Revista Noize #72 - Liniker - Julho| Agosto | Setembro 2017

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REVISTA / SITE / RECORD CLUB

#72 // Ano 11

expediente

Coordenador de Projeto Thiago Piccoli Editora Marília Feix

NOIZE COMUNICAÇÃO Direção Leandro Pinheiro Pablo Rocha Rafael Rocha Gerente Financeiro Pedro Pares Recursos Humanos Sandra Fagundes Gerente de Planejamento Cássio Konzen Diretor de Criação Rafael Rocha Diretor de Arte Jaciel Kaule Diretor de Arte Jr. Isabela Daudt Lucas Abreu Lucas Ribeiro Nilo Moraes Produção Nicole Fochesatto Vídeo Bernardo Winck Denis Carrion Diego Farias Jonas Pires Pedro Krum Shandler Franco Foto Mell Helade

Repórter Ariel Fagundes

NOIZE FUZZ

Funk, “funzy”, groove e

Editor Leonardo Baldessarelli

soul balançam as páginas da #Noize72, inspirada

Coordenação de Projetos Luciana Fumagalli Pedro Webber

pela liberdade corajosa de Remonta, álbum de estreia

Redação Daniela Barbosa Guilherme Flores Marta Karrer Pedro Heps Rodrigo Laux Tássia Costa Victória Favero

de Liniker e Os Caramelows. Do interior de São Paulo para o mundo, esse disco

Planejamento Bernardo Costa Carolina Santos Dionisio Urbim Eric Souza Julia Brito Juliano Mosena

que já nasceu desconstruindo

Mídia Aline Oelrich Kathiry Veiga

pela primeira vez em vinil.

Community Manager Maurício Teixeira

“Remonta é uma vivência,”

padrões sociais e lógicas de mercado, chega agora em suas mãos para ser tocado

já diria Liniker. E este é

GRITO

um convite para você sentir cada música e se reinventar

Gerente de Planejamento Marcel Maineri

todos os dias.

Coordenação de Projetos Carolina Farias Editor Pedro Veloso Redação Camila Benvegnú Jéssica Teles Joana Barboza Lucas Regio

Marília Feix

NOIZE BOOST boost@boost.mn boost.mn

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colaboradores

noize.com.br

Os Caramelows Grupo que acompanha Liniker desde as suas primeiras gravações até hoje. Na seção Como Fazer, eles ensinam a montar um pedal de efeitos

Liniker Barros

caseiro.

Com 22 anos e apenas um disco lançado, já é uma das principais cantoras brasileiras da atualidade. Aqui, escreveu sobre o Baile do Carmo, tradicional festa negra de Araraquara (SP), sua cidade

Elisa Lucinda

natal.

Atriz, cantora, poetisa e jornalista com cerca de 30

Leonardo Baldessarelli

anos de carreira. Amiga de Liniker, fez para ela uma série de poemas em homenagem ao

Jornalista e publicitário. Fã do

Remonta.

bizarro, do surpreendente e do mentiroso - ainda não se sabe se isso é bom ou ruim, mas segue confundindo vida e música como uma coisa só.

Anelis Assumpção Cantora e compositora com dois álbuns solo e apresentadora de rádio e TV, é filha de Itamar Assumpção e casada com Curumin. Aqui, é autora da entrevista com Linn da Quebrada. 5


_ texto Ariel Fagundes _fotos Giovanni Ceconello

5 perguntas para

Assucena Assucena e Raquel Virgínia Com doçura e com pimenta, As Bahias e A Cozinha Mineira entrou no caldo da música brasileira trazendo um tempero único. Após a estreia retumbante no disco Mulher (2015) e antes do novíssimo álbum Bixa (2017), as cantoras à frente da banda foram convidadas de honra do Remonta. Junto a Liniker, Pabllo Vittar, Linn da Quebrada, Lia Clark e tantas outras, Raquel e Assucena são artistas que levantam o debate sobre a diversidade sexual e de gênero no Brasil. Considerando que nosso país é o campeão mundial da violência contra as minorias sexuais, onde uma pessoa LGBT é assassinada a cada 25 horas*, o sucesso dessas artistas tem um grande peso simbólico e é sobre isso que conversamos ao lado.

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3) Que mudanças viram no cenário musical brasileiro em relação às pessoas trans? Ao que tudo indica as pessoas estão tentando entender, inclusive a imprensa está tentando entender. Isso é muito bom. Mas ainda existe muito debate e liberdade a se construir pela frente. Otimismo!

envolvem a exposição e os bastidores disso tudo.

1) Qual foi o maior desafio que vocês tiveram que enfrentar para se lançar enquanto artistas e como vocês o superaram? A maior dificuldade é conseguir administrar a parte financeira com o respeito à maturação da obra. Depois, administrar o cotidiano intenso, tanto em relação aos desafios materiais para fazer uma obra acontecer e chegar ao público, como também os desafios emocionais que

2) Em algum momento de suas carreiras, vocês sentiram medo? Do quê? Agora. Muitas coisas dão medo: o racismo cotidiano, as transfobias... Porém, a carreira é pautada por desafios, desde o recente começo até agora, o que encaramos são desafios. Mas isso tudo nos faz sentir vivas... 7

4) Pelo sucesso da banda, vocês se tornam representações vivas de várias causas para várias pessoas. Como lidam com as projeções e expectativas do público sobre vocês? Com naturalidade e de um jeito orgânico, na medida do possível. Não nos forçamos a nada! Fazemos com que a essência política nos mova, sempre fomos muito ativas em debates de temas como o racismo e sempre seremos. 5) Há cada vez mais artistas que fogem do padrão de gênero binário se destacando no Brasil. Vocês veem uma cena se formando ou sentem que é leviano agrupar artistas diferentes baseado nesse critério? É importante agrupar desde que se entenda a universalidade que existe em todas nós e nossas diferenças. Somos normais.


Bandas que você

_ texto Leonardo Baldessarelli _foto Arnaldo Belotto

não conhece mas

deveria

TUYO facebook.com/ /LilianeLayaneOficial

- O que você esperaria desses três aí da foto só de ver eles, assim? - Olha, não sei bem o que dizer. Eles são estilosos, têm cabelos lindos e, pensando bem, parecem ser brasileiros. Estou certo? Acertou na mosca. Eles são tudo isso e também têm um projeto lindo, chamado TUYO. - Ah, bem que eu desconfiei que já tinha visto algum deles por aí. - E é bem possível que já tenha visto mesmo. As duas mulheres da foto são a Lilian e a Layane - elas já se apresentaram no The Voice em 2016 e conquistaram muita gente com as vozes delas. Elas são irmãs e cantam juntas desde a infância, então já dá pra imaginar o 8

nível de sintonia que tem no meio. E o cara se chama Jean, é multi-instrumentista (mas foca no violão) e é marido da Lilian há um bom tempo. Eles até já comentaram que são quase uma “banda familiar”, mas não pense nisso como um sinônimo de som simples. - Tá, peraí: então elas são vocalistas e o cara toca os instrumentos, é isso? - Mais ou menos isso. Os três escrevem e compõem separados quase sempre, mas pensam as músicas juntos - então não é bem só ele quem se mete nos instrumentos. Porém, ao vivo o instrumental costuma ficar mais para o Jean, já que a Lilian e a Layane se concentram muito para mandar uma performance vocal absurda, o que é um


