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com a superficialidade e a brincadeira
Quer dizer, os trajes inteiramente fora de uso se suportam para uma pessoa que chegou a uma idade avançada. Então me sirvo desse privilégio para usar ainda firmemente o jaquetão3 .
Restos de coexistência do estado de graça e da seriedade com a superficialidade e a brincadeira
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Lembro-me de uma espécie de dualidade que havia em mim e que mais ou menos se resolveu e cicatrizou de todo em todo quando entrei para o Movimento Católico.
Não se tratava daquela dualidade clássica existente em nós até morrermos, entre o homem mau e o homem bom, ou entre o estado de graça e a tentação para o pecado mortal. A matéria de pecado nem estava à prima facie diretamente envolvida neste assunto. Entrava o problema do amor de Deus. Mas eu não sabia disso, porque do amor de Deus tinha a noção corrente que se tem.
Eram dois estados de espíritos que se alternavam em mim, mais ou menos como uma luz que se apaga ou se acende dentro de uma sala.
Um era de um menino muito sério, com as vistas voltadas para o maravilhoso, para tudo quanto há de mais elevado, para todas as harmonias, para todas as profundidades; portanto, para uma coisa que não sabia que se chamava recolhimento contínuo, para uma coisa que não sabia que era piedade. Piedade, para mim, era só na hora estrita de rezar. Mas hoje vejo que era piedade, e inteiramente voltada para os assuntos R-CR4 .
Não era um asceta. Tinha, como natural próprio meu, gozar as coisas, fruir as coisas normais que, dentro do estado de graça, um menino pode fruir. Não tinha ideia de santidade, não tinha o intuito de alcançar a perfeição moral. Tinha apenas o intuito de realizar uma obra para a qual eu me sentia chamado. Mas eu tinha um propósito acharné de me manter no estado de graça.
Por causa disso, confesso que cometia facilmente pecados veniais. Por exemplo, mentiras sociais, pequenas mentiras de conveniência individual, pequenas coisas desse gênero, às torrentes. Era só eu desejar que fazia.
Isto era acompanhado da disposição de alma genérica de não evitar o pecado venial, porque o pecado mortal, o evitar já era tão alto, o estado de graça tão magnífico, uma coisa tão sublime, tão suprema,
3 Chá PS 23/10/90 4 Forma abreviada para referir-se ao livro “Revolução e Contra-Revolução” e às teses que defende.
que julgava que não podia ser afetada, nem sequer empalidecida ou comprometida remotamente pelo pecado venial. Para mim eram dois andares de uma casa, sem comunicação interna nem externa. E enquanto queria mesmo um, o outro eu achava que não tinha importância, era me entregar à coeur joie.
De fato, o gênero de coisas dessas que fazia era a mentira. Bastava, por exemplo, imaginar que, numa roda, um caso ficava mais engraçado, mais interessante não o contando direito como era, mas transformando esse caso, que eu o transformava. Nunca de maneira a lesar a reputação de ninguém, nem tornando alguém imerecidamente ridículo, isto nunca.
Tinha muito a ideia de que a calúnia era pecado mortal, e portanto não caluniava. Mas não tinha ideia de que a murmuração fosse pecado, nem sequer venial. E como nos meios sociais se murmura à vontade – “A” conta de “B” ou de “C” absolutamente tudo quanto entende; é mesmo um dos grandes temas de conversa –, eu participava da murmuração de portas abertas. Mas não notei que isto diminuísse meu empenho, meu desejo de me manter fiel, de fazer a Contra-Revolução e de arcar com a enormidade do sacrifício que isto representava.
Agora, esse estado de espírito, apesar dessas misérias, no que tinha de bom era profundamente bom, profundamente elevado e revelando um chamado muitíssimo marcado que transpassava a minha alma de lado a lado. Era congênere com ele uma seriedade um tanto melancólica, um tanto tristonha, mas carregada com ânimo varonil, de frente, e detestando tudo quanto era superficial, tudo quanto era brincadeira tonta.
