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O amigo da Cruz que se prepara para carregá-la prevendo a dor

Tive vários períodos de minha vida em que fiz o papel do apedrejado atrás do qual correm as pedras. E cheguei até esta idade. Nós devemos nos preparar para que coisas dessas aconteçam conosco também.

Não se alcança a verdadeira grandeza sem ter sido muitas vezes na vida o apedrejado atrás do qual correm as pedras, porque até lá vão as coisas451 . *

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Em minha vida levei comigo todos os aspectos da derrota, do fracasso, da rejeição. Não houve fruto de humilhação que eu não comesse, não houve lágrima de isolamento, de repúdio e de dor que não vertesse.

Mas quando do meu corpo sair a última gota de sangue, quando os meus olhos verterem a última lágrima, eu poderei dizer: “Bonum certamen certavi, cursum consummavi” (2 Timóteo, 4, 7). E com a segurança de quem passa um cheque para o Céu, farei a minha cobrança de joelhos e com a alma transbordante de amor: “Senhor, dai-me agora o prêmio de vossa glória”452 .

O amigo da Cruz que se prepara para carregá-la prevendo a dor

Em toda a minha vida, o que mais me falou à alma a respeito da Paixão de Nosso Senhor foi o lance da oração no Horto das Oliveiras453 . É mesmo um dos pontos de minha mais intensa devoção a Nosso Senhor Jesus Cristo. Porque aí, na humanidade santíssima d’Ele, de um modo sublime, sem nenhuma comparação com nenhuma mera criatura, passou-se algo que tem analogia com nossa situação454 .

Isto me toca mais do que a Flagelação ou a Coroação de Espinhos455 . Sempre tive um respeito e uma adoração por Ele no Horto, mais até do que na Cruz, porque notava que Ele estava sofrendo um martírio que eu teria que sofrer depois. De alguma forma, a minha vida até aqui tem sido 80 anos de agonia no Horto456 .

451 CM 20/1/91 452 Chá SB 17/3/93 453 Chá SRM 4/7/94 454 CSN 23/10/80 455 Chá SRM 4/7/94 456 MNF 12/4/89

Essa deliberação de cumprir a vontade de Deus até o fim, desde que fosse inexorável, e de caminhar para o futuro assim, quer dizer, pedindo o auxílio de Nossa Senhora e depois bebendo a taça da dor por inteiro até à última gota, essa deliberação explicavelmente me levava à adoração e ao respeito que os senhores podem imaginar457 .

No Horto das Oliveiras, a natureza humana d’Ele voltou-se inteira para o que ia acontecer e preparou-se para aquilo. Aquela previsão era tão terrível que Ele suou sangue. Chegou mesmo a pedir a Deus Padre: “Se for possível, afaste-se de mim esse cálice; se não for, faça-se a vossa vontade, não a minha” 458 .

Ele ia imergir num rio de dores. Ele fez o balanço de tudo o que ia sofrer, não como quem hesita, mas como quem quer medir exatamente o tamanho da cruz; não para saber se a põe nas costas, mas para ter bem a consciência do tamanho da cruz que Ele ia carregar.

Sei perfeitamente que o corpo divino d’Ele ainda não estava lacerado por nenhuma pancada de bandidos, que a sua integridade física ainda era completa. Mas o que me falava era essa paixão de alma, esse martírio de alma em que a pessoa, com toda a lealdade, com toda a precisão, olha de frente o que tem de ver.

Ele sabia que viria para Ele tudo isso. Mas Ele, em sua natureza humana, considerava a possibilidade de não vir. E podendo não vir sem diminuição da glória de Deus, sem diminuição da glória d’Ele, Ele preferia naturalmente que não viesse.

Daí aquela prece, em que vemos todo o desejo de evitar o sofrimento: “Si fieri potest” – “Se for possível, afaste-se de mim esse cálice”. Mas, se não for possível, “faça-se a vossa vontade e não a minha”.

Foi, portanto, uma opção, diante da qual Ele se soube colocado; e essa opção Ele a quis realizar até o fim, bebendo o cálice até a última gota da amargura, sem diminuir nada. E foi o que Ele fez459 .

Eu entrevia que, provavelmente nessa hora, Ele expiou por todos os moles, por todos os otimistas que quisessem pedir a Ele graças, por meio da Mãe d’Ele460 .

457 CSN 23/10/80 458 CSN 23/10/80 459 Chá SRM 4/7/94 460 CSN 23/10/80

Assim é conosco. Se olharmos bem de frente o que nos espera, devemos pedir forças, porque sem forças extraordinárias nós não aguentamos. E devemos nos preparar desta maneira para o que der e vier461 . *

Diante das aflições, das incertezas e das dores, devemos pedir a Ele: “Pela Agonia Santíssima no Horto das Oliveiras, eu vos peço, dai-me essa graça”462 .

Sempre tive muito em vista o seguinte fato, comum a todos os homens: quando aparece uma perspectiva muito desagradável, temos uma tendência a não olhar de frente e não pensar naquilo.

E se o perigo parece ainda longínquo, ainda incerto, tendemos a exagerar para nossa própria imaginação as possibilidades que aquilo não se realizará.

Mas à medida em que o perigo vai-se aproximando, a pessoa fica dividida entre o medo de que ele se concretize, e uma esperança tola e infundada de que não se realize.

Toda a vida tive muito medo de que esse defeito se instalasse em minha alma. E tive muito em vista a agonia de Nosso Senhor Jesus Cristo no Horto, porque ali Ele nos deu o exemplo do contrário.