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dos grandes diferenciais da banda. - E elas realmente cantam tão bem? - Olha, não quero exagerar, mas talvez elas formem o “par” de vozes que mais me impressionou nos últimos anos, principalmente na música brasileira. Cada uma delas canta muito bem, mas são juntas que elas realmente fazem um espetáculo - sendo uma mais aguda e a outra mais grave e tendo timbres característicos e que se encaixam muito bem. Ambas já falaram que só conheceram a si mesmas e umas às outras como cantoras, e isso por toda a vida - e que desenvolveram sua voz juntinhas, cada uma aprendendo com a voz da outra. A própria identidade de ambas é ligada a essas experiências e dá pra

perceber tudo isso as ouvindo em ação, e olha que eu ainda nem falei do que acompanha as vozes. - Pois é, fiquei curioso para saber mais sobre o som deles como um todo. - Então, eles estão num processo de mudança e evolução. Os mesmos três, com mais dois integrantes, já formaram o Simonami, que era um projeto mais focado na música acústica, quase folk. E o próprio TUYO já foi um “folk lo-fi”, vamos dizer, com bastante elementos rítmicos e de experimentação. Agora, porém, o projeto está caminhando para algo mais produzido e sintético, muito influenciado pelo R&B e pelo bass atual. A própria banda fala em “afro-futurismo” para se descrever, e eles 9

estão apostando em sonoridades mais ligadas a samples e pedais de loop. - Interessante. Então eu posso esperar coisas bem diferentes deles. - Com certeza, e as letras também são bem legais - reflexivas e profundas, que o próprio trio chega a definir como verdadeiras “terapias”. - Wow… Tá, mas… onde eu posso ouvir eles? - Se liga na página deles no Facebook, ou no YouTube, que eles lançam um EP autoral em setembro e já têm bastante material disponível.


como fazer

Material necessário - Placa de fenolite com superfície de cobre - Perfurador de placa de circuito - Resistores - Diodos - Capacitores - Transistores - Circuítos integrados - Footswitch

Pedal caseiro

- Potenciômetros - Leds - Chave Foot Switch

_ texto Os Caramelows

3PDT e 2PDT É através da proposta de construir seu som com as próprias mãos que Os Caramelows criam. Muitos dos pedais de efeito que a banda usa foram feitos por eles mesmos e, aqui, Rafael Barone, Márcio Bortoloti e William Zaharanski dão as bases para que você também possa fazer o seu em casa.

1. Comece desenhando o circuito referente ao efeito desejado* (fuzz, chorus, etc) na placa de fenolite com uma caneta própria para circuito impresso. Depois, com um banho de percloreto de ferro, a parte não coberta de tinta será corroída e a placa estará pronta. 2. Hora de furar a placa nos pontos onde você colocará os componentes que formam o circuito. 3. A parte mais delicada e divertida: montar o circuito. Seguindo o modelo do efeito escolhido, coloque os resistores, capacitores,

transistores, etc no lado da placa que não tem cobre. O lado com cobre será onde vai a solda. 4. Falta pouco! Agora é só instalar os jacks de entrada e saída do sinal, os potenciômetros pra controlar os recursos, a conexão pra bateria ou fonte de luz e o led indicador de energia. 5. Com a plaquinha pronta, o próximo passo é montá-la dentro da lata de alumínio que será o corpo do pedal, botar os knobs nela e dar um acabamento. 6. Depois disso, faça um som!

Você encontra os modelos de circuitos no site tonepad.com Gostou? Veja Os Caramelows fazendo um pedal caseiro no Canal do YouTube da NOIZE.

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- Jacks AC - Knobs - Fios - Lata de alumínio - Ferro de solda



O Sabor d’Os Um coletivo experimental e agregador, um grupo de amigos, uma

família. A história da banda que acompanha Liniker remonta os idos de 2009, quando Rafael Barone, Márcio Bortoloti e Guilherme Garboso montaram em Araraquara um projeto chamado Os Rélpis. Esse banda existiu por cinco anos e chegou a lançar dois materiais gravados: o EP de estreia, Ó Imaginário Cá do Meio de Lá (2009), e um disco completo, Do Fruto, o Escracho Monumental Caramelizado (2011). Em 2014, quando Os Rélpis estavam terminando, uma entidade negra mudou o destino desse núcleo de artistas. Na época, havia uma república em Araraquara onde esse pessoal havia montado um estúdio caseiro que abria suas portas para diversos projetos. Um belo dia, chegou lá uma jovem chamada Liniker. Ela tinha, naquele momento, apenas as composições cruas das músicas que se tornariam o repertório do EP Cru (2015) e do Remonta. O encontro entre a cantora e os músicos que logo passariam a se chamar Os Caramelows representou um salto quântico na vida de todos envolvidos. Ali, o futuro mudou. Conheça nas páginas seguintes a trajetória de Renata Éssis, Pericles Zuanon, William Zaharanski, Rafael Barone e Márcio Bortoloti, os pilares que sustentam esse organismo vivo que são Os Caramelows.

Caramelows texto Ariel Fagundes | fotos Rafael Rocha


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Rafael Barone Cidade natal: Campinas (SP) Instrumento: Baixo, guitarra e violão “Sou de Campinas, mas cresci em Adamantina, depois me mudei pra Maringá, São Paulo, Presidente Prudente, São Carlos…. A partir dos sete anos, comecei a tocar violão e, aos 14, tive o primeiro contato com a guitarra e comecei a tocar com banda. Fui pra Araraquara com 21 e saí da faculdade de Física nesse processo. Aí conheci algumas pessoas da cena musical, a primeira foi o Guilherme Garboso, que fez a bateria do Cru. A gente fez bastante coisa juntos, foram vários projetos, incluindo Os Rélpis. Esse lance antropofágico de uma música com muitos ritmos, que a gente trabalha n’Os Caramelows, começou n’Os Rélpis. Na época, a gente tinha montado um estúdio onde fazíamos nossas gravações e, depois, passamos a trabalhar com alguns artistas da cidade, como a Ekena. Em dezembro de 2014, a Liniker apareceu”.

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Márcio Bortoloti Cidade natal: Nova Europa (SP) Instrumento: Trompete e trombone “Tive contato com a música na banda marcial de Nova Europa, quando comecei a tocar trombone. Depois, estudei Física em São Carlos, comecei a dar aula no Ensino Médio e me afastei da música por muito tempo. Em 2009, me mudei pra Araraquara e, quando

O Sabor d’Os Caramelows

encontrei o Rafael Barone, ele comentou dos Rélpis e aí, com eles, voltei a tocar. Depois, a banda acabou, mas a gente tinha um home studio e muitas pessoas se encontravam lá pra tocar conosco. Era uma república de amigos, artistas plásticos que vinham pra cidade ficavam lá em casa, chegou a ter 30 pessoas lá em algumas ocasiões. Uma dessas pessoas foi a Liniker, para a sorte de todo mundo (risos). Nos encontramos lá um dia e começamos essa ideia de produzir materiais pra tocar, pra vender shows... E foram os três vídeos do Cru que explodiram. Era despretensioso, era pra gerar renda com o projeto, e saiu do controle. Ainda bem”!

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Pericles Zuanon Cidade Natal: Araraquara (SP) Instrumento: Bateria e percussão “Sempre ouvi muita música, tinha uma coleção de vinil enorme dos meus irmãos em casa. Comecei a fazer aula de bateria em 1991 e, em 1996, eu já estava gravando uma demo com uma banda de metal extremo que eu tinha em Araraquara, se chamava Macabra. Depois, passei por banda de reggae, de rock alternativo, banda cover de músicas dos anos 80, toquei numa banda de baile e agora tô aqui. A Leila Penteado, que é fotografa, uma das pessoas que cuida do lado visual da banda, e que participou da direção e da concepção dos três vídeos do Cru, é a minha esposa e ela já estava no projeto antes do que eu. Um dia, tinha ensaio da banda e também um show do André Abujamra em Araraquara, que eu estava esperando há meses, sou super fã. E, não sei por que, me deu uma encanação de que eu não queria ir no show pra ir conhecer o ensaio dos meninos. Quando cheguei, eles estavam tocando ‘Louise du Brésil’, e eu fiquei em choque. Falei: ‘Eu preciso dar um jeito de entrar nesse projeto’. Quando o Guilherme Garboso saiu, pedi: ‘Deixa eu entrar. Por favor’”. 15


William Zaharanski Cidade natal: Campinas (SP) Instrumento: Guitarra, violão e baixo “Sempre toquei desde muito pequeno, desde os 8, 9 anos. Na minha casa tinha muito acesso à música de todo tipo, muito vinil, e meu avô tocava aqueles sambas antigos, Nelson Gonçalves, Cartola, ele cantava com minha vó, lembro como se fosse ontem! Cresci vendo isso e comecei a tocar assim. E fui sempre tocando, mas como hobbie, nada profissionalizado, tanto

O Sabor d’Os Caramelows

que nunca estudei música de conservatório. Mas estava sempre tocando com uma galera, de banda de punk rock a reggae, tudo, e nunca com a pretensão de viver de música. Depois fui fazer faculdade, estava estudando pra concurso e tal, mas sempre tocando, e conheci o pessoal através d’Os Rélpis. Eu já tinha visto shows da galera em muitas oportunidades e surgiu o convite pra tocar baixo com eles. Conheci o pessoal através desse projeto específico, mas também toquei guitarra com a Ekena, fizemos um som juntos. N’Os Caramelows, a gente nem estava pensando muito em formação de banda, foi bem solto mesmo, desde a construção dos arranjos à formação. Foi bem coletivo”.

