10 minute read
A autocrítica de Herbert Daniel
nheiros do nordeste caíram, Moisés assassinado no dia 5 no RJ. Para dar os encaminhamentos finais,
[…] precisamos que os companheiros nos enviem dinheiro o máximo possível; o mínimo é Cr$35.000,00. Sem esse dinheiro, certamente não restará um único remanescente no Brasil. Esperamos, com urgência, a colaboração dos companheiros. OUSAR LUTAR. OUSAR VENCER. Cmdo VRP. 7/8/1971
Não temos mais informações sobre o dinheiro23, mas um documento de setembro, do CIE diz que a organização “ficou reduzida nos seguintes integrantes”: Zenaide Machado, do CM, presa; Herbert Carvalho, foragido; Tereza Angelo, foragida, Lucia Veloso, presa; Carlos do Carmo, preso. Reduz o número de simpatizantes a apenas cinco. A tentativa de ida para o Chile fora frustrada. Zenaide relembra que se dedicou a realizar os informes de forma circunstanciada, pois precisava convencer os companheiros que estavam no Chile sobre a gravidade da situação. Cabo Anselmo deixava suas marcas de delação e traição, enquanto alguns ainda acreditavam ser possível manter a luta no Brasil. O documento informa ainda os novos códigos cifrados de comunicação que seriam usados e diz que “a subversiva Tereza Angelo não aceitou a desmobilização da VPR, estando fazendo gestões junto a Rogerio e a Nelson para ingressar na ALN”24. A perseguição seguiria.
A autocrítica de Herbert Daniel
O documento de autocrítica de Herbert Carvalho é um texto carregado de sentimentos e análise histórica, que busca falar daquilo que era proibido: a derrota. O título do documento jogava a dúvida: “E haverá perspectiva?” esclarece de início que “estas notas visam apresentar alguns pontos de vista pessoais a respeito do momento”. Não seria um documento
23 Outro documento do CIEX indicava que Onofre Pinto, no Chile, “teria em seu poder, cerca de 15 a 20 dólares e viajaria, para La Paz, entre 12 e 30/ago/1971. Informe 292, 16/8/1971. E ainda que Cuba depositaria em um banco suíço dez mil dólares a cada dois meses destinados à VPR. Esse dinheiro permitiria o transporte ao Uruguai e a Praga, segundo o CIEX. Informe 322, 19/8/1971. 24 VPR. CIE, 8/9/1971, p. 2. José Carlos Mendes levou os Comunicados ao Chile: Informação prestada por Zenaide à autora, por telefone.
“na acepção exata do termo”, pois não era um documento da organização, e sim uma avaliação de um ex-dirigente, ainda militante. Ele avaliava:
1. A extrema confusão atual do movimento revolucionário tem no pequeno grupamento que hoje formamos um quadro completo. Se fomos (pretérito) a maior organização do país, não em termos numéricos mas de importância qualitativa (e quem negar isto estará querendo mistificar para puxar brasas para sardinhas inconfessáveis), mas se fomos um dia, dizia eu, a O. mais importante é porque representamos A esquerda e, agora, representamos o outro extremo: a derrota. (...) Encontramo-nos, os que sobreviveram, entre escombros que são tão difíceis de interpretar como era o caminho da vitória. Daí não ser consenso a derrota. Daí alguns pensarem em algum momento crítico, isto é, terem uma ilusão que acalentou muitos sonhos, mas agora de poucas possibilidades. Agora, diante da impossibilidade, muitos não a vêem. É uma atitude que seria virtuosa num romance. Para os que vivem a vida é aventureirismo que nada tem a ver com a ideia de revolução.25
Não sabemos se este texto chegou aos militantes, que eram afinal, bastante restritos em número. A crítica e autocrítica estão evidentes, mas nada tem a ver com um militante que estivesse apenas abandonando a luta. Ele segue buscando entender “o que é essa derrota nossa?”