Mas esse estado de espírito alternava de repente. Lembro-me mal, mas não creio que fosse frequente alternar num mesmo dia. No meio de uma era de muita seriedade, de repente se abria uma brecha em tudo isso, e então me concedia uma hora, duas horas, três horas de um estado de espírito diferente: superficial, brincalhão e me deixando arrastar pelas formas de alegria dos anos 1920, as quais eram muito vivas, muito comunicativas, muito hollywoodianas. Deixava-me arrastar, sempre que não notasse nelas qualquer coisa de revolucionário.
Essas formas de alegria comportavam muitas coisas não revolucionárias, para “enchouriçar” pelo meio a Revolução. Mas no que elas não eram revolucionárias, elas estavam expostas à Revolução. E eram uma espécie de embalagem para entrar a Revolução. A Revolução eu não tomava. Mas o que não era Revolução, tomava e gostava, e até muito.
Por exemplo, quando tinha 14, 15 anos, de repente me dava na cabeça cantarolar. Em casa toleravam isso não sei como. Sempre tive uma voz muito forte e cantarolava a plenos pulmões esta ou aquela música que estava na moda, ou que tinha ouvido em algum teatro. Repetia aquilo e achava graça.
Nas conversas com minha irmã e meus primos, sobretudo nas quintas-feiras em que esses primos iam jantar em casa, havia uma mesa dos mais moços. Essa mesa era de brincadeira debandada. E eu era um dos chefes dessa brincadeira. Nunca coisas imorais. Absolutamente não. Como já disse, eram brincadeiras falando mal deste, daquele, da sociedade, da família, com apelidos. Depois, naturalmente, falando mal dos parentes deles, eles debicando da minha família paterna, isto é, dos nordestinos, essas coisas assim para brincar, sem nada de insultante. E às vezes um puxando pelo defeito do outro e acentuando.
Eram coisas que contrastavam com o estado de espírito dessa seriedade que eu devia tomar. E se me deixasse levar por aquilo, acabaria depois tomando uma atitude de alheamento em relação à minha própria vocação, e esse alheamento me poderia levar nem sei até onde. Estremeço em pensar até onde isto poderia me ter levado.
Disso tudo não tinha noção. Devia ter culpa provavelmente nisso, mas achava que a coisa passava.
Isto durou mais ou menos até o Reizinho5 romper comigo e desviar-se do bom caminho, como de há muito tempo era a vida de todo rapaz, sobretudo quando o rapaz tinha algum dinheiro. Distanciamo-nos e começou para mim uma espécie de tragédia, que por repercussão natural me tornava muito mais sério. Aí se fanou muito em mim esse tipo de alegria de viver.
Concomitantemente, fui percebendo a contradição que isso tinha com o meu perfil de contra-revolucionário. E fui acentuando o corte. E cortei completamente com isso.
Eis outro fato exemplificativo dessa espécie de fuga da seriedade.
Íamos passar as férias de meio de ano em Santos, no hotel Parque Balneário, atrás do qual havia um terreno vazio que não me lembro se era imediatamente contíguo ou não.
O pessoal rico se divertia no Parque Balneário com festas. O pessoal pobre – criadas, chauffeurs – se divertia no terreno vazio, ao ar livre.
Havia um italiano que animava esses divertimentos com o “João Minhoca”, que era um teatro de marionetes onde as figurinhas entravam e cantavam, diziam isto, aquilo. E o pobre italiano, sem se dar conta, era extremamente pitoresco e representava cenas que divertiam. Mas eram personagem do mundo dos chauffeurs.
O bonequinho entrava habitualmente no palco cantando em português macarrônico: “Engraxate, engraxate, engraxate da Parigi”. Não sei como
5 Apelido afetuoso dado na família a seu primo-irmão José Ribeiro dos Santos, com o qual o jovem Plinio tinha uma grande amizade; passavam juntos todo o tempo livre que os deveres escolares de ambos o permitiam, se bem que estudassem em escolas diferentes.