R E V I STA E X P E R I M E N TA L D A D I S C I P L I N A D E D E S I G N E D I TO R I A L DO CURSO DE JORNALISMO D A FA C U L D A D E 7 D E S E T E M B R O
No 5.º andar da FA7 encontram-se os cursos de comunicação social. Isso significa que lá estão os alunos mais criativos. Você pode acompanhar os trabalhos desses estudantes através do portal Quinto Andar, que atua como uma plataforma para organizar, reunir e divulgar os trabalhos jornalísticos do corpo discente. Se informe, acompanhe e veja os trabalhos acessando o site
www.quintoandar.fa7.edu.br
Como o design de uma reportagem pode alterar a forma como interajo com ela? Diretor-Geral Ednilton Soárez Diretor Acadêmico Ednilo Soárez Vice-Diretor Adelmir Jucá
Foi a partir desse mote que surgiu a revista Meu.
Coordenador do Curso de
Fruto da disciplina de Design Editorial, ministrada
Jornalismo Dilson Alexandre
pelo professor Tarcísio Bezerra, o desafio foi lançado:
Projeto Gráfico Alexandre Fernandes e Guilherme Paiva sob a orientação do prof. Tarcísio Bezerra Direção de Arte Tarcísio Bezerra Colaboraram, nesta edição, os
uma única matéria, o olhar de cada designer sobre ela. Diversos pontos de vista. Com essa atividade, os estudantes tomaram para si a
alunos
responsabilidade que um designer possui: não apenas
(Manhã) André Cavallari, André Mor-
passar uma informação, mas passá-la da melhor forma
eira, Angela Barroso, Assis Nogueira, Bárbara Camurça, Bárbara Rios, Brenno Rebouças, Camila Gadelha, Elenise Flávia, Feitosa de Paula, Flávia Oliveira, Gabriel Antônio, Gabriela
possível, tendo como foco a experiência do usuário. Como a organização dos elementos poderia afetar (para melhor) o momento de interação com a publicação?
Neres, Glenna Cherice, Gustavo Freitas,
“Como devo inserir minha foto? Corto, diminuo ou deixo
Gustavo Nunes, Iane Everdosa, Janaína
vazada?”. “O texto está longo. Posso cortar?”. “O texto está
Flor, Jéssica Saunders, Lorena Sales, Niedja Amazonas, Pedro Lopes, Tamara Aquino, Tarcísio Ribeiro (Noite) Alexandre Fernandes, André Almeida, Ariadne Sousa, Bárbara
curto. O que eu faço?”. “As linhas do meu texto não estão alinhadas!”. “Tracking? Que tracking?”. Das interjeições ditas pelos alunos, apenas uma era
Rodrigues, Camila Menezes, Elayne
repetida com mais frequência pelo professor: “respeitem
Costa, Fernando Souza, Frank Roger,
ogrid!”. E mãos à obra.
Gabrielle Oliveira, Giuliano Vandson, Guilherme Paiva, Gustavo Mendes,
Rendendo bons trabalhos e uma boa experiência de
Jackson Pereira, Jessica Castro, Lylla
primeira publicação, o lançamento da revista Meu Ponto
Lima, Natasha Carvalho, Paulo Felix, Rodrigo Barros, Rubens de Andrade,
de Vista chama atenção para a valorização do primor
Taiamara Gomes, Vanessa Freitas,
na diagramação de uma reportagem. E mais: inaugura,
Zaira Umbelina
no portal Quinto Andar, um local específico para as produções de design. Portanto, perguntamos: e aí, qual é o seu ponto de vista?
[Virada Cultural]
Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE.
POR André Toso DESIGN André Cavallari
Meu ponto de vista 2
FOTO João de Deus
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural - que chega à nona edição - mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma. O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em
maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à
O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência. população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo. Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um
evento parecido na Cidade Luz. Odiretor concebeu, então, a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
Autômatos Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contem-
ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo
psicólogo João o serviço. Os Augusto Pompeixes segpeia – que se uem para um dedica à daseinrefrigerador sanalyse, linha e, de lá, para psicoterápica o transporte. baseada nos Muitas pensamentos vezes, o pesO evento cria uma de Heidegger – vale-se de uma comcador sequer vê os animais. Um treinparação curiosa para tratar do mes- zona de exceção – um amento rápido mostra-se suficiente mo assunto. Professor da PUC-SP e espaço de convivência para garantir a eficácia do profissionautor do livro Os Dois Nascimentos que permite à cidade al. Não é preciso nenhuma relação, do Homem: Escritos sobre Terapia nenhum vínculo com o mar ou com fugir dos padrões e Educação na Era da Técnica, ele mecanizados. Ainda que o peixe. Tampouco existe a necessipede que imaginemos uma pequena momentaneamente, a dade de uma tradição. Basta seguir um vila na costa do Nordeste. população pula fora da manual. A técnica, impessoal, revelase autônoma e dissociada do sujeito Os pescadores artesanais do lurealidade construída que a executa. garejo saltam da cama antes de o Sol pela técnica. A rotina de uma cidade como nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos São Paulo, não raro, lembra a do pesrituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem cador moderno. Os habitantes da metrópole, premia rede na água, aguardam com paciência até capturar dos por inúmeros compromissos e obstáculos, alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em mergulham facilmente na impessoalidade. seguida, comercializam uma parte deles e consomem Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto o restante. reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os converte num local de passagem, não de encontros.
Meu ponto de vista 3
porâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico.O
Virada Cultural >
Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE. POR André Toso DESIGN André Moreira POR João de Deus
Meu ponto de vista 2
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcion-
ou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural - que chega à nona edição - mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma. O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade
francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito JeanMarc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival dês Allumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O
movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo. Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. O diretor concebeu, então, a Nuit Blanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísti-
cas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
Autômatos Em A Questão da Técnica, conferência de 1w953, o filósofo alemão Martin Heidegger (18891976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que nor-teiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico. O psicólogo João Augusto Pompeia – que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada nos pensamentos
de Heidegger – vale-se de uma comparação curiosa para tratar do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência. fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora.Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com
o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostrase suficiente para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa. A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.
Meu ponto de vista 3
O evento cria uma zona de exceção – um espaço de convivência que permite à cidade fugir dos padrões mecanizados. Ainda que momentaneamente, a população pula fora da realidade construída pela técnica e afrouxa os mecanismos de segurança e controle em que costuma se enredar.
Virada Cultural >
Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural - que chega à nona edição - mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma. O formato do evento se inspira numa
ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo.
O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência
Meu ponto de vista 2
Texto André Toso | Design Angela Barroso | Fotografia João de Deus
Autômatos Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são
O evento cria uma zona de exceção – um espaço de convivência que permite à cidade fugir dos padrões mecanizados. Ainda que momentaneamente, a população pula fora da realidade construída pela técnica e afrouxa os mecanismos de segurança e controle em que costuma se enredar
os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico. O psicólogo João Augusto Pompeia – que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada nos pensamentos de Heidegger – vale-se de uma comparação curiosa para tratar do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostra-se suficiente para garantir a eficácia do profissional.
Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa. A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformamse em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.
Meu ponto de vista 3
Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. O diretor concebeu, então, a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
Virada Cultural > Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, 18 e 19, a dose deverá se EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE. repetir, e a Virada Cultur- POR André Toso DESIGN Assis Nogueira POR João de Deus hando por mais de 20 al - que chega à nona Nascia, assim, o O sucesso do países da Europa e de edição - mais uma vez Festival desAllufará São Paulo des- formato, na França mées, que oferecia outras partes do muncansar de si mesma. uma programação do. ou no Brasil, diz O formato cultural diversifiEm 2002, o premuito sobre a do evento se inspicada à população, feito de Paris, Berconvivência das ra numa ideia de- pessoas nos centros sempre em espatrand Delanoë, convispretensiosa da ciurbanos e o papel ços públicos. Os dou Blaise para criar dade francesa de shows e demais um evento parecido na da arte numa Nantes. Em 1989, o atrações começaCidade Luz. Odiretor época marcada prefeito Jean-Marc vam à tardinha e concebeu, então, a Nupela hegemonia Ayrault pensou em terminavam pela itBlanche: uma noite da técnica e maneiras de renovar o manhã. O moviem que toda a capital daquilo que hoje Centro e convidou o mento, que durou francesa seria invadida compreendemos diretor artístico Jean de 1990 a 1995, por manifestações artíscomo eficiência. Blaise para ajudá-lo. acabou se espalticas, com museus, gal-
Meu ponto de vista 2
Pescaria na Megalópole
Autômatos
erias e teatros abertos gratuitamente. O evento cria uma Três anos depois, zona de exceção – um na gestão do preespaço de convivência feito José Serra, que permite à cidade São Paulo adapfugir dos padrões tou o conceito mecanizados. Ainda que e criou a Virada momentaneamente, a Cultural. O sucpopulação pula fora da esso do formato, realidade construída na França ou no Brasil, diz muito pela técnica e afrouxa os mecanismos de sobre a consegurança e controle vivência das pesem que costuma soas nos centros se enredar. urbanos e o pa-
Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico. O psicólogo João Augusto Pompeia – que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada nos pensamentos de Heidegger – vale-se de uma comparação curiosa para tratar do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena
vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premiados por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. O "cada um de nós" é substituido pelo "todo mundo".
Meu ponto de vista 3
pel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
Virada Cultural]
Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE Texto André Toso | Design Bárbara Camurça| Fotografia João de Deus
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de
atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo. Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Del-
segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural - que chega à nona edição - mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma.
anoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. O diretor concebeu, então, a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
Meu ponto de vista 2
O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos Autômatos e o papel da arte numa época Em A Questão da Técnica, conferência de marcada pela hegemonia da 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889técnica e daquilo que hoje 1976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar compreendemos como eficiência. O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais
para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico. O psicólogo João Augusto Pompeia – que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada
parte deles e consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostra-se suficiente para garantir a eficácia do
profissional. Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa.
O evento cria uma zona de exceção – um espaço de convivência que permite à cidade fugir dos padrões mecanizados. Ainda que momentaneamente, a população pula fora da realidade construída pela técnica e afrouxa os mecanismos de segurança e controle em que costuma se enredar. A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.