Em primeiro lugar é a derrota do experimentalismo, do amadorismo, do aventureirismo. Em segundo lugar é a derrota de teses imperfeitas, de uma teoria remendada. Em terceiro lugar é a derrota de um destacamento, revolucionário do povo. Mas não é a derrota do povo, da Revolução. Se estamos derrotados, a revolução não está. Mas não faço esta afirmação gratuitamente. Simplesmente a recito (quantas derrotas os movimentos revolucionários do mundo não produziram esta frase, antes de nós?) 26
Os grupos de luta armada, na sua avaliação “encontram-se hoje completamente derrotados. Podem não estão exterminados. Mas o
25 E haverá Perspectiva? 9/6/1971. Herbert Eustáquio de Carvalho. 26 Idem.
extermínio é questão de tempo. Daqui, só para mais baixo (e é possível sofrer derrotas mais profundas)”. Ele não era o único a pensar assim, embora poucos conseguissem expressar esse sentimento, facilmente visto como desbundado ou até mesmo passível de punição, contrarrevolucionário, fraqueza ideológica, “sabe-se lá mais o que” foi a expressão que o próprio Herbert usou. E ele segue tentando explicar “Por que estamos derrotados?”, trazendo de volta a discussão política entre massismo e militarismo: “Estamos porque não temos o menor significado político”. Poderiam “até insistir no erro”, “Não sei quanto tempo ficaremos vivos, mas a única coisa certa é o fim mais cedo ou mais tarde. Esta é a perspectiva do desespero”. E completa, “desespero não faz revolução”. Não era apenas uma questão de teoria ou de leitura da realidade objetiva, pois
[…] se afirma que a Revolução é inviável no Brasil, que aqui não temos o elemento espontâneo da massa e por isto o fracasso veio. Mas, se a revolução é inviável, o capitalismo é viável. E teoricamente se prova o contrário, todo marxista sabe disto. Então, como se pode “culpar” a realidade objetiva quando, em princípio, buscávamos transformar essa mesma realidade objetiva?27
Não era um problema das condições brasileiras, e sim, o que ele caracteriza como aventureirismo, que ele tenta qualificar:
Não vejo como explicação da derrota nem as condições concretas do Brasil, nem a ausência de uma teoria, nem erros pessoais. Mas tudo isto unido num todo que caracteriza nosso aventureirismo. Mas, claro uma causa é principal? E qual foi ela? Exatamente a formação histórica da esquerda num dado momento que ela não chegou a compreender. Portanto, o anacronismo aos grupos revolucionários em relação à própria Revolução.28
Em nenhum momento ele propõe o abandono da perspectiva revolucionária. Lembre-se que Carvalho passou por todo tipo de atividade possível na organização, inclusive ao treinamento de guerrilha no Vale da Ribeira, a ações armadas e aos sequestros, abdicando de inúmeras questões pessoais. Os pontos que quer ressaltar vão muito além de
27 Idem. 28 Idem.
entender a VPR, ele busca entender a posição da esquerda brasileira como um todo:
1º) A esquerda se forma com uma perspectiva armada (a única correta) num momento de refluxo da Revolução. E foi exatamente este refluxo que permitiu a Esquerda romper com a cangalha pseudoproletária de uma teoria e uma prática revisionistas. 2º) A origem do reformismo arraigado na esquerda brasileira não é só “exterior”, isto é, não se trata de importação de uma teoria vinda do seio internacional do stalinismo. Isto também. Mas a causa fundamental do revisionismo que aqui grassou tem sua origem na própria formação social do Brasil. A partir dos dados de uma teoria clássica e curiosamente anacrônica, a Revolução no Brasil era vista de forma idealista obedecendo a leis “teóricas” abstratas e não às suas próprias leis. (Idem)
Herbert traz uma discussão que já aparecera no texto de Lamarca, sobre a necessidade de propor interpretações reais, sobre a história recente e o momento da luta de classes:
3º) Com o golpe de 64 as condições antigas de atuação foram rompidas e foi necessário abrir-se novos caminhos. A revolução começou a ser vista com maior realismo foi batido inicialmente com uma coisa profundamente absurda. Mas o salto teria que ser muito e faltou fôlego. A esquerda revolucionária se propunha quase que totalmente da parcela mais jovem e inexperiente da esquerda. Sua composição basicamente de jovens estudantes e militares levou-a a uma ousadia revificante ao mesmo tempo que as quixotadas grotescas. […] Uma constante era uma espécie de nostalgia dos tempos idos no pré-64. Havia como que uma espera inconsciente da volta das grandes manifestações de massa, da volta do elemento espontâneo que pós-64 foram se extinguindo até a fase atual de absoluta passividade. 4º) O golpe de 64 foi entendido como uma derrota do reformismo. E tão só. Nunca foi encarado como um movimento burguês que derrotou o povo. [...] Se teve razões da luta armada nunca concedeu. E foi aí que começou a derrota: em 64. 5º) Os grupos armados seguiram um caminho enquanto o povo seguiu outro. Desta forma, com o descenso da Revolução e com o avanço dos grupos de esquerda se criou uma disparidade que a