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Renata Éssis Cidade natal: Mauá (SP) Instrumento: Vocais “Faço teatro desde os 12 anos, participava do Grupo Artemis na minha cidade, fiz faculdade de Artes Cênicas e Educação Artística e, depois, Cheguei lá em 2012 e, quando eu estava no terceiro ano, a Liniker entrou. E acabou que a gente foi morar na mesma casa. Mas continuei meus trabalhos, eu também sou professora de Educação Artística pra crianças e adolescentes. Um dia a Liniker falou que tinha conversado com os meninos lá em Araraquara pra trabalhar as músicas dela, fazer arranjos, gravar e colocar no YouTube. E ela perguntou se eu queria ir pra fazer backin vocal com ela. Eu estudava canto pra teatro,mas minha formação não é musical, é na parte teatral, cênica. Fui conhecer os meninos em julho de 2015, fiquei o mês todo com eles, fizemos todos os ensaios, gravamos. Depois a gente voltou pra Escola Livre de Teatro pra tentar viver a vida, só que a vida foi pra um outro caminho. Deu tempo de eu terminar o quarto ano, mas logo depois fui morar em Araraquara com os meninos, e a gente começou a banda”.

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_ texto Ariel Fagundes _fotos Rafael Rocha

fui pra Escola Livre de Teatro de Santo André.


Remonta A voz de Liniker atravessou oceanos e atravessa pessoas. Foi entre uma turnê na Europa e outra nos Estados Unidos que ela recebeu a NOIZE na sua casa em São Paulo. “Até pouco tempo, eu nunca tinha saído do Brasil”, desabafa com o frescor de seus 22 anos enquanto termina de lavar a louça do dia anterior. Ainda de pijama e ao som de Lady Wray, uma cantora que ela havia descoberto há pouco tempo, fala sobre si mesma com uma transparência enternecedora. Sem maquiagem, sem rodeios e com muito afeto.

O Amor texto Marília Feix | fotos Rafael Rocha 18


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o lugar de privilégio que eu tenho. Hoje as pessoas me conhecem, me veem na rua e me abraçam, não atiram em mim. Mas isso pode acontecer com meninas que moram nas ruas e são travestis ou transexuais. O meu trabalho hoje é poder fazer música, cantar, falar sobre outros assuntos, mas também trazer isso à tona. Poder ser uma voz pra ajudar essas pessoas que estão expostas. Entender o nosso lugar de empoderamento, de espaço. Expressar a sua afetividade nas composições do disco também é uma maneira subjetiva de ocupar esse espaço? O Remonta é um disco de amor. Eu tive, dos 16 aos 21 anos, amores muito soltos. Em nenhum deles eu obtive um sucesso. Então é o disco de uma frustração canceriana. Ao mesmo tempo em que eu estou sofrendo, eu estou vendo amor nas coisas. E é muito denso porque você imagina, mostrar afetividade é uma coisa muito delicada. Quando me percebo uma travesti preta nessa afetividade, sinto que é algo que é muito negado pra nós. É totalmente diferente para uma pessoa branca, para uma pessoa cis. É totalmente diferente. A paixão, o amor, a troca, é muito mais aberta do que pra uma travesti. Então eu percebo uma luta com a afetividade de amar sempre muito, mas nunca ter essa resposta do amor. Hoje, quando ficam comigo, é tipo “A Liniker, cantora”, não é a Liniker que tá aqui descalça sentada no sofá, com gripe (risos). Acho que uma das minhas maiores crises sempre é a de pensar a afetividade e de me sentir sozinha, de sentir que eu não estou trocando afeto. É isso, Remonta nasce dessas descobertas e desses mergulhos, um pouquinho assim.. E através da música você consegue elaborar melhor esses sentimentos? Foi a maneira que eu encontrei para me colocar num espaço um pouco mais seguro e um pouco mais tranquilo. Eu estou cantando sobre afetividade e, a maioria das coisas que eu canto, eu vivi, mas algumas delas também foram idealizações. Então, a resposta disso eu vejo no público. Por exemplo, quando eu tô cantando “Zero” e as pessoas estão se beijando loucamente, chorando, beijando o cangote 21

[+1] É um centro de formação, pesquisa e experimentação das linguagens teatrais de acesso público e gratuito. Sua pedagogia é baseada em processos de pesquisa em que se propõe um caminho de construção da liberdade artística através de relações de aprendizado horizontais.

[+2] Gênero Não-Binário – Identidades de gênero que rompe a dicotomia homem/mulher, podendo abarcar pessoas que não se identificam nem como homens nem como mulheres, ou que se consideram sem gênero ou de outros gêneros presentes em cada contexto cultural. Fonte: Revista Instituto Humanitas Unisinos | Nº 507 | Ano XVII | 19 / 6 / 2017

_ texto Marília Feix _ fotos Rafael Rocha

Qual é a importância da sua expressão estética na construção da sua liberdade para a composição do Remonta? O Remonta foi uma massinha que eu joguei numa mesa quando era adolescente. Eu me permiti moldar essa massinha conforme fui vivendo as coisas e conforme tudo foi me atravessando. Comecei a escrever com 16 anos. Foi quando tive esse encontro com a música, quando comecei a tocar, a me ver atravessada pela palavra, quando comecei a pensar a minha afetividade, quando comecei a ver o meu corpo no espaço. Só que eu morava em Araraquara ainda, uma cidade de interior, onde eu estava à espreita dos olhos da minha família o tempo todo e me sentia um pouco vigiada. Tinha muita coisa que eu não me permitia por medo, por falta de informação. Então em 2014, quando cheguei em Santo André, a minha vida deu uma virada. Era como se eu pudesse assumir as coisas que estava sentindo... E umas das pessoas mais importantes para esse processo foi a MC Linn da Quebrada porque a gente morou juntas em Santo André e por que ela também fazia Escola Livre de Teatro.+1 Eu a Linn nos encontramos num lugar de parceria e de experiência muito forte. Foi com ela que eu comecei a debater gênero, foi com ela que eu descobri que eu podia ser uma pessoa transgênero. Entender o que é uma travesti, o que é uma pessoa trans. Em São Paulo eu pude viver essa experiência social que eu não tinha vivido. Eu só sabia o que era ser gay, então eu me assumia como uma pessoa gay, uma homosexual. Depois, comecei a questionar a minha não-binariedade+2 . Entender que eu podia ser “o Liniker” mas também podia ser “a Liniker”. É quando eu instituo a saia, que foi um arrombamento na minha trajetória. Poder sair do pragmatismo de usar calça jeans e ser um boy. Assumir a maquiagem, assumir o meu cabelo, a minha estética, assumir quem eu era pra mim. E há um ano e meio nesse processo de não-binariedade eu começo a descobrir a potência do meu corpo em outro lugar. Pensar que talvez eu seja uma travesti, porque eu nunca me senti um boy. Eu não tenho disforia com o meu corpo, mas eu nunca me senti um cara. Entender também o que ser uma travesti no Brasil, o que é ser uma pessoa trans no Brasil, o que é ser mulher no Brasil. Estar exposta à violência nas ruas. Entender também


umas das outras, eu penso: “Gente, é isso”! Mas também penso que seria gostoso viver isso. Estar num show e alguém beijar o meu cangote, vendo o show de alguém. É gostoso né?! É troca, é afeto.

