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Um lenitivo: a leitura do “Livro da Confiança”
sofrimento, Deus perdoe a outros e conquiste outras almas, dando-lhes graças muito grandes, porque nós sofremos.
Eu me punha então este problema: “Quem sabe se Deus não quer que você seja uma vítima expiatória ignorada por todos? Tem possibilidades, recursos, talvez tenha até talentos para ser um homem incomum e prestar grandes serviços à Causa, mas condenado a ser um qualquer. Não será que você é mais útil à Igreja e à Contra-Revolução afundando assim, do que percorrendo ou fazendo a galopada heroica da Cruzada que você quer fazer? Então, o que devo esperar de Deus? Será esta vida assim ou a vida que eu desejava?”
Como toda a minha tendência ia para não ser a vítima expiatória, mas para ser o homem que ia para o campo de batalha lutar, achava que faria um sacrifício especialmente grande aceitando ser o contrário do que eu queria. Serviria melhor à Igreja na minha aniquilação do que na minha realização pessoal.
O que Deus queria de mim?
Pensava: “Essa doença que causa as nevralgias, não é, de repente, um câncer ou uma outra coisa qualquer que te leva cedo da vida, para que um outro ganhe a batalha que você ansiava tanto ganhar? Agora, quero ver como é seu amor de Deus. Você estava muito contente de ser alguém; você terá a mesma coragem de ser ninguém? Você aceita isso? Até que ponto você é um homem sério? Se for sério, você aceitará isto. Se você não aceitar, quer apenas representar um papel e mais nada. Então, não vale nada. Você não ama a Deus! Merece ser esquecido por Ele sobre a face da terra”.
A ideia de me oferecer assim era uma coisa que... Eu fiz o oferecimento, mas achava que alguma coisa não colava, que não era bem assim181. Alguma coisa dentro de minha alma me dizia: “Você não tem o direito de pensar assim, você tem obrigação de esperar que outra coisa aconteça, porque as velhas esperanças dos seus primeiros anos se realizarão.”
Além do mais, ao ler o “Livro da Confiança”, de que falarei a seguir, me parecia que a Providência queria que eu sobrevivesse e realizasse essa obra182 .
Um lenitivo: a leitura do “Livro da Confiança”
Fui formado pela Fräulein na ideia do esforço, da força de vontade, na ideia de pegar ao menos um pouco por alto algumas das grandes qualidades
181 SD 13/5/89 182 SD 25/4/92
do povo alemão. Mas então, também, na ideia da vida espiritual considerada assim também: tem que fazer, e lá vai a pau e pedra, não tem outro jeito.
Mas quando, no tempo de deputado, começaram a me cair uma série de desventuras sobre a cabeça, aí eu disse: “Contra isso não há pau e pedra, não há sistema alemão, não há Santo Inácio”.
Julgava Santo Inácio um arqui-alemão, embora soubesse bem que ele era basco. Mas o julgava assim, porque era “ali!”, categórico. Eu gosto muito das coisas “ali!” mesmo. Mas vi que, na situação em que estava, não tinha como: era deixar chover as desventuras. E deixei, dizendo-me: “Vamos ver o que é que sai”.
Foi aí que comprei, de um modo fortuito, o “Livro da Confiança”183 .
Morava no Rio perto de uma igreja, muito brasileiramente implantada no paradoxo. Porque a rua em que estava a igreja se chamava rua Benjamim Constant, um líder positivista medonho. Nessa rua se construiu a igreja do Sagrado Coração de Jesus do Rio de Janeiro.
Essa contradição não chocava ninguém. De modo muito brasileiro era tida como perfeitamente natural. Não sei de ninguém que tenha notado a contradição que me saltou aos olhos, logo que eu soube que a igreja do Sagrado Coração de Jesus era nessa rua.
Essa igreja ficava perto do meu hotel, e todos os dias comungava ali e voltava para o meu hotel184 .
Um dia estava nessa igreja e vi que se realizava uma feira de livros. O vigário, muito gentil, aproximou-se de mim e me disse: – Dr. Plinio, estamos fazendo uma feira de livros. Se o senhor a quiser visitar, muito bem. O lucro da feira se destina para tal coisa.
Era para uma obra boa qualquer. Equivalia a dizer: “O senhor dê-nos um dinheirinho”185 .
Devendo tantos favores a ele, não podia recusar, nem tinha vontade de recusar, porque ajudar aquela paróquia era uma coisa muito boa e eu tinha vontade de colaborar nessa forma de bem.
Terminada a Comunhão, fui correndo para a feira186. E a esmo comprei um livro, não muito gordo, e que, portanto, não devia ser muito caro. Não era em língua estrangeira, logo não era importante, era impresso em português e editado no Rio.
Eu disse: “Este aqui deve ser um livro barato, vou comprar este”. E disse sorrindo para ele: “Padre, compro este aqui”. Ele me disse sorrindo
183 CM 26/4/92 184 SD 7/9/83 185 SD 13/5/89 186 SD 14/9/91
também: “Pois não”. E deu-me o livro. Não quis sequer que ele embrulhasse. Eu estava com tanta pressa que não tinha tempo para isso. Paguei uma coisa qualquer para ele.
O livro era traduzido por Dona Mary Pessoa, uma senhora muito distinta, muito fina, muito católica, viúva do ex-Presidente da República Epitácio Pessoa. E mãe de uma religiosa. Eu pensei: “Deve ser um excelente português, porque isso deve ter sido revisto em português pelo Presidente Epitácio Pessoa”, que era um estilista de primeira. E realmente o português do “Livro da Confiança” é um português excelente187 .
Meti-me no automóvel correndo para o prédio da bancada paulista com o livro na mão. Assisti à reunião e, no final, à noite voltei para casa para dormir, coloquei o livro sobre um móvel qualquer do meu quarto e toquei a vida.
Afinal de contas, naquele dia ou no dia seguinte – já não me lembro bem –abri o livro e li essas palavras que, depois de tantos e tantos anos, eu me lembro tão bem: “Voz de Cristo, voz misteriosa da graça, Vós murmurais em nossos corações palavras de doçura e de paz”.
Causou-me uma impressão singular este fato concreto: eu estava amargurado, desorientado, sem saber a via de Nossa Senhora por onde andava comigo. Nunca, mas absolutamente nunca, ninguém me tinha falado da virtude da confiança como sendo uma virtude que o católico deva praticar. Não tinha ideia disso, mas eu entendia que confiar em Deus é uma coisa boa.
Lembro-me que o coro da paróquia em que me fiz congregado mariano cantava em latim: “Beatus homo qui confidit in Domino” – “Bem-aventurado o homem que confia no Senhor”. Eu acompanhava e gostava de ouvir aquilo; era uma canção que me dizia alguma coisa, mas não a aprofundava.
Agora, ao ler aquelas palavras, “Voz de Cristo, voz misteriosa da graça”, tive uma impressão curiosa: era como se uma atmosfera dulcíssima, cheia de afeto, penetrasse em mim e afastasse todos esses espantalhos e todos esses medos.
Senti alguma coisa que fazia desaparecer aquilo tudo, e que me dava uma certeza de que aqueles fantasmas de perspectivas e de preocupações futuras realmente iam desaparecer. E de que Nosso Senhor e Nossa Senhora resolveriam esses problemas que tanto me amarguravam.
Continuei a ler o livro, e em todas as frases que lia, ou em quase todas, a mesma impressão se produzia em mim188. Sentia no interior de minha alma alguma coisa que era como um lenitivo, uma coisa que sossega, que
187 SD 7/9/83 188 SD 14/9/91
tranquiliza, que figurativamente anestesia, que faz cessar as dores, e que faz um benefício à alma189 .
Minha impressão era de que eu entrava num bosque encantado onde davam flores maravilhosas, onde passarinhos cantavam do modo mais sonoro e mais agradável possível.
