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Novamente escrúpulos e a provação axiológica
Este horror era agravado pelo fato de que vi desde o começo o que estava nesse erro novo, era um requinte da Revolução. E que, portanto, ao que estava aderindo a grande maioria do clero era o requinte da Revolução, e o quanto isto era uma coisa abominável, detestável. Representava uma punhalada pelas costas em tudo aquilo que eu amava245 .
Novamente escrúpulos e a provação axiológica
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Não sei se os senhores fazem a ideia da impressão que representa um apostolado que Deus parece ter abandonado. Depois de graças e graças que chegam ao auge, ficar com a impressão de um inverno em que todas as folhas vão caindo.
A impressão é de que Deus se voltou contra nós com todas as suas armas para nos esmagar. Não teria havido algum defeito moral nosso, alguma falha na nossa vida espiritual que teria sido a causa de Deus nos abandonar? Quem é que poderia saber?
Esta incerteza era o pior. Porque não bastava dizer: “Deus tem os seus caminhos, durma em paz”. Sim, mas isso quando aparece um anjo e diz: “Você não tem culpa”. Mas onde é que está esse anjo? Aí é que está a questão. De maneira que eu confesso que o sofrimento dessa ocasião foi uma coisa de escalpelar246 .
Contra nós se verificava um velho provérbio que meu pai costumava citar: “Atrás dos apedrejados correm as pedras”. O sentido do provérbio é: quando alguém é apedrejado, todos os outros também lançam pedras nele. Parecia que o esmagamento inglório seria o fim único de tudo quanto tínhamos feito até aquele momento247 .
O movimento que eu queria desencadear era fundamentalmente dependente da graça. Ora, a graça vem muito frequentemente na proporção em que o próprio apóstolo corresponda a ela. E eu tinha um escrúpulo de consciência muito forte a esse respeito: “Esses infortúnios com que eu não contava, não serão um modo de a Providência me dar a entender que não está contente comigo? Como é isto? Não haverá uma imperfeição de minha parte?”
245 Chá SRM 12/4/89 246 Palestra sobre Memórias (VIII) 13/8/54 247 SD 8/4/89
Bom, a resposta é muito simples: “Faça seu exame de consciência. Se você notar que há, corrija-se. Se não notar, tranquilize-se”. E esquematicamente é isto mesmo.
Mas pouco antes tinha lido alguma coisa num dos salmos, que me tinha impressionado profundamente e que falava do pecado oculto. O pecado oculto é uma imperfeição que a pessoa pode ter na alma sem ter-se dado conta por tibieza ou por falta de honestidade, porque não quis olhar seu defeito de frente.
Então toco a raspar minha alma para ver se tinha algum pecado oculto. É o razoável. E aí o pavor de, por alguma infidelidade que eu não encontrava, mas que podia existir, estar comprometendo tudo o que estava acontecendo.
Se não fosse esta provação, eu teria passado por tudo isso carregando o décimo do peso.
Para agravar esta provação, eu tinha mais uma outra. Olhava certos fatos em torno de mim e tinha impressão de que esses fatos eram carregados de um significado. Conto um desses fatos.
Em frente ao prédio da nossa sede da rua Martim Francisco havia uma árvore cujas raízes cresceram com protuberância, e a toda hora quebravam o calçamento que estava lá. Vinha a prefeitura, consertava, instalava as boças daquela árvore num cimento mais tenaz, e a árvore quebrava de novo. Era uma árvore feia e de garras possantes. De um lado.
De outro lado, por coisas que eu nunca examinei a fundo, tendo eu naquele tempo uma constituição física muito robusta e muito normal, e andando a passos largos e decididos, havia em mim uma qualquer coisa – deve ser uma coisa anatômica – em virtude da qual com muita facilidade eu torcia o tornozelo. E tinha também uma certa facilidade em cair no chão, encontrando obstáculos diante de mim. É preciso dizer que não prestava atenção, porque eu ia andando à la ... Havia um obstáculo, eu não tinha prestado atenção, ia para o chão.
Numa noite, vínhamos a pé, do centro da cidade para a rua Martim Francisco, vários ou todos do nosso Grupo. Subíamos a pé a rua Martim Francisco, coisa de que eu não gostava, mas eles gostavam muito.
Bem, e estava falando com eles justamente de que eu tinha medo do problema da incorrespondência à graça. Eles me diziam que eu estava tomando por demais ao trágico o que estava acontecendo. Retruquei: “Vocês não sabem, mas o meu receio é este”.
Quando eu disse: “O meu receio é este”, todas as luzes da cidade se apagaram, eu tropecei naquele tronco, e – pssst! – caí no chão. Se não fosse
ter caído com muito jeito, eu teria machucado o rosto pavorosamente. E me perguntei: “Não será um sinal”?248
Como este, houve assim mais um ou outro episódio, e nenhum deles em sentido favorável. Então tocava-me lixar ainda mais para ver se encontrava o tal pecado oculto. Confesso que até agora não encontrei.
Nisso tudo vi que a Providência às vezes faz conosco o que fez com Jó. É um direito d’Ela. Ela fará o que quiser249 . *
Quando fiz 50 anos, no dia de meu aniversário eu não podia sair de São Paulo por causa de Dona Lucilia. Não ia deixá-la no dia de meus anos, ela não compreenderia.
Passei então o dia inteiro na rua Aureliano Coutinho, onde havia uma sala em que fazíamos habitualmente as reuniões do MNF. Passei o dia inteiro ali, só fui para casa para almoçar e voltei para lá, exclusivamente para refazer meu exame de consciência: me examinar ponto por ponto, esquadrinhando-me com a maior severidade, transformando-me em inimigo de mim mesmo para descobrir, dentro de mim, o que eu pudesse apontar a mim como causa daquele desvio de nosso caminho.
Por que não dizer? Tive medo, dentro dessa situação, tive medo da vida que, diante disso, se descortinava para mim: vida de sofrimento, de decepção, de opróbrio, de nenhuma perspectiva de realização das esperanças primeiras que eu tivera, de uma série de fatos pequenos e grandes que poderiam não ter acontecido, e que chegaram a me dar a impressão de uma rejeição de Nossa Senhora.
Eu lhes garanto que sofri muito com toda essa fase de perplexidade e de dúvida, até compreender que não, que isto era um caminho, que era normal, e que nós não estávamos desviados de nossa trajetória, mas que todo esse drama era um drama que estava no caminho; inclusive a surpresa desse drama também estava em nosso caminho, e que era preciso avançar.
Eu já lhes contei que em uma ocasião – os do Grupo da Martim não tinham ainda aderido a nós, nem os conhecíamos nessa ocasião – estávamos, os seis ou sete que constituíam o grupo inicial, que era o rescaldo do incêndio do “Legionário”, reunidos na sede do andar térreo da Martim Francisco. Era tal a monotonia de vida naquela situação que não apresentava progresso, que não se compreendia o que é que estávamos fazendo reunidos ali.
248 Almoço EANS 9/4/87 249 Almoço EANS 9/4/87