ditadura resolveu “manu militari”. Neste quadro nos inscrevemos hoje os que restavam da VPR. VPR já não existe mais. Trata-se de resolver qual o caminho para se criar outra. 6º) tentar remontar a VPR a partir de suas forças exauridas é trabalho inútil como esvaziar o mar com um dedal. Não temos nenhum poder mágico de pronunciar “fiat luz” e a luz se fazer. Temos que reconhecer agora que a VPR acabou e o que sobrou de outras Os. são espectros dos quais já traçamos o caminho, isto é, serão externizados mais dia, menos dia. 7º) É favor não entender tais colocações como desistência de encaminhar a Revolução. Trata-se aqui de buscar construir de novo e de forma correta uma organização capaz de encaminhar a Revolução. Teríamos perspectivas de continuar atuando no país buscando criar condições? Não, não temos a não ser que queiramos mentir sobre o que somos. Vamos abandonar as ilusões! (Idem)
Ou seja, organizações pra um lado, povo para outro. A dificuldade em perceber que a Ditadura avançava também no ganho econômico aparente, na propaganda do alegado “Milagre econômico”, isso contribui para essa dissociação. Por fim, responde à pergunta, “Quais seriam então nossos rumos?”, posição que apresentará ao Comando, e que seria aceita
1º) Desmobilização total – no único intuito de conservar o que sobrou da derrota, em termos de material humano, para aproveitá-lo numa nova fase. 2º) Preparar lentamente e minuciosamente uma nova luta, que se lembre dos erros desta mas não os cometa de novo. 3º) A cada militante será dado opções para seguir o rumo coletivo (desmobilização) ou entrar em outras organizações ou propor formas de suas condições pessoais capazes de servirem à preparação lenta da nova fase. 9º) Em termos práticos isto não significará uma debandada (cada um por si e Deus por todos), mas o seguinte: Discussão do comandante com cada um para elaboração do melhor e mais seguro rumo de cada um; Definição da existência única de um comendo no exterior e inexistência da O. formalmente no Brasil. Subordinação completa ao comando definido que deverá em termos gerais: - promover um Congresso - orientar a O. para seu retorno futuro.
d) os militantes que permanecerem no Brasil terão que estar submetidos ao comando da O. (a menos é claro, que optem por outra O.) e receberão da O. as condições materiais da existência, senão vetados as remontagens aventureiristas de órgãos capazes de se expor aos avanços da ditadura. e) será comunicado oficialmente as outras Os. O final da O. e as perspectivas futuras de uma atuação em outra escala. (Idem)
Antes do fim, explicita mais uma vez que sabe que sua posição será “mal entendida”, que ela é desconfortável e mesmo constrangedora. A certeza de que seria julgado moral e ideologicamente não abandonava os militantes:
10º) Entendo perfeitamente as resistências que se oferecerão a esta posição. Mas não as justifico. Enquanto revolucionário sinto-me na posição constrangedora de achar antipática minha própria posição política. Mas não posso deixar que considerações morais possam se antepor no caminho da Revolução. Fracassamos e devemos pagar com a humilhação de uma desmobilização total. Resta-nos esperanças. Um dia talvez nos lembremos desta época num momento onde seja possível sorrir, mãos dadas ao povo. (Idem)
Mantém-se um ar de idealismo, um “povo” externo, ao qual se poderá abraçar e trazer junto, mostrando o caminho? É importante perceber que uma possibilidade que estava colocada era realmente um “salve-se quem puder”, uma debandada. Mas a realidade mostraria que havia mais identidade com a VPR, apesar da dissolução formal, que se manteria como objetivo nos militantes, aprofundando ainda mais suas derrotas. Os documentos da repressão que acompanham esse material trazem uma impressionante quantidade de dados, ao longo do tempo, com nomes e codinomes, muito bem explicados das relações, dos Congressos, do que mudou, etc. eles sequer escondiam esses dados dos militantes que quando eram presos, sabiam que cada vez mais que estavam cercados. Quem estava passando essas informações? Sabemos que nesse momento o Cabo Anselmo estava atuante buscando inserir-se em várias organizações. Como lembrou Zenaide, ele “Só conseguiu o trabalho que fez em toda a extensão porque não se sabia; não tínhamos ainda indicativos