Mas, habituado a sempre raciocinar muito, e não conhecendo a doutrina católica a respeito da confiança, eu me dizia: – Tenho receio que isto seja uma ilusão minha, que não seja uma verdadeira graça. Tenho duas objeções contra essa graça. Em primeiro lugar, não se apresenta nenhuma razão razoável para eu confiar que Nossa Senhora vai me ajudar nesta emergência, porque não vejo no meu horizonte nada que me prometa uma solução. E o homem tem que ser concreto, o homem não pode viver de impressões interiores. Isto poderia ser para uma senhora sentimental do século XIX. Não sou senhora, não sou sentimental, não sou do século XIX! Para eu confiar, precisaria ter razões pão-pão, queijo-queijo, filhas da razão. Agora onde é que está a razão dentro dessa história?
E continuava meu raciocínio: – Depois, em certas horas do dia eu leio isto, e para mim é como se eu estivesse mascando serragem de madeira. Em outras horas eu leio, e é como se penetrasse um pedaço do céu dentro de minha alma. Que propósito tem isto?
E concluía: – Eu não entregarei minha alma a estas sensações interiores sem antes ter uma explicação de como é que isto tem fundamento na boa e ortodoxa doutrina da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.
Mas, não tinha remédio, era uma experiência curiosa. Abria o livro e penetrava em mim aquela doçura. No momento em que entrava essa doçura, as minhas perguntas desapareciam e percebia que aquilo era de Deus e de Nossa Senhora.
Evidente que aquilo era uma ação da graça. Mas, quando eu fechava o livro, aquela ação desaparecia e para mim não ficava evidente que era uma ação da graça. Então, eu precisava de provas190 . *
Ficou-me na cabeça essa dúvida: “E se a Providência não me quiser dar o que peço, com que direito espero aquilo que a Providência vai me dar?”
189 SD 25/4/92 190 SD 14/9/91
O livro não enfrenta com muita clareza esse problema. Mas às horas tantas dá algumas coordenadas para isso. E é que há circunstâncias pelas quais a gente pode divisar o caminho da Providência para nós. E quando esse é o caminho da Providência, nós aí devemos confiar, porque Ela não nos deixa esperar em vão.
Às vezes, nós vemos que o caminho da Providência não é esse, então nós devemos nos resignar. Mas às vezes podemos perceber que é esse o caminho da Providência. E então devemos esperar contra toda esperança. E é essa esperança contra toda esperança que dá a vitória a todo aquele que espera.
Estava en aquel entonces com a alma muito opressa. Quando, em dias consecutivos, fui lendo aquilo, isso foi desanuviando a minha alma. Entrava uma suavidade no espírito, uma coisa que percebia ser uma graça, e eu dizia: “Bem, devo então esperar. Agora, como esperar? Não sei também. Mas vamos tocar, vamos esperar. E esperarei. Ao menos isto posso fazer, e farei”191 .
O “Livro da Confiança” chegou no ponto, na hora certa, em face do problema espiritual mais importante para o meu progresso naquele tempo, que era de compreender que Deus quer de nós que demos tudo a Ele.
Ele, além disto, quer que nós reconheçamos que aquilo que nós demos, e que era preciso dar, não basta para obter o que nós queríamos. Nosso sacrifício nunca é suficiente. É preciso que Ele, por misericórdia, nos dê aquilo que nós imaginávamos que podíamos exigir por justiça; e que ficássemos, portanto, dependentes d’Ele pela insistência das nossas orações.
Entrava aqui, no dinamismo da minha vida espiritual, um fator novo: a oração. E no fator novo entrava ainda um dado novo a mais: a confiança. Quer dizer, uma vez que a pessoa pedisse com confiança, então poderia obter aquilo que queria; sem confiança, a pessoa não obteria.
Então, eram três elementos: entrega inteira de si; pedido a Deus, porque o preço pago por nós não basta, e, portanto, oração; e, terceiro, confiança que a oração seria atendida, mas por misericórdia d’Ele e não por justiça.
Esse terceiro fator aprendi no “Livro da Confiança”. Mas aprendi de um modo curioso, pois o livro me parecia dizer o seguinte: “Se você confiar em Nossa Senhora, Ela abre um caminho dentro dessa rocha para
191 SD 7/9/83