Meu ponto de vista 3
nos pensamentos de Heidegger – vale-se de uma comparação curiosa para tratar do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvamse a outros tantos rituais e saem de barco mar a fora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma
Virada Cultural >
Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE POR André Toso DESIGN Bárbara Rios POR João de Deus
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Cen-
o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo. Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido
na Cidade Luz. O diretor contro Velho. Tudo ao longo de cebeu, então, a NuitBlanche: 24 horas. Neste mês, entre os uma noite em que toda a capidias 18 e 19, a dose deverá se tal francesa seria invadida por repetir, e a Virada Cultural manifestações artísticas, com - que chega à nona edição museus, galerias e teatros abmais uma vez fará São Paulo ertos gratuitamente. Três anos descansar de si mesma. depois, na gestão do prefeito José Serra, São PauO formato do evento se inspira numa ideia lo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em ma- muito sobre a convivência das pessoas nos centros neiras de renovar o Centro e convidou o diretor urbanos e o papel da arte numa época marcada pela artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim,
Meu ponto de vista 2
O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos.
como eficiência.
Autômatos
Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico. O psicólogo João Augusto Pompeia – que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada nos pensamentos de Heidegger – vale-se de uma comparação curiosa para tratar
O evento cria uma zona de exceção – um espaço de convivência que permite à cidade fugir dos padrões mecanizados.
rantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição. do mesmo assunto. Professor Basta seguir um manual. A técda PUC-SP e autor do livro Os nica, impessoal, revela-se autônoDois Nascimentos do Homem: ma e dissociada do sujeito que a Escritos sobre Terapia e Educa- executa. ção na Era da Técnica, ele pede A rotina de uma cidade que imaginemos uma pequena como São Paulo, não raro, lemvila na costa do Nordeste. Os bra a do pescador moderno. Os pescadores artesanais do lugarejo habitantes da metrópole, premisaltam da cama antes de o Sol na- dos por inúmeros compromissos scer, rezam invocando proteção e e obstáculos, mergulham facilfartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarca-
mente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.
Meu ponto de vista 3
hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos
ção, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostra-se suficiente para ga-
Virada Cultural]
Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE Texto André Toso | Design Brenno Rebouças | Fotografia João de Deus
Meu ponto de vista 2
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por cido na Cidade Luz. O diretor concebeu, então, mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural - que chega à nona edição - mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma. O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo. Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento pare-
a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
Autômatos
Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (18891976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo con-
O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência
O evento cria uma zona de exceção, um espaço de convivência que permite à cidade fugir dos padrões mecanizados
rado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico. O psicólogo João Augusto Pompeia – que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada nos pensamentos de Heidegger – vale-se de uma comparação curiosa para tratar do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Le-
vam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostrase suficiente para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso
nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa. A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.
Meu ponto de vista 3
temporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece igno-
Virada Cultural >
Pescaria na Megalópole
POR André Toso DESIGN [Camila Gadelha] POR João de Deus
Meu ponto de vista 2
AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE. Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural - que chega à nona edição - mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma.
O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo. Em 2002,, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. O diretor concebeu, então, a
Autômatos
Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (18891976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui
O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos.
sob um prisma essencialmente ção, a comunidade onde vivem e objetivo e asséptico. os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se O evento cria uma refugia na cabine de um barco, zona de exceção praticamente sem contato com o – um espaço de exterior, dá um comando e a rede convivência que faz todo o serviço. Os peixes segpermite à cidade uem para um refrigerador e, de lá, fugir dos padrões para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. mecanizados. Um treinamento rápido mostraO psicólogo João Augusto se suficiente para garantir a eficáPompeia – que se dedica à da- cia do profissional. Não é preciso seinsanalyse, linha psicoterápi- nenhuma relação, nenhum vínca baseada nos pensamentos culo com o mar ou com o peixe. de Heidegger – vale-se de uma Tampouco existe a necessidade comparação curiosa para tratar de uma tradição. Basta seguir do mesmo assunto. Professor um manual. A técnica, impessoal, da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarca-
revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa. A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.
Meu ponto de vista 3
NuitBlanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
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Pescaria na Megalópole POR André Toso | DESIGN Elenise Flávia | FOTOGRAFIA João de Deus
Meu ponto de vista 2
AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE. Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, 10 equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural - que chega à nona
edição - mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma. O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20
Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (18891976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou
barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixO sucesso do es seguem para um refrigerador formato diz muito e, de lá, para o transporte. Muisobre a convivência tas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido das pessoas nos mostra-se suficiente para garancentros urbanos. tir a eficácia do profissional. Não O psicólogo João Augusto é preciso nenhuma relação, nenPompeia – que se dedica à dasein- hum vínculo com o mar ou com o sanalyse, linha psicoterápica base- peixe. Tampouco existe a necessiada nos pensamentos de Heide- dade de uma tradição. Basta seguir gger – vale-se de uma comparação um manual. A técnica, impessoal, curiosa para tratar do mesmo as- revela-se autônoma e dissociada sunto. Professor da PUC-SP e do sujeito que a executa. autor do livro Os Dois NasciO evento cria mentos do Homem: Escritos soum espaço de bre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos convivência que uma pequena vila na costa do Norpermite à cidade deste. Os pescadores artesanais do fugir dos padrões lugarejo saltam da cama antes de o mecanizados. Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros A rotina de uma cidade como tantos rituais e saem de barco mar São Paulo, não raro, lembra a do afora. Depois de jogarem a rede na pescador moderno. Os habitantes água, aguardam com paciência até da metrópole, premidos por incapturar alguns peixes. Levam-nos úmeros compromissos e obstácupara casa e os limpam. Em seguida, los, mergulham facilmente na imcomercializam uma parte deles e pessoalidade. Transformam-se em consomem o restante. Só obterão autômatos, tão artífices quanto resucesso em cada etapa da jornada féns de uma técnica sem alma. O se mantiverem uma relação pro- “cada um de nós” é substituído funda com o oceano, os ventos, a pelo “todo mundo” e o espaço
“intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um
embarcação, a comunidade onde público se converte num local de vivem e os próprios peixes. Já na passagem, não de encontros. grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um
Autômatos
prisma essencialmente objetivo e asséptico.
Meu ponto de vista 3
países da Europa e de outras partes do mundo. Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. O diretor concebeu, então, a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
Virada Cultural >
Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE. Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural - que chega à nona edição - mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma. Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. O diretor concebeu, então, a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e te-
atros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
O sucesso do formato na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
Meu ponto de vista 2
Texto André Toso | Design Feitosa de Paula | Fotografia João de Deus
Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e farturas curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão.
O evento cria uma zona de exceção – um espaço de convivência que permite à cidade fugir dos padrões mecanizados. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostra-se suficiente para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa. A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma.
O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.
Meu ponto de vista 3
eus
Autômatos Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (18891976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico. O psicólogo João Augusto Pompeia – que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada nos pensamentos de Heidegger – vale-se de uma comparação curiosa para tratar do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro
Virada Cultural >
Pescaria na Megalópole
AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE. POR André Toso DESIGN [Flávia Oliveira] POR João de Deus
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento
Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento pare-
Meu ponto de vista 2
cido na Cidade Luz. O diretor concebeu, então, de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segu- francesa seria invadida por manifestações artístirança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta sele- cas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitativa de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O mente. Três anos depois, na gestão do prefeito José transporte público funcionou sem parar, inclusive Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada de madrugada, e os carros não puderam trafegar em Cultural. O sucesso do formato, na França ou no parte do chamado Centro Velho. Brasil, diz muito sobre a convivênO sucesso do Tudo ao longo de 24 horas. formato, na França cia das pessoas nos centros urbanos Neste mês, entre os dias 18 ou no Brasil, diz e o papel da arte numa época mare 19, a dose deverá se repetir, e a cada pela hegemonia da técnica e muito sobre a Virada Cultural - que chega à daquilo que hoje compreendemos convivência das nona edição - mais uma vez fará como eficiência. pessoas nos São Paulo descansar de si mescentros urbanos Autômatos ma. O formato do evento se inEm A Questão da Técnica, e o papel da arte spira numa ideia despretensiosa conferência de 1953, o filósofo da cidade francesa de Nantes. Em alemão Martin Heidegger (18891989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em ma- 1976) afirmava que, atualmente, já não há mais neiras de renovar o Centro e convidou o diretor lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e o Festival des Allumées, que oferecia uma progra- “saber” são os verbos que norteiam o mundo conmação cultural diversificada à população, sempre temporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experiem espaços públicos. Os shows e demais atrações mentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, começavam à tardinha e terminavam pela manhã. é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à se espalhando por mais de 20 países da Europa e técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente de outras partes do mundo. objetivo e asséptico.
treinamento rápido mostra-se suficiente para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada
Ainda que momentaneamente, a população pula fora da realidade construída pela técnica e afrouxa os mecanismos de segurança e controle em que costuma se enredar. do sujeito que a executa. A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo”
e o espaço público se converte rior, dá um comando e a rede faz num local de passagem, não de todo o serviço. Os peixes seguem encontros. para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um
Meu ponto de vista 3
O psicólogo João Augusto Pompeia – que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada nos pensamentos de Heidegger – vale-se de uma comparação curiosa para tratar do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvamse a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exte-
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Pescaria na Megalópole As insuspeitadas semelhanças entre a Virada Cultural, em São Paulo, e uma vila de pescadores no Nordeste.
Meu ponto de vista 2
TEXTO André Toso DESIGN Gabriel Antônio FOTOGRAFIA João de Deus Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em
parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural - que chega à nona edição - mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma. O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor
is, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. Odiretor concebeu, então, a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural.
O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da
arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Autômatos Em A Questão da Técnica, Em seguida, comercializam uma conferência de 1953, o filósofo parte deles e consomem o resalemão Martin Heidegger (1889- tante. Só obterão sucesso em 1976) afirmava que, atualmente, cada etapa da jornada se mantivjá não há mais lugar para o mis- erem uma relação profunda com tério. Tudo deve se submeter aos o oceano, os ventos, a embarcaimperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico. O psicólogo João Augusto Pompeia – que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada nos pensamentos de Heidegger – vale-se de uma comparação curiosa para tratar do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e
O evento cria uma zona de exceção – um espaço de convivência que permite à cidade
ção, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostrase suficiente para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessoal,
Meu ponto de vista 3
artístico Jean Blaise para ajudálo. Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo. Em 2002,, o prefeito de Par-
Virada Cultural >
Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE.
