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Os conflitos com Lamarca
Os conflitos com Lamarca
Em 1/4/1971, Carlos Lamarca escreveu uma carta manuscrita “aos companheiros da VPR no Chile”. Essa carta dá uma dimensão das complicações que estavam em jogo. A carta é assinada como “Cmdo VPR”, mas torna-se algo pessoal, tom reforçado por sua letra perfeita. São muitas ordens, cobranças, decisões, vindas de alguém muito descontente. Há uma grande produção de materiais em um período curto de tempo. Os militantes que permaneciam no exterior teriam que saber interpretar os sinais a eles chegados em Santiago do Chile. O ofício que acompanha a carta, do CISA, de junho de 1971 destaca algumas das decisões e já indica que se trata de um documento “anterior ao seu desligamento da organização”. Ficam dúvidas quanto ao material: apreendido, teria sido entregue? Quem o desviou de seu destino? Quem era o portador e em que condições foi entregue à repressão? Quando? (a data deste ofício está apagada) O CISA ressalta que o documento “designa UBIRATAN DE SOUZA, “Gregório”, como responsável pela VPR no Chile. Segundo Ubiratan de Souza, a carta manuscrita por Lamarca foi apreendida pela repressão em algum cerco que foi feito a ele. Mas, a carta teria sido passada a limpo antes, e desta forma chegou às suas mãos no Chile. Souza afirma que queimou a carta em 1973, quando houve o golpe lá no Chile. Quando mostrei a carta que localizei no Arquivo Nacional para Aluízio Palmar ele ficou incomodado com isso, pois tinha plena lembrança de quando Ubiratan lhe encontrou no Chile informando que agora era o comandante da VPR no Chile, mostrando a carta dobrada no bolso da camisa. Na conversa, Palmar telefonou a Souza, que deu essa explicação, de que a carta que recebera fora “passada a limpo”.1 É muito provável que a mesma tenha passado às mãos da repressão, que tenha a copiado para deixar que seguisse seu destino para não queimar sua fonte e para chegar mais perto do cerco desejado. Também é igualmente possível que se falasse de materiais distintos, pois como veremos, há uma quantidade importante de documentos envolvidos. A escrita lembra uma carta, mas é um relatório, que já na introdução indica: “Este documento não visa saudar os companheiros mas informar e orientar para os trabalhos a serem executados”. O remetente
1 Conversa da autora com Aluízio Palmar, 12/9/2019, em sua residência.
indica que havia problemas de comunicação, e perceba-se que recém havia sido resoluto o sequestro do Embaixador suíço. Indica que houve a tentativa de consultar os companheiros antes do desfecho:
Mandamos um companheiro com instruções logo após a execução da ação, mas teve que regressar em virtude da demora nas negociações – assim, os companheiros ficaram sem orientação. Acreditamos que os companheiros tenham se movimentado de alguma forma e tenham encaminhado algo, que precisamos tomar conhecimento.2
Em mais de um momento refere-se aos riscos da comunicação: “pode haver infiltração”, embora o foco seja o medo que tinha dos demais militantes que estavam no Chile e os riscos do “liberalismo da ideologia burguesa”, o que deveria ser “combatido tenazmente porque é humilhante para um revolucionário professar a ideologia oposta”. Imaginavam o clima em Santiago e isso não devia ser fácil. Havia riscos, nomeia apenas a CIA (não o CIEX ou outro órgão). Era preciso ficar alerta, não vazar informações. E taxava: “numa guerra revolucionária não há satisfação individual”, e por isso: “Recomendamos o máximo de seriedade e discrição e não admitimos excesso qualquer, nada que deponha contra o revolucionário brasileiro”. Politicamente se apresenta a grande questão, a existência da Frente, composta “pela VPR-ALN-MR8-PCBR e MRT que ensaia os primeiros passos. Muitos são os fatores que influem para que enfrentemos muitas dificuldades e não seria, a curto prazo, possível superar anos de sectarismo”3. Buscaria “aperfeiçoar a prática política na esquerda”, denotando uma tentativa de aproximação e superação de erros do passado de “política burguesa”. Nesse sentido, apontava para os riscos de sectarismo: “o sectário é, pois, um reacionário ao movimento revolucionário”. Sem apresentar detalhes dessa frente, ele adverte que não haveria centralismo democrático, e que o próximo passo seria um planejamento integrado entre todos, relatando algumas tentativas de ação integrada já realizadas. Uma delas foram ações de saque, com distribuição de alimentos, como vimos que foi feito durante o sequestro.