Ele sabia que a hora d’Ele tinha chegado. Na Santa Ceia Ele falou disso aos Apóstolos. Já anteriormente tinha falado disso e conversado com os Apóstolos. Várias vezes preparou o espírito deles para a ideia de que o santo sacrifício da Cruz tinha chegado.

Mas tudo isso Ele aguentou porque Ele previu, pediu forças e venceu. Então, o caminho do homem na perspectiva da dor é prever, pedir forças e aguentar.

Procuro fazer isto, repito, em todos os episódios ou perspectivas amargas de minha vida. E aconselho aos senhores a prever.

Apareceu o fato doloroso, apareceu a possibilidade de sofrermos por causa disso ou daquilo, a primeira coisa é prever e olhar até o fim a pior possibilidade. Depois pedir forças para aguentar, se vier aquela possibilidade. E para aguentar, não devemos diminuir o alcance do risco em nada.

461 Chá SRM 4/7/94 462 CSN 23/10/80

Devemos preferir exagerar a probabilidade desse risco a exagerar a quota de achar que não vai acontecer.

Se acontecer, pedir forças, é claro. E então seguirmos adiante.

Sem pedir forças não se aguenta nada. O homem que não pede apoio da graça não terá forças para os sacrifícios de sua vida.

Antes de escrever o “Em Defesa da Ação Católica”, vi o que vinha. Procurei ver até o fim, procurei ver até onde me era possível ver com os dados de que dispunha. E percebi bem que se caminhava para aquilo que se poderia chamar, entre aspas, o “assassinato da Igreja”, quer dizer, o extermínio da Igreja.

E percebi genericamente – porque os dados não me davam para ver mais do que isso – que era preciso me preparar. Pedi forças e meti isto na cabeça: “Você vai caminhar para o último, peça sempre forças e caminhe”463 . *

Não fujo da má notícia. Vou por cima dela, para ela me chegar logo e eu engoli-la sem demora, e o caso ficar resolvido, em vez de ficar procurando não ver, fugir, deixar para amanhã, e essas coisas que fazem os poltrões.

No total, se for preciso, ela me domina, ou seja, a má notícia se impõe a mim como fato consumado. Tem que se enfrentar? Enfrenta-se e está acabado, não tem conversa. Mas devemos ir para a frente!

O correr por cima da má notícia não é ser pessimista, é ser realista e querer ter a realidade na mão o mais cedo possível. Mas é uma atitude que, por sua vez, representa uma excelência dentro do sofrimento, porque é a decisão tão decidida, que até vai de encontro a ele464 . *

Quase nunca, e só em circunstâncias muito particulares é que tenho pedido a Nossa Senhora para aliviar alguma de minhas cruzes, isto para não diminuir o peso do que devo carregar465 .

O homem que de boa vontade sofre por Nosso Senhor, não pode se transformar numa caixa de gemidos. Se resolvi sofrer por Ele qualquer coisa, vá até onde vá, não posso ter surpresa de encontrar a cruz d’Ele no meu caminho. Por isso não sou uma alma plangente.

463 Chá PS 19/7/89 464 Chá SRM 19/9/88 465 Chá SRM 18/10/92

Também não sou uma alma endurecida. Os senhores nunca me viram tomar diante do sofrimento uma atitude “peituda”, que avança. Também não me viram numa atitude de homem frio, que olha para si mesmo sem compaixão e que diz para si próprio: “Apanha, burro de carga!”

Sou um amigo da cruz tanto quanto Nossa Senhora me ajuda a ser. E tenho consideração para com a minha própria dor.

Eu a sinto. Mas devo traçar limites para ela. Quer dizer, minha dor ocupa na minha vida tal espaço. Seria indigno que não ocupasse. Não seria conveniente que ocupasse um espaço maior.

E devo agradecer a Nossa Senhora quando Ela me dá alguma alegria. Por pequena que seja a alegria, eu a devo receber de boa vontade, valorizá-la em toda a linha, fazer disso a minha satisfação, para depois, quando eu sofrer, estar repousado do meu sofrimento e poder sofrer mais por Ela.

O caminho que escolhi foi este. E quero tudo no mundo, menos tomar outro caminho. Então por aí vou.

Esse sofrimento só não tem o direito de ser uma coisa: é pena de si. Isto não!

Como é que posso ter pena de mim? Seria meio voltar atrás no caminho da cruz que tomei. Eu não!

Quando dei o primeiro passo e entendi o que era o caminho da cruz, fui para lá466 .

O exemplo disso para mim é a iconografia do Sagrado Coração de Jesus. Todas as imagens, do tempo em que se faziam imagens boas do Sagrado Coração de Jesus, o apresentam com o coração coroado de espinhos e transpassado, ferido por uma dor.

Em cima, ardendo, uma bonita chama de amor de Deus, de virtude, e apontando o coração para os outros verem o que Ele sofria. Mas Ele está sorridente, afável, bondoso, digno e – por que não dizer? – até nobre: é Rei! É Rex dolorum, mas é Rex charitatis, Rei do amor de Deus, Rei do amor dos outros; aquele equilíbrio é um prodígio de equilíbrio.

Isto me fala à alma o mais profundamente possível: Nosso Senhor melancólico, mas cheio de bem-estar, espargindo bem-estar em torno de si467 .

466 Chá SRM 24/1/89 467 MNF 6/12/85

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