Remonta O Amor

Mas você sabe que também vai viver isso. Cada um tem seu tempo, né? É, acho que com a música eu consegui entender também que cada um tem seu tempo. Que eu vou aqui construindo a minha base, sabe? O próprio nome Remonta passa essa ideia bem humana, de todo dia acordar e se recriar, reconstruir. Isso vem muito da sua história. Remonta vem no lugar de criar um certo tipo de esperança por dentro. Exatamente do que a gente estava falando. Do tipo: “Calma. Uma hora dá. Vamos nos estruturar, vamos nos permitir refazer as coisas dentro da gente e não perder a esperança”, sabe? Eu precisava achar uma força dentro de mim pra fazer isso revigorar, reviver. E aí foi cantando, foi potencializando a minha poesia, escrevendo, colocando pra fora o que eu estava deixando preso dentro de mim. E aí

Remonta é esse robô, né? Que a gente precisa ajustar um pouquinho ali um pouquinho aqui pra crescer mais uns dois metros. E toca muito nas pessoas. O público recebe essa mensagem de uma maneira motivadora. Aham. Eu acho que o que tem de mais doido nas minhas composições e nessa poesia que eu trago é das pessoas se sentirem próximas ao que eu escrevo. Das pessoas me pararem na rua e falarem que aquilo condiz com o que elas estão vivendo no momento. Então eu acho que é um disco de proximidade, sabe? Tem uma cantora e uma poetisa que escreve aqui desse lado, mas é como se a gente estivesse tomando um café enquanto você me ouve. Foi isso que eu sempre quis desde o começo. Ter uma relação muito próxima com quem me ouvisse. E acabou sendo natural. É como a vida. Tem momentos de amor, de força, de desamor. É como a vida, muito doido isso! Como, mesmo dentro do disco, as histórias vão mudando, e de como isso é um processo de se reinventar, né?

“Eu precisava achar uma força dentro de mim pra fazer isso revigorar, reviver. E aí foi cantando, foi potencializando a minha poesia, escrevendo, colocando pra fora o que eu estava deixando preso dentro de mim” 22


_ texto MarĂ­lia Feix _ fotos Rafael Rocha

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faixa de Remonta em vinil.

sentidos.Descubra um pouco sobre cada

Todas as músicas têm um universo de

Remonta na Vitrola Lado A

1 - Intro | Foi pensada para trazer um pouco do clima cênico dos shows para o disco, certo? Como as aulas de teatro que você fez se transpõem na sua interpretação e comunicação no palco? Ter feito a Escola Livre de Teatro foi importante porque eu pude trazer uma outra linguagem, para além da música. Eu tinha muito essa vontade de não ficar só na canção. E o palco é um lugar em que eu estou movimentando energia, um lugar em que eu troco com a pessoa que está me vendo, com a pessoa que está traba-

lhando comigo. Por que a Escola Livre é independente, pública, e todos os alunos fazem tudo. Então a nossa turma não se preocupava apenas com a atuação, a gente fazia o nosso figurino, pensava a iluminação, a sonoplastia, e isso acontecia em cada turma. Então é muito importante pra mim ter esse vínculo com a equipe, sabe? Não só a banda, mas com a iluminadora, com a moça que tá limpando o palco, com o segurança… Criar esse endoma de energia mesmo, pra ser uma coisa assim, gostosa. Pra não ficar aquela coisa de “a Liniker é uma artista intocável”. De ter essa coletividade. E a “Intro” foi pensada junto com o Márcio Arantes, produtor o disco. Ele foi muito importante pra gente, muito solícito também. Sinto que ele não é um produtor que só produziu, ele estava interessado no que a gente estava disposto a fazer, então foi uma parceria bem próxima, e é isso que eu acho mais bonito no disco.

se você finalizasse o disco ao contrário. Eu canto “Remonta” porque eu não quero mais saber de desamor, depois eu começo a contar a história. E aí vem “Louise du Brésil”.

É muito bonita essa relação horizontal de vocês. Total. Demais. A Renata Éssis também estudou nessa escola e a gente traz esse lado coletivo para a banda. Essa “intro” com cordas, com sopro, bem épica mesmo, foi para ter esse material teatral mesmo. Esse não é só um disco, é uma vivência. Remonta é um espetáculo. Por isso a escolha de ter um diretor cênico para o show como o Luís Fernando Marques (Lubi), que também era nosso mestre na Escola Livre. Coincidentemente eu estou viciada no Drama, da Bethânia. Eu já conhecia o disco, mas passei a perceber quando uma obra é pensada artisticamente, com uma linguagem, com uma especificidade e com um direcionamento, parece que a obra fica completa, sabe?

4 – Zero | Essa já ganhou uma roupagem mais sensual, mais Marvin Gaye. É essa coisa mais suada, tipo fim de noite, sabe? Marvin Gaye e Fugees foram inspirações na questão de pegada, de cadência. Foi uma escolha querer mudar os arranjos do Cru para o Remonta porque era um outro momento. Antes do Remonta a gente fez a turnê do Cru, e deu para experimentar muita coisa. Então vinha mesmo desse lugar, de pensar que a gente estava em uma outra fase, por isso “Zero” poderia ser pensada diferente do EP. E na composição eu falo de uma relação que foi longa afetivamente. Alguém por quem eu fui apaixonada por muito tempo, uma pessoa muito próxima.

2 – Remonta | É esse começo com cara de fim. “Remonta” é um grito de guerra. É como 24

3 – Louise du Brésil | Mudou bastante do EP Cru para o Remonta. Você pode contar um pouco sobre a letra dessa música? Então, vou contar uma curiosidade: “Louise do Brésil” e “Zero” foram escritas para a mesma pessoa. A música se chama “Louise do Brésil”, mas na verdade é uma mensagem para o Zé. E a Louise era um nome fantasioso que tinha nesse meio entre o Zé e eu, mas que também não se chama Zé (risos). É uma das músicas que mais mudou e uma das mais dançantes do disco. E nessa a gente teve a participação do Thiago França (do Metá Metá) e do Badé. Quando a gente terminou de gravar, fiquei bem feliz.

5 – Sem Nome, mas com Endereço | Traz uma atmosfera romântica, que é um lado seu também, de canceriana, como você diz. Total. “Sem Nome, Mas Com Endereço”


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Lado B

1 – Funzy | Surgiu para apresentar a banda nos shows. Cada um dos Caramelows tem seu espaço de participação nos processos criativos, além de ser uma grupo totalmente independente. Isso faz vocês se sentirem mais livres, é recompensador? Pautar a liberdade é uma das coisas que a gente mais faz dentro do projeto. Somos Liniker e Os Caramelows, eu tô mais à frente, mas a banda tem total desenvoltura para criar, para compor. A gente gosta muito de troca, de parceria, então “Funzy” é colocar esse momento da banda dentro do disco. É um disco de canções. É o disco das músicas da Liniker, mas é a banda que está acompanhando também. Então “Funzy” é essa identidade caramelística dentro do disco, e aí os meninos experimentam uma linguagem de soul, de suingue. Vocês também costumam dizer que “Funzy” é o estilo musical de vocês. É, pra todo mundo que perguntava qual era o nosso estilo a gente sempre pensava: “Vamos responder o quê?” É uma mistura, né? Então a gente começou a dizer que era “Funzy”.

