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Iara Iavelberg e outras companheiras
mulher armada pode estar indefesa diante de um homem armado. A defesa de Darcy reproduz estigmas absolutamente machistas ao dizer que “não eram princesinhas”, como se apenas uma “princesinha” fosse se “deixar estuprar”.15
Iara Iavelberg e outras companheiras
Jamais abandonaria o barco, banana a quem não me leva a sério, o lance é atirar-se e depois ver, forças naturais conduzem à tona.16 Essa gente toda deveria aderir à luta armada em lugar de conviver com filhos da puta.17
Uma das mulheres mais importantes da história da VPR foi uma mulher judia, de classe média alta, que amava vestir-se bem, estar bem informada culturalmente e estar perfeitamente em dia com a cultura e com a moda e com sua condição “feminina”. Iara Iavelberg teve que abrir mão de muitas de suas necessidades para manter-se na luta e é um dos casos de militante que teve todas as condições materiais para deixar o país, se exilar onde quer que ela quisesse, pois tinha amigos e família que propiciariam isso, e que em mais de uma oportunidade ofereceram auxílio diretamente a ela. Situação muito semelhante foi a de Heleny Guariba, amiga de Iara, teatróloga.18 Em ambos os casos foram opções conscientes que levaram à permanência no país, o que não quer dizer que procurassem aquele fim. Iara iria “morrer pela revolução”, com uma fidelidade fatal ao homem que finalmente a aceitou como revolucionária e permitiu que ela se sentisse parte efetiva do processo. Ela foi uma mulher “à frente de seu tempo”, foi professora de marxismo dos militantes, se apaixonou e foi correspondida por um homem casado, Lamarca. É criticada em muitos relatos de forma indireta. Uns alegam que Lamarca não saiu do Brasil para se refugiar em Cuba por causa dela, que ela teria proibido ou impedido sua ida; outros alegam que ela deixava Lamarca “muito teórico”, menosprezando toda reflexão que ambos realizaram sobre as formas de luta, no calor da luta.
15 Idem, op cit. pgs. 191 e 195. 16 Iara, traduzida por PATARRA, op cit. p. 269. 17 Idem, op cit. p. 290 18 https://monografias.brasilescola.uol.com.br/arte-cultura/heleny-telles-ferreira-guaribauma-historia-interrompida.htm
A maioria absoluta das referências a ela ressaltam que ela era “uma mulher muito bonita”, reforçando vários estigmas: não seria sua inteligência que teria atraído Lamarca? A beleza recebe mais importância que sua inteligência e capacidade articuladora. A presença de Iara sempre foi vista pelos militantes da VPR como um “privilégio” de Lamarca de “ter mulher” na organização, e não por ela ser uma companheira de ideias e ação.
São fontes de inspiração e conhecimento os livros e depoimentos que trazem um pouco das histórias das mulheres da VPR. Destacam-se: Iara, de Judith Patarra; Companheira Carmela, de Mauricio Paiva; e Uma tempestade como sua memória, biografia de Maria do Carmo Brito, de Martha Vianna. Além disso são inúmeros depoimentos publicados na internet, a maior parte deles provenientes de movimentos da Memória, Verdade e Justiça. Chama atenção que nenhum desses livros é autobiográfico. Maria do Carmo relembra cenas de Iara sendo menosprezada na prática do Ribeira:
Eu, quadrada e chata, calava-me (...) Assumir-se feminina em meio à nossa rigidez demandava grande coragem. Eu sentia amizade, respeito e carinho por ela. - Além do desajeito, mulher menstruada não entra na água –agrediam os sargentos. – a coluna atravessa um rio, ela fica. - Devagar, companheiro. A medicina já provou que menstruo não sobe à cabeça. Até lavamos o cabelo” - Mulher, vá lá. Mas mulher de alguém, é transtorno.19
Era, nas palavras de Carmo, um enorme “falatório”. Os homens podiam aceitar as mulheres, desde que elas não fossem “de ninguém”. Completa Maria, que era do Comando Nacional: “também não gostavam de mim, mas havia certo receio. Iara parecia-lhes frágil. Completamente enganados”. Segue relatando um diálogo com Iara:
Trata-se de homens que “afirmavam a masculinidade, compulsivos, porque não se aceitavam. Adotam preconceitos como esse antiIara. Ou fazem exibição de virilidade, alertou-a sobre o homossexualismo