Meu ponto de vista 2
Texto André Toso | Design Gabriela Neres | Fotografia João de Deus
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando,
demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por
Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a con-
um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural - que chega à nona edição - mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma. O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e
mais de 20 países da Europa e de vivência das pessoas nos centros uroutras partes do mundo. banos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica O sucesso do e daquilo que hoje compreendemos formato, na França como eficiência.
ou no Brasil, diz muito sobre a Autômatos convivência das Em A Questão da Técnica, pessoas nos centros urbanos e o papel conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889da arte numa 1976) afirmava que, atualmente, já época marcada não há mais lugar para o mistério. pela hegemonia Tudo deve se submeter aos imperada técnica e tivos da razão e da vontade. “Condaquilo que hoje hecer” e “saber” são os verbos que compreendemos norteiam o mundo contemporâcomo eficiência. neo, sobrepondo-se a outros, como
Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. Odiretor concebeu, então, a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José
“experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico. O psicólogo João Augusto Pompeia – que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica base-
O evento cria uma zona de exceção. A população pula fora da realidade construída pela técnica e afrouxa os mecanismos de segurança e controle em que costuma se enredar. tria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostra-se suficiente para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe.
Tampouco existe a necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa. A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros. Meu ponto de vista 3
ada nos pensamentos de Heidegger – vale-se de uma comparação curiosa para tratar do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indús-
Virada Cultural
Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE Texto André Toso | Design [Glenna Cherice] | Fotografia João de Deus
Meu ponto de vista 2
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 mil-
tuitamente. Três anos depois, na O sucesso do formato, na França gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou ou no Brasil, diz a Virada Cultural. O sucesso do muito sobre a formato, na França ou no Brasil, convivência das pessoas nos centros diz muito sobre a convivência das urbanos e o papel pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marda arte numa cada pela hegemonia da técnica e época marcada daquilo que hoje compreendempela hegemonia os como eficiência. da técnica e daquilo que hoje Autômatos compreendemos Em A Questão da Técnicomo eficiência ca, conferência de 1953, o filó-
hões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhõespipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá ços públicos. Os shows e demais se repetir, e a Virada Cultural - atrações começavam à tardinha e que chega à nona edição - mais terminavam pela manhã. O mo-
sofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve
uma vez fará São Paulo descansar de si mesma. O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espa-
se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico.
vimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo. Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. O diretor concebeu, então, a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gra-
O evento cria uma zona de exceção – um espaço de convivência que permite à cidade fugir dos padrões mecanizados.
obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostra-
se suficiente para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa. A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros
Meu ponto de vista 3
O psicólogo João Augusto Pompeia – que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada nos pensamentos de Heidegger – vale-se de uma comparação curiosa para tratar do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só
Virada Cultural >
Pescaria na Megalópole POR André Toso DESIGN Gustavo Freitas POR João de Deus
AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE
Meu ponto de vista 2
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural - que chega à nona edição - mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma. O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo. Em 2002,, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. Odiretor concebeu, então, a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital francesa seria inva-
dida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época mar-
cada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
tivos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como Autômatos Em A Questão da Técnica, “experimentar” ou “intuir”. Se algo conferência de 1953, o filósofo permanece ignorado, é porque ainalemão Martin Heidegger (1889- da não passou pelo crivo da pesqui1976) afirmava que, atualmente, já sa e do cálculo. Ou melhor: ainda não há mais lugar para o mistério. não se submeteu à técnica, vista Tudo deve se submeter aos impera-
aqui sob um prisma essencialmente para casa e os limpam. Em segui- cia do profissional. Não é preciso objetivo e asséptico. da, comercializam uma parte deles nenhuma relação, nenhum vínO psicólogo João Augusto e consomem o restante. Só obterão culo com o mar ou com o peixe. Pompéia – que se dedica à dasein- sucesso em cada etapa da jornada se Tampouco existe a necessidade sanalyse, linha psicoterápica base- mantiverem uma relação profunda de uma tradição. Basta seguir ada nos pensamentos de Heide- com o oceano, os ventos, a embar- um manual. A técnica, impessoal, gger – vale-se de uma comparação cação, a comunidade onde vivem revela-se autônoma e dissociada curiosa para tratar do mesmo as- e os próprios peixes. Já na grande do sujeito que a executa. sunto. Professor da PUC-SP e au- indústria, para ser pescador, basta A rotina de uma cidade tor do livro Os como São PauO evento cria uma zona de exceção – Dois Nascimenlo, não raro, um espaço de convivência que permite à tos do Homem: lembra a do pescidade fugir dos padrões mecanizados, Escritos sobre cador moderno. ainda que momentaneamente, Terapia e EduOs habitantes cação na Era da da metrópole, Técnica, ele pede que imaginemos apertar um botão. O técnico se premidos por inúmeros comprouma pequena vila na costa do Nor- refugia na cabine de um barco, missos e obstáculos, mergulham deste. Os pescadores artesanais do praticamente sem contato com o facilmente na impessoalidade. lugarejo saltam da cama antes de o exterior, dá um comando e a rede Transformam-se em autômatos, Sol nascer, rezam invocando pro- faz todo o serviço. Os peixes seg- tão artífices quanto reféns de teção e fartura, curvam-se a outros uem para um refrigerador e, de lá, uma técnica sem alma. O “cada tantos rituais e saem de barco mar para o transporte. Muitas vezes, um de nós” é substituído pelo afora. Depois de jogarem a rede na o pescador sequer vê os animais. “todo mundo” e o espaço públiágua, aguardam com paciência até Um treinamento rápido mostra- co se converte num local de pascapturar alguns peixes. Levam-nos se suficiente para garantir a eficá- sagem, não de encontros.
Meu ponto de vista 3
O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
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Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE. POR André Toso DESIGN Gustavo Nunes Fotografia João de Deus
Meu ponto de vista 2
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesmais de mil atrações (especialmente musicais), 4 ma. milhões de pessoas circulando, um investimento O formato do evento se inspira numa ideia de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segu- 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em marança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta sele- neiras de renovar o Centro e convidou o diretor tiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o transporte público funcionou sem parar, inclusive Festival des Allumées, que oferecia uma programade madrugada, e os carros não puderam trafegar ção cultural diversificada à população, sempre em em parte do chamado Cenespaços públicos. Os shows e demais atO formato diz tro Velho. Tudo ao longo de rações começavam à tardinha e termimuito sobre a 24 horas. Neste mês, entre os navam pela manhã. O movimento, que convivência das dias 18 e 19, a dose deverá se durou de 1990 a 1995, acabou se espalpessoas nos repetir, e a Virada Cultural hando por mais de 20 países da Europa centros urbanos . - que chega à nona edição e de outras partes do mundo.
O psicólogo João Augusto Pompeia – que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada nos pensamentos de Heidegger – vale-se de uma comparação curiosa para tratar do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo
tante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes,
diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
O evento cria uma zona de exceção – um espaço de convivência que permite à cidade fugir dos padrões mecanizados. Ainda que momentaneamente, a população pula fora da realidade construída pela técnica.
o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostrase suficiente para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa. A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.
Autômatos Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (18891976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico.
saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o res-
Meu ponto de vista 3
Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. O diretor concebeu, então, a Nuit Blanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil,
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Pescaria na Megalópole POR André Toso DESIGN Iane Ervedosa POR João de Deus
Meu ponto de vista 2
AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60
mação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo.
caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural - que chega à nona edição - mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma. O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma progra-
Em 2002,, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. Odiretor concebeu, então, a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
Autômatos do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguar-
dam com paciência até capturar se submeteu à técnica, vista aqui alguns peixes. Levam-nos para sob um prisma essencialmente casa e os limpam. Em seguida, objetivo e asséptico. comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só obO sucesso do terão sucesso em cada etapa da formato, na França jornada se mantiverem uma relaou no Brasil, diz ção profunda com o oceano, os muito sobre a ventos, a embarcação, a comuniconvivência das dade onde vivem e os próprios pessoas nos peixes. Já na grande indústria, centros urbanos e o para ser pescador, basta apertar papel da arte numa um botão. O técnico se refugia época marcada na cabine de um barco, praticapela hegemonia mente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede da técnica e faz todo o serviço. Os peixes daquilo que hoje seguem para um refrigerador e, compreendemos de lá, para o transporte. Muitas como eficiência. vezes, o pescador sequer vê os O psicólogo João Augusto animais. Um treinamento rápiPompeia – que se dedica à dado mostra-se suficiente para gaseinsanalyse, linha psicoterápirantir a eficácia do profissional. ca baseada nos pensamentos Não é preciso nenhuma relação, de Heidegger – vale-se de uma nenhum vínculo com o mar ou comparação curiosa para tratar com o peixe. Tampouco existe
a necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa.
O evento cria uma zona de exceção – um espaço de convivência que permite à cidade fugir dos padrões mecanizados. Ainda que momentaneamente, a população pula fora da realidade construída pela técnica e afrouxa os mecanismos de segurança e controle em que costuma se enredar. A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.m que costuma se enredar.
Meu ponto de vista 3
Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (18891976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não
Virada Cultural]
Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE.
Meu ponto de vista 2
Texto André Toso | Design Janaina Flor | Fotografia João de Deus
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural - que chega à nona edição - mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma. O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em
1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo. Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. Odiretor concebeu, então, a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gra-
compreendemos como eficiência.
exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostrase suficiente para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa. A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os
Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (18891976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vonta-
Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e
de. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ig-
os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o
uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.
e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
Autômatos
O evento cria uma zona de exceção – um espaço de convivência que permite à cidade fugir dos padrões mecanizados. Ainda que momentaneamente, habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de
Meu ponto de vista 3
tuitamente. Três anos depois, norado, é porque ainda não pasna gestão do prefeito José Serra, sou pelo crivo da pesquisa e do São Paulo adaptou o conceito cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui O sucesso do sob um prisma essencialmente formato, na França objetivo e asséptico. ou no Brasil, diz O psicólogo João Augusto muito sobre a Pompeia – que se dedica à das convivência das einsanalyse, linha psicoterápipessoas nos centros ca baseada nos pensamentos urbanos e o papel de Heidegger – vale-se de uma da arte numa época comparação curiosa para tratar marcada pela do mesmo assunto. Professor técnica que hoje da PUC-SP e autor do livro Os
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Pescaria na Megalópole hebemunte qua capes POR André Toso DESIGN [Jéssica Saunders] POR João de Deus
AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE.