2 – Prendedor de Varal | Foi composta num clima bossa nova, mas depois vocês deixaram ela mais funk. Teve muita influência da sua família na sua formação musical, certo? Minha mãe foi vocalista de uma banda de garagem com as amigas na adolescência, chamada “Toque Feminino”. Cresci ouvindo ela contar histórias de quando chegava nos lugares pra tocar e não tinha estrutura e o povo não respeitava porque era um monte de minas tocando pagode. E teve também a influência dos meus tios. O tio Juninho é um grande cantor de samba, toca choro pra caramba… Em “Prendedor de Varal” eu quis trazer um pouco da minha casa, do Baile do Carmo+3 , dessa negritude toda que tem no disco, potencializar mesmo. Antes, a gente fazia uma versão bem bossa nova, com voz e violão e chocalho, mas depois eu pensei: “Gente, não é isso! ‘Prendedor de Varal’ tem que ser uma música pesada pra tocar e cair a caixa de som”! E os seus tios ouviam black music? Ouvem até hoje. E é engraçado por que no interior se ouvia muita música sertaneja, mas na minha casa não tinha isso, era diferente. Eu cresci ouvindo black music 100%. Samba, charme, jazz, funk. Nunca teve sertanejo na minha casa, nunca. Eu sou bem feliz de ter podido crescer com isso, com essa minha raiz aflorada. 3 – Tua | É uma homenagem a uma amiga sua, a Suzane Rossan? Essa já tem um clima de trilha sonora. A Su é bailarina e é uma pessoa que me inspira muito. Ela é uma das minhas melhores amigas e é parceira de diálogo, de conversar, de trocar... E eu queria que viesse mais essa cadência meio aérea, sabe? Essa coisa movimentada, meio Portishead. E a gente optou por verticalizar pra esse 25

lugar. E tem a Tássia Reis fazendo voz com a Renata e comigo. E uma camada de várias vozes também. “Tua” vem dessa coisa mais envolvente, mais sexual, mais aqui, na calada da noite. 4 – Lina X | Você compôs para a Linn da Quebrada. Vocês estudavam na mesma escola em Santo André e moraram juntas. Qual a importância da convivência com ela pra você? A Linn é extremamente importante pra mim em várias questões. É uma amigona gigante, uma irmã. Parece que o destino colocou a gente juntas. Eu tenho irmãos, mas eles são distantes. A Linn foi uma irmã que a vida me deu. “Lina X” é um presente pra ela. 5 – Ralador de Pia | Também traz a dramaticidade do teatro e tem um grande elenco de vozes femininas. “Ralador de Pia” quando a gente fez, eu pensei num Corifeu, na tragédia grega sabe? Tinham as coriféias que eram as mulheres que cantavam distantes. Pensei muito nessa ideia, de nós sermos as cinco mulheres que clamam pelo amor. De ter essas cinco vozes que falam dessa afetividade. Cada uma ali com a sua identidade vocal muito específica. Quando Tulipa entra é a voz da Tulipa, quando a Assussena entra, é a voz da Assussena. Raquel é a Raquel. Eu sou eu. Renata é a Renata. De cada uma imprimir a sua personalidade na música. A gravação também foi um dia muito especial porque estar junto dessas mulheres que eu amo tanto e que eu admiro tanto foi maravilhoso. De trazer essa irmandade para o disco e essa sororidade.

[+3] Baile do Carmo - Uma série de eventos em celebração à cultura negra que acontece há 130 anos na cidade de Araraquara, sempre durante o mês de julho. A tradição foi criada pelo Quilombo do Escravo Damião, no dia 16 de Julho de 1888

_ texto Marília Feix _ fotos Rafael Rocha

eu escrevi sentada na beira da cama, em Santo André. Eu estava sempre tocando ela em casa e adorava cantar pras pessoas. Nos shows é uma das que o público mais gosta e espera. E ter a participação do Jeneci foi lindo, eu lembro de quando ele chegou no estúdio. Eu chorava vendo ele tocar. Porque o Jeneci eu ouvia na minha adolescência, foi um dos primeiros artistas independentes que eu descobri, então pra mim aquilo era além de uma participação, sabe? Saiu do fictício, eu estava trabalhando com ele, ele estava gravando no meu disco. E “Sem Nome, Mas Com Endereço” também foi escrita para a mesma pessoa de “Remonta”.




texto Anelis Assumpção arte Lucas Ribeiro


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“Sinto que estou falando e produzindo coisas a partir do corpo, do meu corpo. Estou falando sobre vida.”

A Invenção de Linn da Quebrada

Assim começa minha conversa com Linn da Quebrada, bicha transviada-cantante-atroz-choque-de-monstro que surge na cena da música brasileira derrubando a quarta, a quinta e a sexta parede. Adentra a cozinha da minha casa um corpo alto, esguio e cravejado de histórias. O mesmo corpo desastrado que timidamente derrubou o vinho no patê - dança, machuca, instiga, excita, se excita, fere, afaga, adoece e se cura. Pesquisando sobre sua existência, descubro que esse corpo tivera um câncer e me comovo. Talvez pela minha recente perda. Criei um paralelo pessoal ao interpretar o feminino ferido naqueles corpos distintos. Linn, em 2014, descobriu um tumor em um dos testículos. Descobriu sua metáfora social como ela mesma define o câncer. “Além do fardo de estar doente, que significa nada mais nada menos que você é um corpo e um corpo falha, é preciso lidar com as interpretações que vêm com o câncer”. Línguas ácidas estão sempre a postos para ferir: “É castigo de Deus! Ele não se aceita, agora está com doença no saco!” Esse tipo de horror navega no mar da maldade pura como um café amargo e frio ou na ignorância cega desenvolvida em cultos vazios de estímulos do pensar. Atingida no troféu imprensa da masculinidade, no cajado de força, no cedro central que faz, supostamente, uma pessoa que é diagnosticada como homem ao nascer honrar. Nos colhões que pouco lhe interessavam neste lugar. Muitas vezes sendo tratada no masculino pela equipe médica, muitas vezes se sentindo só mais um corpo naquela sala com tantos outros corpos perdendo seus pelos e cabelos como consequência da cruel quimioterapia - da qual não conseguiu escapar - movimentos internos de compreensão do existir tiveram de ser feitos. “Como eu provo minha feminilidade sem meus cabelos? Tive que inventar belezas naquele corpo adoecido.” Outros assuntos também tiveram que ser resolvidos definitivamente, como por exemplo sua relação com a religião. Criada na infância como Testemunha de Jeová, Deus teve de ser executado, morto, finalizado. Aquele Deus onde sua doença seria

castigo não podia existir. O Deus do culto que culpabiliza corpos que não se comportam como se espera. Esse Deus teve que acabar e, num processo de desconstrução lúdica, surge ao fundo da estrada a luz deste dEus que também habita corpos que não se comportam. Um ser feito de Eus. dEus. Muitos eus num só corpo. Muitos eus refletidos em outros corpos. Saudável, doente, masculino, feminino, não binário, indefinido, esquizofrênico, paranoico, fraco, forte, sábio, ignorante, noite e dia. Como será que ela chegou neste novo ser? Ela era mortal. E a premência de um período de tratamento recheado de dor, solidão e desconforto decanta o engodo amargo de existir sem poder se aceitar e fortalece a necessidade de criar uma potência naquele novo corpo, talvez imortal. Pergunto o que ela gostava de escutar nesse momento, tentando compreender onde estavam as potências que impulsionaram a morte de Deus, o surgimento de dEus, a cura do corpo, a clareza mental que se apresenta sentada à minha mesa, e temos então uma pausa. Não sei, não me lembro – ela disse com esgar de desimportância. Percebo que não estava fora. Não estava em nenhum outro lugar. Não estava na religião, nem nos afetos, nem nos livros, na música nem no cinema. Porque nunca esteve. A falta de representatividade em qualquer forma de expressão que traz conforto para a dolorosa existência humana fez com que ela fosse para dentro daquela célula que se reproduzia desgovernada em um de seus testículos e interrompesse aquilo que a interrompia de existir. Sem cabelos, seios, pelos. Se sentindo feia. Se sentindo mortal. Ela é mortal? Linn diz neste momento começar a invenção de si mesma. É quando surge o Freescura. Free escura. Free. Cura. Uma bicha fresca. Livre. Curada. Que decide não abrir mão de frescuras internas da maior importância. Como não estava em nenhum lugar porque nunca esteve, ela então deu um jeito de estar – ‘comecei a escrever letras de possíveis músicas sobre coisas que eu gostaria de escutar. Personagens que eu gostaria de ver. Sentimentos, afetos, forma de ser. A partir do meu ponto de vista. Do meu corpo e desejos.’ De fato, aprendemos a amar canções machistas, racistas e depois temos que aprender a odiá-las pois não são mais toleráveis 28