19 In Patarra, op cit. p. 357.
[sic] enrustido nos heróis, referiu-se à ligação de Onofre e Anselmo, defendeu escolhas sexuais diferentes.20
Outra amiga de Iara, companheira da época da VAR-Palmares, Dilma Roussef ressalta a questão do “abandono da subjetividade na luta”, mas ressaltando que Iara se colocava contra isso. Dilma relembra que:
[...] tínhamos pouca experiência de vida, acabamos de sair da puberdade. E havia um dito, que problemas pessoais vem depois. Primeiro os políticos. Então, o cúmulo do voluntarismo que éramos nós – voluntarista, em política, são as pessoas que acreditam que basta ter vontade, a avaliação da situação objetiva se amolda ao que se deseja. Então éramos todos voluntaristas que eliminamos o aspecto pessoal da vida, a política respondia por tudo. Tinha que dar conta até das subjetividades. E uma pessoa que não segurasse isso, a predileção por uma pessoa, amizade... você se sentia meio marciano. E Iara tinha esse comportamento marciano. Acho que foi a primeira feminista que conheci.21
Ou seja, o feminismo teorizado não estava presente na prática das mulheres daquela luta. O livro organizado por Judith Patarra é uma obra de enorme fôlego, e que dá vida a muitos acontecimentos a partir de narrativas de pessoas que viveram com Iara. Contam sobre essa relação, mas falam também sobre si, sobre como viam a militância22 . Uma das muitas amigas que tentaram convencer Iara a deixar o Brasil e se proteger no exterior, Rachel Rosenberg conta a resposta de Iara: “eu não me vejo na França, Chile, México. Meu lugar é ao lado dele. Qualquer que seja o destino, a vida só faz sentido assim. Eu sei que o provável é morrer. Deixaremos o exemplo”.23 É possível que a lembrança não seja absolutamente fidedigna à fala, mas é inegável que Iara se comportou em coerência com essa ideia. Sintetiza Rachel:
Tenho a impressão de que três fatores se somavam na decisão de Iara. Primeiro, um forte pacto com Lamarca, o amor e o
20 Idem, op cit. p. 358. 21 Depoimento de Dilma Rousseff a Judith Patarra. 22 As entrevistas realizadas para o livro estão disponíveis para consulta no acervo do Arquivo Edgar Leuenroth, na Unicamp. 23 Rosenberg, in PATARRA, op cit. p. 355.
companheirismo acirrados pelas circunstâncias. Aquela coisa de que na guerra as pessoas se ligam mais. Nesse sentido era uma união extraordinariamente bem sucedida. Depois, creio que em termos de autoestima e identidade Iara se fez, para si, inseparável da resistência brasileira. Tratava-se de abominar a traição, e ignoro até que ponto por amor à causa ou autoimagem, de ser heroína até o fim.24
Iara que havia vivido de forma distinta de boa parte das mulheres de sua época, estava à frente dos costumes de seu tempo. Casou-se muito jovem, separou-se, conclui seu curso de Psicologia, envolveu-se com movimento estudantil e daí para a luta de resistência. Teve muitos namoros, todos rápidos, mas com muito envolvimento, sempre buscando encontrar o amor e algo que lhe ajudasse a dar sentido à vida. Desejou ter filhos, mas não conseguiu. Na própria VPR namorou Quartim, Dowbor, Zequinha. Fora da VPR, José Dirceu e depois Breno, da VAR-Palmares foram algumas das tentativas de unir sua vida à luta. Até que encontrou Lamarca:
Estou namorando um cara importante, a relação é fantástica, lindíssima. As tarefas nos separam por longos períodos. É tudo difícil, arriscado. Cada vez que nos despedimos, o medo. Mas é um amor de qualidade incrível, nunca tive nada igual. Orienta o que faço, completa-me. Sinto proteção no meio do perigo, um paradoxo. É alguém que toma conta de mim.25
Entretanto, mesmo que tenham saído juntos da VPR e que tenham ido para o nordeste juntos, Iara não foi com ele para o interior da Bahia. Antes disso foi morta em Salvador. A repressão simulou um suicídio para ela. Apenas muito tempo depois a sua família conseguiu provar que ela foi assassinada26 . “O destino do revolucionário é dar a vida pela revolução”. Essa foi uma frase dita por Inês Etienne quando escreveu seu relato para o livro de Patarra sobre Iara. Falava sobre Iara, mas também sobre si. A vida das duas acabou sendo dedicada à luta. Há um elemento de fundo, que diz respeito à sociabilidade, de forma mais ampla. Muitas vezes a VPR, em seus grupos internos, acaba mantendo padrões familiares e de amizade anteriores,
24 Idem, op cit. p. 355. 25 Iara in Patarra, p. 356. 26 O resultado da Exumação saiu em 6/5/2005 e diz que o estado cadavérico era incompatível com suicídio.
