7 minute read

O espírito de sacrifício até o holocausto e o desejo de reparação

É esta a minha preocupação preponderante, e foi sempre, sempre, sempre. Os senhores encontram o reflexo desta preocupação na “Oração da Restauração”438 .

É o inexorável receio de não ter sido o que deveria ser, gemendo aos pés de Nossa Senhora e pedindo para ser, afinal, o que devia ser.

Advertisement

Aí os senhores têm o ponto central em torno do qual está sempre meu pensamento.

Lembro-me de que, quando comecei a ler os Salmos, li este versículo que até hoje me está no espírito: “Tibi soli ego peccavi, et contra me peccatum meum est semper”439 .

“Tibi soli ego peccavi”. Não adianta dizer que é pequeno: é um pecado e não devia existir. Eu, só, pequei diante de ti. Quer dizer, não me venha com circunstâncias que “outros ajudaram”. Pequei porque quis pecar. Logo, o responsável essencial sou eu, o resto é lorota440 .

O espírito de sacrifício até o holocausto e o desejo de reparação

É preciso ver aqui o que se entende por holocausto: não é necessariamente a morte, a imolação da vida. É o ato pelo qual a pessoa que sente em si o enlevo, que foi habitada por ele, deseja três coisas que constituem uma espécie de hierarquia: dar; dar de si; dar-se por inteiro.

Primeiro grau do enlevo: dar. Quando uma pessoa está em contato com uma ideia, com um princípio, com uma instituição, com uma pessoa que lhe produz enlevo – digo mais, às vezes até com uma obra de arte – ela é tendente, num primeiro grau, a dar. É o dar por um puro amor à coisa,

438 O texto desta oração é o seguinte: “Há momentos, minha Mãe, em que minha alma se sente, no que tem de mais fundo, tocada por uma saudade indizível. Tenho saudades da época em que eu Vos amava, e Vós me amáveis na atmosfera primaveril de minha vida espiritual. / “Tenho saudades de Vós, Senhora, e do paraíso que punha em mim a grande comunicação que tinha convosco. / “Não tendes também Vós, Senhora, saudades desse tempo? Não tendes saudades da bondade que havia naquele filho que fui? / “Vinde, pois, ó melhor de todas as mães, e por amor ao que desabrochava em mim, restaurai-me: recomponde em mim o amor a Vós, e fazei de mim a plena realização daquele filho sem mancha que eu teria sido se não fosse tanta miséria. / “Dai-me, ó Mãe, um coração arrependido e humilhado, e fazei luzir novamente aos meus olhos aquilo que, pelo esplendor de vossa graça, eu começara a amar tanto e tanto. / “Lembrai-Vos, Senhora, deste Davi e de toda a doçura que nele púnheis. Assim seja”. 439 Chá SB 12/6/95 440 Chá SB 12/6/95

sem pensar nem um pouco em si, por uma necessidade de dar que vai até o supérfluo: procura adornar, procura enfeitar, procura melhorar por uma espécie de tributo à coisa que provocou o enlevo.

Segundo grau do enlevo: dar de si. O segundo grau já não é simplesmente o dar, mas dar de si. Enquanto a pessoa não deu algo de si, não se sente bem.

Terceiro grau do enlevo: dar-se inteiramente. O terceiro grau de enlevo não leva apenas a dar de si, mas a dar-se inteiramente. É uma espécie de necessidade de não conservar nada de seu, um remorso de ter qualquer coisa de seu. E de tal maneira não o quer que põe sua felicidade no ter dado tudo: “Aqui está tudo; vim trazer tudo, não quero nada. Eu me dou por inteiro”.

Aqui está propriamente o holocausto. Sua substância não é só expor a vida. Expor a vida é um aspecto, um sintoma disso. A substância do holocausto é ter sido tal que aquilo se transformou nele, e ele se transformou naquilo.

Isto é o que devemos procurar fazer com a Igreja Católica. Quer dizer, tomá-La em seu conjunto: na sua doutrina, nos seus Sacramentos, na vida sobrenatural, na hierarquia, na história dos santos, na história das perseguições que Ela sofreu, nas lutas que venceu e que perdeu. Tomar tudo isso no conjunto, considerando a Igreja no organismo vivo que Ela é, e procurar ter em nossa alma o espírito inteiro da Igreja Católica.

Uma vez ouvi um elogio feito – não me lembro mais de quem – expresso em latim. Estremeci até os meus ossos quando o ouvi, por me parecer o máximo elogio que se possa fazer de um homem. Fora desse elogio, nada é elogio. Lembro-me até das palavras em latim: “Fuit vir catholicus et totus apostolicus”.

Depois do pecado original e depois da Redenção, o estado doloroso, o estado de paixão é o que produz o enlevo maior. Isto explica certa nota de fundo de tristeza – mas enlevada, superior, radiosa – que domina a alma do verdadeiro católico e lhe tira aquela alegria fandangueira e maxixeira.