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Onde está o casal inter-racial na novela? Cadê a preta mãe solteira que se dá bem na vida dissertada no cancioneiro? E as bichas afeminadas com fortes laços de afeto para além do fetiche de um macho alfa que pretende ser chupado num banheiro de balada para depois implorar segredo, são protagonistas de quantas novelas? Não adianta dizermos que não importa. Importa sim. Tá chato ser sempre a feia, sozinha, mas a mais engraçada. Também tá chato essa forçação de barra de que você tem que se achar linda quando todos te acham gorda ou afeminada demais porque pessoas como você, não estão no marketing bíblico como símbolos de beleza e poder. Tá chato ter que inventar autoestima diariamente. Tá chato a apropriação publicitária desse assunto. Foda-se a beleza, penso eu. Foda-se o caralho, me respondo. Estamos falando de belezas múltiplas. De existências que valem e não de invenções. E neste momento em que, junto à necessidade de se ter representatividade plural na cultura, há o interesse de que isso vire um produto. A internet viraliza mais e mais produções de norte a sul, falando sobre ser bicha, viado, travesti, enviadecer, sobre ser mulher e ser foda. É onde mora a oportunidade de crescer e aparecer. Falando livremente sobre sexo – sem ser a Madonna nem a Beyoncé – que também aprendemos a amar – surgem diversos corpos potentes de brasileiros e brasileiras transformando definitivamente o curso da história. Dentre eles, esta garota de 27 anos, criada pela tia para que a mãe trabalhasse como empregada doméstica e, como milhões de brasileiros e brasileiras, fora abandonada pelo pai. Preta de favela. Zona Leste de São Paulo. Criada nas ruas. Refugiada nas artes. Me interesso pelo senso de responsabilidade que vem junto com essa exposição, onde milhares de pessoas enfim começam a se ver representadas para serem como querem, para se sentirem lindas e em paz com seus corpos. Ela parece não se preocupar, ou talvez ainda não tenha noção da sua importância, embora saiba que está fazendo história. Linn, como uma das mais fortes artistas brasileiras quando falamos de questões de gênero, aponta a flecha certeira em direção a um norte inédito. Essa bandeira não pode mais ser carregada sozinha. E sob essa bandeira estão corpos que importam.

Mas foi sentada a minha frente que senti que sua busca artística tinha uma profundidade misteriosa pra ela mesma, que, ao meu ver, se engana quando diz que está cantora ou que não é atriz. É isso e muito mais. Senti que sua busca é incansável. Sua obra, ainda nos primeiros passos, reflete essa profundidade nas marcas invisíveis que transporta ao existir. Minha filha de quinze anos se sente profundamente identificada por essa geração que questiona o gênero e amplia as possibilidades de ser, se relacionar com outros corpos e consigo mesma. Que diz que não merecem ser julgadxs, assassinadxs, violentadxs. Que sinaliza a urgência do devir no país líder em mortes por homofobia. Linn é assustadoramente inteligente quando diz que não nos é ensinado a possibilidade de inventar novas feminilidades ou masculinidades. Filosoficamente penso que o velho ser-ou-não-ser serve de escada para este novíssimo pensamento, onde outras interrogações trans lúcidas e mais positivas, revelam a questão que eis: como ser? E se eu sentir de outro jeito? Para sentir de outro jeito é preciso praticar através do corpo ou do espírito? Minha experiência vale para outros corpos ou somos como bilhetes únicos com direito a viagens em apenas duas horas? Se olho para as coisas com o coração, sinto com lágrimas ou enxergo melhor? A vida é uma decepção elaborada? Linn é uma pacífica declaração de guerra e tem um apetite vital ainda não catalogado. Indisposta a ser a ilusão, que abriga a verdadeirização das mentiras e a mentiranofobia das verdades, Linn habita o lugar onde as franquezas expostas e omitidas fraturam e suturam as relações concomitantemente. “Sinto que estou falando e produzindo coisas a partir do corpo, do meu corpo. Estou falando sobre vida”. A vida lhe parece uma olimpíada em plano sequência e, no triatlo do existir, depois da corrida, do nado contra a corrente, neste momento - depois da barra - ela surge plena, no salto com vara.

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_texto Anelis Assumpção _arte Lucas Ribeiro

no mundo álcool gel politicamente correto, porém hipócrita contemporâneo e confuso.


O brilho cósmico de Edy Star Drag, diva, passional, suicida. O primeiro músico brasileiro a se assumir gay publicamente. Precursor do glam rock no Brasil. Um escândalo ambulante que oscila entre a glória e a depressão sem fechar o sorriso. Respeitável público, com vocês: Edy Star!

texto Ariel Fagundes fotos Acervo Pessoal


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O Brilho Cósmico de Edy Star

Gonzaguinha também fez uma música para ele chamada “A largura do arame”, que só não entrou no LP porque não passou na censura. Com poucas adaptações, o autor mudou o nome dela para “Eu nem ligo” e a deu para Wanderlea, que a lançou no disco Feito Gente (1975). Edy diz que “Roupa Prateada”, do Zé Rodrix, também foi feita para o Sweet Edy, mas não chegou a tempo e, por isso, Rodrix a lançou no seu disco Quem Sabe Sabe Quem Não Sabe Não Precisa Saber (1974).

[+2] Produtor musical e fundador da gravadora Som Livre, também foi famoso por ser o pai do Cazuza.

quisar nas revistas e fiquei apaixonado pelo Marc Bolan [do T.Rex], pelo The Who… Eu não queria uma coisa “hiponga”, tinha que ser malha justa porque eu tinha bundão, franjas presas nas mangas, cabelão, olhos riscados - conta. Encantado pelo show da Number One, João Araújo+2 convidou Edy a gravar o seu primeiro LP solo. Sweet Edy (1974) saiu pela Som Livre e, apesar de não ter tido grande repercussão comercial, é uma obra importantíssima. Edy fez o disco pedindo músicas para vários amigos, por isso ele conta com composições de músicos como Roberto e Erasmo Carlos, Caetano, Gil, Jorge Mautner, Luis Galvão e Moraes Moreira (d’Os Novos Baianos).

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“Teve outra do Sérgio Sampaio que ficou de fora, uma do Luiz Melodia também”, diz Edy, que fez as artes da capa, contracapa e encarte do LP. Ele conta ainda que Raul é coautor da faixa “Superestrela” e que não sabe por que seu nome não consta no disco. Outro mistério é por que a música “Bem Entendido” não aparece na lista da contracapa. A música é um blues sensual e é possível que sua ênfase na sexualidade selvagem de Edy tenha assustado a gravadora. “Não sei se foi por uma questão de medo da Som Livre”, diz Edy, que, na época, não gostou do som do álbum, mas hoje pensa diferente: - Quando saiu, odiei. Não eram os arranjos que eu queria, achava que parecia Elton John, fiquei quase 40 anos sem ouvir. Nunca trabalhei com ele. Hoje, acho um disco legal. Pra época, puta que o pariu! O show continua O lançamento de Sweet Edy não fez muita diferença para o artista, que seguia trabalhando em várias boates e cabarés cariocas dançando, cantando e encantando. Em 1975, ele assumiu o papel de protagonista


23 _foto Acervo Pessoal | _na foto Edy Star com Secos e Molhados, Moacyr Durval e Suzana Vieira


- Então Edy, queria lhe explicar que a revista será publicada com o vinil… - Não, não, não! (interrompendo) Não explique nada! Pergunte e vou responder. Pra quê esse prólogo?

diziam pra mim: ‘é proibido’, aí eu fazia. Homem de pulseira não podia, cabelo comprido era de transviado... Fui um dos primeiros a usar pulseiras, brincos, e mostrar que essa audácia era possível”, diz.

À beira dos 80 anos, Edy Star não tem tempo a perder. Do seu apartamento em São Paulo, o músico, dançarino, artista visual, performer, ator, drag queen e produtor de teatro conversou longamente conosco repassando a montanha-russa de emoções que marcou sua carreira de seis décadas.

Em 58, Edy acabou o Ginásio como um homem feito, acostumado com a marginalidade soteropolitana. “Eu percorria os cantos da cidade e encontrava Glauber [Rocha], Gilberto Gil, e ficávamos rodando pelos cabarés, cantando e bebendo”, lembra. Tachado de vagabundo por seus pais, fez um curso técnico em produção de petróleo na Petrobrás e trabalhou lá por um ano, em 1959. Apesar do salário gordo, em 1960, largou tudo e se juntou a um circo. “Entrei como ator e cantor, era ‘Edy, o Embaixador do Rock’. Foi uma briga, mas depois minha mãe foi me assistir várias vezes. Meu pai nunca foi”, conta.

O Brilho Cósmico de Edy Star

Após ter gravado um LP histórico com Raul Seixas, Sérgio Sampaio e Miriam Batuca, ter composto a letra de “Procissão”, do Gilberto Gil (fato que demorou décadas para ser registrado), ter protagonizado a primeira montagem brasileira do musical Rocky Horror Show, ter gravado Sweet Edy, disco solo que virou um marco do rock nacional, ter no currículo mais de 30 exposições nos Estados Unidos e Europa como artista visual, como Edy se sente hoje? - Mais perto do fim do que do começo, né? Tô no bônus da minha vida. Depois de duas tentativas de suicídio e um câncer, você quer que eu esteja como? Tô no bônus! E cheio de vida, fazendo disco, fazendo show, namorando. Porra, tá tudo ótimo.

[+1] Essa gravação foi lançada no LP O Brasil Canta no Rio - I Festival Nacional de Música Popular Brasileira (1968). Nela, o músico assina como Edy Souza.

Um furacão transviado Baiano nascido em Juazeiro em 1938, ainda bebê Edivaldo Souza foi para Salvador com sua família. A vida de artista começou aos 12, quando passou a cantar nas rádios locais os sucesso da época, de músicos como Luiz Gonzaga e Ivon Curi. Nesses primeiros anos de contato com o meio radiofônico, já conheceu as cantoras do Quarteto Em Cy e Raul Seixas. Morando longe do centro da cidade, Edy explorou o lado oculto da noite logo cedo. Aos 16, conheceu o mundo dos cabarés, de onde nunca mais se afastaria, e revela sem o menor pudor: “Quando descobri esse tipo de vida em Salvador, fui garoto de programa. Fiz pra conseguir um dinheiro”, conta explicando que foi um episódio isolado que jamais se repetiu. As normas morais da sociedade nunca o atraíram. “Se 20

Nos anos seguintes, Edy se dividiu entre picadeiros, rádios e os primeiros trabalhos visuais. Em 63, entrou na Companhia Baiana de Comédias e, em 67, se mudou para Recife. Em 68, acompanhado de Naná Vasconcelos, representou Pernambuco no I Festival Nacional de Música Popular Brasileira com a música “Dia Cheio de Ogun”+1, no Rio. Em agosto de 68, quando Tropicália ou Panis et Circensis foi lançado na boate carioca Dancing Avenida, Edy estava lá dançando com Gal Costa. Após muito circular no meio cultural baiano, ele já conhecia todos artistas da Tropicália. “Sempre foram amigos meus, mas nunca fui da turminha”, explica. Caetano ele conheceu em 59, em Santo Amaro, quando trabalhava na Petrobrás, mas foi com Gil que viveu mais aventuras. “Só tive problema com a polícia na Bahia uma vez e não foi por veadagem, foi tocando violão na porta do Palácio do Governo com o Gilberto Gil”, lembra. “Fomos soltos e o violão ficou preso. No dia seguinte, ele foi lá buscar”. Em março de 65, Gil fez seu primeiro show individual, chamado Inventário, e, na ocasião, mostrou o instrumental do que seria “Procissão”. Edy conta que assistir aquilo lhe motivou a dar de presente uma letra ao amigo: - Ele ia se casar e morar em São Paulo contratado pela Gessy Lever. Eu era louco pra entrar naquela turma e sempre me foi vetada a entrada porque eu era uma bi-


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cha muito doida, um escândalo na cidade. Então, quando ele tocou a música, vi a oportunidade de entrar, né. Fiz a letra e levei na festa do casamento dele [em maio]. Ele dobrou, botou no bolso e tudo bem. Depois [em outubro], saiu o primeiro compacto dele pela RCA Victor com “Procissão” e “Roda”. E não saiu meu nome! Edy diz que, “por uma questão de amizade”, não cobrou Gil na época e que nunca houve atrito entre eles: - Ele nunca me negou autoria, mas nunca entrei nessa de pedir. Até que chegou um tempo em que eu disse: “Pô, já encheu saco, vamos acertar isso”. Tinha quase 25 gravações diferentes da música, até Luiz Gonzaga gravou. Entramos em contato com a Gegê Produções e, desde de 2007, temos contrato. Toda vez que a música for tocada ou for registrada, meu nome tem que sair. De kavernista a pioneiro glam Em 1970, Edy trabalhava em Salvador como produtor da TV Itapoan, fazendo um programa musical de auditório. Tudo ia bem até que a emissora atrasou seu pagamento

e ele cobrou o salário no ar, o que motivou sua demissão. - Nesse dia, cheguei no centro da cidade e encontrei Raul Seixas. Ele era agora produtor da gravadora CBS, tinha direito a quatro artistas e queria me pegar pra ser um deles. Pensei até que era trote porque eu me considerava uma porra louca e ele tinha amigos muito mais artistas do que eu. Mas ele me deu o dinheiro da passagem pro Rio e fui - conta. É assim que começa a história do disco Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10 (1971), que reúne Edy Star, Sérgio Sampaio, Miriam Batucada e Raul. Bem conhecido pelos raulseixistas, há muitas fantasias ao redor desse álbum e Edy se esforça para esclarecê-las. “Qualquer coisa que se conheça de verdade foi contada por mim”, diz. “Raul inventava pra caralho, né bicho? Que o disco foi feito na calada da noite, que pegávamos o pessoal da rua pra cantar, porra, isso é impossível”. Conta-se também que o LP foi feito à revelia do diretor da CBS, o que Edy também nega. O problema, segundo ele, foi que a gravadora não gostou de Raul ter protagonizado o disco, sendo que ele deveria ser o produtor, e nem gostou do seu resultado final. Por isso, 15 dias após sair, todas cópias do disco foram recolhidas pela CBS e a Sociedade da Grã-Ordem Kavernista nunca fez um show: “Queríamos fazer um ópera rock, chegamos a comprar roupas e nunca foi feito”, diz Edy. Com a interrupção do projeto, o jeito foi procurar emprego na vida noturna e aí o baiano foi trabalhar na boate Cowboy, na Praça Mauá, em um show de teatro de revista. “Tudo que era proibido tinha naquele espetáculo: lésbicas, anão nu correndo pela plateia, no final todo mundo tirava a roupa”, lembra. Sua performance se destacou e, em 73, a Number One, que atendia a elite carioca, lhe ofereceu um show solo. Aqui, nasceu o Edy Star. Além do sobrenome artístico, ele criou um visual que, ao lado d’Os Secos & Molhados, inaugurou a estética andrógina e agressiva do glam rock no Brasil em sintonia com as últimas tendências do pop da época: - Tive que bolar algo que chamasse atenção. Fui pes21

_texto Ariel Fagundes _fotos Acervo Pessoal

“Só tive problema com a polícia na Bahia uma vez e não foi por veadagem, foi tocando violão na porta do Palácio do Governo com o Gilberto Gil”


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O Brilho Cรณsmico de Edy Star


A declaração saiu em uma matéria da revista Fatos & Fotos que trazia no título a frase: “Tive coragem de assumir o que sou”. Sua postura vai ao encontro da luta pelos direitos da população LGBT no Brasil, porém Edy esclarece: “Não assumi ser gay por militância, assumi ser gay porque eu sou gay”. A partir da metade dos anos 70, mudanças no mercado artístico foram desfavorecendo o trabalho que Edy fazia. Antes, ele cantava com as bandas das boates, mas as casas deixaram de ter seus músicos e ele passou a se apresentar cantando em cima de playbacks. “Era tristíssimo”, lembra. Nos anos seguintes, ele produziu várias peças e exposições ao mesmo tempo em que trabalhava como apresentador e performer em diversos cabarés. “Adoro trabalhar em puteiro! Não gosto de trabalhar em casa gay porque acho muito fácil, gosto de trabalhar em puteiro”, diz. Enfrentando dificuldades profissionais, financeiras e amorosas, Edy sofreu muito ao longo dos anos 80. “Foram anos de sobrevivência”, resume. O artista revela que tentou suicídio duas vezes, uma em 1982 e outra em 1986, ambas através da ingestão de medicamentos barbitúricos. “Não sei se um dia voltarei a fazer”, diz Edy com a maior naturalidade do mundo: “Sempre fui fascinado pelo suicídio”. Edy revela ainda que, em 92, juntou todo dinheiro que pôde e foi à Espanha pensando em acabar com a sua vida lá. Porém, após três dias em Madri, arranjou trabalho e começou a fazer shows em cabarés, com os quais chegou a se apresentar em Bilbao, Barcelona e San Sebastián até que voltou à capital espanhola. Lá, fixou-se no Chelsea 2, onde trabalhou nos 18 anos seguintes anunciando os espetáculos de mágica, flamenco e strip-tease da casa e encarnando uma drag queen chamada Lady Chochona.