como apontou a historiadora Debora Chagas ao tratar do caso de Maria do Carmo. Iara buscava afeto, assim como Maria do Carmo e as demais companheiras, buscava se manter perto de pessoas que lhe davam apoio afetivo.27 Inês Etienne também viveu episódios traumáticos, foi uma grande mulher que buscou evitar que a agrupação seguisse confiando em Anselmo, o que poderia ter salvado a vida de muitos companheiros, e foi rotundamente ignorada por eles, que preferiram seguir a orientação de Onofre Pinto. Houve um momento de desespero de Inês na Casa da Morte, em Petrópolis, em que ela fez uma declaração dizendo que ela não iria cometer suicídio. Percebera que era uma possibilidade interessante para a repressão e decidiu que iria ter o maior dos pesadelos, conviver com seu passado e conta-lo ao mundo. Mais tarde ela denunciou o falso moralismo da imprensa quando fizeram uma matéria sobre Iara,
Sob encomenda dos órgãos de segurança, sobre os ‘amantes’ de Iara, relacionando uma série de nomes de companheiros. Era evidente a intenção dessa contrapropaganda: desmoralizar a combatente e, por tabela, atingir Lamarca, de quem era companheira. Sob a capa de um falso moralismo – pois enquanto publicavam matérias dessa natureza, violentavam mulheres nas prisões – pretendiam mostrar que as militantes viviam na promiscuidade e assim não mereciam o respeito da população.28
Ou seja, a dupla moral estava sempre presente. Chamam as militantes de putas e batem, passam a mão e estupram nos porões, como ocorreu com a própria Inês. Ela relata que Iara defendeu, inclusive em reunião de direção, que os militantes deveriam ter cuidados psicológicos, com locais adequados para descanso. Ela mesmo se impunha esse tipo de escapadas, mas certamente era considerada fugaz e “pouco militante” por muitos outros e outras. Inês lembrou que em algumas situações a situação de classe de Iara ajudou a salvá-las, porque era um disfarce perfeito, vestia-se como burguesa e não levantava suspeitas quando precisavam ir para hotéis ou restaurantes. Outro fato muito importante ocorreu na chácara em Rio D
27 CHAGAS, Debora Campani. Inês e Lia: Resistências da Vanguarda Popular Revolucionária contra a Ditadura de Segurança Nacional (1970-2003). TCC em História, Unioeste, 2019. 28 Idem, op cit. p. 2.
´Ouro, lugar precário mas que foi super bem recebido por Lamarca e Iara, onde o cabo Anselmo chegou a ir e passar 3 dias com eles. Ali se estabelecia o contato direto com a direção da VPR. Ela conta que insistiu para que Iara lhe contasse quem ele era, infringindo uma regra, e ela não resistiu, ao que ela completa “essa informação, quase um ano depois, contribuiu para salvar a minha vida”, pois permitiu reconhecê-lo na sua tortura. Inês também relata que elas faziam encontros clandestinos com suas famílias, sempre que as condições de segurança permitiam, o que aumentava o ânimo delas, mas no caso de Iara aumentava a pressão da família para que rompesse com Lamarca e salvasse sua vida. Até o final de sua relação com Iara, ressaltando o belo ser humano que ela era, e quando Inês decidiu sair da VPR, em março de 1971, também sugeriu a Iara que saísse do país, ainda que fosse sem Lamarca, ao que ela respondera que seu destino “Estava ligado ao destino dele”. Carmela Pezzuti começou a militar na VPR com 36 anos. Mulher, adulta, divorciada prestou inúmeras tarefas para a organização. Construiria uma base de apoio no Chile com seus filhos, Angelo e Murilo, também militantes. Angelo casaria com Maria do Carmo Britto, e reforçaram laços no exílio, até que veio o golpe de Pinochet e conseguiram exílio europeu, dada sua ascendência italiana. Ela começara a atuar no Colina, onde “leu Regis Debray e Che Guevara”. Presa no Brasil, foi submetida a inúmeros interrogatórios. Mas sua posição social lhe concedeu de alguma forma um tratamento menos brutal nas prisões pelas quais passou. Ela relata, em um momento que estava prestes a ser libertada que
Sabia que, nas circunstâncias que se viviam, ali era o único lugar do país onde poderia estar em segurança. Intuía que, ao deixar a prisão poderia trair a própria consciência e, mais do que isso, não resistiria aos impulsos dos seus sentimentos: prosseguiria a luta e correria, com absoluta certeza, grandes riscos.29
Ou seja, havia algo a movê-la, e não era apenas uma necessidade de reconhecimento ou pertencimento. Era também a consciência, que não podia “ser traída”, e esse medo habitava parte das mentes dos militantes. Ciente do risco, era como um caminho para um lugar desconhecido, mas inevitável por sua própria vontade. Em outra situação, novamente presa, ela passava por tudo de novo, mantendo formas de solidariedade mesmo
29 Carmela in: PAIVA, 1996, op cit. p. 57.