Vem então uma espécie de nota do nosso amor ao sublime, do amor ao maravilhoso, que falta, por exemplo, no castelo de Chambord.

Qual é essa nota? Toda coisa verdadeiramente sublime, segundo o espírito católico, tem que ter, no seu ponto mais íntimo, mais alto, uma certa nota de tristeza e de nostalgia nada românticas, mas verdadeiras e sérias. As coisas góticas são lindas porque a Paixão de Nosso Senhor está ali presente441 .

441 CB 27/5/67

Toda a vida eu quis, com toda a alma, lutar pela Igreja e demolir a Revolução, e estabelecer uma ordem católica que ainda não se apresentava ao meu espírito com a fórmula e a precisão do termo “Reino de Maria”.

O que eu não via, e levei muito tempo a ver, é que isto traria necessariamente uma série enorme de renúncias que eu teria de fazer, e que me parecia extremamente doloroso ter de renunciar.

Julgava até o contrário: que a ascensão de minha pessoa a todas as formas e graus de riqueza, de cargos, de influência, serviriam ao Reino de Maria, e que havia um feliz conúbio entre a minha carreira e as minhas mais legítimas aspirações de católico.

Quando fui vendo que era o contrário, eu sofri. Foi um sofrimento grande que tive de repetir várias vezes, e tive que me habituar a isto. Mas não foi a grande tragédia de minha vida442 . *

Os senhores nunca me viram triste, nunca me viram dizer ou me queixar que a minha vida é ruim. E mesmo agora, quando digo que tenho uma vida muito difícil, não estou dizendo que sou infeliz.

Estou sempre animado, estou sempre contente e ajudando os outros a carregar pesos mais leves do que o peso que carrego443. Sei que pareço uma pessoa bem-disposta e animada, e graças a Deus o sou. Mas o que sofro nenhum dos senhores imagina o que é. Mas um pouco que pensassem dava para imaginar444 .

Se se considera a minha vida, e em geral a vida de todos os membros da TFP, os sofrimentos físicos são relativamente poucos. Os sofrimentos que toda a vida tive foram os sofrimentos de alma. E esses sofrimentos de alma me tomaram desde que comecei minha vida fora da atmosfera materna, ou seja, desde que entrei no Colégio São Luís até hoje, ininterruptamente445 .

Por exemplo, o desastre que sofri. Sofro dores? Não me parecem muitas. Mas sofro incômodos físicos de toda ordem, e o incômodo é a seu

442 RN 12/8/75 443 Chá SRM 19/9/88 444 CSN 24/10/81 445 Chá PS 27/11/87

modo um sofrimento. Mas não é nada em comparação com o sofrimento da alma séria.

Quer quando tive a crise da diabetes em 1967, quer no desastre de automóvel de 1975, a sensação de ter chegado ao teto do sofrimento físico eu não tive.

Agora, o sofrimento moral, o sofrimento de alma é incomparavelmente maior para quem tem de fato a alma constituída como elemento principal de seu ser, para quem tem a alma entronizada em seu ser. E para quem, portanto, a reflexão, o pensamento, a ponderação das coisas, a avaliação das situações, a tomada séria de posição diante dessas coisas, faz sofrer mesmo, porque supõe isto446 .

Envelheço na tormenta, na paulada, na batalha insana, trabalhando como talvez muitos moços não trabalham, e apanhando. Desde que abro os meus olhos de manhã, encontro diante de mim a aflição. E quando os fecho à noite, fecho-os para fugir da aflição447 .

Convido os senhores a me acompanharem no caminho da dor: tomarem esse caminho, sofrerem, apanharem com mansidão448. A minha liderança é um convite contínuo ao sofrimento. Dou o exemplo contínuo da maior confiança e da maior paciência nos revezes de toda ordem, não só externos como internos. O que sofro é gigantesco449 . *

Na minha vida tem sido raro vir uma provação isolada. Quando vem, vem assim como um cacho de uvas, como um cacho de provações, vêm umas depois das outras, e constituindo um conjunto450 .

Meu pai costumava utilizar uma expressão que, creio eu, é de Pernambuco. Quando ele via uma pessoa a quem aconteciam consecutivamente várias desgraças, dizia: “Atrás do apedrejado correm as pedras”.

A ideia era de que, quando uma pessoa começa a sofrer um infortúnio, os outros infortúnios correm atrás. Por exemplo, perdeu a fortuna, pouco depois perde os amigos, e perde não sei mais o quê. É um pouco o caminho de Jó. Então Jó seria o tipo do apedrejado atrás do qual correm as pedras.

446 CSN 25/9/82 447 MNF 5/10/79 448 CA 19/1/89 449 CA 19/1/89 450 Chá SRM 14/11/94

This article is from: