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A provação de crer-se obrigado a abandonar, por obediência ao Papa, as convicções monárquicas e ter que aliar-se à República
Uma vez confessando-me com um padre, eu disse a ele: “Mas, padre, que sentido tem isso?” O padre me deu essa resposta: “Há muito tempo que vem durando isso?” Eu disse: “Sim”. Ele respondeu: “Meu filho, se prepare, porque quando a noite é muito grande o dia ainda é maior; mas quando o dia é maior, a noite será maior ainda. Você irá pelos túneis e pelas luzes. Nunca julgue que a luz é definitiva. Sobretudo nunca julgue que é definitiva a noite. Vá vivendo que Nossa Senhora o acompanhará!”76
Quando morava aqui na rua Itacolomi, fui tomar o ônibus na Avenida Angélica e vinha atravessando a rua. De repente, todo aquele problema renasceu na minha cabeça. Mas com uma voragem de um leão que me pula no pescoço! Fiquei muito surpreso, mas nem tive tempo de rezar, que aquilo passou e vi que era uma coisa que a Providência dispôs que fosse assim, para notar que era um assalto do demônio. E compreender quantos assaltos assim que o demônio dá, e que é mero demônio. A gente não deve tomar a sério77 .
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Era o mesmo leitmotiv. E isto muitos anos depois, uns dez anos depois. Durou apenas o tempo necessário para eu ir do leito da rua para a calçada. E passou.
Mas isso me ajudou a convencer-me de uma coisa de que tinha as minhas dúvidas: é que o Padre Giovanini tinha razão, dizendo que era coisa do inferno78 .
A provação de crer-se obrigado a abandonar, por obediência ao Papa, as convicções monárquicas e ter que aliar-se à República
Uma outra das dentadas mais formidáveis que levei do demônio em minha vida foi a propósito da reversibilidade entre a condição de católico e a condição de monarquista.
Havia um professor da Faculdade de Direito, tido como muito católico, que tinha atitudes inteiramente ridículas na linha do espírito relativista da chamada “democracia cristã”, e que era muito conhecido em casa porque ele fora sócio do meu avô no escritório de advocacia.
76 Êremo JG 27/10/75 77 Almoço 23/09/85 78 Almoço 1/9/84
Ele tinha uma biblioteca com encadernações magníficas. E quando morreu, puseram à venda essa biblioteca. Fui lá ver – eu era moço ainda – e encontrei uma coleção de livros franceses escritos por um tal de Abbé Calippe79 .
O título era “L’attitude sociale des catholiques français du XIX siècle”80 . E vinha ali a lista de todos os católicos franceses do século passado: De Maistre, Veuillot, Bonald e outros daquele tempo81 .
Nos meios católicos muito pacíficos da São Paulo daquele tempo (1928), eu era, e graças a Deus continuo a ser, dos mais avançados defensores da infalibilidade papal, dos privilégios do Papa, e da monarquia: era um monarquista enragé.
Nas minhas arengas para os congregados marianos, eu insistia muito no ponto de que o católico deve obedecer sem a menor restrição a qualquer ordem do Papa, e sobretudo a qualquer doutrina do Papa, porque na doutrina, mais do que no governo, ele é assistido pela infalibilidade, é mestre da Igreja.
Acontece que, um dia, fui ao barbeiro em frente à minha casa e levei o livro do Abbé Calippe para ler.
Não tinha a menor ideia das polêmicas entre católicos. Comecei a ler e percebi que os católicos franceses – mas via-se que eram os católicos da Europa inteira – estavam numa divisão medonha entre republicanos e monarquistas. Os católicos republicanos eram uma espécie de democracia-cristã, e os católicos monarquistas eram reacionários82 .
E me chamou a atenção que o Papa – Leão XIII na época –, em vez de se pronunciar claramente a favor de um lado ou de outro, deixava correr a briga.
E aí nasceu a minha primeira perplexidade: “Por que é que ele não interveio, por que não pôs os pingos nos ‘is’? Se eu fosse Papa, faria uma intervenção nessa briga, mas de fazer chiar, dando razão a quem tinha”.
Fui lendo o livro e me esbarro no contrário83: Leão XIII dizendo que o católico pode ser republicano. Aquilo foi como um estouro em cima de mim: “Mas, como? Um católico pode ser republicano? Então, se esse católico tivesse vivido no tempo da Revolução Francesa, ele poderia ter sido favorável à Revolução Francesa? Isto me destrói a mim de alto a baixo”.
79 Jantar EANS 9/8/93 80 Abbé Charles Calippe (1869-1942), editora Bloud, Paris, 1911. Foi doutor em Teologia, professor de Escrituras no Grande Seminário de Amiens, membro do Comité des Ligues
Sociales d’Acheteurs, e da Commission des semaines sociales. 81 Conversa ESB 25/6/82 82 Jantar EANS 9/8/93 83 Conversa ESB 25/6/82
Tudo isto me aconteceu no barbeiro. A navalha percorria a minha face e a tentação percorria a minha fronte. Era o renversement de toda uma parte de mim mesmo sobre a outra. Qual então o caminho da fidelidade?
