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Inteligência revolucionária

das Unidades de Comando segue. Além disso, noticia que “iniciou-se o treinamento, com uma equipe pioneira já trabalhando e militantes estão sendo transferidos para área”. Evidentemente que essas palavras, sem detalhamentos, trariam imenso otimismo para aqueles que estavam ansiosos no aguardo de começar as ações rurais. Trata-se da criação da área de treinamento no Vale da Ribeira, sobre a qual trataremos a seguir. Ao aprofundar o setor de propaganda, havia uma necessidade de aprimorar também o setor de comunicação interna, qualificado como “setor de inteligência”.

Inteligência revolucionária

O caminho que os documentos trilhavam não era óbvio, e há muitas dúvidas sobre alguns deles: quem os produzia? Quando exatamente? Outro problema é que os documentos podiam ser apreendidos muito depois de terem sido produzidos. Os distintos setores da repressão lidavam com eles de formas diferentes, podendo às vezes reproduzir os originais ou em partes. As datas dos envios dos informes para outros setores também variavam. Portanto, esses elementos são sempre aproximados. Não era incomum um documento falando sobre um militante quando o mesmo já havia sido assassinado em outro setor. O Ministério da Aeronáutica produzia vários informes, e os difundia para vários setores, incluindo DEOPS, Polícia Federal, Polícias e todas as divisões que participavam dessas redes de informação. O fluxo das informações precisa ser observado caso a caso, mas é praticamente impossível localizar a plena difusão e origem de um documento: como foi conseguido e para quais setores foi enviado é tarefa árdua. No caso a seguir, temos um raro caso em que há vários dados sobre o documento. A Informação n.318/QG-4, de 17/7/1970 diz que

Este serviço tomou conhecimento e remete em anexo, a publicação VPR, ‘POR UMA INTELIGÊNCIA REVOLUCIONÁRIA’, datada de fevereiro de 1970, apreendida no “aparelho” onde residia JUAREZ GUIMARÃES DE BRITO, do CN/VPR, no qual são baixados os EEI necessários à Organização.33

33 Informação n.318/QG-4, de 17/7/1970, Ministério da Aeronáutica, Divisão de Segurança, Confidencial.

O documento e as cópias têm um carimbo e assinatura que visam conferir autenticidade. Mas não há como termos certeza de que seja o original ou se algum escrivão o datilografou, embora a fonte da máquina de escrever não pareça ser a mesma (poderia ter sido datilografado no setor que lhe repassou a informação). Ou seja, essas observações são apenas alertas sobre as dificuldades heurísticas que temos em cada documento. Portanto, tomaremos esse documento como verdadeiro produto da VPR. Ele é bastante interessante para observarmos uma amplitude de questões que implicavam amplos objetivos de observação do meio para planejar ações.

POR UMA INTELIGÊNCIA REVOLUCIONÁRIA Objetivo – centralizar e dirigir a obtenção de informes (dados comprovados visando transformá-los em informações ou informes avaliados e interpretados até que consiga a quantidade de conhecimentos comprovadamente reais, que nos sejam necessários para a tomada de decisão), que embarga a nossa atuação revolucionária.34

Esse material se divide em: informes periódicos; imprensa; informações sobre a repressão; informações sobre personalidades; ações financeiras; outros objetivos; documentação pessoal. Há uma observação relevante:

Embora todos os informes devam ser o mais detalhados possível, é ao Setor de Inteligência que vai caber a tarefa de, a partir de uma série de informes parciais, constituir informações úteis ao trabalho revolucionário. Nenhuma informação é prematura, como poderia parecer. Amanhã será talvez mais difícil conseguir informações. O momento de consegui-las é agora.35

Evidentemente, tal serviço acarretaria custos e pessoas que pudessem minimante se fixar em algum local que não apenas tivesse acesso às informações (ou seja, uma grande cidade), como tivesse condições de trabalho, pois se explicava que: “grande parte dos dados e informações que necessitamos pode ser recolhida diariamente, nos jornais e revistas,

34 Idem, anexo. 35 Idem, p. 3

nas publicações especializadas, nos livros, na imprensa falada, etc”. O documento fala mesmo de um “serviço de inteligência”, ao qual caberia

[…] recolher esses dados, arquivá-los, e assim colocá-los em condições para, uma vez solicitadas informações sobre um caso, oferecê-las completas (da corrupção de figuras célebres, visando campanha de propaganda) ou instalações militares a que pudermos encontrar qual e tal tipo de armas, etc), serviço de inteligência [deve] dar como cumprida sua missão quando atingir o nível que possa fornecer qualquer informação quando for necessário.

Imagine-se esse sistema quando se trata de militantes que a todo momento trocam de local, saem de surpresa, abandonam os aparelhos mesmo sem ter certeza de que estejam queimados, deixando tudo para trás. É algo difícil de visualizar, e que indica uma projeção de um grupo clandestino muito bem embrenhado no seio social, podendo atuar como um verdadeiro departamento partidário. Além disso, várias pessoas estariam envolvidas:

No campo já resumido de informantes e colaboradores, o serviço de inteligência deverá contar com uma turma de processamento dos informes recebidos, que coordenará os trabalhos e recolhimento de dados e levantamentos efetuados por aliados e militantes, colocando-se em condições de avaliá-los, interpretá-los e fornecer, finalmente, uma informação segura.

Os relatos reais dos militantes mostram uma realidade muito aquém das demandas que este documento apresentava. E se ele fosse aplicável, ainda assim apontava para “regras básicas de segurança”, o que é contraditório com algo que seria um “alvo preferido da repressão”:

É importante lembrar ainda de que um serviço de inteligência é um dos alvos preferidos da repressão, o que norteia a necessidade de atuarmos obedecendo estritamente as regras básicas de segurança, evitando contatos demasiados, impedindo que aliados e informantes sejam conhecidos por mais de um militante, não transferindo as pessoas de setor para setor. Além disso temos de levar em conta que

mais vale montar paulatinamente esse serviço que obter êxitos retumbantes à custa de desbaratamento posterior.36

Por fim, o documento é encerrado com: “Rio de Janeiro, fevereiro de 1970, VPR”, sem assinalar que seja do comando, e sem o lema da VPR que costumava acompanhar as assinaturas. Há um dado muito interessante ao longo do documento, que é a visualização da importância do estudo das classes dominantes, tanto governo, clero, empresários. Ou seja, permitiria um acompanhamento sistemático da realidade para propor ações. Por exemplo, o item “a”, sobre o “comportamento das classes dominantes”, indica uma quantidade de questões a acompanhar:

1. Governo (administração estadual, municipal e federal; judiciário, legislativo) - Unidade e desagregações: motivos? - Surgimento de facções: grau de antagonismo, viabilidade? Em torno de que? Quem? - Desenvolvimento dos planos econômicos e sociais, de governo. - Tática de ação de combate à Guerra Revolucionária no campo econômico, político, social. - Como são encarados os movimentos da vanguarda revolucionária? - Como os governos distinguem os diversos grupos de vanguarda revolucionária? - Quais os grupos que consideram mais perigosos? Por que?37

Os temas apontados são de difícil acesso, e supõe-se uma confiança nos instrumentos informativos da mídia para traçar esses quadros, além de observadores que tivessem conhecimentos sociológicos e políticos. De certa forma, afronta aqueles que menosprezavam a ação intelectual dentro da VPR.

Estes documentos mostram uma tentativa de reordenar as ações. Mas eles respondem também a uma injunção externa. A VPR estava sendo notícia na mídia, onde se expunham questões internas de forma desmoralizante, como na capa da revista Veja de 28/10/1970 em que um documento manuscrito de Lamarca aparece como “Segredo do terror”. Obviamente que se trata de infiltração na organização. Isso ajuda a entender também que Lamarca buscasse ter controle da organização,

36 Idem. 37 Idem, p. 1.

expondo a própria organização a riscos para promover essas discussões e fazer os textos circularem.38

38 Lungaretti é incisivo na crítica sobre o “chilique do grande homem”. Relata o episódio que levou à norte de Juarez de Brito, em que o Comando foi convocado porque Lamarca estava “suspeitando que os companheiros nas cidades se aburguesavam e estavam boicotando a tarefa principal”. LUNGARETTI, 2005, p. 141. Naquele momento a organização teria ficado a descoberto, gerando novas quedas e mortes.

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