Com a crise na Europa, o Chelsea foi enxugando sua estrutura e Edy percebeu que estava chegando a hora de voltar ao Brasil. Ainda na Espanha, em 2007, descobriu um câncer de próstata, que foi curado em 3 meses de radioterapia. Após alguns anos indo e vindo entre os dois países, desde 2012, Edy vive em São Paulo. Nos últimos anos, ele se dedica a sua obra musical. Em 2009, apresentou ao vivo pela primeira vez as músicas do disco Sociedade da Grã-Ordem… na Virada Cultural de São Paulo. Agora, se prepara para o lançamento de um documentário sobre sua vida chamado Antes Que Me Esqueçam, Meu Nome É Edy Star. Dirigido por Fernando Moraes, com direção musical de Zeca Baleiro, o filme ainda não tem data de lançamento prevista. Zeca Baleiro também é o responsável pela produção e direção do novo álbum de Edy Star, que deve sair em setembro. O disco se chama Cabaré Star, traz Ney Matogrosso, Caetano Veloso e Filipe Catto como convidados e também músicas inéditas de caras como Sérgio Sampaio e Zé Rodrix. “É o meu segundo e último disco. Só espero que não seja um disco ou um documentário póstumos”, ironiza. Uma estrela como Edy não admite lidar com a ideia de que sua imagem seja consagrada só após sua morte: - Tenho testamento e já pedi: quando morrer, quero que queimem toda minha documentação de jornais, recortes, fotografias, tudo. Depois de morto, o que me interessa que ganhem dinheiro escrevendo minha biografia? Se não escreveram enquanto estou vivo, vão escrever depois de morto? Ah… Vão se fuder! Pra cima de moi?! Tá doido, bicho... Edy Star não é bagunça! Ardente como um sol, Edy mantém aceso um fogo passional que alimenta seu brilho estrelar há quase 80 anos. E hoje, assim como sempre, só o que importa a ele é gozar a vida: - Gosto de tudo, na cama faço tudo e acabou. O resto foda-se. Consegui atravessar a onda da AIDS e me manter vivo. Porra, eu sou um herói, bicho. Eu sou um dinossauro colorido!

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_foto Acervo Pessoal

da primeira versão brasileira do musical Rocky Horror Show e foi isso que lhe deu chance de se consagrar como o primeiro artista brasileiro a se declarar gay na imprensa: “O primeiro a dar a cara a tapa fui eu”, afirma.


No Baile do Carmo Por Liniker Barros

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O vestido das nega arrasta e esvoaça o chão quente e queimado da casa da vó lá na terrinha. Me lembro sempre com saudade da minha curiosidade vendo cada detalhe, cada amiga delas que chegava em casa na expectativa daquele ano, as rainhas estavam ali, frente a mim, eu só querendo estar naquele salto, naquela pluma, naquele élan. Tia Bia e minha mãe sempre contam as histórias do baile, dos tempos da

pra dançar o bom samba rock e charme) e eu ali. Sonhando acordada com toda aquela fantasia, sabendo de empoderamento e do tom da minha pele, da minha história desde criança.

A família Barros, como todas as famílias pretas de Araraquara, costuraram essa festa e trilharam essa trajetória.

Sou feliz por ser daí, sou feliz por cada vestido bonito que minha mãe e a tia Bia fizeram pra se coroar.

Nas fotos, em ordem: Lyabo Sadiat Lawal, Juarez José De Paula Romano e Maria Lúcia Camargo Campos, Elizabeth Fonseca Aka, Dioclécio Leite de Araújo e Carla Siqueira

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_fotos Rafael Rocha

“academia”(evento dos anos 80 onde a negada se reunia


No Baile do Carmo


_ texto Liniker Barros _ fotos Rafael Rocha

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No Baile do Carmo


_ texto Liniker Barros _ fotos Rafael Rocha

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Bandas que você

_ texto Leonardo Baldessarelli _foto Douglas Hanauer

não conhece mas

deveria

- Conhece essa pessoa? - Hmm... acho que não. Mas talvez eu queira conhecer? - Aí depende de ti, né? E do que eu vou te contar na sequência. - Como assim? - Ah, essa pessoa é a Saskia, uma musicista, produtora, DJ, whatever, de Porto Alegre. E ela é um dos nomes que mais vêm chamando a atenção na cena de lá. Ela ainda não é muito conhecida e nem tem grandes lançamentos - tipo EPs ou discos - mas é impossível ignorar o trabalho dela quando você ouve, principalmente ao vivo. - Do jeito que você fala, realmente parece, hmm… imperdível? Mas me fala mais sobre o som dela, por favor. - Como ela mesma já disse, a base de tudo o que faz é a

Saskia soundcloud.com/ skia peter

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melancolia - mas isso não chega nem perto de ser uma síntese do trabalho, só é o melhor termo pra englobar o que ela faz porque o mundo musical que a Saskia transita é bem amplo. - Tá, mas é um daqueles indie tristonhos? - Não, não mesmo. Bom, ela cita Mac DeMarco, Connan Mockasin, Homeshake e Radiohead como grandes influências, mas mais pro início da formação musical dela - hoje, se considera um “ensopado de legumes musicais bem diferentes”, se inspirando muito, também, no Hip Hop e eletrônico atual, de Death Grips (uma das bandas favoritas dela) a Jlin e todas as minas produtoras que estão se destacando aqui e na gringa.


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E é por esses lados que você pode começar a entender o som da Saskia antes mesmo de ouvir. Vão ter momentos em que o grave e o beat serão o carro-chefe de tudo, com uma atmosfera meio “vapor” e a voz dela unindo poesia ao som. Em outros momentos da mesma música, ou até em faixas diferentes, o rolê pode até ser só instrumental, baseado no violão, ou até mesmo ser quase MPB, naquela base da canção acompanhada por seis cordas que conhecemos bem. - Então, é um R&B psicodélico e eletrônico com uma quedinha na MPB e no folk? - Pode ser. Ela mesma diz que se sente “simples” por ser assim tão diversificada no som, porque ela viaja entre tudo o que mais gosta - basicamente, o que ela faz mostra quem ela realmente é. - Tá, mas antes você falou que ela se destacava principalmente ao vivo. - Sim, esse é outro ponto. Os poucos shows dela como “artista” que eu vi (ela também faz DJ sets) foram incríveis e tiveram uma execução técnica quase perfeita das músicas - faixas que, aliás, só de ouvir você já consegue imaginar o clima atmosférico e sensacional que elas car-

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regam num live. Como ela ainda não está muito inserida na imprensa, muitas pessoas se surpreendem com o que ouvem e querem saber quem ela é - e isso rola praticamente em todos shows. O clima geral de “como eu não conhecia ela antes?” deixa tudo ainda mais legal. E, além disso tudo, ainda tem a performance dela no palco, sempre apaixonada e hipnotizante. - Bom, já entendi que vou dar de cara com uma artista que as pessoas gostam de ouvir e que já lançou coisas bem diferentes. Como eu posso começar a sacar ela? - É, essa pergunta é bem difícil porque ela lançou muita coisa e está tudo bem espalhado entre os sites de divulgação - Soundcloud, YouTube, Bandcamp... Mas recomendo começar pelo Soundcloud, que não só concentra a maior parte dos lançamentos mais recentes dela (dos últimos seis meses), como tem links para todas as outras redes em que ela está presente. Se eu tiver que recomendar músicas, comece por “Balls”, “Rolê” e “9”, que sintetizam bem tudo o que eu disse - tem eletrônico mais pesado, tem canção, tem letra em português, em inglês. Enfim, tem a Saskia.





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