Meu ponto de vista 2
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Delmais de mil atrações (especialmente musicais), 4 anoë, convidou Blaise para criar um evento paremilhões de pessoas circulando, um investimento cido na Cidade Luz. O diretor concebeu, então, de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural - que chega à nona edição - mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma. O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais O evento cria uma atrações começa- zona de exceção vam à tardinha e – um espaço de terminavam pela convivência– que manhã. O movi- permite à cidade mento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo.
francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
Autômatos
Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (18891976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico. O psicólogo João Augusto Pompeia – que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada nos pensamentos de Heidegger – vale-se de uma comparação curiosa para tratar do mesmo assun-
frigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostra-se suficiente para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tam-
pouco existe a necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa. A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.
O evento cria uma zona de exceção – um espaço de convivência– que permite à cidade fugir dos padrões mecanizados. Ainda que momentaneamente, a população pula fora da realidade construída pela técnica e afrouxa os mecanismos de segurança
Meu ponto de vista 3
to. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um re-
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Pescaria na Megalópole
POR André Toso DESIGN Lorena Sales Rabelo POR João de Deus
AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE.
Meu ponto de vista 2
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir,
O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
e a Virada Cultural - que chega à nona edição - mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma. O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival dês Allumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por
cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostrase suficiente para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa. A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.
Meu ponto de vista 3
O evento cria uma mais de 20 países da Europa e de zona de exceção outras partes do mundo. Em 2002, o prefeito de Par– um espaço de is, Bertrand Delanoë, convidou convivência que Blaise para criar um evento parepermite à cidade cido na Cidade Luz. O diretor fugir dos padrões concebeu, então, a NuitBlanche: mecanizados. A uma noite em que toda a capital população sai da francesa seria invadida por manirealidade construída festações artísticas, com museus, pelos mecanismos galerias e teatros abertos grade segurança tuitamente. Três anos depois, na e controle gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou sob um prisma essencialmente a Virada Cultural. O sucesso do objetivo e asséptico. formato, na França ou no Brasil, O psicólogo João Augusto diz muito sobre a convivência das Pompeia – que se dedica à dapessoas nos centros urbanos e o seinsanalyse, linha psicoterápipapel da arte numa época marca- ca baseada nos pensamentos da pela hegemonia da técnica e de Heidegger – vale-se de uma daquilo que hoje compreendem- comparação curiosa para tratar os como eficiência. do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Autômatos Em A Questão da Técnica, Escritos sobre Terapia e Educaconferência de 1953, o filósofo ção na Era da Técnica, ele pede alemão Martin Heidegger (1889- que imaginemos uma pequena 1976) afirmava que, atualmente, vila na costa do Nordeste. Os já não há mais lugar para o mis- pescadores artesanais do lugarejo tério. Tudo deve se submeter aos saltam da cama antes de o Sol naimperativos da razão e da vonta- scer, rezam invocando proteção e de. “Conhecer” e “saber” são os fartura, curvam-se a outros tanverbos que norteiam o mundo tos rituais e saem de barco mar contemporâneo, sobrepondo-se afora. Depois de jogarem a rede a outros, como “experimentar” na água, aguardam com paciênou “intuir”. Se algo permanece ig- cia até capturar alguns peixes. Lenorado, é porque ainda não pas- vam-nos para casa e os limpam. sou pelo crivo da pesquisa e do Em seguida, comercializam uma cálculo. Ou melhor: ainda não parte deles e consomem o resse submeteu à técnica, vista aqui tante. Só obterão sucesso em
Virada Cultural >
Pescaria na Megalópole
AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE POR André Toso DESIGN Niedja Amazonas POR João de Deus
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a
parecido na Cidade Luz. O diretor concebeu, então, a Nuit Blanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
Meu ponto de vista 2
limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural - que chega à nona edição - mais Autômatos Em A Questão da Técnica, conferência uma vez fará São Paulo descansar de si mesma. de 1953, o filósofo alemão Martin HeideO formato do evento se inspira numa idegger (1889-1976) afirmava que, atualmente, ia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. já não há mais lugar para o mistério. Tudo Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou deve se submeter aos imperativos da razão e em maneiras de renovar o Centro e convidou o da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verdiretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nasbos que norteiam o mundo contemporâneo, cia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural disobrepondo-se a outros, como O sucesso do versificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo. Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento
formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
“experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico. O psicólogo João Augusto Pompeia – que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada nos pen-
Meu ponto de vista 3
samentos de Heidegger – vale-se de Não é preciso nenhuma relação, nenuma comparação curiosa para O evento cria uma hum vínculo com o mar ou com o tratar do mesmo assunto. Propeixe. Tampouco existe a necessizona de exceção fessor da PUC-SP e autor do dade de uma tradição. Basta seguir – um espaço de livro Os Dois Nascimentos do um manual. A técnica, impessoal, convivência que Homem: Escritos sobre Terapia revela-se autônoma e dissociada do permite à cidade e Educação na dam com paciênsujeito que a executa. fugir dos padrões cia até capturar alguns peixA rotina de uma cidade como mecanizados. es. Levam-nos para casa e os se São Paulo, não raro, lembra a do pesAinda que refugia na cabine de um barco, cador moderno. Os habitantes da momentaneamente, praticamente sem contato com metrópole, premidos por inúmeros a população pula o exterior, dá um comando e a compromissos e obstáculos, mergulfora da realidade ham facilmente na impessoalidade. rede faz todo o serviço. Os peixconstruída pela es seguem para um refrigerador Transformam-se em autômatos, tão técnica e afrouxa artífices quanto reféns de uma téce, de lá, para o transporte. Muios mecanismos tas vezes, o pescador sequer vê os nica sem alma. O “cada um de nós” animais. Um treinamento rápié substituído pelo “todo mundo” e o de segurança e do mostra-se suficiente para gaespaço público se converte num local controle em que rantir a eficácia do profissional. costuma se enredar. de passagem, não de encontros.
Virada Cultural >
Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE Texto André Toso DESIGN Pedro Lopes Fotografia João de Deus
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural - que chega à nona edição - mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma.
Meu ponto de vista 2
"O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica" O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo. Em 2002,, o prefeito de Paris, Bertrand Del-
anoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. Odiretor concebeu, então, a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
Autômatos Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (18891976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico. Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de
animais. Um treinamento rápido mostra-se suficiente para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual. A
técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa. A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.
" O evento cria uma zona de exceção – um espaço de convivência que permite à cidade fugir dos padrões mecanizados"
Meu ponto de vista 3
jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os
Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE. Texto André Toso | Design Tamara Aquino]| Fotografia João de Deus
Meu ponto de vista 2
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de
cido na Cidade Luz. O diretor concebeu, então, a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou
lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas madrugada, e os carros não puderam trafegar em nos centros urbanos e o papel da arte numa época parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose hoje compreendemos como eficiência. deverá se repetir, e a ViAutômatos O sucesso do formato, na rada Cultural - que cheEm A Questão França ou no Brasil, diz muito ga à nona edição - mais da Técnica, conferênuma vez fará São Paulo cia de 1953, o filósofo sobre a convivência das descansar de si mesma. alemão Martin Heidepessoas nos centros urbanos O formato do evengger (1889-1976) afire o papel da arte numa época to se inspira numa ideia mava que, atualmente, marcada pela hegemonia da despretensiosa da cidade já não há mais lugar técnica e daquilo que hoje francesa de Nantes. Em compreendemos como eficiência. para o mistério. Tudo 1989, o prefeito Jeandeve se submeter aos Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise “saber” são os verbos que norteiam o mundo conpara ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival desAllumées, temporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experque oferecia uma programação cultural diversifi- imentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, cada à população, sempre em espaços públicos. Os é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa shows e demais atrações começavam à tardinha e e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à terminavam pela manhã. O movimento, que durou técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de objetivo e asséptico. 20 países da Europa e de outras partes do mundo. O psicólogo João Augusto Pompeia – que se Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Del- dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada anoë, convidou Blaise para criar um evento pare- nos pensamentos de Heidegger – vale-se de uma
Meu ponto de vista 3
comparação curiosa para tratar do mesmo assunto. comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes segProfessor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nas- uem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. cimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Edu- Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um cação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos treinamento rápido mostra-se suficiente para garanuma pequena vila na costa do Nordeste. Os pesca- tir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhudores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de ma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o o Sol nascer, rezam invopeixe. Tampouco existe O evento cria uma zona de cando proteção e fartura, a necessidade de uma exceção – um espaço de curvam-se a outros tantradição. Basta seguir convivência que permite à tos rituais e saem de barum manual. A técnica, cidade fugir dos padrões co mar afora. Depois de impessoal, revela-se aumecanizados. Ainda que jogarem a rede na água, tônoma e dissociada do momentaneamente, a aguardam com paciência sujeito que a executa. população pula fora da realidade até capturar alguns peixA rotina de uma construída pela técnica e es. Levam-nos para casa e cidade como São Paulo, afrouxa os mecanismos de os limpam. Em seguida, não raro, lembra a do segurança e controle em comercializam uma parte pescador moderno. Os que costuma se enredar. deles econsomem o reshabitantes da metrótante. Só obterão sucesso pole, premidos por inem cada etapa da jornada se mantiverem uma relação úmeros compromissos e obstáculos, mergulham profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, facilmente na impessoalidade. Transformam-se em a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técna grande indústria, para ser pescador, basta apertar nica sem alma. O “cada um de nós” é substituído um botão. O técnico se refugia na cabine de um bar- pelo “todo mundo” e o espaço público se converte co, praticamente sem contato com o exterior, dá um num local de passagem, não de encontros.
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Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE POR André Toso DESIGN Tarcisio Ribeiro POR João de Deus
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puder-
Meu ponto de vista 2
o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 am trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo países da Europa e de outras partes do mundo. ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, Em 2002,, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural - que chega convidou Blaise para criar um evento parecido na Cià nona edição - mais uma vez fará São Paulo descansar dade Luz. Odiretor concebeu, então, a NuitBlanche: de si mesma. uma noite em que toda a capital francesa seria invadiO formato do evento se inspira numa ideia de- da por manifestações artísticas, com museus, galerias spretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na
"O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas" Autômatos Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (18891976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico. O psicólogo João Augusto Pompeia – que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica base-
ada nos pensamentos de Heidegger – vale-se de uma comparação curiosa para tratar do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostra-se suficiente para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a
necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa.
"O evento cria uma zona de exceção – um espaço de convivência que permite à cidade fugir dos padrões mecanizados" A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.
Meu ponto de vista 3
gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
Virada Cultural]
Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE POR André Toso DESIGN Alexandre Fernandes POR João de Deus
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais edição - mais uma vez fará São Paulo descansar de mil atrações (especialmente mude si mesma. O sucesso do sicais), 4 milhões de pessoas circuO formato do evento se inspiformato, na França lando, um investimento de R$ 8 ra numa ideia despretensiosa da ciou no Brasil, diz milhões e uma estrutura que condade francesa de Nantes. Em 1989, muito sobre a tou com mil banheiros químicos, o prefeito Jean-Marc Ayrault penconvivência das 3,4 mil agentes de segurança, 57 sou em maneiras de renovar o Cen-
Meu ponto de vista 2
ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural - que chega à nona
pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
tro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival de Allumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por
Autômatos
Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (18891976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico.
O psicólogo João Augusto Pompeia – que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada nos pensamentos de Heidegger – vale-se de uma comparação curiosa para tratar do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostra-se suficiente para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhuma re-
lação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa.
O evento cria uma zona de exceção – um espaço de convivência que permite à cidade fugir dos padrões mecanizados. Ainda que momentaneamente, a população pula fora da realidade construída pela técnica e afrouxa os mecanismos de segurança e controle em que costuma se enredar. A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.
Meu ponto de vista 3
mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo. Em 2002,, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. Odiretor concebeu, então, a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
Virada Cultural
Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE.
Meu ponto de vista 2
Texto André Toso | Design André Almeida | Fotografia João de Deus
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando,
entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural - que chega à nona edição - mais uma vez fará São Paulo
ços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990
um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhõespipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês,
descansar de si mesma. O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espa-
a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo.
O evento cria uma zona de exceção – um espaço de convivência que permite à cidade fugir dos padrões mecanizados.
diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
Autômatos Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico.
O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência. O psicólogo João Augusto Pompeia – que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada nos pensamentos de Heidegger – vale-se de uma comparação curiosa para tratar do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só obterão
sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostra-se suficiente para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa. A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.
Meu ponto de vista 3
Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. Odiretor concebeu, então, a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil,
Virada Cultural >
Pescaria na Megalópole
AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE.
Meu ponto de vista 2
POR André Toso DESIGN Ariadne Sousa POR João de Deus
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhõespipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo
ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural - que chega à nona edição - mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma.
"o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência."
O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por
diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
Autômatos
Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (18891976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico.
O evento cria uma zona de exceção. Ainda que momentaneamente, a população pula fora da realidade construída pela técnica e afrouxa os mecanismos de segurança e controle em que costuma se enredar. O psicólogo João Augusto Pompeia – que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada nos pensamentos de Heidegger – vale-se de uma comparação curiosa para tratar do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só
obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostra-se suficiente para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa. A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.
Meu ponto de vista 3
mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo. Em 2002,, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. Odiretor concebeu, então, a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil,
Virada Cultural
Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE. wPOR André Toso DESIGN Bárbara Rodrigues POR João de Deus
Meu ponto de vista 2
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural que chega à nona edição mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma. O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo.Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos.Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo. Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. Odiretor concebeu, então, a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São
O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência. Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
Autômatos
Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (18891976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico. O psicólogo João Augusto Pompeia – que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica
próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostra-se suficiente para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa. A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham
facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.
O evento cria uma zona de exceção – um espaço de convivência que permite à cidade fugir dos padrões mecanizados. Ainda que momentaneamente, a população pula fora da realidade construída pela técnica e afrouxa os mecanismos de segurança e controle em que costuma se enredar.
Meu ponto de vista 3
baseada nos pensamentos de Heidegger – vale-se de uma comparação curiosa para tratar do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvamse a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os
Virada Cultural] Pescaria na Megalópole
AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE.
Meu ponto de vista 2
POR André Toso DESIGN [ Camila Menezes ] POR João de Deus
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhõespipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do
"O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos."
chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural - que chega à nona edição, mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma. O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival
Blanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
Autômatos Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (18891976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se
a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico. O psicólogo João Augusto Pompeia que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada nos pensamentos de Heidegger valese de uma comparação curiosa para tratar do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem
"O evento cria uma zona de exceção – um espaço de convivência que permite à cidade fugir dos padrões mecanizados."
de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte.Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostra-se suficiente para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa. A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.
Meu ponto de vista 3
desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo. Em 2002,, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. Odiretor concebeu, então, a Nuit-
Virada Cultural >
Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE. Texto André Toso | Design Elayne Costa | Fotografia João de Deus
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza.O transporte público funcionou sem parar, inclusive
Meu ponto de vista 2
de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas.Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir,e a Virada Cultural que chega à nona edição mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma. O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes.Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo.Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã.O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo. Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz.Odiretor concebeu, então, a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital france uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente.
O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
Autômatos Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (18891976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico. O psicólogo João Augusto Pompeia – que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada
Meu ponto de vista 3
nos pensamentos de Heidegger – vale-se de uma com- sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostra-se paração curiosa para tratar do mesmo assunto. Profes- suficiente para garantir a eficácia do profissional. Não é sor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessona costa do Nordeste. Os pescadores arteal, revela-se autônoma sanais do lugarejo saltam da cama antes de O evento cria uma zona de e dissociada do sujeito o Sol nascer, rezam invocando proteção e exceção – um espaço de que a executa. fartura, curvam-se a outros tantos rituais e convivência que permite à A rotina de uma saem de barco mar afora. Depois de jogacidade fugir dos padrões cidade como São Paurem a rede na água, aguardam com paciênmecanizados. Ainda que lo, não raro, lembra a cia até capturar alguns peixes. Levam-nos do pescador modermomentaneamente, a para casa e os limpam. Em seguida, comno. Os habitantes da população pula fora da ercializam uma parte deles e consomem o metrópole, premidos realidade construída restante. Só obterão sucesso em cada etapa por inúmeros compropela técnica e afrouxa da jornada se mantiverem uma relação promissos e obstáculos, os mecanismos de funda com o oceano, os ventos, a embarcamergulham facilmente segurança e controle em ção, a comunidade onde vivem e os próprina impessoalidade. que costuma se enredar. os peixes. Já na grande indústria, para ser Transformam-se em pescador, basta apertar um botão. O técautômatos, tão artíficnico se refugia na cabine de um barco, praticamente es quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um sem contato com o exterior, dá um comando e a rede de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigera- público se converte num local de passagem, não de endor e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador contros.
//Virada Cultural
Pescaria na
Megalópole As insuspeitadas semelhanças entre a Virada Cultural, em São Paulo, e uma vila de pescadores no Nordeste.
Meu ponto de vista 2
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural que chega à nona edição, mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma. O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito Jean Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia assim o Festival des Allumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em
O sucesso do formato na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo. Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. O diretor concebeu então a Nuit Blanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
Autômatos Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) afirmava que atualmente já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo, ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico.
Texto: André Toso | Design Fernando Souza | Fotografia João de Deus para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição, basta seguir um manual. A técnica impessoal revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa. A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros. O evento cria uma zona de exceção, um espaço de convivência que permite à cidade fugir dos padrões mecanizados. Ainda que momentaneamente, a população pula fora da realidade construída pela técnica e afrouxa os mecanismos de segurança e controle em que costuma se enredar.
Meu ponto de vista 3
O psicólogo João Augusto Pompeia que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada nos pensamentos de Heidegger, valese de uma comparação curiosa para tratar do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levamnos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e de lá para o transporte. Muitas vezes o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostra-se suficiente
Virada Cultural >
Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE.
Meu ponto de vista 2
POR André Toso DESIGN Frank Roger POR João de Deus
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por O formato do evento se inspira numa ideia demais de mil atrações (especialmente musicais), 4 spretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, milhões de pessoas circulando, um investimento de o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival des Alambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e lumées, que oferecia uma programação cultural di60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte pú- versificada à população, sempre em espaços públicos. blico funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e Os shows e demais atrações começavam à tardinha e os carros não puderam trafegar em parte do chama- terminavam pela manhã. O movimento, que durou do Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e 20 países da Europa e de outras partes do mundo. a Virada Cultural que chega à nona edição mais uma Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Delavez fará São Paulo descansar de si mesma. noë, convidou Blaise para criar um evento parecido
pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já Autômatos Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, na grande indústria, para ser pescador, basta apero filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) tar um botão. O técnico se refugia na cabine de um afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o barco, praticamente sem contato com o exterior, dá mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os ver- seguem para um refrigerador e, de lá, para o transbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobre- porte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os anipondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. mais. Um treinamento rápido mostra-se suficiente Se algo permanece ignorado, é porque ainda não pas- para garantir a eficácia do profissional. Não é presou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de prisma essencialmente objetivo e asséptico. uma tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada do suO sucesso do formato, na jeito que a executa. França ou no Brasil, diz muito A rotina de uma cidade como São Paulo, não sobre a convivência das raro, lembra a do pescador moderno. Os habitanpessoas nos centros urbanos tes da metrópole, premidos por inúmeros comproe o papel da arte numa época missos e obstáculos, mergulham facilmente na immarcada pela hegemonia da pessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão técnica e daquilo que hoje artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O compreendemos como eficiência. “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passaO psicólogo João Augusto Pompeia – que se gem, não de encontros. dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseO evento cria uma zona ada nos pensamentos de Heidegger – vale-se de de exceção – um espaço uma comparação curiosa para tratar do mesmo de convivência que assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro permite à cidade fugir dos Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sopadrões mecanizados. bre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele
Meu ponto de vista 3
na Cidade Luz. O diretor concebeu, então, a Nuit Blanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
> Virada Cultural Texto André Toso | Design Gabrielle Oliveira | Fotografia João de Deus
Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE.
Meu ponto de vista 2
E
m 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não
puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural - que chega à nona edição - mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma. O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o di-
Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. Odiretor concebeu, então, a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo
O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje
ção na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvamse a outros tantos rituais e saem de barco mar a fora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar Autômatos Em A Questão da Técni- alguns peixes. Levam-nos para ca, conferência de 1953, o filó- casa e os limpam. Em seguida, sofo alemão Martin Heidegger comercializam uma parte deles adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
(1889-1976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico. O psicólogo João Augusto Pompeia – que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada nos pensamentos de Heidegger – vale-se de uma comparação curiosa para tratar do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educa-
e consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostra-se suficiente para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição. Basta seguir um mauual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissocia-
Meu ponto de vista 3
retor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo.
Virada Cultural]
Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE.
Meu ponto de vista 2
POR André Toso DESIGN Giuliano Vandson POR João de Deus
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural - que chega à nona edição - mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma. O formaO sucesso do to do evento se formato, na França inspira numa ideia despreou no Brasil, diz tensiosa da cimuito sobre a dade franceconvivência das pessoas nos centros sa de Nantes. urbanos e o papel Em 1989, o prefeito Jeanda arte numa Marc Ayrault época marcada pensou em pela hegemonia. maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo.
Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. O diretor concebeu, então, a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
Autômatos
Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (18891976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos
peia – que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada nos pensamentos de Heidegger – vale-se de uma comparação curiosa para tratar do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do
O evento cria uma zona de exceção – um espaço de convivência que permite à cidade fugir dos padrões mecanizados. Ainda que momentaneamente, a população pula fora da realidade construída pela técnica e afrouxa os mecanismos de segurança e controle em que costuma se enredar. Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com
o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostra-se suficiente para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa. A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.ópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.
Meu ponto de vista 3
imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico. O psicólogo João Augusto Pom-
Virada Cultural]
Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE
Meu ponto de vista 2
TEXTO André Toso DESIGN Guilherme Paiva FOTOGRAFIA João de Deus
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhõespipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural - que chega à nona edição - mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma. O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa
da cidade francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam
O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20
países da Europa e de outras partes do mundo. Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. O diretor concebeu, então, a Nuit Blanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
imaginemos uma pequena vila na Em A Questão da Técnica, costa do Nordeste. Os pescadoconferência de 1953, o filósofo res artesanais do lugarejo saltam
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alemão Martin Heidegger (18891976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico. O psicólogo João Augusto Pompeia – que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada nos pensamentos de Heidegger – vale-se de uma comparação curiosa para tratar do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que
com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa.
da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostra-se suficiente para
O evento cria um espaço de convivência que permite à cidade fugir dos padrões mecanizados A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.
Meu ponto de vista 3
Autômatos
Meu ponto de vista 2
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atraçþes (especialmente musicais), 4 milhĂľes de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhĂľes e uma estrutura que contou com mil banheiros quĂmicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhĂľespipa para a limpeza. O transporte pĂşblico funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros nĂŁo puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mĂŞs, entre os dias 18 e 19, a dose deverĂĄ se repetir, e a Virada Cultural - que chega Ă nona edição - mais uma vez farĂĄ SĂŁo Paulo descansar de si mesma. O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artĂstico Jean Blaise para ajudĂĄ-lo. Nascia, assim, o Festival desAllumĂŠes, que oferecia uma programação cultural diYHUVLÂżFDGD j SRSXODomR VHPSUH em espaços pĂşblicos. Os shows e demais atraçþes começavam Ă tardinha e terminavam pela manhĂŁ. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 paĂses da Europa e de outras partes do mundo. Em 2002,, o prefeito de Paris, Bertrand DelanoĂŤ, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. Odiretor concebeu, entĂŁo, a NuitBlanche: uma noite em que toda O evento cria uma zona de exceção – um espaço de convivĂŞncia que permite Ă cidade fugir dos padrĂľes mecanizados. Ainda que momentaneamente, a população pula fora da realidade construĂda pela tĂŠcnica e afrouxa os mecanismos de segurança e controle em que
Pescaria na MegalĂłpole
As insuspeitadas semelhanças entre a V vila de pescador
Texto AndrĂŠ Toso Design Gustavo
VIRADA
a capital francesa seria invadida por manifestaçþes artĂsticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. TrĂŞs anos depois, na gestĂŁo do prefeito JosĂŠ Serra, SĂŁo Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivĂŞncia das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa ĂŠpoca marcada pela
hegemonia da tĂŠcnica e daquilo que hoje compreenGHPRV FRPR HÂżFLrQFLD
AutĂ´matos
Em A QuestĂŁo da TĂŠcnica, conferĂŞncia de 1953, o
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Virada Cultural, em SĂŁo Paulo, e uma res no Nordeste
o Mendes Fotografia JoĂŁo de Deus
CULTURAL
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Tudo deve se submeter aos imperativos da razĂŁo e da vontade. “Conhecerâ€? e “saberâ€? sĂŁo os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentarâ€? ou “intuirâ€?. Se algo permanece ignorado, ĂŠ porque ainda nĂŁo passou pelo crivo da pesquisa e do cĂĄlculo.
NĂŁo ĂŠ preciso nenhuma relação, nenhum vĂnculo com o mar ou com o peixe. TamProfessor da PUC-SP e autor do pouco existe a necessidade de livro Os Dois Nascimentos do uma tradição. Basta seguir um +RPHP (VFULWRV VREUH 7HUDSLD manual. A tĂŠcnica, impessoal, e Educação na Era da TĂŠcnica, revela-se autĂ´noma e dissoele pede que imaginemos uma ciada do sujeito que a executa. pequena vila na costa do Nor- A rotina de uma cidade como deste. Os pescadores artesanais SĂŁo Paulo, nĂŁo raro, lembra a do do lugarejo saltam da cama an- pescador moderno. Os habitantes tes de o Sol nascer, rezam in- GD PHWUySROH SUHPLGRV SRU LQvocando proteção e fartura, Ăşmeros compromissos e obstĂĄcucurvam-se a outros tantos rit- los, mergulham facilmente na uais e saem de barco mar afora. impessoalidade. Transformam-se HP DXW{PDWRV WmR DUWtÂżFHV TXDQWR
Meu ponto de vista 3
O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa Êpoca marcada pela hegemonia da tÊcnica e daquilo que hoje compreendemos FRPR H¿FLrQFLD
Virada Cultural >
Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE. POR André Toso POR João de Deus
Meu ponto de vista 2
DESIGN Jackson Pereira
O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural - que chega à nona edição - mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma. O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações
Meu ponto de vista 3
começavam à tardinha e terminavam pela manhã. cimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e EduO movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou cação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos se espalhando por mais de 20 países da Europa e de uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescaoutras partes do mundo. dores artesanais do lugarejo saltam da cama antes Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Dela- de o Sol nascer, rezam invocando proteção e farnoë, convidou Blaise para criar um evento parecido tura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de na Cidade Luz. Odiretor concebeu, então, a Nuit- barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, Blanche: uma noite em que toda a capital france- aguardam com paciência até capturar alguns peixes. sa seria invadida por manifestações artísticas, com Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comuseus, galerias e teatros abertos gratuitamente. mercializam uma parte deles e consomem o restanTrês anos depois, na gestão do prefeito José Serra, te. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cul- mantiverem uma relação profunda com o oceano, tural. O sucesso do formato, na os ventos, a embarcação, a coO evento cria uma zona de munidade onde vivem e os França ou no Brasil, diz muito exceção – um espaço de sobre a convivência das pessoas próprios peixes. Já na grande inconvivência que permite à cidade nos centros urbanos e o papel dústria, para ser pescador, basta fugir dos padrões mecanizados. da arte numa época marcada apertar um botão. O técnico se Ainda que momentaneamente, a pela hegemonia da técnica e refugia na cabine de um barco, daquilo que hoje compreende- população pula fora da realidade praticamente sem contato com construída pela técnica e mos como eficiência. o exterior, dá um comando e a afrouxa os mecanismos de rede faz todo o serviço. Os peixsegurança e controle em Autômatos es seguem para um refrigerador que costuma se enredar. Em A Questão da Técnie, de lá, para o transporte. Muica, conferência de 1953, o filótas vezes, o pescador sequer vê sofo alemão Martin Heidegger os animais. Um treinamento rá(1889-1976) afirmava que, atualmente, já não há pido mostra-se suficiente para garantir a eficácia do mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter profissional. Não é preciso nenhuma relação, neaos imperativos da razão e da vontade. “Conhec- nhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tamer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo pouco existe a necessidade de uma tradição. Basta contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ig- autônoma e dissociada do sujeito que a executa. norado, é porque ainda não passou pelo crivo da A rotina de uma cidade como São Paulo, não pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se raro, lembra a do pescador moderno. Os habitansubmeteu à técnica, vista aqui sob um prisma es- tes da metrópole, premidos por inúmeros comprosencialmente objetivo e asséptico. missos e obstáculos, mergulham facilmente na imO psicólogo João Augusto Pompeia – que se pessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O nos pensamentos de Heidegger – vale-se de uma “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” comparação curiosa para tratar do mesmo assunto. e o espaço público se converte num local de passaProfessor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nas- gem, não de encontros.
Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE.
Meu ponto de vista 2
Texto André Toso | Design Jessica Castro | Fotografia João de Deus
Em 2012, foram 15 km de entre os dias 18 e 19, a dose devias tomadas por mais de mil at- verá se repetir, e a Virada Culrações (especialmente musicais), tural - que chega à nona edição 4 milhões de pessoas circulando, O sucesso do um investimento de R$ 8 milformato, na França hões e uma estrutura que contou ou no Brasil, diz com mil banheiros químicos, 3,4 muito sobre a mil agentes de segurança, 57 amconvivência das bulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões- pessoas nos centros urbanos e o papel pipa para a limpeza. O transporte da arte numa público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros época marcada não puderam trafegar em parte pela hegemonia do chamado Centro Velho. Tudo da técnica. ao longo de 24 horas. Neste mês,
O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por
diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
Autômatos Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (18891976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui
sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico. O psicólogo João Augusto Pompeia – que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada nos pensamentos de Heidegger – vale-se de uma comparação curiosa para tratar do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pes-
cador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostra-se suficiente para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa.
O evento cria uma zona de exceção – um espaço de convivência que permite à cidade fugir dos padrões mecanizados. Ainda que momentaneamente, a população pula fora da realidade construída pela técnica. A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.
Meu ponto de vista 3
mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo. Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. O diretor concebeu, então, a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil,
Cartola: Virada Cultural
André Toso | Design Lylla Lima | Fotografia João de Deus
Pescaria na Megalópole
Meu ponto de vista 2
AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE. Em 2012 foram 15km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural que chega à nona edição mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma. O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em
1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo. Em 2002,, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. Odiretor concebeu, então, a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratu-
Autômatos Em A Questão da Técnwica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para
mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico. O psicólogo João Augusto Pompeia que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada nos pensamentos de Heidegger vale-se de uma compara-
ção curiosa para tratar do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que O sucesso do imaginemos uma pequena vila na formato, na França costa do Nordeste. Os pescadores ou no Brasil, artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam diz muito sobre invocando proteção e fartura, a convivência curvam-se a outros tantos rituais das pessoas e saem de barco mar afora. Denos centros urbanos e o papel pois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capda arte numa turar alguns peixes. Levam-nos época marcada para casa e os limpam. Em sepela hegemonia guida, comercializam uma parte da técnica e deles e consomem o restante. Só daquilo que hoje obterão sucesso em cada etapa da compreendemos jornada se mantiverem uma relacomo eficiência. ção profunda com o oceano, os o mistério. Tudo deve se subme- ventos, a embarcação, a comunter aos imperativos da razão e da idade onde vivem e os próprios vontade. “Conhecer” e “saber” peixes. Já na grande indústria, são os verbos que norteiam o para ser pescador, basta apertar
um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostra-se suficiente para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso ne-
O evento cria uma zona de exceção – um espaço de convivência que permite à cidade fugir dos padrões mecanizados. nhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa. A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.
Meu ponto de vista 3
itamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
Virada Cultural >
Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE.
Meu ponto de vista 2
POR André Toso DESIGN Natasha Carvalho POR João de Deus
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza.O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural que chega à nona edição mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma. O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes
Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo. Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. O diretor concebeu, então, a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente.
Autômatos
Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (18891976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”.Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico. O psicólogo João Augusto Pompeia que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada nos pensamentos de Heidegger vale-se de uma comparação curiosa para tratar do mesmo assunto.Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica,
não de encontros.ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comerTampouco existe a necessidade cializam uma parte deles e conde uma tradição. Basta seguir somem o restante. Só obterão um manual. A técnica, impes- sucesso em cada etapa da jornada soal, revela-se autônoma e disso- se mantiverem uma relação prociada do sujeito que a executa.A funda com o oceano, os ventos, a rotina de uma cidade como São embarcação, a comunidade onde Paulo, não raro, lembra a do pes- vivem e os próprios peixes. Lecador moderno. Os habitantes vam-nos para casa e os limpam. da metrópole, premidos por in- Em seguida, comercializam uma úmeros compromissos e obstácu- parte deles e consomem o restanlos, mergulham facilmente na im- te. Só obterão sucesso em cada pessoalidade. Transformam-se em etapa da jornada se mantiverem autômatos, tão artífices quanto uma relação profunda com o reféns de uma técnica sem alma. oceano, os ventos, a embarcação, O “cada um de nós” é substituí- a comunidade onde vivem e os do pelo “todo mundo” e o espaço próprios peixes Já na grande inpúblico se converte num local de dústria, para ser pescador, basta apertar um botão. passagem, O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostra-se suficiente para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe.
Meu ponto de vista 3
Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural.O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência
Virada Cultural >
Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE. POR André Toso DESIGN Paulo Felix FOTOGRAFIA João de Deus Em 2012, foram 15 km de vias
ao longo de 24 horas. Neste mês, entre
O formato do evento se inspira
tomadas por mais de mil atrações (es-
os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir,
numa ideia despretensiosa da cidade
pecialmente musicais), 4 milhões de
Meu ponto de vista 2
pessoas circulando, um investimento
francesa de Nantes. Em 1989, o pre-
O sucesso do formato, na França
feito Jean-Marc Ayrault pensou em
de R$ 8 milhões e uma estrutura que
ou no Brasil, diz muito sobre a
maneiras de renovar o Centro e convi-
contou com mil banheiros químicos,
convivência das pessoas nos
dou o diretor artístico Jean Blaise para
3,4 mil agentes de segurança, 57 am-
centros urbanos e o papel da
ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival de-
bulâncias, dez equipes de coleta sele-
arte numa época marcada
sAllumées, que oferecia uma program-
tiva de lixo e 60 caminhões-pipa para
pela hegemonia da técnica
ação cultural diversificada à popula-
a limpeza. O transporte público fun-
ção, sempre em espaços públicos. Os
cionou sem parar, inclusive de madruga-
e a Virada Cultural - que chega à nona
shows e demais atrações começavam à
da, e os carros não puderam trafegar em
edição - mais uma vez fará São Paulo
tardinha e terminavam pela manhã. O
parte do chamado Centro Velho. Tudo
descansar de si mesma.
movimento, que durou de 1990 a 1995,
países da Europa e de outras partes do mundo. Em 2002,, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise
os limpam. Em seguida, comercial-
muito sobre a convivência das pessoas
izam uma parte deles e consomem
nos centros urbanos e o papel da arte
o restante. Só obterão sucesso em
numa época marcada pela hegemonia da
cada etapa da jornada se manti-
técnica e daquilo que hoje compreende-
verem uma relação profunda com
mos como eficiência.
o oceano, os ventos, a embarca-
Autômatos
ção, a comunidade onde vivem e os
Em A Questão da Técnica, con-
próprios peixes. Já na grande indús-
ferência de 1953, o filósofo alemão Mar-
tria, para ser pescador, basta apertar
tin Heidegger (1889-1976) afirmava
um botão. O técnico se refugia na
que, atualmente, já não há mais lugar
cabine de um barco, praticamente
para o mistério. Tudo deve se submeter
sem contato com o exterior, dá um
aos imperativos da razão e da vontade.
comando e a rede faz todo o ser-
“Conhecer” e “saber” são os verbos que
viço. Os peixes seguem para um re-
norteiam o mundo contemporâneo,
frigerador e, de lá, para o transporte.
sobrepondo-se a outros, como “experi-
Muitas vezes, o pescador sequer vê
mentar” ou “intuir”. Se algo permanece
os animais. Um treinamento rápi-
ignorado, é porque ainda não passou
do mostra-se suficiente para garan-
pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou
tir a eficácia do profissional. Não é
melhor: ainda não se submeteu à téc-
preciso nenhuma relação, nenhum
nica, vista aqui sob um prisma essencial-
vínculo com o mar ou com o peixe.
mente objetivo e asséptico.
Tampouco existe a necessidade de
O psicólogo João Augusto Pom-
uma tradição. Basta seguir um man-
peia – que se dedica à daseinsanalyse,
ual. A técnica, impessoal, revela-se
linha psicoterápica baseada nos pensa-
autônoma e dissociada do sujeito
mentos de Heidegger – vale-se de uma
que a executa.
comparação curiosa para tratar do mes-
A rotina de uma cidade como
mo assunto. Professor da PUC-SP e
São Paulo, não raro, lembra a do
autor do livro Os Dois Nascimentos
pescador moderno. Os habitantes
do Homem: Escritos sobre Terapia e
da metrópole, premidos por in-
Educação na Era da Técnica, ele pede
úmeros compromissos e obstáculos,
que imaginemos uma pequena vila na
mergulham facilmente na impesso-
dade Luz. Odiretor concebeu, então, a
costa do Nordeste. Os pescadores arte-
alidade. Transformam-se em autô-
NuitBlanche: uma noite em que toda a
sanais do lugarejo saltam da cama an-
matos, tão artífices quanto reféns
capital francesa seria invadida por man-
tes de o Sol nascer, rezam invocando
de uma técnica sem alma. O “cada
ifestações artísticas, com museus, gale-
proteção e fartura, curvam-se a outros
um de nós” é substituído pelo “todo
rias e teatros abertos gratuitamente.
tantos rituais e saem de barco mar afo-
mundo” e o espaço público se con-
Três anos depois, na gestão do prefeito
ra. Depois de jogarem a rede na água,
verte num local de passagem, não de
José Serra, São Paulo adaptou o concei-
aguardam com paciência até capturar
encontros.
to e criou a Virada Cultural. O sucesso
alguns peixes. Levam-nos para casa e
para criar um evento parecido na Ci-
O evento cria uma zona de exceção – um espaço de convivência que permite à cidade fugir dos padrões mecanizados.
Meu ponto de vista 3
acabou se espalhando por mais de 20
do formato, na França ou no Brasil, diz
Virada Cultural >
Título: Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE.
Meu ponto de vista 2
André Toso | Design Rodrigo Barros | Fotografia João de Deus
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 mil-
da à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990
hões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhõespipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural - que chega à nona edição - mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma. O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversifica-
a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de
artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
: O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel Autômatos da arte numa Em A Questão da Técniépoca marcada ca, conferência de 1953, o filópela hegemonia sofo alemão Martin Heidegger da técnica e (1889-1976) afirmava que, atdaquilo que hoje ualmente, já não há mais lugar compreendemos para o mistério. Tudo deve como eficiência. outras partes do mundo. Em 2002,, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. Odiretor concebeu, então, a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações
se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda
guida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostrase suficiente para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessoal,
revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa.
O evento cria uma zona de exceção – um espaço de convivência que permite à cidade fugir dos padrões mecanizados. A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.
Meu ponto de vista 3
não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico. O psicólogo João Augusto Pompeia – que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada nos pensamentos de Heidegger – vale-se de uma comparação curiosa para tratar do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em se-
Virada Cultural]
Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE.
Meu ponto de vista 2
Texto André Toso | Design Rubens de Andrade | Fotografia João de Deus
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por sa seria invadida por manifestações artísticas, com mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. milhões de pessoas circulando, um investimento de Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Culbanheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, tural. O sucesso do formato, na França ou no Bra57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de sil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O trans- centros urbanos e o papel da arte numa época marporte público funcionou sem parar, inclusive de cada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje madrugada, e os carros não puderam trafegar em compreendemos como eficiência. parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de Autômatos 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose Em A Questão da Técnica, conferência de deverá se repetir, e a Virada Cultural - que chega à 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889nona edição - mais uma vez fará 1976) afirmava que, atualmente, “O sucesso do São Paulo descansar de si mesma. já não há mais lugar para o misformato diz muito O formato do evento se intério. Tudo deve se submeter aos sobre a convivência spira numa ideia despretensioimperativos da razão e da vontade. das pessoas nos sa da cidade francesa de Nantes. “Conhecer” e “saber” são os vercentros urbanos e o Em 1989, o prefeito Jean-Marc bos que norteiam o mundo conAyrault pensou em maneiras de papel da arte numa temporâneo, sobrepondo-se a época marcada renovar o Centro e convidou o outros, como “experimentar” ou pela hegemonia diretor artístico Jean Blaise para “intuir”. Se algo permanece ignoajudá-lo. Nascia, assim, o Festival rado, é porque ainda não passou da técnica” desAllumées, que oferecia uma pelo crivo da pesquisa e do cálcuprogramação cultural diversificada à população, lo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, sempre em espaços públicos. Os shows e demais vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo atrações começavam à tardinha e terminavam pela e asséptico. manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, O psicólogo João Augusto Pompeia – que se acabou se espalhando por mais de 20 países da Eu- dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada ropa e de outras partes do mundo. nos pensamentos de Heidegger – vale-se de uma Em 2002,, o prefeito de Paris, Bertrand Dela- comparação curiosa para tratar do mesmo assunto. noë, convidou Blaise para criar um evento parecido Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nasna Cidade Luz. Odiretor concebeu, então, a Nuit- cimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e EduBlanche: uma noite em que toda a capital france- cação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos
viço. Os peixes seguem para um amento rápido mostra-se suficirefrigerador e, de lá, para o trans- ente para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenO evento cria uma huma relação, nenhum vínculo zona de exceção com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de – um espaço de uma tradição. Basta seguir um convivência que manual. A técnica, impessoal, permite à cidade revela-se autônoma e dissociada fugir dos padrões do sujeito que a executa. mecanizados. A rotina de uma cidade Ainda que momentaneamente, como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os a população pula habitantes da metrópole, premifora da realidade dos por inúmeros compromissos construída pela e obstáculos, mergulham faciltécnica e afrouxa mente na impessoalidade. Transos mecanismos formam-se em autômatos, tão de segurança e artífices quanto reféns de uma controle em que técnica sem alma. O “cada um costuma se enredar. de nós” é substituído pelo “todo porte. Muitas vezes, o pescador mundo” e o espaço público se sequer vê os animais. Um trein- converte num local de passagem, não de encontros.
Meu ponto de vista 3
uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o ser-
Virada Cultural >
Pescaria na Megalópole
As insuspeitadas semelhanças entre a Virada Cultural, em São Paulo, e uma vila de pescadores no Nordeste. exto André Toso | Design [Taiamara Gomes] | Fotografia João de Deus Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural - que chega à nona edição - mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma. O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes. Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras
nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
Autômatos Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) afirmava
Meu ponto de vista 2
O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência. de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo. Em 2002,, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. Odiretor concebeu, então, a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas
que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico.
O psicólogo João Augusto Pompeia ă TXH VH GHGLFD j GDVHLQVDQDOyse, linha psicoterápica baseada nos pensamentos de Heidegger ă YDOH VH GH XPD FRPSDUDomR FXriosa para tratar do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos
dor, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seg-
para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pesca-
uem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostra-se suficiente para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição.
Basta seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa. A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artí-
fices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.
Meu ponto de vista 3
O evento cria uma zona de exceção – um espaço de convivência que permite à cidade fugir dos padrões mecanizados. Ainda que momentaneamente, a população pula fora da realidade construída pela técnica e afrouxa os mecanismos de segurança e controle em que costuma se enredar.
Virada Cultural
Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE Texto André Toso | DesignVanessa Freitas| Fotografia João de Deus
Meu ponto de vista 2
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhões-pipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho.Tudo ao longo de 24 horas.Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose deverá se repetir, e a Virada Cultural que chega à nona edição mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma.
O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes.Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo.Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã.O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo.
O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da
Autômatos Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério.Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade.“Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”.Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo.Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico. O psicólogo João Augusto Pompeia que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterápica baseada nos pensamentos de Heidegger vale-se de uma comparação curiosa para tratar do mesmo assunto.Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste.Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora.
Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam.Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante.Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão.O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um coman do e a rede faz todo o serviço.Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte.Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostra-se suficiente para garantir a eficácia do profissional.Não é preciso nenhuma relação, nenhum vínculo com o mar ou com o peixe.Tampouco existe a necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual.A técnica, impessoal, revelase autônoma e dissociada do sujeito que a executa. A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno.Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma.O“Cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.
O evento cria uma zona de exceção um espaço de convivência que permite à cidade fugir dos padrões mecanizados.Ainda que momentaneamente, a população pula fora da realidade construída pela técnica e afrouxa os mecanismos de segurança e controle em que costuma se enredar. Meu ponto de vista 3
Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. Odiretor concebeu, então, a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente.Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural.O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
Virada Cultural]
Pescaria na Megalópole AS INSUSPEITADAS SEMELHANÇAS ENTRE A VIRADA CULTURAL, EM SÃO PAULO, E UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE
Meu ponto de vista 2
Texto André Toso | Design Zaira Umbelina | Fotografia João de Deus
Em 2012, foram 15 km de vias tomadas por mais de mil atrações (especialmente musicais), 4 milhões de pessoas circulando, um investimento de R$ 8 milhões e uma estrutura que contou com mil banheiros químicos, 3,4 mil agentes de segurança, 57 ambulâncias, dez equipes de coleta seletiva de lixo e 60 caminhõespipa para a limpeza. O transporte público funcionou sem parar, inclusive de madrugada, e os carros não puderam trafegar em parte do chamado Centro Velho. Tudo ao longo de 24 horas. Neste mês, entre os dias 18 e 19, a dose de-
verá se repetir, e a Virada Cultural - que chega à nona edição - mais uma vez fará São Paulo descansar de si mesma.
O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte O formato do evento se inspira numa ideia despretensiosa da cidade francesa de Nantes.
Em 1989, o prefeito Jean-Marc Ayrault pensou em maneiras de renovar o Centro e convidou o diretor artístico Jean Blaise para ajudá-lo. Nascia, assim, o Festival desAllumées, que oferecia uma programação cultural diversificada à população, sempre em espaços públicos. Os shows e demais atrações começavam à tardinha e terminavam pela manhã. O movimento, que durou de 1990 a 1995, acabou se espalhando por mais de 20 países da Europa e de outras partes do mundo. Em 2002, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, convidou
Autômatos
Em A Questão da Técnica, conferência de 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (18891976) afirmava que, atualmente, já não há mais lugar para o mistério. Tudo deve se submeter aos imperativos da razão e da vontade. “Conhecer” e “saber” são os verbos que norteiam o mundo contemporâneo, sobrepondo-se a outros, como “experimentar” ou “intuir”. Se algo permanece ignorado, é porque ainda não passou pelo crivo da pesquisa e do cálculo. Ou melhor: ainda não se submeteu à técnica, vista aqui sob um prisma essencialmente objetivo e asséptico. O psicólogo João Augusto Pompeia – que se dedica à daseinsanalyse, linha psicoterá-
pica baseada nos pensamentos de Heidegger – vale-se de uma comparação curiosa para tratar do mesmo assunto. Professor da PUC-SP e autor do livro Os Dois Nascimentos do Homem: Escritos sobre Terapia e Educação na Era da Técnica, ele pede que imaginemos uma pequena vila na costa do Nordeste. Os pescadores artesanais do lugarejo saltam da cama antes de o Sol nascer, rezam invocando proteção e fartura, curvam-se a outros tantos rituais e saem de barco mar afora. Depois de jogarem a rede na água, aguardam com paciência até capturar alguns peixes. Levam-nos para casa e os limpam. Em seguida, comercializam uma parte deles e consomem o restante. Só obterão sucesso em cada etapa da jornada se mantiverem uma relação profunda com o oceano, os ventos, a embarcação, a comunidade onde vivem e os próprios peixes. Já na grande indústria, para ser pescador, basta apertar um botão. O técnico se refugia na cabine de um barco, praticamente sem contato com o exterior, dá um comando e a rede faz todo o serviço. Os peixes seguem para um refrigerador e, de lá, para o transporte. Muitas vezes, o pescador sequer vê os animais. Um treinamento rápido mostra-se suficiente para garantir a eficácia do profissional. Não é preciso nenhuma relação, nenhum vín-
culo com o mar ou com o peixe. Tampouco existe a necessidade de uma tradição. Basta seguir um manual. A técnica, impessoal, revela-se autônoma e dissociada do sujeito que a executa.
O evento cria uma zona de exceção – um espaço de convivência que permite à cidade fugir dos padrões mecanizados. de segurança e Ainda que momentaneamente, a população pula fora da realidade construída pela técnica e afrouxa e controle em que costuma se enredar costuma se enredar A rotina de uma cidade como São Paulo, não raro, lembra a do pescador moderno. Os habitantes da metrópole, premidos por inúmeros compromissos e obstáculos, mergulham facilmente na impessoalidade. Transformam-se em autômatos, tão artífices quanto reféns de uma técnica sem alma. O “cada um de nós” é substituído pelo “todo mundo” e o espaço público se converte num local de passagem, não de encontros.
Meu ponto de vista 3
Blaise para criar um evento parecido na Cidade Luz. Odiretor concebeu, então, a NuitBlanche: uma noite em que toda a capital francesa seria invadida por manifestações artísticas, com museus, galerias e teatros abertos gratuitamente. Três anos depois, na gestão do prefeito José Serra, São Paulo adaptou o conceito e criou a Virada Cultural. O sucesso do formato, na França ou no Brasil, diz muito sobre a convivência das pessoas nos centros urbanos e o papel da arte numa época marcada pela hegemonia da técnica e daquilo que hoje compreendemos como eficiência.
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