Tudo isso causou-me uma agitação horrorosa e uma tentação do demônio: “Está vendo? Veja quem é você e como você não vale nada84 . Você não é católico, você é monarquista só. A religião católica é uma carapaça para você disfarçar o seu monarquismo85. Você fala em infalibilidade papal e deita a voz enquanto o Papa pensa como você. Você usa isto como instrumento para impor as suas ideias. Agora aí está ele ensinando o contrário do que você diz. Agora quero ver você republicano, ou então desistir da fé católica”.
Era um beco sem saída, no sentido de ser colocado na seguinte opção: ou ficar republicano, ou deixar de ser católico86. Não podia ser atingido em ponto mais interno do que este. Era o próprio âmago de mim mesmo que era atingido nessa provação.
Comecei então a sentir imediatamente os sinais característicos da tentação do demônio. Quer dizer, zoeira, confusão na cabeça, ideias se passando na minha mente a tropel pesado: “Olha lá! Como é isso?”87
Ao sair do barbeiro, a minha sensação era de ter engolido uma cobra. E me dizia: “Largar o Papa eu não largo. Dê no que der, meta-se a coisa onde se meter, eu não largo. Mas ficar republicano eu também não fico. Há de haver algum dado pelo qual a doutrina dele seja certa, mas a que abracei não colida com a dele. É impossível que haja uma contradição, porque vejo tão claro a respeito da monarquia, que não é possível que eu não tenha razão. Mas ele é ele, e se em última análise disser mesmo o que estou entendendo aqui, ele tem razão, quem vale é ele”88 .
Então eu me disse: “Bem, uma coisa é certa: nesse assunto o demônio está querendo agitar, e agitar para eu não resolver bem, porque ele só pode querer que eu resolva mal”89 .
E pensei: “Primeira coisa que preciso fazer é rezar, pedir a Nossa Senhora que me faça ver com calma, sem bagunças nem efervescências. Segunda: manter toda a tranquilidade e confiança em Nossa Senhora, conservando a certeza de que Ela me fará ver claro. Terceira: não pensar
84 Jantar EANS 9/8/93 85 SD 4/3/95 86 Jantar EANS 9/8/93 87 Conversa ESB 25/6/82 88 Jantar EANS 9/8/93 89 Conversa ESB 25/6/82
nisto de momento, porque se começar a pensar eu tropeço. Vou me manter na paz de alma, resolvido a fazer aquilo que a graça me indicar ser o mais perfeito”90 .
Depois, com mais recuo, a resposta me foi surgindo. E corria mais ou menos na seguinte pista.
Na religião dos fenícios as pessoas adoravam Baal. E o modo de adorá-lo era fazer com que as mulheres se prostituíssem, sacrificando a Baal a sua virgindade, e que as crianças fossem devoradas pelo fogo, sacrificando a vida.
Minha reflexão: “A Igreja ensina que o modo de oferecer a virgindade a Deus é praticar a castidade perfeita. Se amanhã a Igreja viesse ensinar, por absurdo, que o verdadeiro modo é o dos fenícios, a obediência chegaria até lá? E se Ela passasse a recomendar o assassinato de crianças como na religião de Moloc, eu aprovaria isto, a minha obediência iria até lá?”
O homem não deve seguir aquilo que é evidentemente absurdo. Nem pode aderir ao contrário dos princípios fundamentais do bom senso. Para que o homem adira à Igreja, é preciso que na mente humana haja uns tantos princípios de sanidade que o leve a concordar com Ela. Se não há um princípio prévio, anterior ao ato de Fé, e segundo o qual se dê a adesão à Fé, essa adesão nunca seria possível. É segundo esse princípio que se analisam os dados da Fé.
E aqui não se trata de julgar como quem é juiz, mas em conferir.
Levei uns dois ou três anos mastigando esse problema, sem conseguir resolvê-lo. Até que um dia cheguei à solução vendo que, na encíclica Pacendi Domini Gregis, o movimento modernista “Le Sillon” pretendia que a única forma de governo legítima fosse a república. E que São Pio X respondia: “Isso não é verdade, as três formas de governo são legítimas”.
E pensei: “Está vendo aqui a história? Portanto, as três são legítimas. E o bom São Tomás, órgão de ouro para interpretar o pensamento da Igreja, se bem que não infalível ele próprio, ensina que a forma melhor é a monarquia. Está bem, agora confirmou-se o meu pensamento”91 .
Aí encontrei um verdadeiro alívio, porque percebi que entre as rochas passava a água límpida do rio verdadeiro. E tranquilizei-me completamente. E assim saí da provação que a moleza e a inabilidade do Abbé Calippe haviam aberto na minha alma.
No livro “Nobreza e elites tradicionais análogas”, enunciei essa solução com todos os cuidados de documentação, inclusive de São Tomás de Aquino. E quis que o livro tivesse altas aprovações para que os seus
90 Conversa ESB 25/6/82 e Percurso 22/10/93 91 Conversa ESB 25/6/82