2 Aos companheiros da VPR no Chile, Comando da VPR, 1/2/1971. VAZ 93.126, p.2/7. Publicamos, na íntegra esse documento na revista História e Luta de classes, ano 15, ed. 29, março de 2020. 3 Idem.
Ele explica que a Frente pretendia realizar “três sequestros consecutivos (em cadeia), buscando libertar 200 pessoas. Mas, a morte de Toledo e uma mudança de posição do MR-8 levaram a mudanças. Ocorreram problemas de “sectarismo” em função das decisões sobre os nomes que foram tirados como troca no sequestro do embaixador suíço (inclusive pelo MR-8): “decidimos dar mais peso na libertação de companheiros cujas organizações foram extintas”, pois eles estariam sem qualquer tipo de cobertura de uma organização. Além disso, explica que, dando errado os planos, a VPR executara sua parte:
A utilização da autonomia não foi compreendida pelas três organizações que tinham posição contrária. O desfecho da ação também não foi compreendido, não compreenderam que o governo cedendo em libertar 70 conseguiu condições políticas para limitar o instrumento, enquanto para a massa perdíamos a condição de justiçar. Daí acusações de que esvaziamos o instrumento – esta acusação possui dois desvios: o vanguardismo da luta direta [sic] e a negação do materialismo histórico. Se para a esquerda estava justificado o justiçamento, não o estava para a massa.4
Como vimos, diante do impasse, Lamarca assegurou a vida do Embaixador, mesmo contra a votação realizada com os demais participantes da ação, usando sua prerrogativa estatutária5. Mas, nas suas palavras o “vanguardismo” teria eliminado essa possibilidade se pudesse, e ressalta “uma esquerda que não consegue ser leninista, onde nenhuma minoria se submete a uma maioria, não pode, realmente, se fortalecer”6 . Dentre as orientações, se ressaltava que deveriam buscar os companheiros da Frente: ALN, PCBR, MR8 e MRT,
Com esses companheiros devem se relacionar e qualquer outra organização para entrar terá de ter a concordância unânime nossa. É perigoso entrar onde está o PCB, que se confunde com repressão, aqui o PCB está apoiando os ‘nacionalistas’ – e é desmoralizante fazer frente com organização que nega, na prática, a luta armada.7
4 Idem, p. 3. 5 Alfredo Syrkis narra esses momentos de indecisão e de mudança de posição de Lamarca em Carbonários (op. Cit). 6 Idem, p. 4. 7 Idem, p. 3.
Na realidade, lá no Chile, as aproximações seguiriam caminhos distintos, como veremos adiante. Mas algumas das orientações que o documento traz foram seguidas. Destaco as principais:
Fica designado responsável pela VPR no Chile o companheiro Ubiratan Souza (Gregório). Os militantes da VPR considerados prontos para o treinamento devem partir, com urgência para Cubadevendo se submeter ao centralismo da coordenação que já existe lá. Os que permanecem no Chile devem ser organizados em bases para discussão política. Os vacilantes, que assumiram posição individualista devem ser desligados e cortado o contato. Os que pediram ingresso na VPR devem ser analisados se podem voltar daí mesmo ou se precisam passar por um processo de coletivização, formação e treinamento, e neste caso devem seguir para Cuba. Procurar, desde já, criar condições para a vida clandestina aí cuidado com a direita chilena e com a CIA. Prevenir de todas as formas as possibilidades de infiltração. Organizar discussão com os quadros de antiga VPR e ex-COLINA que não discutiram a fusão nem participaram do processo de racha. Procurar contato com o MIR e outras organizações revolucionárias do continente. Criar condições para receber companheiros daqui, com a máxima segurança. Enviar relatórios periódicos. Criar uma Comissão de Apuração de Responsabilidades para analisar o procedimento na cadeia. Criar canais de comunicação com Brasil, Cuba e Argélia. Respeitar os compromissos assumidos com o governo do Chile –muito cuidado para não fornecer argumentação para a direita. [...] Evitar de todo modo entrar nas “pixações” a outras organizações ou companheiros. Formular as críticas, e exigi-las, por escrito – para que, com a formação, seja aperfeiçoado o relacionamento. Não flexionar isto, e repugnar os comentários paralelos, pois inúteis para a revolução. Exigimos, assim, que o relacionamento se dê em alto nível. Sabemos que isto não interessa aos que vivem marginais às organizações revolucionárias - e com uma atuação séria, madura, poderemos educá-los para a militância.8
8 Idem, p. 5