrimento. Algumas orientações são trazidas, destacando-se: “nunca provoque aborto sozinha. Se precisar abortar, deve fazer curetagem com médico (instrumentos esterilizados)”. E por ai vai, são várias indicações para adultos que vivem sem acesso a médicos, mas que preveem, em alguns casos, intervenções profissionais. Neste mesmo material se ensina a lidar com picadas de cobras e vários outros problemas que igualmente podem requerer intervenções médicas. O “esquema médico” era bem mais complexo, e organizado em São Paulo, envolvendo o aluguel de uma casa, a presença de pessoas que mantinham a fachada de uma casa normal, a aquisição e manutenção de aparatos médicos mínimos. Isso geraria a ira da repressão pois, se os feridos procurassem um hospital normal, seriam encontrados com facilidade. Faz parte da crueldade do terrorismo de Estado não ter preocupação humanitária com o atendimento aos feridos. Há um longo processo jurídico, fruto de uma outra sequência de prisões, que se relaciona ao esquema médico. Lembremos que os médicos envolvidos embora pactuassem com a causa, não tinham necessariamente treinamento de segurança, e por isso eram pontos frágeis da organização. O processo contra RHB, médico do hospital das Clínicas, mostra um pouco desse sistema de bola de neve. São vários médicos citados no processo, e os nomes de contato com a VPR são os de Fernando Ruivo e
15 Manual de primeiros socorros, s/referências. BNMD 42.
Chael Charles Schreier16, estudantes de medicina e ativos da VPR. Ele era contato de Onofre Pinto, a quem acompanhava no tratamento de sua “hepatite crônica”. Também ficou muito próximo a José Raimundo Costa, o Moisés e de Roberto Gordo. Foi José Araújo da Nóbrega, entretanto, quem contatou o médico para atender “elementos pertencentes à organização política, os quais não pudessem ser atendidos em hospitais particulares, dadas as suas atividades no campo político, tendo o interrogado concordado em prestar tal colaboração”17, indicando como este o período em que começou a ouvir falar da VPR. Este médico conheceu boa parte dos militantes “militares”, mas passou a sentir-se incômodo depois que Onofre foi preso, porque o contato era feito com nomes que tanto ele como sua mulher (também médica e envolvida no esquema) não tinham tanta confiança. O médico relata que chegou a ser levado a um assalto à clínica onde trabalhava para fins de apreender “materiais cirúrgicos, oxigênio e outros apetrechos”18 que iriam ser usados no esquema médico. Queriam que ele ajudasse a escolher o que era necessário. Ele diz que rompe com o grupo a partir de então, mas segue atuando, dando assistência médica no “hospital da VPR”, em uma casa na Vila Fachine, em São Paulo. Chegou a atender um tiroteio, no qual Roberto Gordo fora baleado na perna. Essa casa recebia a fachada de Tercina Dias de Oliveira e suas crianças19, sendo que “os quatro se encontram na Argélia”, pois foram banidos no sequestro do embaixador alemão.
Relata outros atendimentos e esclarece que ajudava a manter o esquema financeiramente, pagando o aluguel, e ajudando Tercina. Prestou atendimentos a membros do MRT, e acabava tendo informações sobre os acontecimentos das organizações, inclusive o “documento dos doze presos políticos”, em que a tortura foi denunciada quando chegaram à Argélia.
16 Como registrou Pedro Lobo, Chael seria assassinado aos 23 anos, “se transformará no primeiro caso comprovado de morte sob tortura durante o regime militar. E a selvageria dos carrascos que agem nos porões da ditadura vai para a capa da Veja de 10 de dezembro”. (Laque, 2010, p. 318) A revista fecharia o ano de 1969 com matérias de capa que buscavam denunciar as torturas que se tornavam explícitas. 17 Depoimento de Rubens Berger, p.3. 2/7/1970. 18 Idem, p. 5. 19 Seus três netos, Ernesto, Zuleide e Luis Carlos. São casos de crimes do Terrorismo de Estado Brasileiro, pois as crianças foram consideradas criminosas, o que acarretou sérias consequências para suas vidas. Ver o trabalho da CEV-SP no livro Infâncias Roubadas, 2014.